Direito Penal e Estado Democrático de Direito: a aplicação da lei penal a serviço da democracia
DOI:
https://doi.org/10.22456/0104-6594.62720Palavras-chave:
Democracia, Cidadania, Estado Democrático de Direito, Controle social, Desigualdade Social, Direito PenalResumo
Partindo-se do entendimento de que a aplicação das leis punitivas estatais deve ser extremamente comprometida com os ideais democráticos expostos na Constituição Federal, a presente pesquisa tem como objetivo principal fomentar as discussões referentes à realidade prática desse compromisso, analisando, de forma crítica, a discrepância existente entre teoria e prática no que tange à efetividade dos mecanismos de controle social na manutenção dos ideais democráticos em um ambiente sustentado pela dominação de classes. Ademais, o trabalho produzido tem como escopo compreender o real significado de democracia e Estado Democrático de Direito no contexto político, econômico e social do Estado brasileiro contemporâneo, bem como propor idéias para superar a enorme e persistente crise do sistema penal pátrio, uma vez que a realidade se encontra bem distante do ideal a ser perseguido.Downloads
Referências
“Estado social, qual entendemos, é democracia, não é decreto-lei nem medida de exceção. É Estado de Direito, não é valhacouto de ambições prostituídas ao continuísmo dos poderes dos mandatos. É governo, não é tráfico de influências que avilta valores sociais. É poder responsável e não entidade pública violadora dos interesses do país e alienadora da soberania. Estado social, por derradeiro, é a identidade da nação mesma, expressa por um constitucionalismo de libertação, por um igualitarismo de democratização e por um judicialismo de salvaguarda dos direitos fundamentais. Em outras palavras, Estado social é na substância a democracia participativa que sobe ao poder para executar um programa de justiça, liberdade e segurança. ” (BONAVIDES, 2001, p.11)”
Afloram, pois, da Constituição Federal, inúmeros princípios materiais que vinculam o Estado ao Direito, princípios estes que ao reconhecerem a supremacia da garantia dos direitos fundamentais, objetivam impedir que o poder sufoque a democracia, ou com ela se confunda, o que, em última instância, acaba por se constituir em uma estrutura política conformadora do Estado. (CANOTILHO, 2002, p.87).
Sore o tema, para Streck e Morais (2001, p.98), são princípios do Estado Democrático de Direito: “Constitucionalidade: vinculação do Estado Democrático de Direito a uma Constituição como instrumento básico de garantia jurídica; organização democrática da sociedade; sistema de direitos fundamentais e coletivos, seja como Estado de distância, porque os direitos fundamentais asseguram ao homem uma autonomia perante os poderes públicos, seja como um Estado antropologicamente amigo, pois respeita a dignidade da pessoa humana e empenha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidariedade; justiça social como mecanismos corretivos das desigualdades; igualdade não apenas como possibilidade formal, mas, também como articulação de uma sociedade justa; divisão de poderes ou de funções; legalidade que aparece como medida do direito, isto é, através de um meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo, de regras, formas e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência; segurança e certeza jurídicas.”
“Esta concepção puramente formal da validade é, a meu ver, fruto de uma simplificação, que, por sua vez, deriva de uma incompreensão da complexidade da legalidade no Estado Constitucional de Direito a que nos referimos. O sistema das normas sobre a produção das normas – estabelecido geralmente, nos nossos ordenamentos, em nível constitucional – não se compõe efetivamente só de normas formais sobre a competência ou sobre o procedimento de criação das leis. Esse sistema inclui também normas substanciais, como o princípio da igualdade e os direitos fundamentais, que de diversas formas limitam e vinculam o Poder Legislativo, vedando-lhe ou impondo-lhe determinados conteúdos. Por isso uma norma – por exemplo uma lei que viole o princípio constitucional da igualdade – embora formalmente existente ou vigente, pode ser inválida e como tal suscetível de anulação, por contrariar uma norma substancial sobre sua produção”.Ferrajoli (1997, p. 95)
Sobre a dignidade, Rabenhorst (2001, p. 14) explica: “O termo dignidade, do latim dignitas, designa tudo aquilo que merece respeito, consideração, mérito ou estima. Apesar de a língua portuguesa permitir o uso tanto do substantivo dignidade como do adjetivo digno para falar das coisas (quando dizemos por exemplo que uma moradia é digna), a dignidade é acima de tudo uma categoria moral que se relaciona com a própria representação que fazemos da condição humana, ou seja, ela é a qualidade ou valor particular que atribuímos aos seres humanos em função da posição que eles ocupam na escala dos seres”.
