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Presença que não se Faz Só: potências de afeto no ato de com-por entre corpos

La Présence ne se fait pas tout Seule: la puissance de l'affect dans l'acte de com-position entre les corps

Resumo 1 Este artigo é extrato da dissertação de mestrado intitulada Presença e (em) relação: a potência de afeto no entre corpos de Milene Lopes Duenha, orientada pela Prof.ª Dr.ª Sandra Meyer Nunes, pelo programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina. A dissertação encontra-se disponível no sítio: <http://www.ceart.udesc.br/ppgt/dissertacoes/2014/dissertacao_milene_lopes.pdf>. :

Este texto apresenta uma abordagem da presença do artista como relação, propondo um olhar sobre o corpo e sobre o deslocamento da noção de presença como uma atribuição prévia do artista, possibilitando a atenção ao que emerge no encontro entre corpos, no aqui e agora. O público é considerado como interlocutor ativo e o artista como aquele que deixa de protagonizar para com-por (por-se com) o espectador, como uma presença-convite, porosa, por meio de uma escuta apurada às configurações do ambiente. Uma articulação entre referências da arte, da filosofia, da antropologia e das ciências cognitivas permite que as diferenças entre presença impositiva e presença partilhada se evidenciem.

Palavras-chave:
Presença-convite; Corpo; Afeto; Relação; Com-posição

Résumé:

Cet article présente une approche à la présence de l'artiste comme une relation en offrant un regard sur le corps et le déplacement de la notion de présence en tant que attribution antérieure de l'artiste, ce qui permet l'attention sur ce qui émerge dans la rencontre entre les corps dans l'ici et le maintenant. Cette étude prend en considération le public comme un interlocuteur actif, et l'artiste ne serait plus le protagoniste de la com-position (position avec) le spectateur, L'artiste est une présence-invitation, poreux, au moyen d'une écoute attentive de ce qui apparaît dans l'expérience. Une combinaison de références de l'art, de la philosophie, de l'anthropologie et de les sciences cognitives met en évidence les différences entre la présence imposante et la présence partagée.

Mots-clés:
Présence-invitation; Corps; Affect; Relation; Com-position

Abstract 1 This paper is an extract from the Master thesis entitled Presença e (em) relação: a potência de afeto no entre corpos (written in Portuguese) by Milene Lopes Duenha, supervised by Prof. Dr. Sandra Meyer Nunes, by the Graduate Program in Theater of Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Available at: <http://www.ceart.udesc.br/ppgt/dissertacoes/2014/dissertacao_milene_lopes.pdf>. :

This text presents an approach to the artist presence as a relation by offering a perspective about the body, and also the shift of presence as a non prior assignment from the artist, which allows us to bring attention to what emerges in the encounter between bodies in the here and now. The audience is considered an active partner and the artist is understood as the one that ceases starring to compose (add-with) the viewer, becoming a porous invitation-presence by an accurate perception practice of the environment settings. This combination of art, philosophy, anthropology and cognitive sciences references allows that the differences between an imposing presence and shared presence become apparent.

Keywords:
Invitation-presence; Body; Affect; Relation; Co(m)position

Presença, termo caro à dança, ao teatro e à performance, com pauta garantida em processos pedagógicos, compositivos e dramatúrgicos. Tais processos trazem questões como: o que é presença? como ter presença ou estar em estado de presença? como manter a atenção e convocar o engajamento dos corpos nas ações propostas? como fazer do encontro com o outro potência de acontecimento2 2 O acontecimento é entendido neste trabalho como um marco que decorre de um momento em que a experiência artística torna-se potente e intensa ao ponto de provocar transformações nos corpos. Essas possibilidades de transformações nos corpos estão ligadas a um movimento de renovação da cena teatral do início do século XX, que se voltaria muito mais aos aspectos sensoriais das relações entre os corpos, do que aos efeitos que se pautavam pela sujeição da construção cênica ao texto dramático, inaugurando o conceito de ação física no teatro. Tais alterações teriam bases em práticas de encenadores como Jacques Copeau, Ettiene Decroux, Edward Gordon Craig, Adolphe Appia, Vsevolod Meyerhold, Constantin Stanislavski e Antonin Artaud. A ideia de transformação nos corpos como aqui apresentada tem como principal referência a exposição de Antonin Artaud em algumas de suas cartas apresentadas pelo pesquisador teatral italiano Marco de Marinis no livro: En Busca del actor y del Espectador (2005). Em outro artigo, de Milene Duenha (2014b), intitulado: Presença e (m) Relação: A Redescoberta do Corpo nas Artes Presenciais do Início do Século XX, essa questão que envolve aspectos sensoriais das relações é ampliada. ? Trata-se de um assunto que acolhe uma diversidade de perspectivas, e que nem sempre se delineiam por consensos. Uma de suas possíveis abordagens será apresentada neste ensaio, que aponta para alguns modos de pensar/fazer arte em que se considera o aspecto relacional, entendendo-a também como efeito do encontro com o outro no aqui-agora. Como as presenças poderiam potencializar o encontro entre corpos na arte?

Atribuições do artista da presença passam a ser problematizadas como agenciamento de dados próprios desse fazer. Dentre esses dados estariam: o potencial individual do artista, que contém seus modos específicos de percepção e articulação de técnicas impregnadas no corpo; os dados emergentes no aqui-agora, na sua relação como o ambiente - ao que se inclui o público/participante; e a própria exposição do artista e de seu posicionamento ético no trabalho perante o público. Esses elementos conferem certa singularidade ao ato do encontro na arte que se alimenta na relação com o outro e, diante dessa perspectiva relacional, uma noção de presença impositiva, inabalável, vai diluindo-se em favor de uma presença-convite, exigente de uma escuta apurada, de um corpo poroso, de dados de ausência, para que se abra espaço à potencialização dos afetos entre os corpos presentes na proposição artística3 3 A noção de afeto apresentada aqui tem base na discussão desenvolvida pelo filósofo holandês Bento Espinosa (1992), que traz a ideia de afeto como fator capaz de aumentar ou diminuir nossa potência de agir. Ao trazer a ideia de afeto espinosiana para uma abordagem sobre a arte, consideramos a possibilidade de se intensificar seus efeitos no corpo a partir da percepção de sua incorrência. Espinosa afirma que não seria possível prever os efeitos do encontro, porque os afetos ocorrem independentemente de nossa vontade, porém, ao identificar seus efeitos, nós poderíamos refrear as paixões tristes, que diminuiriam nossa potência de agir. Diante dessas informações, ao transpormos essa acepção espinosiana de afeto para o universo das artes presenciais, poderíamos, então, nos basearmos na possibilidade de se tensionar, de se esgarçar esse termo, e utilizarmos essa percepção/afecções como parâmetro de operação, como dados a serem considerados durante o desenvolvimento prévio de ações a serem levadas ao público, e também como termômetro das relações estabelecidas no aqui-agora diante da realização dessas ações. Se nos aproximarmos das noções de afecção e de afeto, do modo que Espinosa (1992) as expõe, a noção de presença em relação consideraria também as afecções que circunscrevem o encontro entre artista/performer e público. O performer seria capaz de afetar com sua presença, mas ao mesmo tempo perceber os afetos que a presença do público lhe causaria. .

Assim, algumas noções de presença são problematizadas no decurso desta escrita, como: a presença como aura e atribuição prévia do artista; a presença que se faz entre os corpos em conexão com o ambiente; a presença como energia e dilatação; e a presença como possibilidade de afeto/convite. Esse percurso se norteia basicamente pelas referências de corpo e afeto, contidos na ética descrita por Bento Espinosa; de presença em relação, elaborada por Suzanne M. Jaeger; de comum e atividade do público, problematizados por Jacques Rancière; de energia e dilatação, apresentadas por Eugenio Barba; de corporeidade, elaborada por Michel Bernard; e de com-posição, articulada por Fernanda Eugénio e João Fiadeiro. Além disso, conexões entre outras teorias advindas da arte, da filosofia, da antropologia e das ciências cognitivas desenham a noção de corpo poroso e presença-convite contidas neste artigo.

