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A Carne Monstruosa: corpos coletivos e o Estado-Forma na Mesopotâmia Moderna

Resumo:

O Oriente Médio está em caos. Descrito como monstruoso, o Estado Islâmico (EI) foi derrotado, mas retornou como insurgência crônica no estilo de guerrilha e como sombra de outros conflitos que assomam a região. O artigo retoma esta situação por meio do conceito de monstro biopolítico como o corpo comum de resistência e luta, explorando seus aspectos libertadores em termos de organização e autonomia política, e sustenta que o EI tem mais em comum com o Estado-forma do que com o monstro. O caso do Curdistão Sírio será apresentado em comparação com o EI. Defende uma carne social monstruosa como corpo performativo de movimentos contemporâneos de protesto, investigando as etimologias rizomáticas de monstro para Aristóteles e antigos filósofos islâmicos, inspirando-se principalmente na tradição do pensamento imanente e seus pensadores contemporâneos, como Foucault, Deleuze, Guattari e Negri.

Palavras-chave:
Biopolítica; Monster; Autonomia Política; Estado Islâmico; Colonialismo

Abstract:

The Middle East is in chaos. Having been described as monstrous, the Islamic State (ISIL) has been defeated only to come back as a chronic guerrilla style insurgency and the shadow of further conflicts that are still looming in the region. The following article takes up this situation through the concept of the biopolitical monster as the common body of resistance and struggle, exploring the liberatory aspects of this concept in terms of organization and political autonomy, and argues that ISIL has more in common with the State-form than with the monstrous. Discussing the colonial and neo-colonial aspects of the situation, the case of Kurdish Northern Syria will be presented in contrast to the ISIL. It continues to argue for a social monstrous flesh as the performative body of contemporary protest movements, tracing back the rhizomatic etymologies of monster to Aristotle and early Islamic philosophers, drawing inspirations mainly from the tradition of immanent thought and its contemporary thinkers such as Foucault, Deleuze, Guattari, and Negri.

Keywords:
Biopolitics; Monster; Political Autonomy; Islamic State; Colonialism

Résumé:

Le Moyen-Orient est secoué par le chaos. Ayant été appelé monstrueux, l’État Islamique (EI) a été vaincu uniquement pour ressurgir sous forme d’insurrection permanente à caractère de guérilla et comme ombre des conflits qui continuent à s’annoncer dans la région. Le présent article aborde cette situation à travers le concept du monstre biopolitique en tant que corps commun de résistance et de lutte, en explorant les aspects libérateurs de ce concept en termes d’organisation et d’autonomie politique, et considère que l’EI relève davantage de la forme étatique que de la monstruosité. En examinant les aspects coloniaux et néocoloniaux de la situation, le cas de la Syrie du Nord kurde sera présenté en opposition à l’EI. Puis, l’article plaidera pour une chair sociale monstrueuse constituant le corps performatif des mouvements de contestation contemporains, en traçant l’origine des étymologies rhizomatiques du monstre chez Aristote et les premiers philosophes musulmans, tout en s’inspirant d’une tradition de la pensée de l’immanence et de ses philosophes contemporains, tels que Foucault, Deleuze, Guattari et Negri.

Mots-clés:
Biopolitique; Monstre; Autonomie Politique; L’État Islamique; Colonialisme

Introdução

Uma barbárie da Antiguidade; um monstro de não-civilização: esta é a imagem do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (Islamic State in Iraq and the Levant, ISIL) [EI] que vem sendo constituída por meio de reportagens na mídia. Até mesmo Joe Biden, ex-vice-presidente dos Estados Unidos, prometeu a seus conterrâneos norte-americanos que os Estados Unidos perseguiriam os “terroristas” do EI até “as portas do inferno” porque é no “inferno que irão residir” (Lowery, 2014LOWERY, Wesley. Biden to Islamic State: We will follow you ‘to the gates of hell. The Washington Post, Washington D.C., 3 September 2014. Available at: <Available at: http://www.washingtonpost.com/blogs/post-politics/wp/2014/09/03/biden-to-islamic-state-we-will-follow-you-to-the-gates-of-hell/ >. Accessed on: 01 July 2018.
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, s.p.).

