Dôssie: Literatura, Natureza e Cultura

2025-04-03

Embora as relações entre cultura e natureza sejam frequentemente postuladas como tema afim ao campo das Ciências Sociais, o objetivo deste Dossiê da Revista Nau Literária é o de assinalar como a Literatura e seus desdobramentos críticos e teóricos são um lugar de grande riqueza para se pensar as múltiplas implicações de tal relação. As entradas são muitas: poderíamos começar lembrando da importância dos Estudos Literários e Linguísticos para a conformação do Estruturalismo francês – além de suas refrações naquilo que se habituou a designar como Pós-estruturalismo –, notadamente a importância de Roman Jakobson para a antropologia de Claude Lévi Strauss, para a qual natureza e cultura era um nó decisivo. Regressado um tanto, poderíamos, num sentido radicalmente diverso, relembrar do comumente papel moralizante atribuído à literatura, segundo o qual sua função seria a de realizar uma passagem unívoca da natureza à cultura via domesticação, isto é, a assim chamada purificação dos afetos ou superação do sensível. Isso, inclusive, em muito se assemelha ao posterior ímpeto de correção da natureza a que se propunha o Realismo-Naturalismo, tal como consta nas palavras de Émile Zola em seu fatídico Manifesto, cujo projeto, diga-se de passagem, parece ganhar um trato contestador nas narrativas de Machado de Assis. Pois nelas, diferentemente, não raro se ironiza o modo pelo qual a objetificação dos animais – ou dos irracionais, como os loucos – para experiência (que, no caso, muitas vezes se torna um mero sinônimo para tortura), pedra de toque do naturalismo, acaba se voltando contra o sujeito da manipulação, o qual se torna objeto de sua própria objetificação.   

            Logo, somos remetidos ao debate sobre o inumano, com especial recorrência nas assim chamadas literaturas de testemunho e nas quais os processos de zoomorfização indicam a expropriação da humanidade do outro por meio da violência. Processo no qual as fronteiras entre natureza e cultura, bíos e zoé, igualmente são borradas, no entanto, como objeto de uma decisão soberana sobre se determinada vida merece ou não ser vivida – um exemplo seria a racialização. Mas, se como alertaram os críticos da separação entre bíos e zoé, a domesticação dos corpos e da vida biológica, assim como sua redução à animalidade para fins de punição e correção, sempre esteve no cerne da política moderna, especialmente como condição de acesso ao próprio do humano, caberia pensar a Literatura na forma de crítica a tais processos. Pois, se certa filosofia atribuiu à Literatura uma função moralizante e domesticadora, ela, ao contrário, revela-se frequentemente como o espaço por excelência no qual se produz uma continuidade entre sujeito e objeto, e, logo, uma reversibilidade entre natureza e cultura – seja pela figuração do erotismo, do dionisíaco, da vida sensível, seja pelas diversas formas de rarefação do princípio de individuação, do eu que se multiplica em outros, da confusão deliberada entre real e imaginário, concreto e abstrato, sensível e inteligível etc. Ou seja, não raro a Literatura elabora um apagamento positivo das fronteiras entre cultura e natureza e suas correlações, como, por exemplo, linguagem (lógos) e voz (phoné), na qual o homem recupera sua animalidade de maneira afirmativa. Da mesma forma, pensou-se a Literatura como uma despesa improdutiva por princípio, uma força de resistência à redução à objetificação, contínua e imanente que, ao contrário, produz um reencantamento do mundo circundante por meio do qual ele adquire linguagem e tudo fala: coisas, plantas, animais.  

            Os estudos literários de origem norte-americana têm nos apresentado interessantes enquadramentos: animal studies, ecocriticism, entre vários outros. Mas escolas já consolidadas, como o marxismo, também entram no debate com grandes contribuições, tais como a dos ecossocialistas que, a partir noção marxiana de ruptura metabólica, pensam uma saída ao Capitaloceno: aqui, lembraríamos do notável estudo sobre a dicotomia campo e cidade na literatura, de Raymond Williams. Paralelamente, aqui no Brasil, intelectuais como Raúl Antelo e seu trabalho sobre o primitivismo nas vanguardas;  Maria Esther Maciel, a partir de um olhar sobre a presença dos animais na literatura; e Evando Nascimento, sublinhando o protagonismo vegetal, dão dimensão da riqueza da literatura brasileira frente ao tema a partir de autores como Clarice Lispector, João Guimarães Rosa, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e tantos outros.

 

Convidamos todos à submissão de artigos que investiguem as relações entre natureza e cultura, nas suas diferentes e criativas articulações, especialmente em textos literários de língua portuguesa. 

 

Organizadores: João Guilherme Dayrell e Antonio Barros de Brito Jr.

Prazo de Submissão: 28/07/2025