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A Política do Silêncio: arte e educação na poética do coletivo Política do Impossível

La Politique du Silence: art et éducation dans la poétique du collectif Política do Impossível

Resumo:

O artigo trata das articulações entre arte, política e educação no âmbito da ação Traga Sua Luz, realizada pelo coletivo Política do Impossível em 2008. Destinada a questionar o processo de gentrificação que atingia o bairro da Luz - região central da cidade de São Paulo -, ela consistiu de uma performance coletiva e silenciosa, em que velas e pequenas lâmpadas eram carregadas e depositadas em terrenos desapropriados pela prefeitura. Por meio dos subsídios teóricos de Walter Benjamin, Georges Didi-Huberman, Roland Barthes e Jacques Rancière, o presente artigo elucida de que modo a suspensão do devir meramente comunicativo da linguagem permeia arte, educação e uma política do silêncio.

Palavras-chave:
Ação Artística; Política da Estética; Arte e Política; Coletivos; Educação

Résumé:

L’article est destiné à penser les relations entre art, politique et éducation dans le cadre de Traga Sua Luz, action réalisée en 2008 par le collectif Política do Impossível. Visant à mettre en question le processus de gentrification engendré au quartier de Luz - au centre de São Paulo - il s'agissait d'une performance collective et silencieuse, dans lequel des bougies et des petites lampes ont été portés et déposés sur des terres expropriées par le maire de l'époque. À travers les théories de Walter Benjamin, Georges Didi-Huberman, Roland Barthes et Jacques Rancière, cet article explique comment la suspension du devenir uniquement communicatif du langage imprègne art, éducation et une politique du silence.

Mots-clés:
Action Artistique; Politique de l’Esthétique; Art et Politique; Collectif; Education

Abstract:

The paper aims to think the articulations between art, politics and education within the action titled Traga Sua Luz, carried out in 2008 by Política do Impossível collective. Intended to question the process of gentrification in Luz neighborhood - downtown São Paulo -, it consisted of a silent and collective performance in which candles and small lamps were carried and deposited on lands expropriated by the then mayor. Through the theoretical contributions of Walter Benjamin, Georges Didi-Huberman, Roland Barthes and Jacques Rancière, this paper elucidates how the suspension of the merely communicative function of language permeates art, education and a politics of silence.

Keywords:
Artistic Action; Politics of Aesthetics; Art and Politics; Collectives; Education

Introdução

Baseado na cidade de São Paulo, o coletivo Política do Impossível realizou diversas ações de educação e produção artística coletiva entre os anos de 2007 e 2008. Sua composição incluía participantes de outros coletivos especialmente ativos na capital paulista da primeira década do século XXI, tais como Esqueleto Coletivo, Contrafilé e Frente Três de Fevereiro. Assim como eles, o Política do Impossível se mobiliza nos interstícios entre ativismo e arte. No âmbito do presente artigo, nos atemos especialmente à ação Traga Sua Luz, realizada no ano de 2008 e destinada a questionar o processo de gentrificação1 1 Segundo Bidou-Zachariasen, este termo foi empregado pela primeira vez na década de 1960 por Ruth Glass, que caracterizou o fenômeno como “[...] a transformação da composição social dos residentes de certos bairros centrais, por meio da substituição de camadas populares por camadas médias assalariadas; e de um processo de natureza diferente: o de investimento, reabilitação e apropriação, por estas camadas sociais, de um estoque de moradias e de bairros operários ou populares” (Bidou-Zachariasen, 2006, p. 22). Pesquisas mais recentes realizadas em diversas cidades do mundo em volta desse tema destacam “[...] os mesmos tipos de fatores que representam as práticas ‘espontâneas’ dos habitantes, seus instrumentos técnicos (financiamentos, empréstimos imobiliários, etc.) e as políticas ‘voluntaristas’ das administrações locais” (Bidou-Zachariasen, 2006, p. 29). que atingia o bairro da Luz, implicando na rápida expulsão de populações locais e usuários de crack dessa região central da cidade de São Paulo. Em uma publicação do coletivo, encontramos o seguinte diagnóstico do processo que o governo começara a deflagrar:

No bairro da Luz, ‘com o poder da fiscalização e da lacração administrativa’ e partindo de um decreto de utilidade pública que determina uma área de 269 mil metros quadrados para desapropriações, a prefeitura vem fiscalizando, interditando, desapropriando e demolindo imóveis da região, para dar lugar às empresas que considera mais dignas de créditos, como agências de publicidade, call centers e empresas de cultura, tecnologia e informação. Esses créditos, que se traduzem em dinheiro público, ganham forma de descontos em impostos municipais e ‘certificados de desenvolvimento’ (Coletivo Política do Impossível, 2008aCOLETIVO POLÍTICA DO IMPOSSÍVEL. Cidade Luz: uma investigação no centro de São Paulo. São Paulo: Editora PI, 2008a., p. 24).

A intervenção proposta pelo Política do Impossível, a ser detalhada com maior minúcia, consistiu da mobilização de uma caminhada noturna pela Luz, realizada silenciosa e coletivamente, na qual cada participante portava velas e suportes luminosos que ao final eram depositados em terrenos desapropriados pela prefeitura.

Embora pudéssemos aproximar essa ação ao universo da performance, a categoria não dá conta da proposição do coletivo, muito embora alguns registros fotográficos de suas intervenções tenham sido eventualmente incorporados a exposições artísticas e coleções de museus2 2 Conferir, a esse respeito, o Fundo Criatividade Coletiva/Doação Funarte, formado por meio da 6ª edição do Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça, abrigado no Museu de Arte do Rio. . Em todo caso, não nos interessa o ímpeto de classificar ou inseri-la no âmbito de uma história da arte, mas observar especialmente a maneira como o coletivo parte de pautas e reivindicações próprias dos movimentos sociais para produzir ações encharcadas de um caráter poético3 3 Aqui não compreendemos a poética segundo as lógicas que Jacques Rancière circunscreve sob a alcunha de Regime Poético. Correspondente ao Representativo, este estaria regido segundo o conjunto de concepções aristotélicas. Quando nos referimos a uma poética tratamos justamente da identidade de contrários, da disjunção entre poiesis e aisthesis que caracteriza o âmbito que o filósofo chama de Regime Estético (Rancière, 2009a). .

Ao longo deste artigo também mostramos de que modo o Política do Impossível articula um ativismo que não se baseia nos meios mais corriqueiros de mobilização política, a saber: a aposta na efetividade da difusão transparente de uma pauta que, pela denúncia das estruturas e conflitos sociais, levaria a uma tomada de consciência. Mais profundamente - ou mais superficialmente4 4 Para o filósofo Jacques Rancière a “política é coisa estética, questão de aparência” (Rancière, 1996, p. 82). -, explicitamos que Traga Sua Luz privilegia a irrupção de fissuras ou intervalos naquilo que o filósofo Jacques Rancière (2009aRANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34 , 2009a.) denomina partilha do sensível5 5 Jacques Rancière denomina partilha do sensível “[...] à lei geralmente implícita que define as formas do tomar parte, definindo primeiro os modos perceptivos nos quais eles se inscrevem […]. Esta partilha deve ser entendida no duplo sentido da palavra: por um lado, o que separa e exclui, por outro, o que permite participar. Uma partilha do sensível é a forma como se determina no sensível a relação entre um comum partilhado e a repartição de partes exclusivas. Esta repartição que antecipa, pela sua evidência sensível, a repartição das partes e do que não o é, do que se ouve e do que não se ouve” (Rancière, 2014, p. 146). , materializando um conjunto de pressupostos que tomam a política como assunto estético6 6 Estética aqui ganha a acepção atribuída por Jacques Rancière, segundo o “[...] sentido kantiano - eventualmente revisitado por Foucault - como o sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir” (Rancière, 2009a, p. 16). , fruto de um dissenso (Rancière, 1996).

Nesse sentido, nos interessa especialmente a figura das luzes, que ao mesmo tempo presentificam o nome do bairro onde a ação foi realizada e podem ser associadas à distribuição de visibilidades e invisibilidades que caracteriza a política como coisa estética. Essa cartografia do visível, onde pululam sobrevivências e desaparições, é relacionada à figura dos vaga-lumes, tal como pensado pelo crítico francês Georges Didi-Huberman (2011DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-Lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.). Trata-se de uma analogia estabelecida visual e conceitualmente.