Bobbio (1992, p.83):“Uma coisa é um direito; outra, a promessa de um direito futuro. Uma coisa é um direito atual; outra é um direito potencial. Uma coisa é ter um direito que é, enquanto reconhecido e protegido; outra é ter um direito que deve ser, mas que, para ser ou para que passe do dever ser ao ser, precisa transformar-se, de objeto de discussão de uma assembleia de especialistas, em objeto de decisão de um órgão legislativo dotado de poder de coerção.”
Guimarães (2010, p. 107): “É mister que o povo, responsável por tomar tais decisões políticas, seja posto em reais condições de decidir, através da compreensão e definição de suas necessidades, e, principalmente, no ato de cobrar das autoridades representantes eleitas pelo povo o cumprimento da demanda estabelecida.”
Silva (2002, p. 119):“A democracia que o Estado democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art., 3°, I), em que o poder emana do povo e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1°, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e a formação de atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.”
Streck e Morais (2001, p.109) é possível dizer, a par da dificuldade de conceituar a democracia, que existem alguns traços que a distinguem de outras formas sociais e políticas: em primeiro lugar, a democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o conflito legítimo, uma vez que não só trabalha politicamente os conflitos de necessidades e de interesses, como procura institui-los como direitos e, como tais, exige que sejam reconhecidos e respeitados. Mais do que isto, nas sociedades democráticas indivíduos e grupos organizam-se em associações, movimentos sociais e populares, classes se organizam em sindicatos, criando um contra - poder social que direta, ou indiretamente, limita o poder do Estado; em segundo lugar, a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo.
Sobre a democracia, Bobbio (2000, p. 10) contribui advertindo que “Na produção contínua de livros sobre a democracia, esta aparece nos exemplos citados como objeto a ser comparado com alguma outra coisa. Mas também aparece frequentemente como conceito genérico que requer uma especificação: democracia liberal, socialista, corporativa, popular (nos dias de hoje um pouco em desuso) e até mesmo totalitária, democracia dos antigos e dos modernos, populista ou elitista, pluralista, consensual ou majoritária, e assim por diante. Não há autor que se respeite que, propondo a sua própria teoria da democracia, para renovar ou ‘revisitar’ a discussão, não tenha elaborado uma nova tipologia das várias formas de regimes democráticos”.
Kelsen (2000, p. 35): “A democracia, no plano da ideia, é uma forma de Estado e de sociedade em que a vontade geral, ou, sem tantas metáforas, a ordem social, é realizada por quem está submetido a essa ordem, isto é, pelo povo. Democracia significa identidade entre governantes e governados, entre sujeito e objeto do poder, governo do povo sobre o povo.”
Bobbio (2000, p. 32):“[...] mesmo para uma definição mínima de democracia, como é a que aceito, não bastam nem a atribuição a um elevado número de cidadãos do direito de participar direta ou indiretamente da tomada de decisões coletivas, nem a existência de regras de procedimento como a da maioria (ou, no limite, da unanimidade). É indispensável uma terceira condição: é preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra. Para que se realize esta condição é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação etc. – os direitos a base dos quais nasceu o Estado liberal e foi construída a doutrina do Estado de direito em sentido forte, isto é, do Estado que não apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos ‘invioláveis’ do indivíduo.”
Rabenhorst (2001, pp. 47-48):[...] mais do que um mero sistema político. Ela é aquilo que reveste a própria ideia de Estado de direito. Com efeito, um Estado de Direito não é simplesmente aquele que cumpre os princípios formais da legalidade, da publicidade e do equilíbrio entre os poderes. Ele é, acima de tudo, o Estado que reconhece e protege o exercício mútuo das liberdades. [...] Se existe algum fundamento último para a democracia, ele não pode ser outra coisa senão o próprio reconhecimento da dignidade humana.
Guimarães (2010, p.117):“É no mínimo perigoso que se limite o entendimento da democracia à manutenção das regras do jogo, haja vista que tais regras sempre são postas por uma minoria e, o que é pior, com amplas possibilidades de manipulação dos resultados que advém do jogo jogado com tais regras.”
