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Teatro Pós-dramático e Performance Pós-dramática

Resumo1 1 Uma versão preliminar de outra tradução deste texto em português foi publicada com a autorização do autor em: CARREIRA, André; BAUMGARTEL, Stephan (Org.). Nas Fronteiras do Representacional. Reflexões a partir do termo "pós-dramático". Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2014. P. 24-36. :

Este ensaio inicia com o conceito de teatro pós-dramático conforme formulado pelo teórico alemão Hans-Thies Lehmann e nele se consideram as obras recentes de vários diretores internacionais relevantes - Ivo van Hove, Punchdrunk, Signa, entre outros - como exemplos de performance pós-dramática. Argumenta-se que o ponto comum a essas obras desafia o conceito tradicional de mimese e do universo teatral como construto fictício claramente separado da vida cotidiana e de suas circunstâncias.

Palavras-chave:
Teatro; Performance; Pós-dramático; Hans-Thies Lehmann; Artes

Abstract:

Beginning with the concept of a postdramatic theatre as articulated by the German theorist Hans-Thies Lehmann, this essay considers the recent work of several major international directors - Ivo van Hove, Punchdrunk, Signa and others - as examples of postdramatic performance. It argues that what they have in common is a challenge to the traditional concept of mimesis and of the theatre world as a fictional construct distinctly separated from everyday life and its surroundings.

Keywords:
Theatre; Performance; Postdramatic; Hans-Thies Lehmann; Arts

Résumé:

Cet essai parle du concept de théâtre postdramatique, tel qu'il a été formulé par le théoricien allemand Hans-Thies Lehmann. Les exemples de performances postdramatiques étudiées ici sont des œuvres récentes d'importants metteurs en scène de divers pays - dont, notamment, Ivo van Hove, Punchdrunk et Signa. Il est avancé que le point commun à ces œuvres est de défier le concept traditionnel de la mimésis et de l'univers théâtral en tant que construction fictive clairement isolée de la vie quotidienne et de ses circonstances.

Mots-clés:
Théâtre; Performance; Postdramatique; Hans-Thies Lehmann; Arts

É provável que nenhum outro termo da crítica desde teatro do absurdo tenha-se mostrado tão atraente para os teóricos de teatro quanto teatro pós-dramático, introduzido no vocabulário da crítica por Hans-Thies Lehmann, em 1999LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic Theatre. London: Taylor and Francis, 1999. (Lehmann, 1999LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic Theatre. London: Taylor and Francis, 1999.). Como com quase todos os termos da crítica, principalmente em tempos recentes, a ampla aplicação do termo é um preço caro que se paga por sua popularidade, a ponto de qualquer coisa parecida com uma definição consistente e coerente do termo ter-se tornado praticamente impossível. Não há, tampouco - embora certamente seja possível detalhar o uso histórico do termo -, nenhum fenômeno teatral ao qual o termo se refira que não possa ser identificado na prática teatral em uma época muito anterior ao termo começar a ser aplicado.

Não há prefixo mais popular do que pós que tenha surgido no discurso da crítica dos últimos cinquenta anos. Além de salientar o caráter contemporâneo do fenômeno em questão, todos os termos formados com esse prefixo compartilham um sentimento de rejeição de certos elementos-chave de uma tradição já estabelecida. Não raro, soma-se a isso a sugestão de que a tradição da qual se distancia era de natureza monolítica e consolidada, o que grande parte do movimento pós-dramático procura desestabilizar. O des- de desconstrução desempenha função semelhante. Provavelmente, é mais útil iniciar esta discussão considerando o que exatamente se implica pelo termo drama do qual o pós-dramático se distancia. Desde que os Estudos Teatrais se estabeleceram como disciplina acadêmica no início do século XX, estudiosos ingleses do teatro, em geral, fizeram clara distinção entre teatro e drama - drama como referência ao texto literário e sua história, e teatro, à realização desse texto no palco. Já naquele período, há mais de um século, alguns teóricos, mais notadamente Edward Gordon Craig (Craig, 1911CRAIG, Edward Gordon. On the Art of the Theatre. Chicago: Heinemann, 1911), procuravam criar o tipo de clara separação entre os dois termos que é fundamental para o conceito de pós-dramático. Apesar disso, a ideia do teatro, sobretudo, como realização visual de um texto escrito pré-existente predominou durante a maior parte do século XX e ainda predomina em muitas culturas teatrais - mais notadamente a dos Estados Unidos, os quais, ao contrário da França e da Alemanha, testemunharam pouquíssimo do que se pode chamar de pós-modernismo em todos os seus principais teatros. Até mesmo os semioticistas das décadas de 1970 e 1980, embora fizessem clara distinção entre o texto literário e o espetáculo como texto, supunham, quase de forma absoluta, que este derivou daquele - em termos linguísticos, traduzindo o texto para outros códigos linguísticos, os da encenação teatral.

Pode-se argumentar que a emancipação da performance do texto literário é a principal preocupação do pós-dramático, mas essa emancipação também implica outras rupturas. Do ponto de vista literário, o texto dramático tradicional como nos tem sido relatado desde Aristóteles (1968ARISTOTLE. Poetics. Translation: Leon Golden. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1968.) é uma narrativa unificada com início, meio e fim. As relações lógicas de causa e efeito são reforçadas em uma teleologia abrangente. Assim, cria-se o enredo da peça, que Aristóteles chamou de ação (Aristóteles, 1968ARISTOTLE. Poetics. Translation: Leon Golden. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1968.). A menos que se reconheça a centralidade dessa estrutura, é possível que se estranhe o fato de que dramaturgos podem criar, e de fato criam, os chamados textos pós-dramáticos sem sequer mencionar a questão da performance. Do ponto de vista performativo, muitas vezes o termo pós-dramático tem sido aplicado igualmente a performances que, como Craig defendia, são criadas sem nenhum texto pré-existente e a performances - principalmente no teatro alemão moderno - cujo componente verbal provém diretamente de Shakespeare, Schiller ou Ibsen.