Em seguida, mostramos de que modo o uso do silêncio como estratégia para produção de sentidos, no âmbito de Traga Sua Luz, aponta uma renúncia à crença na transparência da linguagem como força propulsora da política. Aproximamos o privilégio dado ao silêncio aos princípios de enxugamento de sentidos ostensivamente explorados por Roland Barthes, em que a política anda a par com uma recusa do devir meramente comunicativo da linguagem, atributos que o crítico literário francês condensa na figura da Responsabilidade da Forma (Barthes, 2013a).

O coletivo compreende seus processos artísticos nos atravessamentos entre “[...] a política e a educação, permeando-as, desfazendo as categorias que demarcam o que é uma ou outra disciplina” (Coletivo Política do Impossível, 2008a, p. 9). Mas como essa justaposição entre arte, política e educação se faz pensável? A que horizontes dessas três categorias o coletivo está se referindo? Procuramos compreender essa afirmação do coletivo a partir do pensamento de Roland Barthes e Jacques Rancière, teóricos que desenham uma superfície de contato entre as três disciplinas7 7 Ora, é verdade que no Brasil os movimentos sociais, a arte e a política são radicalmente distintos dos europeus, realidade experimentada pelos teóricos que baseiam o presente artigo e a partir da qual eles desdobram grande parte de suas pesquisas. Contudo, acreditamos que ainda assim seus pensamentos possam constituir importantes subsídios teóricos para a compreensão dos âmbitos artístico, político e educacional brasileiros. Afinal, os processos de colonização são amplos e difusos, se dando inclusive nos horizontes sensíveis e epistemológicos. Desse modo, aplicar a este trabalho uma grade de análise genuinamente brasileira não seria a garantia de uma maior fidelidade à realidade nacional. Por outro lado, ao transpor o pensamento filosófico francês ao Brasil também pretendemos distendê-lo e questionar seus limites. .

Assim, consideramos pertinente examinar algumas das lógicas da poética e do ativismo subjacentes à poética do coletivo Política do Impossível, uma vez que elas dão ensejo a interrogações transversais, direcionadas tanto ao campo da arte quanto ao universo de possibilidades da educação e da política. Como o coletivo questiona o uso do solo urbano, pauta muito cara aos movimentos sociais de luta por moradia, sem se restringir a uma ação que levante uma bandeira ou apresente um panfleto? O que acontece quando o ativismo se abstém de articular um discurso, apostando na incerteza e na imprecisão de sentidos como campo de uma reverberação política? Como pensar paradigmas educativos que recuam da tarefa de informar? Esse investimento no inacabado, em sentidos que se desenrolam ao sabor do acaso, não constituiria justamente o cerne das imbricações que Jacques Rancière (2010RANCIÈRE, Jacques. Dissensus: On Politics and Aesthetics. London: Bloomsbury Publishing, 2010.a) estabelece entre arte e política? Que forma de tensão entre coletividade e individualidade a ação mobiliza?

Figura 1
Coletivo Política do Impossível: Traga sua Luz (2008)

Traga Sua Luz

No dia 15 de maio de 2008, o coletivo Política do Impossível convocou interessados e as populações locais a caminharem da Estação da Luz8 8 Importante estação ferroviária do Centro de São Paulo. até os terrenos desapropriados e demolidos pela então prefeitura, carregando velas, luzes, lamparinas ou lanternas. A ação, silenciosa e noturna, reuniu cerca de cinquenta pessoas e terminou com a instalação de duzentos sacos de papel e velas acesas em um dos terrenos desapropriados (Figura 1). Segue um breve relato da ação:

Cidadãos mobilizados pelo fórum vivo e grupo Política do Impossível realizaram na quarta-feira, 15 de maio de 2008, uma caminhada coletiva e iluminada pelas ruas do bairro da Luz, em São Paulo. A ação simbólica teve como principal objetivo promover o encontro entre diferentes pessoas que vivem, atuam ou pensam a região […]. Pessoas iluminadas com velas, colares de LEDs, luzes de bicicleta e lanternas, caminharam da estação da luz, no Centro de São Paulo, até a Rua dos Gusmões, onde se encontram os dois primeiros quarteirões desapropriados e demolidos pelo que se convencionou chamar de ‘Projeto Nova Luz’. Dois quarteirões varridos do mapa. Dezenas de prédios onde moravam ou trabalhavam centenas de pessoas (Coletivo Política do Impossível, 2008aCOLETIVO POLÍTICA DO IMPOSSÍVEL. Cidade Luz: uma investigação no centro de São Paulo. São Paulo: Editora PI, 2008a., p. 111).

Traga Sua Luz parte de um desdobramento da palavra luz, nome do bairro no qual a ação ocorreu. Aqui ela aparece materialmente em sua literalidade, resultando em uma marcha coletiva que podemos associar tanto a uma passeata política quanto a um cortejo fúnebre ou religioso. Mas o que era objeto de luto no bairro da Luz? O que se perdia no irrefreável processo de gentrificação que o atingia? Que luzes se apagavam, que corpos eram jogados às trevas e destinados à invisibilidade? Que múltiplos sentidos políticos podem ser mobilizados a partir da ideia de luz? Estas parecem ser algumas das preocupações do coletivo Política do Impossível, que assume o nome do bairro como uma matéria de elaboração conceitual e poética, uma espécie de prisma a partir do qual se desenha uma série de questionamentos e a própria estratégia formal para a ação proposta:

Para mim, este outro olhar traz também o desejo de evitar o apagamento. Nesta situação, por exemplo, estamos vendo que um bairro pode ser completamente destruído e apagado e que isso pode não fazer diferença para muita gente, apenas para as pessoas que estão ali. Então, este é um movimento de olhar para isso de outra forma, trazer à tona outros sentidos em relação ao que está acontecendo (Coletivo Política do Impossível, 2008aCOLETIVO POLÍTICA DO IMPOSSÍVEL. Cidade Luz: uma investigação no centro de São Paulo. São Paulo: Editora PI, 2008a., p. 135).

Em um primeiro momento poderíamos remetê-la aos paradigmas da visibilidade muito caros à estética: trazer algo à luz é visibilizá-lo, mas também fazê-lo existir. Talvez algumas das múltiplas facetas e matizes de significados que Georges Didi-Huberman (2011) atribui aos vaga-lumes possam nos ser úteis para pensar a ação. O crítico francês encontra na imagem do animal luminescente uma possibilidade de teorizar sobre as pequenas resistências, fracas e intermitentes como as luzes das velas que o grupo carregou pelas ruas do bairro da Luz. Não seria esse corpo coletivo similar a um enxame de vaga-lumes que cruza a noite e vaga sem rumo, criando desenhos aéreos? Contudo, a analogia de Didi-Huberman não se restringe ao aspecto visual: a figura das velas e dos vaga-lumes ao mesmo tempo materializa o próprio caráter fugidio do ato político, cuja precariedade é tantas vezes sublinhada por Jacques Rancière (2005RANCIÈRE, Jacques. From politics to aesthetics?. Paragraph: The Journal of the Modern Critical Theory Group, Edimburg, v. 28, n. 1, p. 13-25, 2005.). Trata-se de uma matéria finita e candente, cuja luminosidade pode ser interrompida por um sopro.

Mas Didi-Huberman adensa a metáfora dos vaga-lumes, sempre os contrapondo às grandes luzes: a superexposição não nos traz uma visibilidade completa, mas ela ofusca, impossibilitando a apreensão das pequenas luzes. O crítico propõe uma prática inversa, aquela de “dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contentar em descrever o não da luz que nos ofusca” (Didi-Huberman, 2011, p. 155, grifos do autor). Trata-se, certamente, de uma maneira de combater o pessimismo contemporâneo reinante:

[...] a urgência política e estética, em período de ‘catástrofe’ […], não consistiria, portanto, em tirar conclusões lógicas do declínio até seu horizonte de morte, mas em encontrar as ressurgências inesperadas desse declínio ao fundo das imagens que aí se movem ainda, tal vaga-lumes ou astros isolados (Didi-Huberman, 2011, p. 124, grifos do autor).