Somos em Dois, porque é Difícil manter a Alegria Sozinho

Suzanne M. Jaeger4 4 Professora de Filosofia e Ciências Humanas da University of Central Florida em Orlando - Estados Unidos. (2006JAEGER, Suzanne M. Embodiment and Presence.The Ontology of Presence Reconsidered. In: KRASNER, David; SALTZ, David (Org.). Staging Philosophy. Intersections of Theater, Performance and Philosophy. Michigan: The University of Michigan Press, 2006. P. 122-141., p. 122) situa algumas conexões acerca da presença de um modo que parece acolher as emergências do encontro. De acordo com a autora, a presença pode ser definida como a configuração e reconfiguração de uma força em resposta ao ambiente, o que exige do artista capacidade de escuta, consciência de si e do que o cerca, considerando nessa relação o modo singular de cada corpo agir e reagir.

Philip Auslander5 5 Professor da Faculdade de Literatura, Mídia e Comunicação, Georgia Tech em Georgia - Estados Unidos. (apud Jaeger, 2006JAEGER, Suzanne M. Embodiment and Presence.The Ontology of Presence Reconsidered. In: KRASNER, David; SALTZ, David (Org.). Staging Philosophy. Intersections of Theater, Performance and Philosophy. Michigan: The University of Michigan Press, 2006. P. 122-141.) traz a informação de que os encenadores Constantin Stanislavski, Bertold Brecht e Jerzy Grotowski já teriam identificado que a presença do ator não se trataria apenas da incorporação de uma persona que não é ele, mas de uma apresentação autêntica do self do ator. Para Jaeger (2006), as percepções do esquema corporal são alteradas pelas mídias, diferentemente do que ocorre com a presença ao vivo. Sua evidência requer tanto um modo reconhecível de estar no mundo, quanto o poder de se concentrar na singularidade do momento,

[...] pronto para seus deslocamentos, acomodações e adaptações, que pertencem ao desafio da ação, o que ocorre com o completo engajamento do corpo no momento presente. De acordo com Jaeger (2006JAEGER, Suzanne M. Embodiment and Presence.The Ontology of Presence Reconsidered. In: KRASNER, David; SALTZ, David (Org.). Staging Philosophy. Intersections of Theater, Performance and Philosophy. Michigan: The University of Michigan Press, 2006. P. 122-141.), a audiência perceberia isso, e todo esse desencadeamento de percepções manteria viva a performance, com aquela qualidade especial que alguns performers possuem, e que é comumente chamada de presença de palco (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 84).

A estudiosa alemã Erika Fischer-Lichte6 6 Professora no Instituto de Estudos de Teatro na Universidade Livre de Berlim - Alemanha. (2011) traz as abordagens do corpo fenomênico e do corpo semiótico para discutir uma presença que considera o ambiente:

A presença não é uma qualidade expressiva, e sim puramente performativa. Gera-se por meio de processos específicos de corporização que o ator engendra em seu corpo fenomênico ao ponto de dominar o espaço e prender a atenção dos espectadores [grifo nosso] (Fischer-Lichte, 2011FISCHER-LICHTE, Erika. Estética de lo Performativo. Tradução: Diana González Martín e David Martínez Perucha. Madrid: Abada, 2011., p. 197) [tradução nossa]7 7 "La presencia no es una cualidade expressiva, sino puramente performativa. Se genera por médio de processos específicos de corporización con los que elactor engedra su cuerpo fenomênico en tanto que dominador del espacio y acaparador de la atención de los espectadores". .

Em Fischer-Lichte (2011) e em Jaeger (2006JAEGER, Suzanne M. Embodiment and Presence.The Ontology of Presence Reconsidered. In: KRASNER, David; SALTZ, David (Org.). Staging Philosophy. Intersections of Theater, Performance and Philosophy. Michigan: The University of Michigan Press, 2006. P. 122-141.) é possível identificar que há essa consideração do potencial de encantatório do artista sobre o público, como resquícios da manutenção de uma espécie de aura, da presença entendida como poder de prender a atenção do outro. Parece pertinente lembrar que as técnicas desenvolvidas pelo encenador italiano Eugenio Barba são citadas com frequência em processos que se direcionaram mais especificamente às questões da presença cênica na segunda metade do século XX, cuja abordagem se volta à capacidade do artista de envolver o espectador em suas ações.

Com frequência chamamos esta força do ator de presença [grifo do autor], mas não se trata de algo que está, que se encontra aí à nossa frente. É contínua a mutação, o crescimento acontece diante de nossos olhos. É um corpo em vida. O fluxo constante de energias que caracteriza nosso comportamento cotidiano foi re-direcionado (Barba; Savarese, 1995BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: dicionário de antropologia teatral. Tradução: Patricia Furtado de Mendonça. São Paulo: Hucitec Unicamp , 1995., p. 54).

Os princípios desenvolvidos por esse encenador, se reelaborados à luz de pesquisas mais recentes acerca da noção de corpo e da ação corporal, aparecem como possibilidade de refinamento da percepção, que poderá facilitar a relação entre artista e público, ao se identificar os afetos no ato com o outro. Por outro lado, a ideia de figura dilatada, da configuração de uma aura em torno do artista, parece já não caber em uma experiência que se volta às emergências entre os corpos envolvidos. Se considerarmos os deslocamentos e as acomodações necessárias ao artista no ato do encontro, haveremos de considerar também a possibilidade de contaminação de suas ações pelas re-ações e co-ações de quem participa do evento, o que torna pertinente a abordagem da presença do artista como convite ao jogo, como partilha de sensações, com a possibilidade de configuração do acontecimento no alimento das presenças no ambiente.

Algumas práticas contemporâneas, como as do Grupo Cena 11 Cia. de Dança8 8 O grupo, com sede em Florianópolis, tem 21 anos de existência; a pesquisa desenvolvida em seu trajeto implica no desenvolvimento de possibilidades de criação em dança a partir de direcionamentos éticos e estéticos que relacionam corpo e ambiente. Há nesse grupo um interesse em aliar dança e tecnologia, como a exploração de dispositivos de mídia, softwares interativos, robôs e próteses, e, quando não há a utilização desses aparatos, há a contaminação no movimento por uma lógica de operação algorítmica, que se revela esteticamente ao se provocar emergências poéticas (ou momentos de beleza como o próprio grupo menciona) no ato relacional entre os corpos por meio da exploração de parâmetros, que exploram basicamente estados de inevitabilidade e prontidão. Os integrantes do grupo são: Alejandro Ahmed, Aline Blasius, Edú Reis, Hedra Rockenbach, Jussara Belchior, Karin Serafin, Malu Rabelo, Marcos Klann e Mariana Romagnani. Outras informações sobre o grupo podem ser consultadas no site: <www.cena11.com.br>. e do Modo Operativo AND9 9 O Modo Operativo AND, é uma metodologia relacional de composição baseada em uma filosofia que, dentre outras coisas, busca formas de re-existência na configuração de um plano comum de atuação. Tal pesquisa foi desenvolvida pela antropóloga Fernanda Eugénio, ganhando outros contornos no encontro com o método de Composição em Tempo Real, pelo bailarino coreógrafo e pesquisador em dança João Fiadeiro. Outras informações sobre esse processo podem ser consultadas no site: <www.re-al.org> e no blog: <http://andlabpt.blogspot.com.br/>. , oferecem exemplos de operações no campo das artes presenciais que buscam formas de deixar os afetos mútuos emergirem entre as presenças do ambiente, em suas diferenças e semelhanças. O ato de imposição sobre o público, baseado nesse poder de encantamento atribuído ao artista da presença, tende a impedir que as relações se desenvolvam em um espaço de troca, de partilha de afetos. Estabelecer uma figura aurática imprime uma noção de inacessibilidade, de algo inatingível, que não parece tão adequada a uma presença que considera as contaminações do entorno10 10 O brasileiro Marcelo de Andrade Pereira, professor na graduação e Pós-Graduação do Centro de Educação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no artigo intitulado: Ne pas toucher aux œuvres: o princípio da (in)tangibilidade da obra de arte no contexto de sua exibição e suas (contra) significações pedagógicas (Educar em Revista, 2013) traz questionamentos sobre o acesso à experiência da e com a arte, ao abordar as implicações do estabelecimento de espaços da arte como ambientes que, de algum modo, sacralizam e favorecem a relação de poder entre arte e público. Tal leitura permite uma extensão do tema aqui levantado. .