Não é mera coincidência que o termo pós-dramático e, aliás, seu conceito tenham se originado na Alemanha, visto que o país produziu e ainda produz os exemplos mais variados e altamente desenvolvidos desse fenômeno multifacetado. Embora menos central, o conceito também é uma peça importante na cena contemporânea do teatro de regiões vizinhas da Alemanha - França, Itália, Polônia, Países Baixos e Escandinávia. Nos teatros anglo-saxônicos da Inglaterra e dos Estados Unidos, ele é praticamente desconhecido no mainstream teatral, apesar de ambos os países terem produzido, com seus teatros experimentais - completamente fora da cultura teatral dominante -, importantíssimas contribuições para o pós-dramático, como o Wooster Group, Richard Foreman, o Théâtre de Complicité e, recentemente, os processos colaborativos no Reino Unido (Lehmann, 1999LEHMANN, Hans-Thies. Postdramatic Theatre. London: Taylor and Francis, 1999.). Os poucos diretores americanos e britânicos que geralmente são vistos como adeptos de um modo pós-dramático e apresentados em grandes teatros, como Robert Wilson e Katie Mitchell (Roesner, 2014ROESNER, David. Musicality in Theatre. Dorchester: Dorset Press, 2014.), conceberam a maior parte de suas obras recentes - o que não é de se surpreender - não em seus países nativos, mas na Alemanha, que dispõe tanto dos recursos quanto do interesse do público frequentador de teatro em apoiar obras tão alheias às convenções.

Parece-me que o teatro contemporâneo alemão, por ser o berço e o auge do desenvolvimento do pós-dramático, é o melhor cenário para considerar as atuais, e às vezes contraditórias, implicações desse conceito no teatro e para procurar desfazer alguns dos fios entrelaçados, aqui e em outros pontos, que parecem estar envolvidos nessa aplicação. Talvez o ponto de partida mais óbvio seja um termo fundamental e muito discutido no teatro moderno alemão, o Regietheater, literalmente teatro de diretor. Utilizado durante o século XX, o termo foi aplicado ao trabalho de Max Reinhardt - o primeiro diretor a receber tal classificação - no início do século. Apesar disso, passou a ganhar ainda maior notoriedade a partir do final da década de 1960, quando uma nova geração de diretores, liderada por Peter Stein, Peter Zadek e Claus Peymann, rompeu com as produções que se prendiam às convenções e respeitavam as obras clássicas preferidas dos diretores da era Adenauer pós-guerra2 2 N.T.: Konrad Adenauer (1876-1967) foi chanceler da Alemanha Ocidental de 1949 a 1963. Adenauer defendia que, para reconciliar-se com países inimigos durante a Segunda Guerra Mundial, as nações europeias deveriam unir-se e cooperar nas relações político-econômicas como garantia de paz no continente. em prol de obras mais politicamente engajadas (Carlson, 2009CARLSON, Marvin. Theatre is More Beautiful than War. Iowa City: University of Iowa, 2009.). A geração seguinte, com destaque para Frank Castorf no Volksbühne3 3 Literalmente, teatro do povo, o Volksbühne é um dos principais teatros de Berlim, aclamado pela crítica e conhecido por colocar em cartaz obras provocantes e experimentais. , apresentou reinterpretações ainda mais radicais e fez do Regietheater um termo muito mais polêmico, tal como permanece hoje (Carlson, 2009CARLSON, Marvin. Theatre is More Beautiful than War. Iowa City: University of Iowa, 2009.). O termo desconstrução - que desfrutava de aclamada popularidade na crítica do início dos anos 1990, quando Castorf assumiu relevância - geralmente se aplicava a seu trabalho e ao de diretores semelhantes (Kennedy, 1993KENNEDY, Dennis. Foreign Shakespeare. New York: Cambridge University, 1993.). Esse termo, assim como pós-dramático hoje, significava várias coisas diferentes, de uma espécie de exposição e crítica dos pressupostos sobre a estrutura e o conteúdo político velado da obra - muitas vezes utilizando estratégias associadas a Brecht - a - aos olhos da crítica - uma humilhação e ridicularização obstinada e um tanto imatura da tradição artística.

Assim como Heiner Müller, muitas vezes considerado um líder entre os dramaturgos pós-dramáticos, Castorf foi um artista da Alemanha Oriental acolhido pelos vanguardistas da Alemanha Ocidental, mas que enxergava tanto o Oriente - à medida que se desenvolvia sob o poder soviético - quanto o Ocidente - sob o capitalismo - como sistemas falhos, tendo ambos fracassado no cumprimento da promessa que um sistema socialista deveria proporcionar. Politicamente, então, o pós-modernismo na Alemanha está claramente relacionado a um Oriente idealizado, mas essa relação tendia a manifestar-se não na agenda positiva de algo como o agitprop, mas nas variações de comentários sobre a queda dos supostos sistemas racionais do Oriente e do Ocidente, tendo o primeiro afundado em uma depressão irremediável e o último se tornado devoto do materialismo selvagem. Atacar e expor os pressupostos e as estratégias tradicionais dos textos clássicos, fortemente associados ao programa racionalista, era, portanto, realizar um ato político. Os membros do público que se opunham a essa visão fechada do mundo contemporâneo - ou que se chocavam com essa irreverência a Schiller ou Shakespeare - condenavam como pura barbárie ou brincadeira adolescente a mistura que Castorf, sua aluna Andreas Kriegenberg e outros faziam de músicas dos Beatles com pastelão, ação física violenta, culturas pop, quebra da ilusão e até mesmo surtos histéricos supostamente espontâneos dos atores. Especialmente devido à influência de Castorf, é esse tipo de teatro, a forma mais extrema do Regietheater, que caracteriza o que hoje a maioria dos públicos alemães chamaria de pós-dramático. Normalmente, ele mistura textos clássicos com todos os tipos de outros materiais - literário, documental e comercial, mas principalmente contemporâneo - e desconsidera, quase totalmente, a unidade ou consistência de estilo dramático tradicional, seja este textual ou performativo.