De modo metafórico, o autor nos convida ao empreendimento benjaminiano de “escovar a história a contrapelo” (Benjamin, 1994BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994., p. 225), a observar as pequenas sobrevivências e visibilizar as narrativas menores perdidas na grande história, desvelando a “potência oculta do menor gesto, da menor letra, do menor rosto, do menor lampejo” (Didi-Huberman, 2011, p. 88). Esse exercício que interroga o microscópico também deve ser transposto para Traga Sua Luz. Afinal, de que modo a ação proposta pelo coletivo pode refrear o processo de gentrificação que atingia o bairro da Luz? O grupo não se propôs a solucionar os problemas que envolviam o bairro, tampouco a comunicar ou divulgar as mazelas locais:

Acreditamos ser a construção simbólica nosso lugar de resistência: pois ela tem a potência de interferir na narrativa social, de gerar - por mais mínimos que sejam - deslocamentos na configuração estabelecida do possível […]. Quando falamos em intervenção simbólica, não nos referimos apenas a um resultado ou a uma forma, mas a todo um espaço e um tempo nos quais lidamos com a dimensão subjetiva da construção do ‘público’, nos relacionando com o ‘invisível’, o ‘sonhado’, o ‘frágil’ (Coletivo Política do Impossível, 2008aCOLETIVO POLÍTICA DO IMPOSSÍVEL. Cidade Luz: uma investigação no centro de São Paulo. São Paulo: Editora PI, 2008a., p. 144).

Não poderíamos associar aquilo que o coletivo chama de “território simbólico” a uma certa partilha do sensível, instituinte dos possíveis do tempo e do espaço, justamente aquilo que a política, em toda sua fragilidade, viria a perturbar? Nesse sentido, a intermitência e fraqueza das luzes emitidas pelas velas e vaga-lumes talvez condensem as próprias expectativas dos efeitos de Traga Sua Luz sobre a realidade social: algo muito incerto, dificilmente mensurável e pouco eficaz. Isso não significa que essa potência não exista, é apenas preciso olhar para a realidade com maior argúcia. Se nos tornamos capazes de interrogar tudo aquilo que há de irrisório, de mínimo e de sutil, então encontramos nos interstícios das visibilidades hegemônicas as pequenas luzes de Didi-Huberman.

Mas o imperativo das luzes ofuscantes não é apenas metafórico, ele emerge de forma literal nos processos de gentrificação: a eliminação de zonas de penumbra é uma das transformações urbanas que invariavelmente lhe coadunam. À penumbra sobrepuja-se uma visibilidade total, quase panóptica, sempre em nome da segurança e da limpeza urbana. A uniformização do desenho urbano, premente nesse tipo de processo, também é uma forma de apagar as histórias mínimas e narrativas locais. Didi-Huberman nos convida justamente a pensar o que sobrevive nesses processos, como “vaga-lumes fugidios tentando se fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais” (Didi-Huberman, 2011, p. 17). Basta que saibamos reconhecer esses sinais. É sempre difícil capturar fenômenos operando justamente em um limiar de desidentificação, que recusam o registro meramente comunicacional.

Apesar de visibilizar uma pauta urbana extremamente urgente, a política da ação está vinculada à interrupção da normalidade, em fraturar aquilo que Jacques Rancière (2009aRANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34 , 2009a.) denomina partilha do sensível. Essa interrupção, contudo, deve ser vista em sua imanência, ela não é um meio para se atingir determinados fins: a própria incerteza que ela gera, o dissenso que lhe constitui, é o ponto onde a Traga Sua Luz finalmente ancora sua política. A potência contida em Traga Sua Luz está em depositar nos passantes uma promessa de sentidos e sensações sempre por vir, não em instruir ou conscientizar. Aqui o regime da completa visibilidade dá lugar às visibilidades parciais, sempre inacabadas, como uma proliferação das pequenas luzes de Didi-Huberman. Mas como produzir sentido despindo-se do ímpeto de comunicar? Que zonas intersticiais existem entre a produção de sentidos e a comunicação?

Neste ponto podemos traçar um paralelo com alguns dos princípios delineados pelo filósofo e crítico literário francês Roland Barthes, que se lança contra aquilo que denomina como “desejo de linguagem” (Barthes, 2003aBARTHES, Roland . Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 2003a., p. 107) no âmbito da criação artística. Trata-se de uma forma de o artista tutelar o espectador através da crença em uma transparência da linguagem, concebendo a priori os sentidos que serão desprendidos do fato artístico. Referindo-se a “fotografias do horror”, o teórico anuncia que:

[...] perante elas ficamos despossuídos da nossa capacidade de julgamento: alguém tremeu por nós; o fotógrafo não nos deixou nada - a não ser um simples direito de aprovação intelectual: só estamos ligados a essas imagens por um interesse técnico; carregadas de sobre-indicações pelo próprio artista, para nós não têm história, e não podemos inventar nossa aceitação a essa comida sintética já perfeitamente assimilada pelo seu criador (Barthes, 2003aBARTHES, Roland . Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 2003a., p. 107).

A própria suspensão do devir meramente comunicativo da linguagem - ou do desejo de linguagem -, que livra o fato artístico de um encharcamento de sentidos e significados a priori, constitui uma matéria de recorrente reflexão barthesiana: “[...] a escritura não é nenhum instrumento de comunicação, não é um caminho aberto por onde passaria uma só intenção de linguagem” (Barthes, 1974BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos seguidos de O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 127).

De modo semelhante aos preceitos do teórico francês, o Política do Impossível toma cuidado para não refluir no discurso “panfletário, como um meio que transporta uma ideologia”, procurando “agir mais na reconstrução do mundo do que na criação de outro mundo possível” (Coletivo Política do Impossível, 2008a, p. 136). Assim, anuncia uma via de resistência que se costura em contiguidade com aquilo que está dado, em proximidade ao próprio poder, recusando a ideia transcendental de uma saída: a utopia de um lado de fora do poder. Curiosamente, o esforço de pensar a suspensão à linguagem em seu devir comunicativo, que atravessa o trabalho barthesiano de ponta a ponta, provém da concepção de que a linguagem constituiria uma instância ubíqua de encarnação do poder, mas da qual não haveria exterioridade possível9 9 Essa concepção de um poder múltiplo e ubíquo também marca a teoria política de Michel Foucault e Jacques Rancière. No primeiro, ela aparece na relação de coextensividade entre poder e resistência (Foucault, 2009). Já na obra do segundo, toma corpo nas imbricações entre polícia e política (Rancière, 1996). (Barthes, 2013aBARTHES, Roland . Aula. São Paulo: Cultrix , 2013a.).

Em acordo com o pensamento de Jacques Lacan, para Barthes ela constitui a matéria-prima do inconsciente, de um imaginário que não cessa de tagarelar. Para o crítico literário, a linguagem não é tanto daquilo que falamos, mas algo através da qual somos incessantemente falados, em uma “espécie de radiofonia interior que se emite continuamente em nós, até em nosso sono” (Barthes, 2016, p. 98). Ela emerge como uma espécie de cansaço: “o discurso é aquilo que nunca é castrado. É o que recomeça, renasce” (Barthes, 2013b, p. 272): retomamos “[...] por nossa conta um discurso mil vezes dito, ouvido (discurso gasto), como se o estivéssemos inventando, com a convicção da primeira vez” (Barthes, 2013b, p. 282).

Assim, tudo aquilo que enxuga a profusão de sentidos disparada repetitivamente no imaginário, ou interrompe a tagarelice linguageira, se coloca sempre contra o poder, portanto, é munido de uma força política. A presença do silêncio na intervenção do coletivo Política do Impossível é sintomática do cuidado para instaurar um certo vazio de significados onde possamos nos alojar, a contrapelo da tagarela cena política corriqueira, na qual o discurso geralmente assume a primazia. O enxugamento de sentidos unívocos e pré-concebidos, de que nos fala Roland Barthes, é uma tarefa que se coloca não apenas para a arte, mas também para a política.

E não por acaso Roland Barthes se opunha sempre aos vícios da linguagem, escrutinados de forma tão brilhante em seu livro Mitologias. Trata-se de um universo mitológico já muito encharcado de sentidos fixos e imutáveis que, às expensas da História, ganham o estatuto de natureza. Segundo Leyla Perrone-Moisés (Barthes, 2013a, p. 63), Roland Barthes teima em perseguir “todo lugar-comum, toda palavra de ordem, toda expressão do bom senso e da boa consciência”. Esses discursos pegajosos, embebidos na cola do imaginário, performatizam uma série de lugares-comuns, que o trabalho da forma poderia esgarçar.