O filósofo francês Jacques Rancière (2010RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. Tradução: Daniele Ávila. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas , Florianópolis, Universidade do Estado de Santa Catarina, v. 1, n. 15, p. 107-122, out. 2010., p. 109) percebe que a condição do espectador não seria a de passividade, na qual se ignora qualquer poder de intervenção sobre o que presencia, ressaltando que deve-se buscar um teatro "sem espectadores", tornando-os "[...] participantes ativos numa ação coletiva, em vez de continuarem como observadores passivos". Ao ignorarmos a atividade do público, também ignoramos a possibilidade de compreender a arte presencial como trânsito de afetos (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a). Rancière revela ainda alguns aspectos contraditórios em sua validação da prática teatral ao declarar que:

[...] Por um lado, o espectador deve ser libertado da passividade do observador que fica fascinado pela aparência à sua frente e se identifica com as personagens no palco. Ele precisa ser confrontado com o espetáculo de algo estranho, que se dá como um enigma e demanda que ele investigue a razão deste estranhamento. Ele deve ser impelido a abandonar o papel de observador passivo e assumir o papel do cientista que observa fenômenos e procura suas causas. Por outro lado, o espectador deve abster-se do papel de mero observador que permanece parado e impassível diante de um espetáculo distante. Ele deve ser arrancado de seu domínio delirante, trazido para o poder mágico da ação teatral, onde trocará o privilégio de fazer as vezes de observador racional pela experiência de possuir as verdadeiras energias vitais do teatro (Rancière, 2010RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. Tradução: Daniele Ávila. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas , Florianópolis, Universidade do Estado de Santa Catarina, v. 1, n. 15, p. 107-122, out. 2010., p. 109).

Ao atribuir ao artista a responsabilidade de oferecer proposições de estranhamento, de formas de alteração na percepção do espectador, e ao espectador a tarefa de manter-se atento diante dessas possíveis alterações perceptivas, Rancière deixa claro que ambos os corpos envolvidos na experiência artística presencial são ativos, ou seja, ambos estão engajados no evento, fazendo com que a produção do acontecimento, das transformações nos corpos, não dependam somente de um potencial encantatório do artista ou da sua ação, mas dos afetos mútuos que emergem nesse encontro. Diante disso, podemos acrescentar que a potência de acontecimento não residiria no espetáculo como obra previamente construída, ou mesmo no programa da performance, mas no momento em que as ações são colocadas em jogo, na relação entre corpos. Vale esclarecer também que não estaríamos descartando todo um processo rigoroso que envolve a composição das ações antes de serem colocadas diante de um público, levando em conta que a própria produção prévia se configura na relação entre os próprios artistas. Rancière chama a atenção para a dicotomia entre ativo e passivo como uma espécie de falso problema, pois artista e espectador, à sua maneira, tem a sua percepção (e, consequentemente, seu repertório e imaginário) ativada de algum modo, e essa operação cognitiva ocorre até mesmo naquele espectador aparentemente inerte sentado numa poltrona em um teatro.

Fischer-Lichte (2011), ao trazer a questão da performatividade e do corpo fenomênico, contempla o corpo em devir, o que se observa em trabalhos de muitos artistas contemporâneos, a exemplo do que o estudioso alemão de teatro Hans-Thies Lehmann (2007LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. Tradução: Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac&Naify, 2007.) define como teatro pós-dramático. Assumir que o corpo é constantemente modificado pelos afetos que incorrem no aqui-agora, é um modo de ampliar as possibilidades com-positivas e dramatúrgicas diante das presenças do lugar, seria assumir que o ato presencial na arte não existe previamente, no que se desenvolveu no ensaio, mas no que se produz diante do encontro com o outro. Embora o processo de produção se encarregue de grande parte do que pode vir a ser potência na relação das artes presenciais, ao considerarmos um contexto em que ambos os corpos se afetam, no momento de presentação, outras abordagens para esse fazer tornam-se necessárias.

Um casal de cegos, que cantava e tocava acordeon em uma das ruas do centro da cidade de Florianópolis, Brasil, o Sr. Mauri e a Sr.ª Maria, ao nos contar um pouco sobre seu ofício, como sobrevivem de sua arte, diz: "Somos em dois porque é difícil manter a alegria sozinho" [informação verbal]11 11 Fala do Sr. Mauri em entrevista realizada por Milene Duenha e Michele Louise Schiocchet com artistas de rua no centro da cidade de Florianópolis, SC no dia 30/04/2013. Esta foi uma das ações de mapeamento do coletivo artístico Mapas e Hipertextos de Florianópolis, que tratava de uma circulação pelas ruas da cidade com a intenção de conversar com artistas e moradores de rua, lançando termos de suas pesquisas para identificar o quanto esses termos também fazem parte do cotidiano não acadêmico. .

A alegria, nesse caso, é o tipo de afeto/presença que mantém seu sustento, pois é o que faz com que os passantes percebam que eles estão ali, a propor uma experiência artística, mas, ao mesmo tempo, essa alegria é o que surge da relação entre os dois artistas, e é o convite ao público que, ao aceitá-lo, também alimenta suas alegrias/presenças (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 86).

O exemplo do trabalho desses artistas, o Sr. Mauri e a Srª. Maria, que vivem da potência de seu fazer no ambiente da rua, nos leva a pensar sobre o nível de incidência de uma noção de presença tangível sobre o artista, e, ao tratarmos desse assunto, parece relevante considerarmos também o quanto a relação entre os corpos presentes nesse encontro determina os rumos desse fazer na arte, criando novos procedimentos e ratificando a importância de se investigar seus modos de existência e re-existência.

Presença como Energia e Dilatação

"Como se tornar vivo em cena? [...] Como fazer vibrar o que se poderia definir como o nó complexo de reações que é o teatro?" são as perguntas trazidas por Barba (2001BARBA, Eugenio. Fazer teatro é pensar de modo paradoxal. In: FÉRAL, Josette. Mise en Scène et Jeu de l'Acteur. Tome 2: Le corps en scène [Encenação e Jogo do ator. Tomo 2: O corpo em cena]. Tradução: José Ronaldo Faleiro. Montréal (Québec)/Carnières (Morlanwelz): Jeu/Lansman, 2001. P. 85-114. , p. 1) em uma entrevista concedida à pesquisadora de teatro Josette Féral intitulada Fazer teatro é pensar de modo paradoxal, título que traz, de fato, uma descrição desse fazer, algo que se evidencia na prática desse encenador, pois, "[...] assumir que o trabalho do artista e do pesquisador em arte também compreende paradoxos é um modo de abrir espaço para descobertas entre uma coisa e outra" (Duenha, 2014aDUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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, p. 88). Esse espaço seria, portanto, o reconhecimento de um vão, o lugar do não saber, uma fissura que se abre em um presente que pode ser desenhado de modo coletivo, no encontro entre o artista e o público. Barba evidencia uma relação paradoxal em alguns de seus textos, o que se identifica também em seus procedimentos de criação. Para ele, uma das características do teatro seria "[...] transformar sua própria anarquia em uma disciplina que deixa marcas e ultrapassa o destino biológico daqueles que o fazem, e que termina quando termina a vida deles" (Barba, 2001, p. 1).

Para Barba, a presença seria um diferencial, uma atribuição específica do artista para certo encantamento do espectador na cena, como se observa nas afirmações de Barba e Savarese (1995). E, para que o artista a conquiste, de acordo com esse encenador, alguns recursos pedagógicos devem ser explorados por meio de um treinamento que se opõe às convenções comportamentais, que busca quebrar os mecanismos usuais que o processo de inculturação encarregou-se de moldar. Os elementos pré-expressivos: energia, oposição, dilatação, equilíbrio, ritmo, omissão e equivalência seriam explorados em favor da evidência de uma presença cênica (Duenha, 2014aDUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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).

A presença cênica, um dos focos desse encenador, passa a ser abordada, dentre outros modos, como possibilidade de modulação de energia. Para Barba, "[...] a tarefa de um ator e de uma atriz é descobrir as propensões individuais da própria energia e proteger suas potencialidades, sua individualidade". A energia é, nesse contexto, a maneira de se exercer uma força, que deverá ser dominada e transformada de modo a afetar o corpo do espectador (Barba; Savarese, 1995, p. 81). Vale ressaltar aqui que, para Barba, energia é também pensamento, o que se identifica em sua defesa acerca de uma imobilidade aparente dos atores que ofereceria outra qualidade de presença por estar carregada de intenção de movimento. "A definição de energia que interessa a esse autor não está somente relacionada à força muscular e nervosa, mas a esse processo biológico do corpo que se converte em pensamento, e se dá a ver ao espectador" (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 88).