Fundamental para esse conceito é a união do pós-dramático ao conceito de desconstrução teatral de textos clássicos, mas tal união desconsidera grande parte do pós-dramático, que, seguindo o conselho de Craig, se distancia do texto dramático tradicional por completo. Isso não significa que não exista um texto, mas que pode muito bem ser o que os semioticistas geralmente chamavam de texto performativo, um texto que se cria na performance. Uma boa parte do teatro experimental dos anos 1960 e 1970 já era pós-dramática trinta anos antes mesmo de o termo ser cunhado, partidária de uma rejeição generalizada de textos dramáticos tradicionais e de estruturas narrativas e literárias convencionais em prol do visual e do performativo. Em termos muito gerais, pode-se dividir a experimentação pós-dramática daquele período em duas categorias, estando ambas ainda muito presentes no cenário atual e, em muitos casos, sendo exploradas pelos mesmos artistas e grupos. Primeiro, havia os artistas individuais independentes - os diretores mestres, como idealizou Craig, eximidos, conforme tem prevalecido na tradição do Regietheater, de roteiros pré-existentes, mas criadores de seu próprio mundo teatral completo. O exemplo mais conhecido dessa categoria é certamente Robert Wilson, cuja obra Einstein on the Beach, de 1970, continua a ser um ótimo exemplo do teatro pós-dramático quase trinta anos antes da concepção do termo. Outro grande exemplo é Richard Foreman, cujo primeiro trabalho, Angelface, surgiu quase na mesma época em que o de Wilson, em 1968. Esses artistas ainda estão bastante envolvidos com a vanguarda contemporânea, tendo ambos iniciado novas produções dentro dos últimos dois meses, Wilson em Berlim e Foreman em Nova Iorque.

Nas décadas de 1960 e 1970, entretanto, havia uma forma de teatro pós-dramático ainda mais comum que era bastante compatível com o conceito de pós-dramático em si em termos filosóficos. No começo, geralmente a chamavam de criação coletiva e, a partir do início dos anos 1990, ficou mais conhecida como teatro colaborativo. Embora os dois termos tenham conotações diferentes, eles compartilham uma estratégia básica fundamental: a de que a performance se desenvolve não por meio da visão artística de um único mestre, mas por meio do trabalho coletivo de um grupo, composto, em alguns casos, somente por atores e, em outros, por atores e escritores. Hoje esses grupos geralmente são ainda mais variados, reunindo atores e dançarinos ou atores e vários membros da produção, incluindo os tradicionais cenógrafos, os criadores de vídeo e filme e os designers de computação. Esse tipo de trabalho foi liderado pelo Living Theatre, cuja influência na América e na Europa durante os anos 1960 foi enorme. O Performance Group de 1967, de Nova Iorque, que evoluiu para o Wooster Group em 1980, foi o exemplo americano mais importante, enquanto o People Show (1966) e o Welfare State (1968) foram os principais na Inglaterra. Entre as companhias mais importantes na França e na Alemanha desse período estão as de Ariane Mnouchkine e Peter Stein, ambas estabelecidas como coletivos, embora no final se tenham transformado em teatros de diretor e se afastado de obras criadas coletivamente, como 1789, de Mnouchkine, e The Antiquity Project, de Stein, encenadas em 1974.

A partir da década de 1960, os teatros colaborativos baseados em grupos e os coordenados por diretores que podem ser caracterizados como pós-dramáticos passaram a demonstrar extremo interesse em uma abordagem específica de produção que parece estar diametralmente oposta a um dos princípios básicos do pós-dramático, isto é, o foco no corpo performativo, mas não mimético. A abordagem desconstrutiva de uma série de teóricos modernos encorajou a utilização de outras mídias como estratégia de subversão de textos clássicos. Essa ideia não é nada nova, é claro. Imediatamente, vem à mente a utilização de filmes e projeções por diretores como Piscator e Brecht para cumprir uma meta semelhante, subvertendo, assim, pressupostos políticos ao invés de estéticos ou narrativos. O constante avanço da tecnologia visual do final do século XX contribuiu significativamente - de novo, principalmente na Alemanha - para a inspiração necessária para romper com a performance teatral tradicional e seus métodos miméticos ao introduzir dimensões visuais em alternância, tanto em relação ao tempo quanto ao espaço. Embora se tenha continuado a usar trechos de filmes em larga escala no trabalho de vários diretores experimentais do século XX, acrescentou-se ao campo visual uma nova dimensão de grande destaque, a introdução de vídeos ao vivo. Castorf foi um dos primeiros a aplicar essa técnica, a mostrar ao público os bastidores ao vivo e, mais tarde, à medida que a tecnologia avançava, a projetar esse vídeo em telas grandes acima do palco, revelando a criação das imagens ao trazer para o palco câmeras de vídeo portáteis para que o público pudesse, ao mesmo tempo, ver a imagem e seu processo de captura. Ainda que essa espécie de mistura de ação ao vivo com sua reprodução simultânea em vídeo estivesse associada principalmente ao Volksbühne, em Berlim, e aos diretores Castorf e René Pollesch do início à metade da década de 1990 (Carlson, 2009CARLSON, Marvin. Theatre is More Beautiful than War. Iowa City: University of Iowa, 2009.), ela se tornou uma das formas mais conhecidas de teatro pós-dramático.