Assim, o crítico francês estabelece que a luta de um escritor, de um artista, deve se efetuar pela linguagem, na linguagem: “trapacear com a língua, trapacear na língua” (Barthes, 2013aBARTHES, Roland . Aula. São Paulo: Cultrix , 2013a., p. 17). Essa linguagem urdida cuidadosamente burla o paradigma10 10 Roland Barthes define o Neutro “[...] como aquilo que burla o paradigma, ou melhor, chamo de Neutro tudo o que burla o paradigma. Pois não defino uma palavra; dou nome a uma coisa: reúno sob um nome, que aqui é Neutro. Paradigma é o que? É a oposição de dois termos virtuais nos quais atualizo um, para falar, para produzir sentido” (Barthes, 2003b, p. 17). ou produz uma interrupção, seja do ritmo11 11 Roland Barthes compreende uma “Ligação consubstancial entre poder e ritmo. O que o poder impõe, antes de tudo, é um ritmo (de todas as coisas: de vida, de tempo, de pensamento, de discurso). A demanda de idiorritmia se faz sempre contra o poder” (Barthes, 2013a, p. 68). ou de um discurso de repetição. Em suas palavras, a “[...] forma torna-se assim, mais que nunca, um objeto autônomo, […] e tal objeto tem um valor de poupança, funciona como um sinal econômico” (Barthes, 1974, p. 132), que se aproxima de seu grau zero. Para Barthes residiria justamente aí a possibilidade de uma contrasservidão, de uma política imanente à prática da escritura.

Em Traga Sua Luz este cuidado com uma certa economia do sentido aparece na forma do silêncio, responsável por arejar a forma estético-política e dar espaço para uma múltipla produção de sentidos, evitando assim os clichês que policiam e ameaçam rebaixá-los ao estereótipo. Se a caminhada com velas e objetos luminescentes não está impermeada à atribuição de sentidos - afinal, como o próprio Barthes explicita, nada foge ao sentido, tudo significa -, o silêncio daqueles que a performam acaba por distanciar a ação de qualquer devir comunicativo da linguagem. Assim, ainda afirma uma certa opacidade e possibilita a profusão de uma miríade de sentidos vacilantes que não está apenas baseada na ordem discursiva.

Ao encharcamento de sentidos e significados que submete o fato artístico aos imperativos de uma comunicação unívoca, o filósofo francês opõe aquilo que chama de responsabilidade da forma (Barthes, 2013aBARTHES, Roland . Aula. São Paulo: Cultrix , 2013a.) ou moral da forma (Barthes, 1974). Trata-se da busca de um rigor que tanto suspenda o devir exclusivamente comunicativo da linguagem quanto afirme uma forma justa:

[...] a escritura se reduz então a uma espécie de modo negativo no qual os caracteres sociais ou míticos de uma linguagem são abolidos em benefício de um estado neutro e inerte da forma; o pensamento conserva assim toda a sua responsabilidade, sem revestir-se de engajamento acessório da forma numa História que não lhe pertence (Barthes, 1974BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos seguidos de O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1974., p. 161).

É justamente essa operação de enxugamento de sentidos que coloca Roland Barthes em oposição a toda operação virtuosa de uso da técnica artística. Não se trata, contudo, de advogar em prol de uma forma breve, mas de uma forma justa. Em sua busca pelas figuras do vazio, do neutro, da ausência, do silêncio etc., Roland Barthes encontra o Japão, ou melhor, o seu Japão12 12 Roland Barthes não procura retratar o Japão, mas um país que ele imaginou e fantasiou, através de uma espécie de operação diferencial, por meio da qual ele vislumbra todo um outro horizonte de sentidos. . Lá o teórico vislumbra todo um universo de produção de sentidos mínimos onde a responsabilidade da forma aparece como tônica.

Ao analisar o haicai13 13 Forma de poesia curta e minimalista inventada no Japão. , o teórico explicita uma certa indiscernibilidade entre forma e matéria que lhe é constitutiva: “[...] a brevidade do haicai não é formal; o haicai não é um pensamento rico reduzido a uma forma breve, mas um acontecimento breve que acha, de golpe, sua forma justa” (Barthes, 2016BARTHES, Roland . O Império dos Signos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016., p. 99). Em outro momento, ao falar da forma minuciosa como os japonese embalam os objetos, Barthes parece também tratar dessa mesma questão, de forma lúdica e sub-reptícia. Segundo ele, no Japão o embrulho “[...] já não é o acessório passageiro do objeto; o invólucro, em si, é consagrado como coisa preciosa, embora gratuita; o pacote é um pensamento” (Barthes, 2016, p. 60).

De modo semelhante, Traga Sua Luz não veicula um discurso por meio de uma forma que lhe é estranha, mas há um pensamento contíguo que faz com que forma e conteúdo sigam amalgamados, indistinguíveis. Afinal, não é através dos paradigmas comunicacionais que o coletivo procura veicular algum tipo de mensagem. Ele desenvolve uma estratégia singular para que a ação produza sentidos. A linguagem não é ingenuamente tomada como um meio transparente destinado a propagar uma mensagem, mas como uma matéria que deve ser cuidadosamente elaborada, em tensionamento, colocando seu significado sempre em risco de desaparecimento.

Poderíamos seguir o rastro deixado por Walter Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.), que, já no ano de 1934, procurava compreender o nexo entre arte e política a partir de uma superação da dicotomia que opunha forma e conteúdo. O autor explicita que ao artista não basta assumir uma “tendência” certa se ele “abastecer um aparelho produtivo sem ao mesmo tempo modificá-lo” (Benjamin, 1994, p. 128), propagando alhures as lógicas do Capital. Seria necessário que a inteligência alemã pensasse “[...] de um ponto de vista realmente revolucionário seu próprio trabalho, sua relação com os meios de produção e sua técnica” (Benjamin, 1994, p. 125). Em outras palavras, tratava-se de “refuncionalizar a forma-concerto” (Benjamin, 1994, p. 130), de tomar as rédeas dos próprios meios de produção, pensando a política desde o âmago da forma artística, e não como mera propagação transparente de uma tendência.

Também para Jacques Rancière as imbricações entre arte e política que caracterizam o regime estético14 14 Para pensar uma historiografia assincrônica da arte, Jacques Rancière (2009a) emprega a ideia de que a arte pode ser associada a três regimes de identificação. Eles continuam a habitar o presente e podem se sobrepor, mas surgiram em momentos históricos diferentes. Segundo a ordem de sua aparição, temos: o regime ético, regido segundo os ideais platônicos; o regime representativo, subordinado às lógicas aristotélicas; e o regime estético, de acordo com os ideais românticos. Trata-se de um pensamento sobre as condições de possibilidade, historicamente constituídas, para a identificação da arte como tal, envolvendo horizontes de produção, fruição e crítica. O filósofo compreende que a eficácia de um dissenso faz com que a arte toque a política no regime estético (Rancière, 2010a). dependem de uma diluição na dicotomia que opõe forma e matéria, constitutiva do representativo (Rancière, 2011). Percebemos, portanto, um vínculo a algumas das lógicas privilegiadas de produção de sentidos na arte no contemporâneo, e não por acaso as ações do Política do Impossível transitem tanto nos meios do ativismo quanto da arte. Parece que as estratégias políticas e educacionais do coletivo partem de uma série de lógicas constitutivas da arte em seu regime estético. Contudo, como explicitado por Jacques Rancière, as artes “[...] nunca emprestam às manobras de dominação ou de emancipação mais do que lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que têm em comum com elas: posições e movimentos de corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível” (Rancière, 2009a, p. 26). Assim, convém compatibilizar as expectativas quanto à efetividade de Traga Sua Luz em produzir mudanças no real, em refrear o processo de gentrificação, com as estratégias empregadas pelo grupo.

O coletivo lança mão de uma estratégia singular, concebe a ação desde os meios de produção, para pensar a partir de Walter Benjamin. Se o Política do Impossível toma cuidado para que sua ação não se restrinja a uma bandeira, se ele evita articular um discurso transparente, tal lógica acaba emergindo na forma do silêncio, que também se desdobra como efeito da própria apreensão sensível. Nas palavras de Roland Barthes, o trabalho faz “vacilar o conhecimento, o sujeito: ele opera um vazio de fala” (Barthes, 2016, p. 10). O coletivo parece associar essas duas formas de mudez:

Tem alguma coisa que acontece em um lugar muito invisível do encontro, a apresentação não se dá só no lugar da síntese, da imagem […]. Na ação com as velas na Luz, todos juntos naquela situação, é uma coisa que não tem muita palavra, muita nomeação, mas que a gente sente no silêncio daquele grupo, que não estaria ali junto se não fosse para fazer aquilo, que a imagem não capta, que é algo que está no fazer mesmo (Coletivo Política do Impossível, 2008aCOLETIVO POLÍTICA DO IMPOSSÍVEL. Cidade Luz: uma investigação no centro de São Paulo. São Paulo: Editora PI, 2008a., p. 136).