Bobbio et al (1997, pp.327-328): "Na teoria política contemporânea, mais em prevalência nos países de tradição democrático-liberal, as definições de Democracia tendem a resolver-se e a esgotar-se num elenco mais ou menos amplo, segundo os autores, de regras de jogo, ou, como também se diz, de “procedimentos universais”. Entre estas: 1) o órgão político máximo, a quem é assinalada a função legislativa, deve ser composto de membros direta ou indiretamente eleitos pelo povo, em eleições de primeiro ou de segundo grau; 2) junto ao supremo órgão legislativo deverá haver outras instituições com dirigentes eleitos, como os órgãos da administração local ou o chefe de Estado (tal como acontece nas repúblicas); 3) todos os cidadãos que tenham atingido a maioridade, sem distinção de raça, de religião, de censo e possivelmente de sexo, devem ser eleitores; 4) todos os eleitores devem ter voto igual; 5) todos os eleitores devem ser livres em votar segundo a própria opinião formada o mais livremente possível, isto é, numa disputa livre de partidos políticos que lutam pela formação de uma representação nacional; 6) devem ser livres também no sentido em que devem ser postos em condição de ter reais alternativas (o que exclui como democrática qualquer eleição de lista única ou bloqueada); 7) tanto para as eleições dos representantes como para as decisões do órgão político supremo vale o princípio da maioria numérica, se bem que podem ser estabelecidas várias formas de maioria segundo critérios de oportunidade não definidos de uma vez para sempre; 8) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, de um modo especial o direito de tornar-se maioria, em paridade de condições; 9) o órgão do Governo deve gozar de confiança do Parlamento ou do chefe do poder executivo, por sua vez, eleito pelo povo."
Guimarães (2010, p.120): “Democracia e cidadania, portanto, são instituições extremamente ligadas. A democracia real facilita o acesso à ampla cidadania e dela precisa para se manter e continuar efetiva. Ambas, assim, se pressupõem, razão pela qual não se chega à plena democracia sem o exercício da cidadania, assim como não existe cidadania plena sem o exercício da democracia.”
Morais e Streck (2001, p. 104) :“Além disso, é evidente que a democracia requer grande dose de justiça social e razoável preservação do habitat nacional e das fontes de recursos, como lembra Karl Deutsch, para preservar o cidadão de amanhã. Não é possível falar em democracia em meio a indicadores econômico-sociais que apontam para a linha (ou abaixo da) linha de pobreza. Uma grande dose de justiça social é condição de possibilidade da democracia.”
Guimarães (2010, p.123): “A luta da maioria dos brasileiros hoje, não é política, e sim, pelo prato de comida que lhes garanta a sobrevivência no dia a dia: não é possível, a grandes segmentos populacionais, viver a plenitude de direitos garantidos constitucionalmente, pois somente sobrevivem com os restos permitidos aos excluídos sociais.”
Baratta (1999, p. 196):“Esta estratégia conduz, de fato, a uma ‘democracia autoritária’, a uma sociedade em que se torna sempre mais alta a barreira que divide a população garantida da zona sempre mais vasta da população marginalizada da dinâmica do mercado oficial do trabalho. Nessa situação, o ‘desvio’ deixa de ser uma ocasião – difusa em todo o tecido social – para recrutar uma restrita população criminosa, como indica Foucault, para transformar-se, ao contrário, no status habitual de pessoas não garantidas, ou seja, daqueles que não são sujeitos, mas somente objetos do novo ‘pacto social’.”
Zaffaroni et al. (2003, p. 94): “Ambos são modelos ideais. É possível descobrir na história uma tendência ao progresso do estado de direito, mas ele sofre marchas e contramarchas e sua realização em conformidade com o modelo ideal cumpre uma função axial. O simplismo não consiste em distinguir os modelos para esclarecer os respectivos objetivos, mas em ignorar a história e pretender que o estado de direito tenha surgido, com a Constituição da Virgínia ou com a Revolução Francesa, e tenha se instalado para sempre, enquanto o estado de polícia acabou com o antigo regime”
Guimarães (2010, p. 127):“O Estado totalitário penal, que se caracteriza antes de mais nada pela imposição da vontade dos que governam, tem nos aparelhos repressores sua fundamentação e legitimação; prescinde do consenso, sendo a obediência e a submissão as opções dos governados. Antagoniza-se veementemente com a democracia, posto que as decisões são unilaterais e os conceitos de cidadania, direitos humanos e justiça social são meras peças retóricas.”
Baratta (1999, p.198):“Se for para se fazer uso do Direito Penal, que sua utilização seja deslocada dos insignificantes delitos contra o patrimônio, entre outros tantos que não têm o condão de produzir maiores danos sociais, e passe a ser utilizado em importantes zonas de nocividade social que possui ampla imunização, como a criminalidade econômica, ambiental, política, ou seja, que se centralize na criminalidade ligada aos poderosos, esta sim, fator de desestabilização do Estado Social e Democrático.”
Baratta (1999, p.201): “Uma política criminal alternativa coerente com a própria base teórica não pode ser uma política de ‘substitutivos penais’, que permaneçam limitados a uma perspectiva vagamente reformista e humanitária, mas uma política de grandes reformas sociais e institucionais para o desenvolvimento da igualdade, da democracia, de formas de vida comunitária e civil alternativas e mais humanas, e do contra poder proletário, em vista de transformação radical e da superação das relações sociais de produção capitalista.”
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