Um dos perigos inerentes ao emprego de qualquer termo da crítica é a apropriação deste por estudiosos, artistas e - uma tendência crescente hoje - vários interesses comerciais, dentre eles editores, produtores e publicitários, com a consequência de que, quanto mais popular se torna o termo, mais difícil se torna detectar um padrão em meio a seus diversos usos. Essa lógica certamente se aplicou ao chamado teatro do absurdo, aplicou-se à tendência passageira (pelo menos na Europa Continental) do conceito de teatro da desconstrução e claramente já se aplica ao teatro pós-dramático. Evidentemente, Lehmann via como aspectos fundamentais do pós-dramático a rejeição total do mimético e a busca pelo puramente performativo. Em compensação, quando nos voltamos às produções multimídia de Castorf e Pollesch da década de 1990 - ou às obras mais recentes de Ivo van Hove e Katie Mitchell (Trencsényi, 2015TRENCSÉNYI, Katalin. Dramaturgy in the Making. London: Bloomsbury, 2015.; Woycicki, 2014WOYCICKI, Piotr. Post-Cinematic Theatre and Performance. London: Palgrave, 2014.), ambos figurando entre os atuais artistas considerados pós-dramáticos -, percebemos que, mesmo em exemplos tão emblemáticos, o centro cede.

A título de ilustração, tomemos como exemplos obras recentes de dois importantes diretores europeus. Ambos iniciaram sua carreira no início dos anos 1990, e, embora van Hove - o que era típico de diretores da Europa Continental - seguisse as convenções muito menos do que Mitchell, que era famosa por suas produções cuidadosamente lapidadas e pela abordagem psicológica stanislavskiana, nenhum dos dois contava como diretores pós-dramáticos naquela época. Eles tomaram esse rumo por volta de 2007, mais notadamente pelo amplo uso de vídeos ao vivo, bem à maneira de Castorf na década anterior, para oferecer ao público múltiplas perspectivas da ação. Em nenhum dos casos rompeu-se com o texto dramático tradicional: a primeira obra importante de van Hove nessa direção - sua mais famosa até hoje - foi Roman Tragedies, de 2007, que unia Júlio César, Antônio e Cleópatra e Coriolano em uma produção de duração muito longa que se manteve tão fiel ao original quanto a maioria das encenações que se prendiam às convenções em termos de texto e performance mimética. Desde então, o espetáculo tem realizado uma turnê internacional e, no ano passado, teve sua primeira produção americana, encenada na Brooklyn Academy of Music, em Nova Iorque, onde foi aclamado como um exemplo extraordinário de uma nova subcategoria do pós-dramático, o teatro imersivo, sobre o qual falarei mais adiante.

A primeira grande incursão de Mitchell na produção com mídias mistas também veio em 2007, com sua encenação de As Ondas, de Virginia Woolf, a qual ainda é considerada uma das produções mais inovadoras do teatro britânico atual. Desde então, Mitchell trabalha quase exclusivamente com o estilo que estabeleceu em sua produção, mais recentemente em Night Train, baseada em uma novela poética alemã que estreou em outubro de 2012, no Schauspielhaus de Colônia, na Alemanha, além de ter sido selecionada como uma das mais extraordinárias produções alemãs para o Theatertreffen anual, em Berlim. Essas obras de Mitchell são desconstruções - quase no sentido literal do termo - não dos textos literários ou dramáticos encenados, aos quais ela foi rigorosamente fiel, mas do processo de representação em si. Sua técnica, seja qual for a peça, permanece a mesma. O público assiste a um vídeo ao vivo sem interrupções - projetado acima do palco -, que pode ser considerado uma filmagem um tanto convencional do texto em questão. Digamos que a cena mostre a heroína preparando-se para dormir em sua cama em um vagão de trem, com uma paisagem escura passando pela janela. O filme acima parece perfeitamente realista, enquanto no palco abaixo vemos que o vagão, na verdade, é o corte de um set de filmagem - aberto ao público e às câmeras - e, ao mesmo tempo, a paisagem em movimento é projetada em uma tela atrás da janela do vagão falso. Todo o nível inferior do palco é formado por pequenos cubículos que representam partes do trem e por pequenos elementos (para flashbacks fora do trem) que são usados durante as produções. Quando estão fora da tela, vemos os atores saindo da personagem, descansando ou preparando-se para entrar no local da performance. É uma técnica diferente da de Castorf, que nunca procurou criar uma linha contínua realista de performance em seus vídeos (embora, às vezes, tenha estendido esse tipo de sequência), mas os usou principalmente para oferecer perspectivas alternativas ao público. Dessa forma, o trabalho multimídia de Mitchell faz uma contribuição bastante questionável às ideias convencionais do pós-dramático. O texto dramático permanece totalmente intacto e, na versão em vídeo desse texto, totalmente preso às convenções em termos de mimese. Ao mesmo tempo, na ação simultânea abaixo, revela-se que ambos o texto e a mimese são totalmente construídos. A obra como um todo, portanto, não é tão pós-dramática, mas sim pós-ilusionista, que me parece ser um termo melhor para essa obra.

Em comparação às técnicas de Mitchell, as de van Hove são menos consistentes e mais diversificadas a cada produção. Em The Misanthrope, que estreou em Nova Iorque, em 2007, van Hove, assim como Mitchell, enfatiza a natureza construída da performance apresentada, mas ao avesso. Aqui, a produção no palco era tradicional no sentido mimético - embora criada em um cenário moderno com os personagens de Molière, membros da sociedade moderna, falando ao celular -, e o vídeo era usado como contraponto ao mundo mimético, mostrando-nos, por exemplo, cenas dos bastidores em que os atores, fora da personagem, relaxavam ou se maquiavam, como o fazem no próprio palco nas produções de Mitchell. Novamente, nem o texto nem a mimese, como afirma Lehmann, são abandonados, mas a ilusão de realidade transparente que ambos assumem do teatro convencional é exposta como uma construção. Sem muita dificuldade e com bastante exatidão, poderíamos descrever a situação como uma alienação brechtiana ou uma desconstrução derridiana, expondo como a ilusão é criada ao invés de chamá-la de pós-dramática, mas isso simplesmente mostra o quão vago é o termo.