Diz-se que os monstros vêm do inferno, mas podemos nos perguntar a respeito da natureza do monstro e do sujeito que o nomeia. O monstro poderia ser um Leviatã, aquele que anunciou que “o que está debaixo dos céus é meu” (Jó 41: 11), que declarou os comuns (terra, ar, água, tudo sob os céus) como de sua propriedade e que foi invocado para construir os alicerces míticos do Estado-nação moderno e sua era de dicotomia público/privado. Por outro lado, o monstro poderia ser aquelas bruxas que muitas vezes foram reveladas, não sem surpresa, durante as revoltas camponesas contra o Estado burguês nascente - opondo-se à apropriação das terras em comum -, sendo caçadas, queimadas e destruídas depois (Linebaugh; Rediker, 2000LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. The Many-Headed Hydra: sailors, slaves, commoners, and the hidden history of the revolutionary Atlantic. Boston: Beacon Press, 2000.). Ou será outro Caliban, subjugado ao seu Senhor civilizado, rejeitando-o apenas para aprender da maneira mais difícil que o colonialismo é para seu próprio bem?

O cético também pode perguntar sobre o corpo monstruoso e “o que pode fazer”: é um organismo com uma ou diversas cabeças, homogêneo, porém dividido, um “Frankenstein” edípico que é capaz apenas de ressentimento contra o Pai, ou um labirinto “Acéfalo”, que postula a comunidade contra o fascismo, “contra a massa […] contra o embuste do indivíduo”, uma comunidade “diferente da comunidade de sangue, terra e interesses” (apud Kendall, 2007KENDALL, Stuart. Georges Bataille. London: Reaktion Books, 2007., p. 138)?

Dada a situação no Oriente Médio e os crimes imperdoáveis do EI, atualmente fica evidente que o EI é uma força reacionária. Mas reacionária em que sentido? É reacionária como sua imagem na (maior parte da) mídia hegemônica (ocidental), que os retrata como um monstro antigo e pré-moderno, uma forma de socialidade muito mais distante e, assim, muito mais em oposição aos valores ocidentais ou modernos?

O artigo que segue irá se concentrar no problema do monstro e, através da tensão no âmago desta palavra, abordará os corpos que estão agora encurralados no Oriente Médio por um regime global de vistos, regulando a liberdade de movimento. Objetiva mostrar que o conteúdo determinado que constitui o núcleo duro do EI está apenas preenchido com mistificações através das decapitações públicas pós-modernizadas emergentes e de todas as demais atrocidades autodocumentadas e automidiatizadas. Ao contrário do absurdo aterrorizante e sem sentido do EI, este texto procura trazer à linha de frente as vozes daqueles corpos do Oriente Médio que realmente importam: os corpos de monstros biopolíticos. Tentando situar o caso contemporâneo do EI e de Kobane na história do pensamento monstruoso e esclarecer os argumentos e os conceitos usados na primeira seção, o artigo será finalizado com uma seção dedicada aos questionamentos etimológicos e filosóficos sobre a carne monstruosa.

Corpos Naturais versus Corpos Monstruosos

Para compreender a forma moderna natural de corpos coletivos e sua monstruosidade ameaçadora, deve-se examinar os aspectos normativos e normalizadores da modernidade relacionados a corpos coletivos. A modernização, o processo de (re)produzir (trans)formações concretas sob o nome de modernidade em diferentes partes do mundo, é um exemplo disto. Este conceito “estabeleceu-se no clima político-ideológico dos anos após a Segunda Guerra Mundial” (Martinelli, 2005MARTINELLI, Alberto. Global Modernization: rethinking the project of modernity. London; Thousand Oaks: Sage Publications, 2005., p. 1), por um lado o período de descolonização e nacionalismo pós-colonial e, por outro, da Guerra Fria. Além disso, estas modernizações políticas e culturais são próprias do paradigma econômico moderno, reapropriado de acordo com cada contexto local. Consequentemente, a maneira pela qual é permitido que os corpos coletivos sejam formados via construção e organização da carne pela modernidade é atualmente algo que é apenas pressuposto.

O resultado deste processo de modernização é o Estado-nação, que é considerado como a forma natural e exclusivamente legítima da organização política dos corpos coletivos; um processo pelo qual o um se divide em dois, resultando em uma cabeça sem corpo governando como o Estado e em um corpo sem cabeça governado com uma hierarquia de divisões e de órgãos orgânicos. Embora já não seja o centro de poder na era das sociedades de controle, o Estado-nação ainda continua válido como a forma natural de organização e uma das instituições mais importantes da rede globalizada de relações de poder (pós-)modernas.