Talvez resida justamente nessas formas dissensuais a dificuldade de capturar os sentidos engendrados pela arte no interior de uma fala, produto de um desencontro incessante entre a palavra e a experiência artística. É impossível encerrá-la no fechamento de um discurso e instituir uma verdade perene sobre ela. Trata-se de um fenômeno característico da impotência em identificar a arte sob a égide do regime estético e circunscrevê-la por completo. De forma análoga ao desentendimento originário da política em Jacques Rancière (1996RANCIÈRE, Jacques. O Desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996.), ela abriga uma infinidade de sentidos simultâneos e não excludentes. Assim, paradoxalmente, aquilo que inicialmente se cala torna-se potência para uma profusão ilimitada de sentidos sempre por fazer.

Arte e Educação

Vimos, portanto, que em Traga Sua Luz a pauta da gentrificação não emerge como discurso estruturado que deve ser comunicado, mas passa por uma elaboração formal muito cuidadosa. Contudo, é curioso que o coletivo Política do Impossível faça uso de uma linguagem que se exime da função de comunicar e mesmo assim associe suas práticas a processos educativos. Afinal, sejam quais forem os meios utilizados, a educação não consistiria do ato de familiarizar certos indivíduos com um conjunto de conhecimentos previamente selecionados? Como pensar processos educativos que compreendam a incerteza, própria de uma linguagem que se faz opaca, como potencial pedagógico?

Sugerimos uma maneira de conceber os vínculos que o coletivo estabelece entre arte, política e educação, tomando como base o pensamento de Jacques Rancière (2010RANCIÈRE, Jacques. Dissensus: On Politics and Aesthetics. London: Bloomsbury Publishing, 2010.a). O autor estabelece um terreno em que essas três figuras entram em comunidade, especialmente através dos princípios da igualdade das inteligências e emancipação do espectador. Trata-se, para ele, de compreender esses princípios como pressupostos da prática artística e não uma finalidade, de modo que a arte política se desvincule de qualquer fim emancipador. Ora, por meio dos subsídios teóricos de Roland Barthes (2013aBARTHES, Roland . Aula. São Paulo: Cultrix , 2013a.) também vimos de que modo os paradigmas de intencionalidade artística e de uma transparência da linguagem caminham a par com uma infantilização do espectador. Em ambos os autores uma elaboração quanto aos vínculos de causa e efeito que uma obra pode despertar em seus espectadores se desdobra numa discussão sobre pedagogia.

Entretanto, trata-se de um pensamento pedagógico que guarda alguns paradoxos. Ele se costura ao revés daquilo que Jacques Rancière denomina como “modelo pedagógico da eficácia da arte” (Rancière, 2010RANCIÈRE, Jacques. Dissensus: On Politics and Aesthetics. London: Bloomsbury Publishing, 2010.a, p. 80), calcado em relações de causa e efeito diretas entre uma obra e seus espectadores, basilar para o regime representativo das artes. Este pressupõe uma hierarquização das inteligências, uma submissão do sensível ao inteligível. O Política do Impossível, do contrário, pensa a ideia de uma educação que se exime da tarefa de informar ou conscientizar. O coletivo conta que “[...] reinventar, a todo o momento, as formas de denúncia e anúncio dos fatos é, então, parte fundamental do nosso percurso” (Coletivo Política do Impossível, 2008bCOLETIVO POLÍTICA DO IMPOSSÍVEL. Continuidade Histórica e Produção Simbólica. São Paulo: Cinemateca Brasileira, 2008b., p. 4). Essa reinvenção passa pelo advento de uma linguagem paradoxal que ao mesmo tempo articule uma denúncia e se exima da tarefa de comunicá-la. Assim, instala-se uma distância, um intervalo fundamental que permite à imaginação entrar em estado de deriva. Como produzir sentidos sem prevê-los de antemão? Como comunicar sem saber ao certo o que está sendo comunicado?

As formulações pedagógicas colocadas por Roland Barthes podem oferecer algumas respostas. Se suas aulas assumem o fragmento e a lacuna como uma espécie de método de ensino originado de um fantasma15 15 Nas palavras de Roland Barthes: “[...] creio sinceramente que, na origem de um ensino como este, é preciso aceitar que se coloque sempre um fantasma, o qual pode variar de ano a ano” (Barthes, 2013b, p. 46). , é porque o autor não apenas abdica da vontade de dar um sentido, um fechamento ou um télos para suas lições. Ele se despoja de definir claramente o próprio ponto de origem de suas formulações, desdobradas da incerteza de um desejo. O que garante o ensino fantasmático e emancipatório de Roland Barthes é justamente o fato de ele abrigar o abismo do impensado em suas lições, deslocando levemente o paradigma da racionalidade que geralmente move as propostas pedagógicas. Não se trata, para Barthes, de transmitir um certo corpo de informações, mas produzir algum efeito em seus alunos.

Poderíamos aproximar esse paradigma da incerteza à centralidade da pergunta nos processos criativos disparados pelo Política do Impossível. Ela é sintomática da preocupação do coletivo em abrigar algo de irrefletido em suas ações, cuja resposta não pode ser dada de imediato. Assim, elas se distanciam do ímpeto de pré-conceber um conjunto de possíveis finalidades, dando ensejo à produção de efeitos e conhecimentos incertos, de modo similar aos preceitos pedagógicos preconizados por Roland Barthes. Os processos educativos emergem menos a partir do desejo de encontrar respostas, mas estão centrados na incessante produção de questionamentos, que, por sua vez, são responsáveis por ensejar uma situação de partilha:

Uma pergunta nasce de inquietações, de desejos de aprendizado. Perguntar é uma chave que abre portas, inaugura sentidos e provoca reflexões. Questões movem um grupo à construção de conhecimento compartilhado, em transformação e aprimoramento. Perguntas podem não ser respondidas e gerar tantas outras, em uma busca contínua de significados re-significados (Coletivo Política do Impossível, 2007COLETIVO POLÍTICA DO IMPOSSÍVEL. Cartografia Política da Ação Comum. São Paulo: Supervisão pedagógica da formação inicial do Programa Jovens Urbanos/Cenpec, 2007., p. 12).

De maneira similar, os modelos dissensuais de eficácia da arte exigem que os trabalhos ainda guardem algo de impensado para si mesmos, o frescor de uma linguagem que não permite ser agarrada e coagida por um discurso totalizante. Contudo, a aproximação entre Jacques Rancière e Roland Barthes deve ser feita com cautela, uma vez que os autores divergem sob muitos aspectos16 16 Conferir, a este respeito, A imagem pensativa (Rancière, 2010a) e O efeito de realidade e a política da ficção (Rancière, 2010b). . Barthes produz uma sofisticada teoria estética, embora essa expressão encarne uma seriedade e um engessamento que não fazem justiça à sua escritura lacunar e vertiginosa, prenhe de devaneios e digressões de enorme potência crítico-poética. Ela certamente não alcança a sistematicidade e o fechamento da teoria rancieriana, mas provê importantes lampejos para o pensamento sobre uma potência política da arte e da educação.

Em todo caso, alguns pontos pacíficos aproximam os dois autores e muitas das concepções desenvolvidas por Roland Barthes podem ser remetidas diretamente ao conjunto de lógicas que Jacques Rancière associa ao regime estético. O privilégio de um pensamento que não pensa, por exemplo, habita o seio das reflexões barthesianas e constitui um dos elementos-chave da identidade de contrários constitutiva do regime estético. Trata-se da prevalência de um pensamento escorregadio, que não se fixa, mas se desidentifica a cada tentativa de capturá-lo na rede do discurso. Talvez consista de uma forma eficaz de desarmar uma série de mecanismos da consciência que policiam a produção de sentidos e lhes dão figuras bem delineadas. Esse paradigma é transposto para os próprios métodos da pedagogia proposta por Roland Barthes:

[...] o curso ideal seria aquele em que o professor - o locutor - fosse mais banal que os seus ouvintes, no qual aquilo que ele diz fosse menos que aquilo que ele suscita [...]. Mas se o curso é uma sinfonia de propostas, a proposta deve ser incompleta - caso contrário é uma posição, uma ocupação fálica do espaço ideal (Barthes, 2013bBARTHES, Roland . Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos: cursos e seminários no Collège de France, 1976-1977. São Paulo: Martins Fontes , 2013b., p. 263).