As Roman Tragedies dão abertura para outra perspectiva das configurações contemporâneas do pós-dramático. Seu uso basilar de vídeo está muito mais próximo do que Mitchell faz do que no caso de The Misanthrope, na medida em que apresenta uma narrativa visual uniforme e consecutiva, como a filmagem de uma peça shakespeariana convencional - que às vezes é uniforme -, mas como Mitchell, mostrando como um efeito cênico específico é atingido de maneira mecânica. Uma característica muito mais importante dessa produção, entretanto, é o modo como o público se envolve. Se a obra pode ser chamada de pós-dramática, como geralmente acontece, não é nem porque abandona a mimese ou a fidelidade ao texto literário, como sugere Lehmann, mas porque desafia a relação espacial entre performance e público que, por muito tempo, foi aceita na tradição do teatro dramático. Durante as cenas de abertura das Roman Tragedies, essa relação persiste, com o público sentado na plateia de frente para o palco, apesar de o palco também ter grandes telas de vídeo mostrando a ação. Não muito depois, o público é convidado, se desejar, a subir no palco e a compartilhar o espaço da performance (não literalmente, porém. Eles não podem, de fato, entrar diretamente em uma cena em andamento, mas podem reunir-se ao redor para assisti-la de ângulos diferentes, inclusive dos vários sofás e cadeiras no palco, que remetem a um espaçoso saguão de hotel). Devido ao uso de diversas partes do palco e à aglomeração de espectadores em um círculo ao redor dos performers, os que ficam na plateia geralmente não conseguem ver o que está acontecendo no palco, exceto por meio dos monitores de vídeo. Além disso, há bares abertos dos dois lados na área fora do palco, para que os espectadores possam fazer um lanche ou tomar uma bebida, ficando de costas para o palco, mas, novamente, os monitores acima do bar permitem que tenham a mesma visão do vídeo da performance que os membros da plateia.

Até onde sei, nos Estados Unidos, os públicos, críticos e estudiosos nunca se referiram a essa produção como pós-dramática. Quase de forma universal, o termo usado era imersivo, que, no momento, é de longe o desafio mais popular à prática teatral tradicional em Nova Iorque. O termo imersivo chegou à academia a partir do mundo da tecnologia computacional, em que, por muito tempo, descreveu a visível imersão de um sujeito em um mundo digital virtual.

No teatro anglo-saxônico, o termo ganhou notoriedade graças à companhia britânica Punchdrunk, formada em 2000 especificamente para criar um novo tipo de teatro em que se constroem ambientes múltiplos onde o público tem a liberdade de ir e vir à vontade. Trata-se de um desenvolvimento mais evidente do estilo britânico inicial chamado promenade theater, que também incluía cenas em inúmeros locais, mas no qual os membros do público eram guiados de um local para outro de forma preestabelecida.

Sleep No More, a oitava produção da Punchdrunk, de 2003, é um ambiente multiespaço que usa motivos, personagens e alguns materiais textuais de Macbeth, de Shakespeare, e Rebeca, de Alfred Hitchcock. Ela se tornou, de longe, a produção mais influente e bem-sucedida da companhia. Foi reencenada em Boston, em 2009, e novamente em 2011, em Nova Iorque, onde ainda está em cartaz e, sem dúvida, permanece o espetáculo de teatro experimental mais popular da cidade. De fato, ele se tornou praticamente uma produção-culto, com vários membros do público retornando dezenas de vezes, apesar de o ingresso custar US$ 95, preço que compete com o dos principais teatros da Broadway. Desde então, o termo imersivo, introduzido em Nova Iorque pela Punchdrunk, tem sido aplicado a dezenas de produções experimentais - aliás, a praticamente qualquer tipo de produção que rejeita a separação convencional entre palco e público. Há, inclusive, um guia virtual para o teatro imersivo em Nova Iorque, o qual, no início de junho, listou vinte produções que tomam essa descrição para si. Teatro imersivo4 4 N.T.: no original, theatre immersive. também começou a circular na França, assim como imersão teatral na Alemanha, mas passou a ser visto, em grande parte, como o maior desafio ao teatro dramático tradicional em Londres e Nova Iorque.

Afirma-se, em grande medida, que o teatro imersivo inverteu as tradicionais relações de poder entre o performer e o público, colocando este sob controle da produção. Dessa forma, o público atende, ao nível máximo, à visão de espectador emancipado de Jacques Rancière, a qual surgiu em 2007RANCIÈRE, Jacques. The Emancipated Spectator. New York: Artforum, 2007. (Rancière, 2007RANCIÈRE, Jacques. The Emancipated Spectator. New York: Artforum, 2007.), o momento ideal para que fosse utilizada como principal embasamento teórico para produções como Sleep No More, da Punchdrunk. Aliás, quase nenhum teatro dito imersivo funciona desse modo. Geralmente, tais produções tratam o público de uma das seguintes três formas. Em primeiro lugar, dentre as mais conservadoras, estão aquelas produções que, na verdade, deveriam ser chamadas de produções do promenade theater, em que um público pequeno é levado a uma série de salas - normalmente em um único prédio, em ordem preestabelecida -, nas quais se compartilha o espaço com atores que encenam uma peça com texto de um modo mimético convencional. Em segundo lugar, estão produções como Roman Tragedies, nas quais se realiza uma performance mimética com texto em um ou mais locais - mais ou menos contíguos -, e o público é livre para transitar e observar ou não a performance em andamento como desejarem. Em terceiro lugar, estão produções como Sleep No More, as quais não dispõem de nenhuma performance padrão com texto, mas sim de uma coleção de espaços decorados pelos quais o público é livre para passear como quiser. Alguns espaços são vazios, mas outros contêm atores que oferecem fragmentos de material textual. Tais ações geralmente continuam como se os espectadores não estivessem ali, mas de tempos em tempos um ator puxa um membro do público para um espaço privado e os dois têm uma conversa íntima. Nem todos experienciam isso, e os que o fazem não podem nem iniciar nem mudar a experiência. O ator segue sob controle total.