A possibilidade de se modelar conscientemente a energia do ator, e de provocar transformação nas energias do espectador (Barba, 2010BARBA, Eugenio. Queimar a Casa: origens de um diretor. Tradução: Patricia Furtado de Mendonça. São Paulo: Perspectiva, 2010. ) aparece como um forte impulso nas pesquisas de Barba e seus colaboradores, delineando o perfil do Odin Teatret, grupo com 52 anos de existência12 12 Mais informações sobre o grupo podem ser conferidas em: <http://www.odinteatret.dk/>. . "A oposição é um dos elementos explorados na técnica desenvolvida pelo grupo, sob a intenção de oferecer o contrário, impor obstáculos à ação" (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 89). O impulso para isso seria a imaginação de "forças que puxam/empurram" na direção oposta à qual se tenciona chegar. Como consequência dessa exploração das oposições, na movimentação ou na inércia, teríamos a "dilatação de tensões", o que conferiria outro caráter à presença do artista (Barba; Savarese, 1995, p. 12-13). Dilatar significa ampliar, aumentar dimensões, o que se configura, segundo o encenador, em aumento de energia devido à "[...] excitação de partículas que se separam, atraem-se e se opõem com mais força" (Barba; Savarese, 1995, p. 54). "O resultado na dilatação seria mais vida ao ator/bailarino, o que poderia, consequentemente, capturar a atenção do espectador, de acordo com esse investimento de Barba nas oposições" (Duenha, 2014a, p. 89).

Na intenção de se alcançar um espaço do extracotidiano, Barba propõe princípios de "desperdício" e "excesso". Enquanto habitualmente optamos pelo maior resultado com o menor esforço, temos uma proposta de oposição a isso: empenhar mais energia em uma movimentação mínima (Barba; Savarese, 1995, p. 55). A possibilidade de domínio das energias do corpo nessa movimentação extracotidiana, em uma situação de imobilidade do ator/bailarino ou na "mobilidade não representativa", seria um meio de superar os excessos na representação, defendendo a necessidade de uma percepção aguçada do artista, uma consciência ao que acontece ao corpo e ao ambiente. Para esse encenador, a gestão de energias na imobilidade seria uma das possibilidades de "[...] tornar viva a presença do ator, que não precisaria representar, mas estar na cena" (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 90).

A excessiva movimentação com o propósito de se mostrar vitalidade na cena é alvo de críticas para Barba (1991BARBA, Eugenio. Além das Ilhas Flutuantes. Tradução: Luiz Otávio Burnier. São Paulo: Hucitec Unicamp, 1991.), uma vez que, para ele, moção de energia seria perceptível até na movimentação que não é aparente. Graças à exploração das oposições, e a consequente circulação de energia no corpo, as ações do ator/bailarino seriam ampliadas. Conforme exposição de Barba, "[...] a dança de oposições é dançada no [grifo do autor] corpo antes de ser dançada com [grifo do autor] o corpo [...]. A energia não corresponde necessariamente ao deslocamento no espaço" (Barba; Savarese, 1995, p. 13). Diante disso é possível afirmar que, se o ator é capaz de gerar e gerir níveis de energia, o espectador também o faria de algum modo, e esses diferentes níveis de energia, em relação, também poderiam determinar o teor do encontro presencial.

Tais preceitos, desenvolvidos por Eugenio Barba, deflagram os elementos basilares de uma abordagem da presença cênica que resiste ao tempo, uma vez que os estudos desse encenador oferecem, de fato, uma sistematização utilizada em muitos processos pedagógicos e trabalhos artísticos na atualidade, incluindo o próprio trabalho do Odin Teatret. Por outro lado, não podemos ignorar outros processos emergentes, mais vinculados a uma noção de performatividade, que já não se pautam somente pela ideia de representação, ou até mesmo de apresentação, e que não mantém a presença cênica do artista na centralidade de seu fazer.

E, se essa noção de presença, a presença cênica, fosse compreendida como "o convite à experiência?" E se transferíssemos a potência disso que chamamos arte da presença para o que, de fato, surge na relação entre os corpos que compõem o ambiente? "Conquistar essa qualidade de presença implicaria em, ao invés de ser a diferença, deixá-la emergir, perceber quando ela surge como um acontecimento" (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 87), a exemplo do que ocorre no Modo Operativo AND desenvolvido por Eugénio e Fiadeiro (2012EUGÉNIO, Fernanda; FIADEIRO, João. Secalharidade como ética e como modo de vida: o projeto AND_Lab e a investigação das práticas de encontro e de manuseamento coletivo do viver juntos. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, Universidade do Estado de Santa Catarina, v. 1, n. 19, p. 61-69, nov. 2012.), em que não há possibilidade de prever o que acontecerá no encontro entre corpos, uma vez que tudo se fará a partir do momento em que essas matérias são postas em relação.

Diante disso, a atribuição essencial do artista passaria, então, à capacidade de compartilhar experiência e articular possibilidades poéticas emergentes no jogo. Para que essa presença se transforme em convite ao outro, a apreensão de um modo de fazer é imprescindível e, por isso, não desconsideramos informações conquistadas em processos pedagógicos e compositivos que tanto serviram à concepção da arte da presença ao longo da história. Trataríamos, portanto, de revisitar modos de fazer, reinventando-os, atentos a emergência de elementos condizentes com a demanda de nosso tempo, ao que caberia, por exemplo: um treinamento da escuta; o entendimento de embodiment (mente incorporada) e suas possibilidades relacionais; a contaminação do fazer artístico por discussões de múltiplas fontes, e um olhar atento para as questões que envolvem nossa experiência no mundo; para, quem sabe, a partir disso, com-por13 13 A palavra com-por deriva da noção de "com-posição", por-se com (tomada de posição com) o outro, apresentada por Fernanda Eugénio e João Fiadeiro (2012, p. 67), compreendida nesta pesquisa como possibilidade de se tomar uma posição justa, que potencialize o encontro diante da configuração do ambiente e das relações emergentes. , por com o outro, e produzir acontecimento nesse encontro, nas circunstâncias que nos são apresentadas.

A possibilidade do artista em provocar um estado de atenção no público é entendida neste ensaio como a busca por uma "presença-convite" (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 92), que tem chances de gerar transformação também nas energias do espectador, do modo que Barba (2010BARBA, Eugenio. Queimar a Casa: origens de um diretor. Tradução: Patricia Furtado de Mendonça. São Paulo: Perspectiva, 2010. ) expõe, de acordo com sua recepção desse convite. "Porém, ao considerarmos que ambos os corpos envolvidos na relação são afetados, a emergência de acontecimento passa a ser uma responsabilidade partilhada14 14 Rancière (2005, p. 15) apresenta a ideia de partilha do sensível como um ato de estabelecimento de algo comum e de uma divisão de responsabilidades nesse ato, descrita pelo autor como "[...] a maneira comum que se presta a participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha". ". A noção de presença cênica, como abordada por Eugenio Barba, carregaria a potência de um convite, instaurando inicialmente a relação, mas não necessariamente mantendo-a (Duenha, 2014a, p. 92).

É possível admitir que a manutenção da vida do ator/bailarino na cena (Barba; Savarese, 1995BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: dicionário de antropologia teatral. Tradução: Patricia Furtado de Mendonça. São Paulo: Hucitec Unicamp , 1995.) se dá na relação com o público. Porém, se essa possibilidade de alimentar o que há de vida na cena fosse transferida para a "experiência partilhada entre as presenças", com seus diferentes níveis de energia - em vez de se considerar que apenas o público alimentaria a vida do artista em cena -, uma presença impositiva, revestida por uma aura, daria espaço ao que poderia emergir de potência no encontro, na relação entre artista e público (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 92).

Ao artista caberia a preparação para a relação, o convite, mas não somente a ele poderia caber a responsabilidade de gestão dessa experiência, que é compartilhada, pois se a arte da presença leva em conta as relações que se configuram no aqui-agora, as implicações da presença do espectador devem ser consideradas, assim como o próprio Barba (2001BARBA, Eugenio. Fazer teatro é pensar de modo paradoxal. In: FÉRAL, Josette. Mise en Scène et Jeu de l'Acteur. Tome 2: Le corps en scène [Encenação e Jogo do ator. Tomo 2: O corpo em cena]. Tradução: José Ronaldo Faleiro. Montréal (Québec)/Carnières (Morlanwelz): Jeu/Lansman, 2001. P. 85-114. ) assume, ao afirmar que o espectador exerce influência nas ações do ator (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 92).

