“Visando repelir injusta agressão”

uma sociologia dos accounts policiais e das investigações dos casos de letalidade policial em Minas Gerais

Autores

DOI:

https://doi.org/10.1590/18070337-118639

Palavras-chave:

organizações policiais, letalidade policial, controle externo da atividade policial, violência policial, investigação

Resumo

Entre 2012 e 2021, 1.146 pessoas morreram em decorrência de intervenções policiais em Minas Gerais. Em quase todos esses casos, a narrativa oficial dos boletins de ocorrência foi de que essas mortes se deram em situações de “confronto”, nas quais os policiais, atuado no “estrito cumprimento do dever legal”, usaram “moderadamente dos meios de força necessários” para “repelir injusta agressão”. Já há no Brasil farta literatura demonstrando que a mobilização dessa gramática, já nos registros iniciais, é a primeira etapa de uma cadeia de procedimentos que, ao final, quase sempre resultará na aplicação jurídica da “excludente de ilicitude” à letalidade policial. Dialogando com essa produção, este artigo apresenta os principais resultados de um estudo de caso sobre o processamento investigativo da letalidade policial militar em Minas Gerais. A partir de abordagem etnometodológica, buscou-se compreender como um complexo sistema de representações, discursos e cognições compartilhadas entre policiais sustenta a construção de accounts sobre os casos de letalidade, dando a eles a forma jurídica da “legítima defesa”. Em termos metodológicos, o estudo se vale da análise de 3.605 B.O. sobre mortes e ferimentos decorrentes de intervenções policiais registradas no estado entre 2013 e 2018, bem como de 25 entrevistas com atores-chave das forças policiais e do Ministério Público. A pesquisa revela que, no campo discursivo, a Polícia Militar de Minas Gerais tem adotado estratégias institucionais para padronizar as narrativas inseridas nos registros de letalidade (boletins de ocorrência e inquéritos policiais militares), já acionando, nesses documentos, a gramática necessária à fundamentação da excludente de ilicitude na etapa judicial. Em termos procedimentais, a corporação tem não apenas assumido a investigação de seus próprios casos letalidade, mas também interditado tentativas de apurações externas feitas pela Polícia Civil. Já na esfera política/institucional, a Polícia Militar tem sistematicamente ignorado determinações do Ministério Público, esgarçando possibilidades de controle externo de sua atividade.

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Biografia do Autor

Luís Felipe Zilli, Fundação João Pinheiro

Luís Felipe Zilli é Doutor em Sociologia (UFMG) e pesquisador em Ciência e Tecnologia da Fundação João Pinheiro (FJP/MG), vinculado à Diretoria de Políticas Públicas (DPP) e ao Núcleo de Estudos em Segurança Pública (NESP).

Amanda Matar de Figueiredo, Fundação João Pinheiro

Amanda Matar de Figueiredo é doutoranda em Sociologia (UFMG), Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.integra a equipe do Núcleo de Estudos em Segurança Pública da Fundação João Pinheiro.

Marcus Vinícius Gonçalves da Cruz, Fundação João Pinheiro

Amanda Matar de Figueiredo é doutoranda em Sociologia (UFMG), Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.integra a equipe do Núcleo de Estudos em Segurança Pública da Fundação João Pinheiro.

 

Karina Rabelo Leite Marinho, Fundação João Pinheiro

Karina Rabelo Leite Marinho é Doutora em Sociologia e Ciências Humanas e professora da Escola de Governo da Fundação João Pinheiro.

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Publicado

2023-05-04

Como Citar

ZILLI, L. F.; DE FIGUEIREDO, A. M.; GONÇALVES DA CRUZ, M. V.; LEITE MARINHO, K. R. “Visando repelir injusta agressão”: uma sociologia dos accounts policiais e das investigações dos casos de letalidade policial em Minas Gerais. Sociologias, [S. l.], v. 25, n. 62, 2023. DOI: 10.1590/18070337-118639. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/sociologias/article/view/118639. Acesso em: 18 abr. 2024.

Edição

Seção

Artigos