Um dos principais grupos de performance europeus, o Signa, fundado por performers da Áustria e da Suécia, aproxima-se muito mais de performances realmente emancipadas e, aliás, de uma apresentação realmente pós-dramática, vide produções como Ruby Town Oracle, apresentada em Colônia e Berlim, em 2007 e 2008. Para isso, o Signa construiu um pequeno vilarejo em um país supostamente fronteiriço (o público precisava apresentar passaportes para entrar), com vinte e duas casas habitadas por cerca de quarenta atores. Embora os atores compartilhassem um histórico coletivo consensual - civil e religioso -, não havia história nem texto, e os membros do público eram livres para perambular e interagir com os performers à vontade, seguindo ou não a história do vilarejo como quisessem. Em Berlim, o vilarejo ficou aberto por nove dias consecutivos, e os espectadores iam e vinham como desejassem, construindo sua própria experiência a partir da matéria-prima do local (Carlson, 2014CARLSON, Marvin. Theatre: a very short introduction. Oxford: Oxford University, 2014.). Na Alemanha, a obra não foi chamada de imersão teatral - um termo não muito empregado no país -, mas sim de performance-instalação, o que a situou como o equivalente teatral da arte de instalação ou environmental art, uma forma que se desenvolveu nos anos 1970 e que encorajava os espectadores a movimentarem-se no interior de obras artísticas tridimensionais para que pudessem experienciá-las.

Essas instalações se aproximam do pós-dramático tanto ao abandonar o texto convencional quanto ao conferir aos espectadores um controle muito maior sobre a moldagem e a experiência da performance, mas ainda se atêm - como tem sido quase todo o teatro dito imersivo - ao que alguns chamaram de principal inimigo do pós-dramático, a representação em si. Desde Aristóteles, a mimese é vista como o centro da arte teatral, e a exclusão do texto controlador não acarreta a exclusão do mimético também, como demonstra Ruby Town Oracle, contanto que os arredores físicos - e, mais importante do que isso, o corpo do ator - ainda sejam interpretados de modo mimético. Para abordar o pós-dramático devidamente, esclarece Lehmann, o corpo deve libertar-se das amarras do personagem mimético, tradicionalmente decorrentes do texto dramático, e firmar-se como puramente performativo.

No teatro contemporâneo, isso se manifesta de forma mais evidente, eu diria, através da crescente importância - principalmente na Alemanha, mas também nos Estados Unidos e nos demais países da Europa, em menor escala - da incorporação de materiais, humanos e não humanos, da vida real na performance. Tire a mimese e um texto narrativo e tudo o que resta para impedir que o teatro pós-dramático se desfaça e vire a matéria-prima da vida cotidiana é o fato de que ele é apresentado ao público em um paradigma teatral ou performativo. Ele é, adotando o termo que Umberto Eco sugeriu em um dos primeiros ensaios modernos sobre a semiótica do teatro, ostentado (Eco, 1977ECO, Umberto. The Semiotics of Theatrical Performance. The Drama Review, New York, v. 20, n. 1, p. 107-117, Mar. 1977.). Aliás, a teoria semiótica já previa grande parte do que agora se propõe como teoria pós-dramática na distinção geralmente feita entre as ações performativas e narrativas do teatro, como sugeriu Andre Helbo (Helbo, 1987HELBO, Andre. Theory of Performing Arts. Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1987.), ou entre o semiótico e o fenomenológico, como Bert States denominou (States, 1985STATES, Bert O. Great Reckonings in Little Rooms. Berkeley: UC Berkeley, 1985.), sendo este último termo, em ambos os casos, equivalente ao que hoje, em essência, é o pós-dramático. Ocorrida nos trinta anos de diferença entre esses teóricos e Lehmann, a principal mudança diz respeito ao fato de que, enquanto os semioticistas viam o teatro como o que States chamava de arte binocular, constituída por uma mistura entre o performativo e o narrativo, o teatro pós-dramático de Lehmann procura abandonar por completo o mimético em prol do estritamente performativo.

Lehmann ainda se encontra muito sob a sombra da estética tradicional para sugerir que, quando ele fala da ênfase na performance, no corpo vivo e não mimético e de suas inter-relações com o material que o cerca, persiste a nítida impressão de que esse corpo está realizando algo especial, algo virtuosístico - nesse caso, o teatro pós-dramático seria, de fato, essencialmente inconfundível para a dança tradicional. Grande parte da crítica formalista apoiaria essa opinião. Quase quarenta anos atrás, Eco (1977ECO, Umberto. The Semiotics of Theatrical Performance. The Drama Review, New York, v. 20, n. 1, p. 107-117, Mar. 1977.) e outros autores apontaram, no entanto, que o que faz uma ação ser recebida como teatro por um público não é nenhuma característica da ação em si, como o virtuosismo, mas simplesmente o fato de que ela é rotulada ou ostentada como teatro. Um exemplo famoso (decorrente de C. S. Pierce) utilizado por Eco é o de um beberrão exposto em uma plataforma próxima ao Exército de Salvação. Essa apresentação pode muito bem ser tomada como um exemplo puro do teatro pós-dramático. O beberrão é o que é - assim, a mimese é anulada e definitivamente não há narrativa nem texto. Eco afirma, não obstante, que o homem é como uma semiose, argumentando que o fato de ter posicionado o homem próximo ao Exército de Salvação converteu-o em um símbolo de embriaguez, suplicando por sobriedade. Um exemplo mais puro foi proposto por talvez o melhor fenomenólogo do teatro do último século, Bert States, em seu clássico ensaio The Dog on the Stage (States, 1983STATES, Bert O. The Dog on the Stage: theatre as phenomenon. New Literary History, Baltimore, v. 14, p. 373-388, winter 1983.). O canalha do palco, assim como Launce em Two Gentlemen of Verona, está destituído até mesmo da bagagem semiótica do beberrão de Eco. Ele não só é não mimético, como também é não semiótico, ou seja, ele simplesmente faz seja lá o que fizer completamente livre de texto, ou melhor, ele cria um tipo de texto a partir de qualquer coisa que fizer. Esse, eu diria, é o teatro não dramático em sua forma mais pura. Somente se tornou teatro devido a sua rotulação como teatro.