De acordo com Barba (Barba; Savarese, 1995BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: dicionário de antropologia teatral. Tradução: Patricia Furtado de Mendonça. São Paulo: Hucitec Unicamp , 1995.), os elementos pré-expressivos apareceriam como meio de manutenção da vida na cena, tornando divina a interpretação do ator/bailarino, uma vez que, para o autor, essa qualidade de presença imprimiria uma imagem de negação de sua condição terrestre. Na pesquisa desse encenador, atribuições e imagens de intangibilidade são constantes, e tal característica deve ser observada também por outras perspectivas, principalmente no que concerne a um contexto atual nas artes presencias, pois ainda que se almeje uma intensidade na experiência artística, a sustentação de uma "[...] aura divina ao artista aparece justamente como um invólucro que des-convida o espectador à atividade, uma vez que sua tarefa parece ser somente a de admirar essa figura divina" (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 93). Como seria possível a configuração de um ambiente de partilha de sensibilidades se há um território, demarcado previamente, a imprimir as diferenças em seu uso? Quem age, e quem não age nele? Voltando à questão dos paradoxos, temos aqui uma confirmação da necessidade de assumi-los nesse fazer plural das artes presenciais, pois, apesar de Barba (2001, p. 4) ter dedicado grande parte de sua vida à elaboração de uma pesquisa favorável à uma dilatação do corpo do ator/bailarino, ele afirma atualmente que "[...] a matéria-prima do teatro não é o ator, o espaço, o texto, mas a tensão, o olhar, a escuta, o pensamento do espectador. O teatro é a arte do espectador".

Ao investir em estudos acerca da fenomenologia da percepção para tratar das possibilidades relacionais, Jaeger (2006JAEGER, Suzanne M. Embodiment and Presence.The Ontology of Presence Reconsidered. In: KRASNER, David; SALTZ, David (Org.). Staging Philosophy. Intersections of Theater, Performance and Philosophy. Michigan: The University of Michigan Press, 2006. P. 122-141.) afirma que sentidos e cognição se retro-afeccionam, demonstrando que a formação de padrões não seria atribuição somente da cultura, algo mais coletivo, mas também no que há de singular, pois, o modo peculiar de cada indivíduo que, à sua maneira, percebe o ambiente e cria sua teia de sentidos, também o comporia, implicando no modo de se estabelecer relação com o entorno. "O artista é esse ser humano, sujeito à ordem social e aos eventos biológicos" tal qual o espectador e, ainda que as conexões e reações sejam diferentes, "as respostas aos estímulos não serão apreensíveis do modo consciente"15 15 Esse assunto é tratado com mais abrangência pelo filósofo português José Gil no livro Movimento Total: o corpo e a dança (2001) e no texto Abrir o corpo (2004). (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 93).

A noção de embodiment é trazida por Jaeger (2006JAEGER, Suzanne M. Embodiment and Presence.The Ontology of Presence Reconsidered. In: KRASNER, David; SALTZ, David (Org.). Staging Philosophy. Intersections of Theater, Performance and Philosophy. Michigan: The University of Michigan Press, 2006. P. 122-141.) para explicar a constante reorganização do esquema corporal16 16 O esquema corporal, para o filósofo francês Merleau-Ponty (1994), seria a maneira de expressão do corpo no mundo, não se tratando de uma mera reunião de órgãos. A espacialidade do corpo diz respeito a uma dinâmica de funcionamento como espacialidade de situação, que se refere ao que ocorre no momento em relação com o ambiente em uma perspectiva dinâmica. , esquema este que se altera a cada nova situação e ambiente. Diante disso, uma presença em relação pode ser compreendida na reconfiguração desse esquema corporal, "com suas constantes atividades incorporadas que constituem nossas experiências de percepção". A conexão com o ambiente seria, portanto, "[...] capaz de alterar o estar no mundo, e assumir tal relação seria, então, um modo de estar aberto e atento ao que ocorre" (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 94).

Que Corpo poderia estar no Aqui-Agora?

O corpo é assunto, meio e alvo de estudos no campo das artes, é também pauta em diversas outras áreas como nas ciências, na filosofia, na antropologia. Assim, à arte da presença, que se faz em relação, também parece pertinente a dedicação à investigação de suas dinâmicas de funcionamento, por meio do acesso a meios diversos, de modo transdisciplinar, ante o reconhecimento de que se trata de uma complexidade ainda não desvendada. Os corpos presentes na experiência artística relacional, sejam eles propositores ou espectadores, se tratam de organismos vivos, dinâmicos e inapreensíveis em sua totalidade.

A noção de presença apresentada neste ensaio, que compreende o corpo em devir, no aqui-agora, no ato de compartilhar experiência, se pautaria não somente pelo desejo de transformar a presença do artista em convite, mas na intenção de, "[...] no ato do encontro entre performer e público, permitir que a emergência de afetos se configure em mudança, em acontecimento a ambos os corpos envolvidos na relação". A referência aqui é a de uma presença-convite que "[...] evoca, que quer provocar os sentidos, mas que não ignora os efeitos, nos corpos, desse trânsito de afetos" (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 96). Partindo de algumas perguntas e conexões, investigamos meios para essa abertura às possibilidades de contaminação no corpo, e consequente alteração de estados corporais que possam emergir das relações entre o performer propositor e o ambiente (Meyer, 2009MEYER, Sandra. As Metáforas do Corpo em Cena. Florianópolis: AnnaBlume/UDESC, 2009.), "[...] considerando o ambiente não somente como o espaço que é ocupado, mas também como o que esse espaço contém, incluindo corpos, objetos e ocorrências, dentre outras coisas". Dentre as questões emergentes estão: "Conhecer os modos de funcionamento do corpo pode ser um dado para a produção dessa presença-convite? A potência das presenças poderia insurgir na experiência partilhada? Um corpo poroso e não segmentado aparece como princípio para essa investigação"17 17 Propomos uma reflexão acerca do problema corpo-mente, cuja herança envolve muitas definições sob o olhar de filósofos, cientistas e artistas, e que tem reverberação no campo nas artes, principalmente no que se refere ao corpo. Partimos aqui da noção de corpomente, (Meyer, 2009), a fim de aproximar a noção de presença relacional a de embodiment (mente incorporada), para isso, buscamos também referências nas ciências cognitivas (que são as neurociências, a inteligência artificial, a psicologia cognitiva, a linguística cognitiva e a filosofia). A interação de campos de saberes denominados por ciências cognitivas vem provocando uma ruptura onto-epistemológica, incidindo numa profunda mudança na compreensão que o ser humano tem de si mesmo, de sua natureza e comportamento (Meyer, 2009). (Duenha, 2014a, p. 96).

O corpo, dividido em partes: física e espiritual, instrumento da vontade da alma que, alojada nesse corpo, comandava-o 'como um piloto em seu navio', tal qual a metáfora enunciada pelo filósofo francês René Descartes na Meditação Sexta (2008DESCARTES, René. Discurso do Método. Meditações. São Paulo: Martin Claret, 2008., p. 134), já não vigora com tanta força em pesquisas que questionam atribuições intangíveis dos corpos. Em Descartes, o problema corpo-mente tem uma conformação que divide o corpo em duas substâncias: uma material e uma pensante. O filósofo Paul Churchland (2004CHURCHLAND, Paul. Matéria e Consciência. Uma introdução contemporânea à filosofia da mente. São Paulo: Editora UNESP, 2004., p. 27), ao descrever o pensamento de Descartes, esclarece que '[...] o você real não é seu corpo material, mas uma substância pensante e não-espacial, uma unidade individual da coisa-mente totalmente distinta de seu corpo material, mas que está em interação causal e sistemática com seu corpo', enquanto Espinosa (1992ESPINOSA, Bento. Ética. Parte II (Da Natureza e da Origem da alma) e Parte III (Da origem e da Natureza das Afecções). Lisboa: Relógio D'Água, 1992.) entende corpo e mente como uma só e mesma coisa, que se manifesta de dois modos distintos18 18 Essa teoria de Espinosa é problematizada pela filósofa francesa Chantal Jaquet no livro A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa (2011). (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 97).