Particularmente após o 11 de setembro, a estrutura global imposta para progresso, os princípios econômicos e políticos denominados de Consenso de Washington4 1 Este termo foi inventado por John Williamson, um economista internacional, no mesmo ano da Queda do Muro de Berlim em 1990, referindo-se a “10 recomendações políticas cujo emprego apropriado Washington deve construir um grau de consenso razoável”. apresentam-se de forma binária que se refere a uma política-Estado baseada na identidade: Bush ou Bin Laden. Este impasse do capitalismo globalizado oferece o Estado-nação como a única forma política apropriada ao nosso mundo contemporâneo, onde o que é decidido é meramente o conteúdo material desta forma política: autoritário teocrático ou neoliberal e representativo.

E é devido ao possível conteúdo autoritário, hierárquico, centralizado e exclusivo do Estado-forma que o próprio Estado vem sendo sujeitado a incontáveis críticas na história da filosofia crítica. Contudo, e sem trazer estes problemas já claros à mesa de novo, o fato evidente para se ter em mente é que o monstro da era moderna sempre aparece como uma recusa da composição natural-legal de corpos coletivos e vai além da negação pura para testar a alternativa.

O Exemplo do Estado Islâmico

O tipo mais recente de um processo pós-colonial de elaboração do Estado é o Estado Islâmico (conhecido originalmente como o grupo jihadista Estado Islâmico do Iraque e do Levante). De fato, é o Estado (auto)declarado mais recente no mundo. A declaração do Califado, a ação performativa de Abu Bakr al-Baghdadi ao dizer “Sou o Califa” e a expressão de lealdade (Bey’at, no بیعت) dos súditos na Grande Mesquita de Mosul em 5 de julho de 2014 constituíram o último estágio simbólico da fundação de um Estado. O restante tem sido um período de guerra, de ausência de política. Por que ausência de política? Pelo simples motivo de que a política conforme é definida pelos processos de elaboração do Estado é sempre a política de um povo; isto é, sempre pressupõe o ato coletivo de auto-organizar diferença e dissenso de uma maneira igualitária e não-hierárquica.

Aqui é de importância adicional o sentido etimológico da palavra árabe para Estado, Dowla (دولة), que etimologicamente significa glória. E glória, de acordo com a discussão de Giorgio Agamben sobre as bases teológicas cristãs secularizadas da soberania-governamentalidade ocidental moderna, é o lócus vazio de mediação entre o poder soberano transcendente e as técnicas imanentes de governamentalidade, entre o divino e o material (2011AGAMBEN, Giorgio. The Kingdom And The Glory. Trans. Lorenzo Chiesa and Matteo Mandarini. Palo Alto, CA: Stanford University Press , 2011.). Em outras palavras, o EI não é simplesmente a manifestação ou a prova de que as noções cristãs e islâmicas de glória são idênticas. Ao contrário, o EI faz uso de um discurso político fundamentalmente moderno/cristão para se justificar no mundo contemporâneo. Por este motivo, Islâmico não modifica a substância de sua forma política e simplesmente, sendo simplesmente uma maneira de designar sua diferença de outros Estados-nação. Assim, o Islã serve apenas como um adjetivo, como uma qualificação da forma política de conteúdo correspondente à forma de expressão classicamente universal que há muito tempo é chamada de Estado.

O autodeclarado Estado Islâmico nasceu em uma região marcada por um acordo colonial, com um Caliban dormindo sobre seu solo5 2 Caliban aparece em A Tempestade de Shakespeare. O protagonista da peça é Próspero, Duque de Milão por direito, que é traído por Antônio, seu irmão, e aprisionado em uma ilha. O Duque por direito faz da ilha sua base para mais tarde se vingar e Caliban, que é descrito como “um escravo selvagem e deformado”, é o nativo desta ilha, destronado por Próspero, colonialista racional, que por sua vez descreve Caliban como um monstro: é tão desproporcional em seu comportamento quanto no seu formato. A peça recebeu enorme atenção anticolonial e decolonial, tendo sido reescrita e reinterpretada através destas lentes. Um exemplo famoso é Une Tempête, de Aimé Césaire (1985). . O mapa ainda oficial do Oriente Médio foi na realidade formatado com o Acordo Sykes-Picot em 1916. No entanto, a guerra na Síria e no Iraque e a declaração do Estado mais recente do mundo, o Estado Islâmico, de fato modificaram o cenário pós-Primeira Guerra Mundial no Oriente Médio (Bowen, 2013BOWEN, Innes (Ed.). Syria and the New Lines in the Sand: transcript of a recorder documentary. Prod. Fiona Leach. London, 2013. Available at: <Available at: http://downloads.bbc.co.uk/radio4/transcripts/01072013-anlaysis-syria.pdf >. Accessed on: 01 July 2018.
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).