Essas incorporações do mundo real, aliás, datam de uma época muito anterior na história do teatro, mas, nos últimos anos, testemunhou-se uma incursão sem precedentes do real no espaço teatral. Embora Lehmann não dê muita atenção a esse tipo de performance, considero-a, como o canalha de Bert States, a forma mais surpreendente e completa de performance pós-dramática no teatro contemporâneo. Nos Estados Unidos, o principal pioneiro na forma de teatro que atualmente seria chamada de pós-dramática foi certamente o Wooster Group nos anos 1960, o qual desafiou a mimese, a representação e a textualidade tradicionais em prol da experiência física direta. Em suas turnês europeias, o grupo mobilizou-se bastante para encorajar obras desse tipo. Mais tarde, de forma muito diferente, o grupo explorou várias preocupações da performance semelhantes. A presença fundamental de Spaulding Grey e suas performances autobiográficas foi especialmente importante para o desenvolvimento de uma tradição de performance pós-dramática nos Estados Unidos do final do século XX, a qual foi fortemente associada aos teatros gay e feminista, em que os artistas rejeitavam a representação tradicional ao falarem sobre suas vidas em seus próprios corpos.

No século XXI, as performances que utilizavam materiais não miméticos tornaram-se uma porção significativa da vanguarda em diversos países, mas talvez principalmente na Alemanha. Talvez o grupo mais conhecido seja o Rimini Protokoll, formado em 1999 e dedicado à criação de obras baseadas em materiais não dramáticos provenientes do mundo real que o cerca (Malzacher; Dreyesse, 2008MALZACHER, Florian; DREYSSE, Miriam. Experts of the Everyday. Berlin: Alexander Verlag, 2008.). Com exceção de suas fontes presas às convenções, o grupo é conhecido, sobretudo, por colocar no palco não atores, mas pessoas de fora da cena teatral encontradas por meio de vários - e, muitas vezes, elaboradíssimos - processos de seleção de elenco. A apresentação dessas figuras sofreu enormes mudanças ao longo do trabalho do grupo, mas ela é invariavelmente não mimética e - quase sempre - faz uso, em larga escala, de histórias e experiências reais da vida dos performers ao invés de qualquer texto pré-existente externo. Aqui, a performance quase nunca implica habilidade virtuosística - como geralmente se sugere quando Lehmann fala do lado físico do pós-dramático -, mas, ao contrário, implica a mera apresentação de um corpo vivo. O verdadeiro inimigo do pós-dramático é o mimético.

Talvez as mais surpreendentes - e, para alguns membros do público, as mais perturbadoras - performances autobiográficas contemporâneas levem o pós-dramático em uma direção que Lehmann nunca previu. Refiro-me ao trabalho de performers com deficiências físicas ou mentais. O teatro com pessoas com deficiência surgiu no Estados Unidos no final dos anos 1970, com companhias tanto de dança quanto de teatro dedicando-se a buscar formas de incorporar performers deficientes em suas obras. Com a ascensão da performance autobiográfica no final do século, um grande número dessas obras passou a ser a apresentação dos próprios deficientes ao invés da incorporação destes em outras obras. Um excelente exemplo atual disso é a obra Disabled Theatre, de 2012, idealizada pelo coreógrafo francês Jerôme Bel. Durante a década de 1990, Bel tornou-se um dos líderes do movimento da nova dança na França, o qual, em muitos aspectos, é o equivalente na dança do pós-dramático no teatro, baseado na rejeição da mimese, de um texto pré-existente ou do vocabulário tradicional da dança. Desde 1999, Bel cria obras principalmente com performers deficientes. Sua explicação, dada em uma entrevista em 2012, é fundamentalmente pós-dramática. Atores deficientes, disse ele, "[...] não tentam ser nada, eles são" (Bel, 2012BEL, Jérôme. Disabled Theater: Marcel Bugiel et Jérôme Bel - interview with Marcel Bugiel. RB Jerome Bel, [s.l.], June 2013. Available at: <Available at: http://www.jeromebel.fr/textesEtEntretiens/detail/?textInter=disabled%20theater%20-%20marcel%20bugiel%20et%20jerome%20bel >. Accessed on: 17 Feb. 2015.
http://www.jeromebel.fr/textesEtEntretie...
apud Pawelke, 2012PAWELKE, Gudrun. The Humanity of Man. Goethe-Institut, Munich, Dec. 2012. Interview. Available at: <Available at: http://www.goethe.de/en/kul/tut/gen/tan/20364054.html >. Accessed on: 03 June 2015.
http://www.goethe.de/en/kul/tut/gen/tan/...
, n.p.). Logo, são ideais para a meta estabelecida em todas as suas obras, que é a de ir além da representação. Criado juntamente com onze atores de uma companhia de Zurique - todos portadores de síndrome de Down -, seu Disabled Theatre, de 2012, na maior parte, consiste na apresentação individual de cada ator para o público e na discussão de sua vida e deficiência.