Esse corpo, em constante devir, na busca por uma tangibilidade das relações, não seria dividido em duas substâncias (uma material e outra espiritual), ele não é instrumento, não é recipiente, não é um meio pelo qual a alma se expressa (Meyer, 2009MEYER, Sandra. As Metáforas do Corpo em Cena. Florianópolis: AnnaBlume/UDESC, 2009.), não é "[...] a morada provisória de algo superior, mas aquilo que deixa uma trajetória dinâmica através da qual aprendemos a registrar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo" (Latour, 2008LATOUR, Bruno. Como Falar do Corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência. In: NUNES, João; ROQUE, Ricardo (Org.). Objectos Impuros: experiências em estudos sobre a ciência. Porto: Afrontamento e autores, 2008. P. 39-61. p. 39). Esse corpo sensível, como nos apresenta o antropólogo, sociólogo e filósofo da ciência francês, Bruno Latour, poderia, então, ser o corpo que se mistura com o que há nos encontros, que busca estar no mundo em uma relação menos hierárquica e menos disciplinada com o que o cerca19 19 "A noção de disciplina não seria, como salientam Greiner e Katz (2005), capaz de abarcar um campo de conhecimento tão complexo e, para tratar do corpomente, não basta juntar conhecimentos disciplinares, o que comumente chamamos de trans ou interdisciplinaridade. A condição do organismo vivo pede pela substituição da noção de disciplina pela de indisciplina, na tentativa de nos aproximarmos do caráter dinâmico e processual da ação" (Meyer, 2009, p. 22). (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 97).

O corpo em devir, que se descreve menos pelo é, e mais pelo sendo agora, e agora, e agora, aparece como uma possibilidade de percepção do corpo que performa, esse que se supõe não mais pilotado pela alma, e que, como presença no contexto das relações, agencia informações, propõe experiências sensoriais, afetando e sendo afetado, em um terreno de iminências. O corpo que performa seria esse do sendo agora, que se reconfigura no espaço da troca, que afeta e é afetado pelos corpos, considerando também os agenciamentos singulares de cada corpo em relação. Como ser sensível às relações? (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
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a, p. 97).

Um Corpo que não se Conforma20 20 O texto a seguir constitui um enxerto extraído integralmente do IV capítulo da dissertação de mestrado de Milene Lopes Duenha (2014a).

Esse corpo do sendo agora, exposto aqui como indisciplinado e com operações de interdependência vitais, é então o corpo na arte que o filósofo Michel Bernard (2001BERNARD, Michel. De la Création Choréographique. Cap. De La corporeité comme "anticorps". Tradução não publicada: Marta Cesar. Paris: Centre National de la Danse, 2001. P. 17-25.) se nega a nomear tão simplesmente corpo, convidando-nos a entendê-lo como anticorpo, antídoto à categoria tradicional de corpo, abordando-o primeiramente pelo que ele não é, para chegar a noção de corporeidade21 21 No capítulo De la corporeité comme "anticorps", da obra De la création chorégraphique (2001, p. 17 a 25). Todas as traduções (não publicadas) do autor apresentadas neste artigo são de autoria de Marta Cesar, e foram realizadas em estudos da disciplina Abordagens do Corpo na Arte, Filosofia e Ciência, do Programa de Pós-graduação em Teatro, na Universidade do Estado de Santa Catarina. .

Bernard (2001BERNARD, Michel. De la Création Choréographique. Cap. De La corporeité comme "anticorps". Tradução não publicada: Marta Cesar. Paris: Centre National de la Danse, 2001. P. 17-25., p. 18) compreende o corpo como um modo de gestão de nossa experiência vivida, de nós mesmos, dos outros e do mundo. O corpo seria um organismo vivo que se atualiza constantemente na relação com o ambiente, e com a cultura que o reivindica. Para Bernard (2001, p. 19), o uso desse tipo de signo linguístico (palavra corpo) para designar "[...] a dimensão material e sensível de nossa vivência, implica a deturpação e mesmo a falsificação de processos que o constituem". O autor menciona a operação dessa falsificação por meio de cinco reducionismos correlacionados.

O primeiro seria o reducionismo do processo sensorial da percepção a um processo cognitivo de informação - perceber não seria mais viver a experiência "[...] carnal, aleatória e ambivalente de um encontro ou de um contato eventual, mas tentar identificar sua causa e seu referente"; o segundo o reducionismo seria partir do processo pulsional e energético de ex-pressão, a um processo de comunicação; o terceiro seria o entendimento da ação como "força intensiva e dispensa energética" (Bernard, 2001BERNARD, Michel. De la Création Choréographique. Cap. De La corporeité comme "anticorps". Tradução não publicada: Marta Cesar. Paris: Centre National de la Danse, 2001. P. 17-25., p. 18-19) que se reduz à finalidade utilitária e relacional; o quarto reducionismo estaria nas consequências desse entendimento de corpo que muda a lógica de funcionamento orgânico, o que se configuraria em obstáculo para o que há de inovador e imprevisível do imaginário, dando vazão a uma "racionalidade calculadora"; e o quinto reducionismo estaria no entendimento de corpo como veículo e processador de informações.

Bernard (2001BERNARD, Michel. De la Création Choréographique. Cap. De La corporeité comme "anticorps". Tradução não publicada: Marta Cesar. Paris: Centre National de la Danse, 2001. P. 17-25., p. 20) afirma que a arte contemporânea e seus processos de criação contribuem para a desconstrução desse modelo de corpo meramente informacional e comunicacional, acrescentando que as reflexões de artistas como Paul Cézanne22 22 Pintor pós-impressionista francês. , Antonin Artaud23 23 Poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês. , Paul Klee24 24 Pintor e poeta suíço , Wassily Kandinsky25 25 Pintor, teórico, músico e professor russo, considerado o introdutor da abstração no campo das artes visuais. , Francis Bacon26 26 Pintor anglo-irlandês. ou John Cage27 27 Compositor, teórico musical e escritor norte-americano. , e de numerosos pensadores com visões divergentes, como Merleau-Ponty, Anton Ehrenzweig28 28 Psicanalista austríaco. e Deleuze29 29 Filósofo francês. , nos revelariam que "[...] o ato criador não é feito de poder inerente a um corpo [grifo do autor] como estrutura orgânica permanente e significante, mas que seria o resultado do trabalho de uma 'rede material energética móvel, instável, de forças pulsionais e de interferências de intensidades díspares e cruzadas'".

Ao citar Ehrenzweig, Bernard (2001BERNARD, Michel. De la Création Choréographique. Cap. De La corporeité comme "anticorps". Tradução não publicada: Marta Cesar. Paris: Centre National de la Danse, 2001. P. 17-25., p. 6) afirma que "[...] longe de ser a emanação de um corpo-sujeito homogêneo e idêntico, a produção artística é uma desconstrução e o desvelamento de sua materialidade sensível instável e aleatória". A noção de corporeidade, conforme expõe o filósofo, é elemento do discurso da arte, pois esta se faz em jogos de intensidade. Segundo Bernard (2001, p. 6), "[...] no artista, os diversos sentidos se respondem numa polifonia sempre renovada e se constituem como um estranho teclado móvel, precário e indefinível, sobre o qual pode-se compor incríveis variações". Bernard (2001, p. 8) destaca os efeitos de outro olhar para o corpo na produção artística e na pedagogia, sugerindo adotarmos "em substituição ao modelo substancialista, semiótico e instrumental", um olhar "reticular, intensivo e heterogêneo, da 'corporeidade' [aspas do autor]", de modo a perturbar o mecanismo de poder colocado por essa lógica instrumental.

A discussão à qual Michel Bernard (2001BERNARD, Michel. De la Création Choréographique. Cap. De La corporeité comme "anticorps". Tradução não publicada: Marta Cesar. Paris: Centre National de la Danse, 2001. P. 17-25.) nos convoca impede a redução do que chamamos cotidianamente de corpo a algo que se define e se divide em apenas duas dimensões - mente e corpo, ou espírito e matéria. Diante do desejo de não redução da noção de corporeidade e das possibilidades de gestão de nossas experiências, trataremos o anticorpo como propõe Bernard (2001), por corpo poroso, convidando o leitor a imaginar que a noção de poros permitiria a manutenção de um sistema complexo de agenciamentos de informações sem que essas informações pudessem se conformar, de modo estável, nessa dimensão material sensível (Bernard, 2001) que somos.