Ora, a possibilidade de se ensinar aquilo que não se sabe está na base dos pressupostos pedagógicos de Jacques Rancière em seu livro O Mestre Ignorante (Rancière, 2018RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.), publicado em 1987. O filósofo parte dos escritos de Joseph Jacotot, pedagogo que, ainda no ano de 1818, provou a capacidade de um ignorante ensinar a um outro ignorante aquilo que ele mesmo ignorava. O método de seu Ensino Universal, estapafúrdio a uma primeira vista, seria aquele de “[...] aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto, segundo o princípio de que todos os homens têm igual inteligência” (Rancière, 2018, p. 39). Jacques Rancière observa esse caso para além de um feito pitoresco, desvelando seu potencial para pensar as condições de possibilidade que precedem qualquer produção de conhecimento. É a partir do plano transcendental que o filósofo tece uma espécie de teoria da educação, em que opera uma disjunção entre inteligência e saber, distinguindo capacidade de conhecer e o conteúdo dessa capacidade.

Através desse raciocínio, a assunção de igualdade das inteligências emerge como ponto de partida fundamental para o processo educativo: “[...] quem estabelece a igualdade como objetivo a ser atingido, a partir da situação de desigualdade, de fato a posterga até o infinito. A igualdade jamais vem após, como resultado a ser atingido. Ela deve ser sempre colocada antes” (Rancière, 2018RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 11). Trata-se de pensar a educação ao revés das práticas republicanas que tomavam corpo no século XIX e que ainda predominam nos dias atuais. De acordo com o filósofo, a tarefa de reduzir indefinidamente a desigualdade, de construir uma sociedade igual de homens desiguais, só poderia resultar “[...] na pedagogização integral da sociedade, isto é, a infantilização generalizada dos indivíduos” (Rancière, 2018, p. 183).

Ora, essa é uma das preocupações centrais que regem as estratégias educativas, políticas e artísticas do Política do Impossível. O coletivo explicita justamente o “cuidado de não atribuir ao outro a ingenuidade e a alienação” (Coletivo Política do Impossível, 2008aCOLETIVO POLÍTICA DO IMPOSSÍVEL. Cidade Luz: uma investigação no centro de São Paulo. São Paulo: Editora PI, 2008a., p. 116). Já indicamos que o coletivo se exime da tarefa de unicamente comunicar e instruir, evitando assumir, a priori, uma ignorância no outro. Joseph Jacotot destaca o ímpeto embrutecedor contido nessa assunção.

Jacques Rancière denomina ensino embrutecedor o conjunto de procedimentos movidos pelo mestre explicador, sempre interessado em transmitir, para uma coletividade, um determinado conteúdo, uma reunião de saberes. Baseada na ficção da incapacidade, a concepção explicadora do mundo acabaria por reproduzir infinitamente a desigualdade, que não passa de uma contingência histórica e material. Contudo, a igualdade das inteligências não se manifesta como dado sensível, devendo ser verificada. Em todo caso, ao propor esses princípios, Rancière não defende uma homogeneização, mas o direito ao seu desenvolvimento e manifestação singulares: a igualdade na multiplicidade e não no idêntico. Por esse motivo, “[...] quem emancipa não tem que se preocupar com aquilo que o emancipado deve aprender. Ele aprenderá o que quiser, nada, talvez. Ele saberá que pode aprender” (Rancière, 2018, p. 37).

Esses questionamentos sobre a educação se desdobrariam no conjunto de textos que compõe O Espectador Emancipado (Rancière, 2010RANCIÈRE, Jacques. Dissensus: On Politics and Aesthetics. London: Bloomsbury Publishing, 2010.a), publicado por Jacques Rancière 20 anos depois de O Mestre Ignorante. O livro reposiciona uma série de discussões em torno da filosofia da emancipação e questiona o estatuto de passividade geralmente atribuído ao olhar do espectador. O filósofo nos mostra que as relações que a arte estabelece com a política não podem se restringir ao enunciado, mas devem se imiscuir nas próprias formas de enunciação, em que o espectador não é entendido como uma matéria passiva que se deve informar - ou enformar -, mas uma figura ativa nesse processo.

A compreensão daquilo que Rancière denomina modelo pedagógico de eficácia da arte passa por uma semelhança ao ensino embrutecedor, aquele movido pelo mestre explicador. Ambos se encontram ainda baseados na reprodução da hierarquia de inteligências, na ideia de que o artista possa transmitir determinadas mensagens aos espectadores através dos seus trabalhos de arte. De modo semelhante ao ensino emancipador, a disjunção entre o sensível e o inteligível operada pelo regime estético recusa essas formas de transparência. Tanto para o filósofo quanto para Roland Barthes, uma arte política e uma educação emancipadora devem prescindir da finalidade de transmitir determinadas mensagens ou um conjunto de conteúdos pré-determinados. Essa indefinição é constitutiva dos dois campos.

Ora, ao tomar a linguagem em sua opacidade, Traga Sua Luz está assentado na eficácia de um dissenso, modelo eminentemente político que subjaz ao regime estético de identificação da arte, ancorado no princípio de igualdade das inteligências. Trata-se de um paradigma educativo que recua na tarefa de instruir e informar, atuando não apenas na ordem do inteligível, mas do próprio cerne do sensível. O coletivo relaciona mudanças e deslocamentos do olhar e da percepção a processos de autoeducação, que instantaneamente poderíamos associar às irrupções políticas decorrentes de fraturas na partilha do sensível:

Tem também uma forma de intervir que passa pelo olhar, sempre aparece em nossos processos, o primeiro passo sendo: como eu olho para o lugar do vivido, do cotidiano, como eu olho o meu próprio olhar, como eu estou olhando e de onde estou olhando para o que está acontecendo […]. Aos poucos, vamos percebendo que uma situação urgente colabora como uma situação exemplar para ampliar o olhar, para entender de outra forma, e aí tem um processo de auto-educação que é transformador em outra escala, nem mais nem menos importante, mas conseguimos criar relações que antes não eram possíveis, as relações e percepções se ampliam (Coletivo Política do Impossível, 2008aCOLETIVO POLÍTICA DO IMPOSSÍVEL. Cidade Luz: uma investigação no centro de São Paulo. São Paulo: Editora PI, 2008a., p. 135).

Essas intervenções no olhar não devem ser confundidas com a ideia de conscientizar ou tirar alguém de um estado de alienação. A ação apenas dá ensejo para outros olhares, para a criação de outras relações e percepções, despertados sem o controle prévio do coletivo. São transformações que se dão em uma escala microscópica, com efeitos dificilmente quantificáveis. Se Traga Sua Luz pode ser compreendida como um processo educativo, ela não parte de um corpo de conhecimentos a serem transmitidos para uma massa de ignorantes: não se trata de ensinar sobre os processos de gentrificação que acometem o bairro da Luz.

O coletivo conta que a ação consiste de uma radicalização da prática educativa, que nada tem a ver com uma oficina ou uma escola formal, mas de “[...] educação no sentido mais amplo, aquilo que a Fátima Freire coloca como ‘disparadores alfabetizadores políticos’” (Coletivo Política do Impossível, 2008a, p. 133). Aqui observamos uma referência à filha e difusora dos ideais do importante educador brasileiro Paulo Freire17 17 Aqui não há espaço para enumerar em profundidade todas as afinidades e diferenças entre o pensamento pedagógico de Paulo Freire (2014a; 2014b) e a igualdade das inteligências trazidas por Jacques Rancière (2018). Em um primeiro momento, poderíamos opor o pensamento dos dois pelo simples fato de que Paulo Freire parte de uma desigualdade estruturante que opõe opressores e oprimidos (Freire, 2014b), enquanto Rancière parte de uma igualdade potencial das inteligências (Rancière, 2018). A educação, para Freire, se constituiria em uma ferramenta que colaboraria para o fim das relações de exploração do homem pelo homem. Mas assim como o filósofo, o educador brasileiro compreende as desigualdades como uma contingência produzida histórica e materialmente, retroalimentadas e perpetuadas inclusive pelos programas educacionais que se propõem a mitigá-las. Também poderíamos estabelecer um princípio de semelhança entre o pensamento dos dois autores naquilo que concerne às relações entre mestre e aluno, no sentido de uma crítica à detenção do saber pelo primeiro, a ser transmitido pelo segundo. Assim, seria possível paragonar a figura do mestre explicador, no pensamento rancieriano, à educação bancária de Paulo Freire. A respeito das similaridades entre o pensamento de Paulo Freire e Jacques Rancière, conferir o trabalho de Tyson E. Lewis (2014). . Ela foi colaboradora do coletivo, uma espécie de mentora metodológica das práticas por ele desenvolvidas, em que a incerteza ganha um lugar privilegiado.