Como já assinalei, não raro o Rimini Protokoll reúne pessoas de vários tipos em uma série de produções que, como as de Bel, procuram ir além das representações. Hoje, na Europa e nos Estados Unidos, obras semelhantes continuam a ser produzidas por alguns dos grupos experimentais atuais mais conhecidos, como o Gob Squad, o She She Pop e o Nature Theatre of Oklahoma (Bogusz, 2007BOGUSZ, Tanja. Institution und Utopie. Bielefeld: Deutschen Bibliothek, 2007.; Read, 1993READ, Alan. Theatre and Everyday Life. London: Routledge, 1993.) - tendo todos participado do Theatertreffen anual de Berlim -, e a Alemanha mantém o título de centro desse tipo de experimentação. Remote Berlin, recente produção pós-dramática do Rimini Protokoll - que estreou na primavera de 2013 -, dá seguimento a um tipo específico de teatro pós-dramático que o grupo, de várias formas, havia utilizado anteriormente e que sugere como até mesmo o corpo performativo pode ser eliminado do teatro pós-dramático. Em diversas produções, como Remote Berlin, os membros do público recebem fones de ouvido e orientações para perambular pelas ruas da cidade, sozinhos ou em grupos, guiados por instruções à distância.

Evidentemente, quase todas as pessoas e objetos pelos quais eles passam não são planejados como parte da produção (embora sempre haja a possibilidade de que alguns sejam); contudo, eles são rotulados ou teatralizados pela situação da performance. Em um dos momentos mais memoráveis de Remote Berlin, o público (cerca de vinte e cinco pessoas) se reúne no final de uma passagem no S-Bahn5 5 N.T.: sistema de trens rápidos que cruza toda a capital alemã. e é encorajado a assistir aos transeuntes nesse espaço e nos corredores adjacentes, como se fossem atores em uma performance. Alguns desses atores ignoravam o público, enquanto outros acenavam ou até mesmo tiravam fotos da multidão de espectadores parados que usavam fones de ouvido conectados a seu celular. Lembrei-me de uma experiência de performance do artista Robert Whitman, realizada em Nova Iorque, em 1976, chamada Light Touch, em que o público se acomodava em arquibancadas em um armazém e depois se abria uma cortina que escondia uma porta de carga, revelando-lhe a rua lá fora, como se fosse um teatro.

Mais recentemente, nos Estados Unidos e na Europa, várias combinações de environmental theater - também chamado de site-specific, promenade e imersivo - colocaram o público em ambientes calculadamente ambíguos, que não eram - seja parcial ou totalmente - constituídos nem de materiais não miméticos aleatórios, como em Remote Berlin ou Light Touch, nem de materiais não miméticos cuidadosamente selecionados, como em Sleep No More. Ao invés disso, elas apresentavam misturas inseparáveis dos dois conjuntos, como se pôde ver na performance de Reza Abdoh, Father Was a Peculiar Man, realizada em vários quarteirões do Meatpacking District6 6 N.T.: no original, meat-packing district, bairro de Manhattan assim nomeado devido à grande quantidade de matadouros e fábricas de processamento e embalagem de carnes no início do século XX. Atualmente, é um centro de restaurantes luxuosos, lojas de grife e casas noturnas. de Nova Iorque, em 1990, ou na performance de 2009 do The Foundry Theatre, The Provenance of Beauty, em que os membros do público passeavam pelo sul do Bronx em um ônibus turístico. No caso dessas últimas performances, algumas das pessoas e cenas que se observavam eram, na verdade, planejadas como parte da experiência, enquanto outras não, e geralmente o público tinha pouca informação sobre qual era qual. Não era tanto uma questão de ir além da representação, mas sim de testar os limites entre a representação e a realidade, que penso ser uma melhor descrição da dinâmica de tais obras. Não é mais suficiente, penso, dizer que o inimigo do pós-dramático é a representação. O verdadeiro inimigo é a estabilidade do mimético. O pós-dramático, na verdade, não é nem mimético nem não mimético. É o não mimético rotulado como mimético. Retire o rótulo e não só a mimese desaparece, mas também o teatro em si, e o que resta é a vida.

References

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  • 10
    Este texto, traduzido por Luiz Lendengues, sob a supervisão de Valéria Silveira Brisolara, e revisado por Marcelo de Andrade Pereira, também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    Uma versão preliminar de outra tradução deste texto em português foi publicada com a autorização do autor em: CARREIRA, André; BAUMGARTEL, Stephan (Org.). Nas Fronteiras do Representacional. Reflexões a partir do termo "pós-dramático". Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2014. P. 24-36.
  • 2
    N.T.: Konrad Adenauer (1876-1967) foi chanceler da Alemanha Ocidental de 1949 a 1963. Adenauer defendia que, para reconciliar-se com países inimigos durante a Segunda Guerra Mundial, as nações europeias deveriam unir-se e cooperar nas relações político-econômicas como garantia de paz no continente.
  • 3
    Literalmente, teatro do povo, o Volksbühne é um dos principais teatros de Berlim, aclamado pela crítica e conhecido por colocar em cartaz obras provocantes e experimentais.
  • 4
    N.T.: no original, theatre immersive.
  • 5
    N.T.: sistema de trens rápidos que cruza toda a capital alemã.
  • 6
    N.T.: no original, meat-packing district, bairro de Manhattan assim nomeado devido à grande quantidade de matadouros e fábricas de processamento e embalagem de carnes no início do século XX. Atualmente, é um centro de restaurantes luxuosos, lojas de grife e casas noturnas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2015
  • Aceito
    30 Mar 2015
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