Partimos inicialmente de uma abordagem do corpo como matéria, a entender que a matéria física existe, e que dela emergem emoções e pensamentos, enquanto que a espiritual é ainda hipotética, como nos expõe Paul Churchland (2004CHURCHLAND, Paul. Matéria e Consciência. Uma introdução contemporânea à filosofia da mente. São Paulo: Editora UNESP, 2004.)30 30 Segundo Churchland, o nó dualismo versus materialismo não estaria resolvido, pois o dualista aborda o cérebro como mediador entre a mente e o corpo e não se refere a capacidades centrais da mente não-física como a razão, emoção e a consciência. Os materialistas afirmam que o pensamento é uma atividade elétrica no interior do cérebro. A telepatia, por exemplo, aconteceria a partir da produção de ondas eletromagnéticas que se irradiam na velocidade da luz em todas as direções e que podem ter efeitos sobre a atividade elétrica de outro cérebro (Churchland, 2004, p. 40). . Baseamo-nos também nas pesquisas desenvolvidas pelo neurologista e neurocientista António Damásio (1996DAMÁSIO, António. O Erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.; 2004DAMÁSIO, António. Em Busca de Espinosa. Prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras , 2004.; 2011DAMÁSIO, António. E o Cérebro criou o Homem. São Paulo: Companhia das Letras , 2011.), que defende a não dissociação do corpo e da mente. Esses teóricos nos levam a entender que não possuímos um corpo, mas que somos o corpo (Meyer, 2009MEYER, Sandra. As Metáforas do Corpo em Cena. Florianópolis: AnnaBlume/UDESC, 2009.).

Considerações Finais

A ideia de uma presença-convite articulada neste artigo considera as relações compositivas entre o público e o artista por meio de uma escuta apurada às emergências do encontro. Os corpos que aqui se enunciam em situação de encontro são corpos-porosos, que se misturam e se reconstituem nas conexões com o ambiente, que se permitem estar no instante, no aqui-agora, que geram empatia, afetam e são afetados. Nesse sentido, as atribuições de uma presença viva ao performer aparecem menos vinculadas a aspectos de intangibilidade. Por outro lado, se a presença do artista, nessa configuração de corpo em devir, é também resultado da relação com o ambiente, haveremos de considerar a presença também a partir das referências do entorno, ao que se inclui o "modo culturalmente aceito de estar presente", conforme declara o pesquisador brasileiro Gilberto IcleICLE, Gilberto. Estudos da Presença: prolegômenos para a pesquisa das práticas performativas. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 09-27, jan./jun. 2011. 31 31 Ator, diretor e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (2011, p. 16). Diante da abordagem da presença como movimento, que se liga de modo constante ao que ocorre no ambiente, o autor afirma que "não há uma presença universal e transcendental" (Icle, 2011, p. 16).

Outras abordagens da presença do artista podem emergir de um olhar para a dinâmica de funcionamento do corpo em constante estado de atualização. Trata-se aqui de um corpo que se autorregula a cada nova conexão com o ambiente, sem que tenhamos consciência de tudo o que ocorre, pois, como observa Suely Rolnik (1996ROLNIK, Suely. Lygia Clark e o híbrido arte/clínica. Percurso - Revista de Psicanálise, São Paulo, Instituto Sedes Sapientiae, Ano VIII, n. 16, p. 43-48, 1º semestre de 1996. Disponível em: <Disponível em: http://caosmose.net/suelyrolnik/pdf/Artecli.pdf >. Acesso em 02 ago. 2013.
http://caosmose.net/suelyrolnik/pdf/Arte...
, p. 3): "[...] cada indivíduo é permanentemente habitado por fluxos do planeta inteiro, o que multiplica as hibridações, aguçando, consequentemente, o engendramento de diferenças que vibram no corpo e o fazem grasnar". "Ao corpo que compartilha a experiência nas relações propostas nas artes presenciais, cabe o olhar como organismo vivo, latente, que sobrevive no terreno híbrido e movediço em que essa arte se aporta" (Duenha, 2014DUENHA, Milene Lopes. Presença e (em) Relação: a potência de afeto no entre corpos. 2014. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2014a. Disponível em: <Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3682 >. Acesso em: 25 mar. 2015.
http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arqui...
a, p. 102).

Uma presença-convite seria essa que se permite uma contaminação constante, seja em seus modos de fazer/treinar, anteriores ao encontro, seja no que se conhece por estado de presença e que, livre de mistificações, passa a ser simplesmente o estar com o outro na arte, com poros dilatados, receptivos aos afetos. Assim, delinearíamos uma noção de presença na arte como algo que não se faz só.