Apesar de propor a ação, o Política do Impossível não acredita ter respostas definitivas para as questões que ele próprio coloca. O coletivo prefere compreender seu processo como um modo “[...] de estar juntos e como um lugar de fragilidade, porque muitas vezes estivemos em um lugar de ter que descobrir juntos algo, de não saber as respostas” (Coletivo Política do Impossível, 2008a, p. 134). Aqui não se trata de pensar a pergunta como no método embrutecedor estabelecido por Sócrates e veementemente criticado por Rancière, via Jacotot:

Conhecendo as respostas, suas perguntas para elas orientam naturalmente o aluno. É o segredo dos bons mestres: com suas perguntas, eles guiam diretamente a inteligência do aluno - tão discretamente, que a fazem trabalhar, mas não o suficiente para abandoná-la a si mesma. Há um Sócrates adormecido em cada explicador (Rancière, 2018RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 51).

A reunião em torno de uma pergunta sem resposta, aludida pelo coletivo, é aquilo que ao mesmo tempo sela uma distância e incita um liame entre os participantes da ação, provocando uma situação de partilha. A ideia de partilha aqui deve ser entendida de acordo com o duplo sentido atribuído por Jacques Rancière, portanto, em sua dimensão simultânea de separação e convergência. Ora, o coletivo concebe a função da pergunta de modo diametralmente oposto ao socrático:

Mas por que pensar a partir de perguntas? Por que perguntar-nos antes de afirmar? São muitas as questões que podem surgir a partir do momento em que aceitamos o não afirmado. Pensar a partir de perguntas é convidar o outro a questionar-se. Os pensamentos que começam com uma afirmação não convidam ao diálogo, não estabelecem no outro um interesse por compartilhar o ‘que fazer’. Antes, vêm afirmar o que já se tinha como conhecimento ou desconhecimento; quando os caminhos do pensamento chegam como respostas não há lugar para desenvolver a espessura das distintas camadas de sentido que se despertam em cada sujeito frente a uma situação. Quando aparece uma resposta antecipada à pergunta, se produz uma falsa resolução do problema e, portanto, um falso entendimento da situação (Coletivo Política do Impossível, 2007COLETIVO POLÍTICA DO IMPOSSÍVEL. Cartografia Política da Ação Comum. São Paulo: Supervisão pedagógica da formação inicial do Programa Jovens Urbanos/Cenpec, 2007., p. 11).

Podemos notar aqui mais uma afinidade com o pensamento de Jacques Rancière em O Mestre Ignorante, naquilo que concerne ao caráter eminentemente social que subjaz ao processo de aprendizado. A contrapelo da ficção de que haveria um laço natural entre todos os indivíduos de uma sociedade, o filósofo compreende que a distância é aquilo que os une. Seria a “arbitrariedade [da linguagem] que, forçando-os a traduzir, os põem em comunicação de esforços - mas também, em comunidade de inteligência” (Rancière, 2018, p. 88). O processo educativo passaria justamente por este “trabalho poético de tradução” (Rancière, 2010aRANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. Lisboa: Orfeu, 2010a., p. 19) que procura mitigar, sem jamais anular, a separação entre os homens.

Esse é também um dos elementos constitutivos da sociedade que tomou corpo após a Revolução Francesa, e que Jacques Rancière chama de Comunidade Estética (Rancière, 2011RANCIÈRE, Jacques. A Comunidade Estética. Revista Poiésis, Niterói, n. 17, p. 169-187, jul. 2011.). Ela é marcada por uma tensão entre a particularidade sensível de cada indivíduo e a possibilidade, sempre virtual, de sua universalização. Esse sensível heterogêneo ao mesmo tempo separa e coloca os homens em contato, constituindo laços contingentes, similares aos que presidem a reunião em torno de um coletivo. A arte em seu regime estético, uma vez despida de qualquer verdade e imbuída de infinitos sentidos simultâneos e não excludentes, seria o objeto dissensual por excelência capaz de reunir em torno de si uma multiplicidade polêmica de indivíduos.

O coletivo parte justamente de um exercício dissensual do estar-junto, procurando integrar o conflito em seu próprio processo de criação. Para o coletivo não haveria “[...] outra forma de construir um pensamento coletivo que não no embate com a própria coletividade. Porque normalmente aprendemos a pensar a partir de uma imagem de mundo, de educação, de saber, onde o conflito não se encaixa” (Coletivo Política do Impossível, 2008a, p. 115). Esta, por sua vez, seria a via para a constituição de uma subjetividade política. Assim, os processos do coletivo sobrepõem o dissenso como embate de opiniões e o dissenso como diferença do sensível a si mesmo.

Considerações Finais

Desse modo, compreendemos como se dá o jogo entre arte, política, estética e educação colocado em marcha pelo coletivo Política do Impossível. Em Traga Sua Luz, a figura do silêncio emerge como sintoma de uma concepção política que se exime da tarefa de comunicar uma mensagem, mas está interessada em produzir rupturas na partilha do sensível. As cintilações intermitentes das velas e lanternas carregadas pelo bairro da Luz abrem uma multiplicidade de sentidos, na qual a política aparece como o frágil reluzir de um vaga-lume, um contraponto aos apagamentos produzidos pelos processos de gentrificação. A recusa do devir meramente comunicativo da linguagem, por sua vez, é aquilo que ao mesmo tempo rege os princípios de uma educação emancipadora e estabelece um vínculo com a arte em seu regime estético. O dissenso aparece como figura que amalgama arte política e uma educação emancipadora.

Contudo, as reflexões trazidas por Roland Barthes, Jacques Rancière e pelo coletivo Política do Impossível também colocam um questionamento fundamental sobre as possibilidades de ensino da arte. Pois o advento do regime estético inaugura uma falência de quaisquer modelos a serem seguidos. A arte agora passa a depender de estratégias singulares a serem elaboradas pelas poéticas particulares dos artistas. Nesse caso, a impossibilidade de identificar inteligência e saber está dada de saída, uma vez que a arte não se articula apenas segundo o inteligível, mas há um caráter sensível fundamental.

Não se trata, evidentemente, de acreditar no paradigma do gênio, que já nasce com as aptidões necessárias, mas de compreender que não há saber formal que baste para um artista, embora ele não prescinda completamente de todo saber. É necessário diagnosticar que, especialmente para o ensino da arte, os modelos que Jacques Rancière caracterizam como embrutecedores são totalmente impertinentes. No limite, a arte em seu regime estético esbarra com a impotência de uma pedagogia calcada no saber. Mesmo no âmbito da crítica de arte, aquilo que se ensina são chaves teóricas, que podem ser transpostas de umas para outras obras. Ao espectador permanece sempre vivo o exercício de sua capacidade para estabelecer relações, procurar compreender e traduzir caso a caso as estratégias poéticas singulares dos artistas. Não há modelo teórico que forneça essas bases e essa segurança.

Assim, a arte em seu regime estético está imersa em política imanente, que pode emprestar à educação uma palavra prenhe de silêncio e incerteza, despida da tarefa de comunicar. Nesse sentido, é sintomático o modo como o coletivo Política do Impossível concebe Traga Sua Luz como uma ação que ao mesmo tempo pensa a arte, o ativismo e a educação. Aqui os questionamentos e as incertezas não emergem com a finalidade de serem respondidos, mas como convite a uma profusão dissensual de possíveis sentidos a serem tecidos. Trata-se do ensejo a um tipo específico de partilha, de divisão e agrupamento, em que o coletivo e o individual encontram-se tensionados.