Referências

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    » http://caosmose.net/suelyrolnik/pdf/Artecli.pdf
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    Este artigo é extrato da dissertação de mestrado intitulada Presença e (em) relação: a potência de afeto no entre corpos de Milene Lopes Duenha, orientada pela Prof.ª Dr.ª Sandra Meyer Nunes, pelo programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina. A dissertação encontra-se disponível no sítio: <http://www.ceart.udesc.br/ppgt/dissertacoes/2014/dissertacao_milene_lopes.pdf>.
  • 2
    O acontecimento é entendido neste trabalho como um marco que decorre de um momento em que a experiência artística torna-se potente e intensa ao ponto de provocar transformações nos corpos. Essas possibilidades de transformações nos corpos estão ligadas a um movimento de renovação da cena teatral do início do século XX, que se voltaria muito mais aos aspectos sensoriais das relações entre os corpos, do que aos efeitos que se pautavam pela sujeição da construção cênica ao texto dramático, inaugurando o conceito de ação física no teatro. Tais alterações teriam bases em práticas de encenadores como Jacques Copeau, Ettiene Decroux, Edward Gordon Craig, Adolphe Appia, Vsevolod Meyerhold, Constantin Stanislavski e Antonin Artaud. A ideia de transformação nos corpos como aqui apresentada tem como principal referência a exposição de Antonin Artaud em algumas de suas cartas apresentadas pelo pesquisador teatral italiano Marco de Marinis no livro: En Busca del actor y del Espectador (2005DE MARINIS, Marco. En Busca del actor y del Espectador. Buenos Aires: Galerna, 2005. (Coleção Teatrologia: compreender o teatro II. Org. Osvaldo Pellettieri).). Em outro artigo, de Milene Duenha (2014bDUENHA, Milene Lopes. Presença e (m) Relação: a redescoberta do corpo nas artes presenciais do início do século XX. DAPesquisa, Florianópolis, v. 9, n. 11, p. 92-103, 2014b.), intitulado: Presença e (m) Relação: A Redescoberta do Corpo nas Artes Presenciais do Início do Século XX, essa questão que envolve aspectos sensoriais das relações é ampliada.
  • 3
    A noção de afeto apresentada aqui tem base na discussão desenvolvida pelo filósofo holandês Bento Espinosa (1992), que traz a ideia de afeto como fator capaz de aumentar ou diminuir nossa potência de agir. Ao trazer a ideia de afeto espinosiana para uma abordagem sobre a arte, consideramos a possibilidade de se intensificar seus efeitos no corpo a partir da percepção de sua incorrência. Espinosa afirma que não seria possível prever os efeitos do encontro, porque os afetos ocorrem independentemente de nossa vontade, porém, ao identificar seus efeitos, nós poderíamos refrear as paixões tristes, que diminuiriam nossa potência de agir. Diante dessas informações, ao transpormos essa acepção espinosiana de afeto para o universo das artes presenciais, poderíamos, então, nos basearmos na possibilidade de se tensionar, de se esgarçar esse termo, e utilizarmos essa percepção/afecções como parâmetro de operação, como dados a serem considerados durante o desenvolvimento prévio de ações a serem levadas ao público, e também como termômetro das relações estabelecidas no aqui-agora diante da realização dessas ações. Se nos aproximarmos das noções de afecção e de afeto, do modo que Espinosa (1992) as expõe, a noção de presença em relação consideraria também as afecções que circunscrevem o encontro entre artista/performer e público. O performer seria capaz de afetar com sua presença, mas ao mesmo tempo perceber os afetos que a presença do público lhe causaria.
  • 4
    Professora de Filosofia e Ciências Humanas da University of Central Florida em Orlando - Estados Unidos.
  • 5
    Professor da Faculdade de Literatura, Mídia e Comunicação, Georgia Tech em Georgia - Estados Unidos.
  • 6
    Professora no Instituto de Estudos de Teatro na Universidade Livre de Berlim - Alemanha.
  • 7
    "La presencia no es una cualidade expressiva, sino puramente performativa. Se genera por médio de processos específicos de corporización con los que elactor engedra su cuerpo fenomênico en tanto que dominador del espacio y acaparador de la atención de los espectadores".
  • 8
    O grupo, com sede em Florianópolis, tem 21 anos de existência; a pesquisa desenvolvida em seu trajeto implica no desenvolvimento de possibilidades de criação em dança a partir de direcionamentos éticos e estéticos que relacionam corpo e ambiente. Há nesse grupo um interesse em aliar dança e tecnologia, como a exploração de dispositivos de mídia, softwares interativos, robôs e próteses, e, quando não há a utilização desses aparatos, há a contaminação no movimento por uma lógica de operação algorítmica, que se revela esteticamente ao se provocar emergências poéticas (ou momentos de beleza como o próprio grupo menciona) no ato relacional entre os corpos por meio da exploração de parâmetros, que exploram basicamente estados de inevitabilidade e prontidão. Os integrantes do grupo são: Alejandro Ahmed, Aline Blasius, Edú Reis, Hedra Rockenbach, Jussara Belchior, Karin Serafin, Malu Rabelo, Marcos Klann e Mariana Romagnani. Outras informações sobre o grupo podem ser consultadas no site: <www.cena11.com.br>.
  • 9
    O Modo Operativo AND, é uma metodologia relacional de composição baseada em uma filosofia que, dentre outras coisas, busca formas de re-existência na configuração de um plano comum de atuação. Tal pesquisa foi desenvolvida pela antropóloga Fernanda Eugénio, ganhando outros contornos no encontro com o método de Composição em Tempo Real, pelo bailarino coreógrafo e pesquisador em dança João Fiadeiro. Outras informações sobre esse processo podem ser consultadas no site: <www.re-al.org> e no blog: <http://andlabpt.blogspot.com.br/>.
  • 10
    O brasileiro Marcelo de Andrade Pereira, professor na graduação e Pós-Graduação do Centro de Educação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no artigo intitulado: Ne pas toucher aux œuvres: o princípio da (in)tangibilidade da obra de arte no contexto de sua exibição e suas (contra) significações pedagógicas (Educar em Revista, 2013PEREIRA, Marcelo de Andrade. Ne pas toucher aux oeuvres: o princípio da (in)tangibilidade da obra de arte no contexto de sua exibição e suas (contra) significações pedagógicas. Educar em Revista, Curitiba, Universidade Federal do Paraná, n. 49, p. 309-322, jul./set. 2013. Disponível em: <Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=155028215017 >. Acesso em: 15 mar. 2014.
    http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=15...
    ) traz questionamentos sobre o acesso à experiência da e com a arte, ao abordar as implicações do estabelecimento de espaços da arte como ambientes que, de algum modo, sacralizam e favorecem a relação de poder entre arte e público. Tal leitura permite uma extensão do tema aqui levantado.
  • 11
    Fala do Sr. Mauri em entrevista realizada por Milene Duenha e Michele Louise Schiocchet com artistas de rua no centro da cidade de Florianópolis, SC no dia 30/04/2013. Esta foi uma das ações de mapeamento do coletivo artístico Mapas e Hipertextos de Florianópolis, que tratava de uma circulação pelas ruas da cidade com a intenção de conversar com artistas e moradores de rua, lançando termos de suas pesquisas para identificar o quanto esses termos também fazem parte do cotidiano não acadêmico.
  • 12
    Mais informações sobre o grupo podem ser conferidas em: <http://www.odinteatret.dk/>.
  • 13
    A palavra com-por deriva da noção de "com-posição", por-se com (tomada de posição com) o outro, apresentada por Fernanda Eugénio e João Fiadeiro (2012, p. 67), compreendida nesta pesquisa como possibilidade de se tomar uma posição justa, que potencialize o encontro diante da configuração do ambiente e das relações emergentes.
  • 14
    Rancière (2005RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: 34, 2005., p. 15) apresenta a ideia de partilha do sensível como um ato de estabelecimento de algo comum e de uma divisão de responsabilidades nesse ato, descrita pelo autor como "[...] a maneira comum que se presta a participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha".
  • 15
    Esse assunto é tratado com mais abrangência pelo filósofo português José Gil no livro Movimento Total: o corpo e a dança (2001GIL, José. Movimento Total: o corpo e a dança. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2001. ) e no texto Abrir o corpo (2004GIL, José. Abrir o corpo. In: FONSECA, Tânia Mara Galli; ENGELMAN, Selda. Corpo, Arte e Clínica. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. P. 13-28.).
  • 16
    O esquema corporal, para o filósofo francês Merleau-Ponty (1994MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tradução: C. Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1994. (Texto original publicado em 1945).), seria a maneira de expressão do corpo no mundo, não se tratando de uma mera reunião de órgãos. A espacialidade do corpo diz respeito a uma dinâmica de funcionamento como espacialidade de situação, que se refere ao que ocorre no momento em relação com o ambiente em uma perspectiva dinâmica.
  • 17
    Propomos uma reflexão acerca do problema corpo-mente, cuja herança envolve muitas definições sob o olhar de filósofos, cientistas e artistas, e que tem reverberação no campo nas artes, principalmente no que se refere ao corpo. Partimos aqui da noção de corpomente, (Meyer, 2009MEYER, Sandra. As Metáforas do Corpo em Cena. Florianópolis: AnnaBlume/UDESC, 2009.), a fim de aproximar a noção de presença relacional a de embodiment (mente incorporada), para isso, buscamos também referências nas ciências cognitivas (que são as neurociências, a inteligência artificial, a psicologia cognitiva, a linguística cognitiva e a filosofia). A interação de campos de saberes denominados por ciências cognitivas vem provocando uma ruptura onto-epistemológica, incidindo numa profunda mudança na compreensão que o ser humano tem de si mesmo, de sua natureza e comportamento (Meyer, 2009).
  • 18
    Essa teoria de Espinosa é problematizada pela filósofa francesa Chantal Jaquet no livro A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa (2011JAQUET, Chantal. A Unidade do Corpo e da Mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. São Paulo: Autêntica, 2011.).
  • 19
    "A noção de disciplina não seria, como salientam Greiner e Katz (2005), capaz de abarcar um campo de conhecimento tão complexo e, para tratar do corpomente, não basta juntar conhecimentos disciplinares, o que comumente chamamos de trans ou interdisciplinaridade. A condição do organismo vivo pede pela substituição da noção de disciplina pela de indisciplina, na tentativa de nos aproximarmos do caráter dinâmico e processual da ação" (Meyer, 2009, p. 22).
  • 20
    O texto a seguir constitui um enxerto extraído integralmente do IV capítulo da dissertação de mestrado de Milene Lopes Duenha (2014a).
  • 21
    No capítulo De la corporeité comme "anticorps", da obra De la création chorégraphique (2001, p. 17 a 25). Todas as traduções (não publicadas) do autor apresentadas neste artigo são de autoria de Marta Cesar, e foram realizadas em estudos da disciplina Abordagens do Corpo na Arte, Filosofia e Ciência, do Programa de Pós-graduação em Teatro, na Universidade do Estado de Santa Catarina.
  • 22
    Pintor pós-impressionista francês.
  • 23
    Poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês.
  • 24
    Pintor e poeta suíço
  • 25
    Pintor, teórico, músico e professor russo, considerado o introdutor da abstração no campo das artes visuais.
  • 26
    Pintor anglo-irlandês.
  • 27
    Compositor, teórico musical e escritor norte-americano.
  • 28
    Psicanalista austríaco.
  • 29
    Filósofo francês.
  • 30
    Segundo Churchland, o nó dualismo versus materialismo não estaria resolvido, pois o dualista aborda o cérebro como mediador entre a mente e o corpo e não se refere a capacidades centrais da mente não-física como a razão, emoção e a consciência. Os materialistas afirmam que o pensamento é uma atividade elétrica no interior do cérebro. A telepatia, por exemplo, aconteceria a partir da produção de ondas eletromagnéticas que se irradiam na velocidade da luz em todas as direções e que podem ter efeitos sobre a atividade elétrica de outro cérebro (Churchland, 2004, p. 40).
  • 31
    Ator, diretor e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2016
  • Aceito
    04 Set 2016
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