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  • RANCIÈRE, Jacques. The Emancipated Spectator. London: Verso, 2009b.
  • RANCIÈRE, Jacques. Dissensus: On Politics and Aesthetics. London: Bloomsbury Publishing, 2010.
  • RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. Lisboa: Orfeu, 2010a.
  • RANCIÈRE, Jacques. O Efeito de Realidade e a Política da Ficção. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, v. 1, n. 86, p. 75-80, 2010b.
  • RANCIÈRE, Jacques. A Comunidade Estética. Revista Poiésis, Niterói, n. 17, p. 169-187, jul. 2011.
  • RANCIÈRE, Jacques. Nas Margens do Político. Lisboa: KKYM, 2014.
  • RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
  • 1
    Segundo Bidou-Zachariasen, este termo foi empregado pela primeira vez na década de 1960 por Ruth Glass, que caracterizou o fenômeno como “[...] a transformação da composição social dos residentes de certos bairros centrais, por meio da substituição de camadas populares por camadas médias assalariadas; e de um processo de natureza diferente: o de investimento, reabilitação e apropriação, por estas camadas sociais, de um estoque de moradias e de bairros operários ou populares” (Bidou-Zachariasen, 2006BIDOU-ZACHARIASEN, Catherine (Org.). De volta à cidade: dos processos de gentrificação às políticas de ‘revitalização’ dos centros urbanos. São Paulo: Annablume, 2006., p. 22). Pesquisas mais recentes realizadas em diversas cidades do mundo em volta desse tema destacam “[...] os mesmos tipos de fatores que representam as práticas ‘espontâneas’ dos habitantes, seus instrumentos técnicos (financiamentos, empréstimos imobiliários, etc.) e as políticas ‘voluntaristas’ das administrações locais” (Bidou-Zachariasen, 2006, p. 29).
  • 2
    Conferir, a esse respeito, o Fundo Criatividade Coletiva/Doação Funarte, formado por meio da 6ª edição do Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça, abrigado no Museu de Arte do Rio.
  • 3
    Aqui não compreendemos a poética segundo as lógicas que Jacques Rancière circunscreve sob a alcunha de Regime Poético. Correspondente ao Representativo, este estaria regido segundo o conjunto de concepções aristotélicas. Quando nos referimos a uma poética tratamos justamente da identidade de contrários, da disjunção entre poiesis e aisthesis que caracteriza o âmbito que o filósofo chama de Regime Estético (Rancière, 2009a).
  • 4
    Para o filósofo Jacques Rancière a “política é coisa estética, questão de aparência” (Rancière, 1996, p. 82).
  • 5
    Jacques Rancière denomina partilha do sensível “[...] à lei geralmente implícita que define as formas do tomar parte, definindo primeiro os modos perceptivos nos quais eles se inscrevem […]. Esta partilha deve ser entendida no duplo sentido da palavra: por um lado, o que separa e exclui, por outro, o que permite participar. Uma partilha do sensível é a forma como se determina no sensível a relação entre um comum partilhado e a repartição de partes exclusivas. Esta repartição que antecipa, pela sua evidência sensível, a repartição das partes e do que não o é, do que se ouve e do que não se ouve” (Rancière, 2014RANCIÈRE, Jacques. Nas Margens do Político. Lisboa: KKYM, 2014., p. 146).
  • 6
    Estética aqui ganha a acepção atribuída por Jacques Rancière, segundo o “[...] sentido kantiano - eventualmente revisitado por Foucault - como o sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir” (Rancière, 2009a, p. 16).
  • 7
    Ora, é verdade que no Brasil os movimentos sociais, a arte e a política são radicalmente distintos dos europeus, realidade experimentada pelos teóricos que baseiam o presente artigo e a partir da qual eles desdobram grande parte de suas pesquisas. Contudo, acreditamos que ainda assim seus pensamentos possam constituir importantes subsídios teóricos para a compreensão dos âmbitos artístico, político e educacional brasileiros. Afinal, os processos de colonização são amplos e difusos, se dando inclusive nos horizontes sensíveis e epistemológicos. Desse modo, aplicar a este trabalho uma grade de análise genuinamente brasileira não seria a garantia de uma maior fidelidade à realidade nacional. Por outro lado, ao transpor o pensamento filosófico francês ao Brasil também pretendemos distendê-lo e questionar seus limites.
  • 8
    Importante estação ferroviária do Centro de São Paulo.
  • 9
    Essa concepção de um poder múltiplo e ubíquo também marca a teoria política de Michel Foucault e Jacques Rancière. No primeiro, ela aparece na relação de coextensividade entre poder e resistência (Foucault, 2009FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2009.). Já na obra do segundo, toma corpo nas imbricações entre polícia e política (Rancière, 1996).
  • 10
    Roland Barthes define o Neutro “[...] como aquilo que burla o paradigma, ou melhor, chamo de Neutro tudo o que burla o paradigma. Pois não defino uma palavra; dou nome a uma coisa: reúno sob um nome, que aqui é Neutro. Paradigma é o que? É a oposição de dois termos virtuais nos quais atualizo um, para falar, para produzir sentido” (Barthes, 2003bBARTHES, Roland . O neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003b., p. 17).
  • 11
    Roland Barthes compreende uma “Ligação consubstancial entre poder e ritmo. O que o poder impõe, antes de tudo, é um ritmo (de todas as coisas: de vida, de tempo, de pensamento, de discurso). A demanda de idiorritmia se faz sempre contra o poder” (Barthes, 2013a, p. 68).
  • 12
    Roland Barthes não procura retratar o Japão, mas um país que ele imaginou e fantasiou, através de uma espécie de operação diferencial, por meio da qual ele vislumbra todo um outro horizonte de sentidos.
  • 13
    Forma de poesia curta e minimalista inventada no Japão.
  • 14
    Para pensar uma historiografia assincrônica da arte, Jacques Rancière (2009a) emprega a ideia de que a arte pode ser associada a três regimes de identificação. Eles continuam a habitar o presente e podem se sobrepor, mas surgiram em momentos históricos diferentes. Segundo a ordem de sua aparição, temos: o regime ético, regido segundo os ideais platônicos; o regime representativo, subordinado às lógicas aristotélicas; e o regime estético, de acordo com os ideais românticos. Trata-se de um pensamento sobre as condições de possibilidade, historicamente constituídas, para a identificação da arte como tal, envolvendo horizontes de produção, fruição e crítica. O filósofo compreende que a eficácia de um dissenso faz com que a arte toque a política no regime estético (Rancière, 2010a).
  • 15
    Nas palavras de Roland Barthes: “[...] creio sinceramente que, na origem de um ensino como este, é preciso aceitar que se coloque sempre um fantasma, o qual pode variar de ano a ano” (Barthes, 2013b, p. 46).
  • 16
    Conferir, a este respeito, A imagem pensativa (Rancière, 2010aRANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. Lisboa: Orfeu, 2010a.) e O efeito de realidade e a política da ficção (Rancière, 2010bRANCIÈRE, Jacques. O Efeito de Realidade e a Política da Ficção. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, v. 1, n. 86, p. 75-80, 2010b.).
  • 17
    Aqui não há espaço para enumerar em profundidade todas as afinidades e diferenças entre o pensamento pedagógico de Paulo Freire (2014aFREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz & Terra, 2014a.; 2014bFREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz & Terra , 2014b.) e a igualdade das inteligências trazidas por Jacques Rancière (2018). Em um primeiro momento, poderíamos opor o pensamento dos dois pelo simples fato de que Paulo Freire parte de uma desigualdade estruturante que opõe opressores e oprimidos (Freire, 2014b), enquanto Rancière parte de uma igualdade potencial das inteligências (Rancière, 2018). A educação, para Freire, se constituiria em uma ferramenta que colaboraria para o fim das relações de exploração do homem pelo homem. Mas assim como o filósofo, o educador brasileiro compreende as desigualdades como uma contingência produzida histórica e materialmente, retroalimentadas e perpetuadas inclusive pelos programas educacionais que se propõem a mitigá-las. Também poderíamos estabelecer um princípio de semelhança entre o pensamento dos dois autores naquilo que concerne às relações entre mestre e aluno, no sentido de uma crítica à detenção do saber pelo primeiro, a ser transmitido pelo segundo. Assim, seria possível paragonar a figura do mestre explicador, no pensamento rancieriano, à educação bancária de Paulo Freire. A respeito das similaridades entre o pensamento de Paulo Freire e Jacques Rancière, conferir o trabalho de Tyson E. Lewis (2014LEWIS, Tyson E. The Aesthetics of Education: Theatre, Curiosity, and Politics in the Work of Jacques Rancière and Paulo Freire. New York: Bloomsbury , 2014.).
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • Editores-responsáveis: Verônica Veloso, Maria Lúcia Pupo e Gilberto Icle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2019
  • Aceito
    05 Dez 2019
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