Além disso, e apesar do fato de que todos as fronteiras nacionais são de alguma maneira artificiais (isto é, historicamente construídas), a artificialidade específica da fronteira Síria-Iraque estabelecida pelo Acordo Sykes-Picot é horrivelmente absurda. O Acordo, que foi inicialmente concebido ser posto em prática pelos poderes coloniais dos Aliados na Primeira Guerra Mundial - Grã-Bretanha, França e Rússia -, foi finalizado secretamente entre França e Grã-Bretanha apenas (O’Sullivan, 2003O’SULLIVAN, Christopher D. Sykes-Picot Treaty. In: PAGE, Melvin E. Colonialism: An International Social, Cultural, and Political Encyclopedia. Santa Barbara; Denver; Oxford: ABC_CLIO, 2003. P. 567.). Sir Mark Sykes, diplomata britânico sênior, e François Georges Picor, ex cônsul geral francês em Beirute, assinaram o acordo em 16 de maio de 1916, concordando que dois poderes coloniais fossem alocados às províncias árabes do Império Otomano (atualmente, Iraque, Síria, Jordânia, Líbano, Palestina etc.). O absurdo é mais bem revelado pela declaração de Sykes em Downing Street no fim de 1915: “Gostaria de traçar uma linha a partir do ‘e’ de ‘Acre’ até o último ‘k’ em Kirkuk” (Barr, 2012BARR, James. A Line in the Sand: the Anglo-French struggle for the Middle East, 1914-1948. New York: W.W. Norton & Co., 2012., p. 12). Pode-se até mesmo dizer que o que está em jogo aqui é determinada aplicação da Tempestade de Shakespeare, na qual Caliban poderia ser considerado como uma imagem do monstro na região, um monstro que deve ser domesticado, treinado, ou organizado adequadamente.

No drama original, quando Próspero, o culto Duque conhecedor de filosofia e astronomia, desembarcou na ilha de Caliban, não teve outra escolha a não ser aprisionar este monstro com poderes mágicos desconhecidos. De qualquer maneira, o monstro não era inteiramente dócil e obediente. Foi enganado pelo ignóbil Stefano e aceitou-o como um deus. Os dois senhores competiam pela fonte de produção, a carne monstruosa como bem comum. Porém, no ato final, Caliban finalmente se deu conta de que não apenas Stefano não era um deus, mas também que a posição transcendente do Senhor colonial era somente própria do político ocidental eugênico, Próspero.

O Caliban da Mesopotâmia moderna também já está sujeito a uma autoridade escrava transformada-em-senhor, às normas de Stefano-EI que tenta solapar os senhores eugênicos dos poderes pós-coloniais. Com isso, entrou em cena uma relação dialética de senhor-escravo, apenas para finalmente descobrir que o verdadeiro antigo senhor civilizado era melhor do que o outro. Em outras palavras, o EI não é um grupo político radical, mas tem se alimentado - como um parasita - de corpos coletivos de resistência e luta naquela região. Pois Caliban “é monstruoso somente na medida em que seu desejo de liberdade excede os limites da relação colonial de biopoder, destruindo as amarras da dialética” (Hardt; Negri, 2009HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, MA: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009., p. 98).

Ademais, da mesma forma que qualquer outro Estado que se une com sua nação, o Estado Islâmico também tenta fazer de Umma (امة) - um nome tradicional que se refere à comunidade mundial de muçulmanos - sua nação. Por definição, a nação é um corpo coletivo caracterizado por uma identidade homogênea. Quando a modernidade adentra em um território concreto, desencadeia um processo de homogeneização do corpo coletivo, excluindo alguns grupos da identidade nacional. Para continuar com o exemplo, deve-se observar que em sua história pré-moderna, Umma nunca foi uma nação. Ao contrário, Umma era um todo heterogêneo subordinado ao ponto transcendente da autoridade (soberana) do Califa. Para tornar-se uma nação, não poderia continuar igual. Deve ser secularizada, pois a glória divina foi secularizada em Dowla. Neste caso, foi cunhada uma identidade islâmica determinada para identidade nacional e o EI está promovendo um tipo muito específico de Islã sunita que exclui todos os outros ramos, inclusive diversos ramos de xiismo, o Islã místico, e assim por diante, bem como outros crentes e não-crentes.

Além disso, o próprio termo Estado origina-se da raiz pré-Indo-Europeia sta-, semelhante ao Persa -stan (-ستان, país), referindo-se ao que permanece ou o que é (assim como a antiga palavra grega státis também designa algo como ficar parado). Por outro lado, stásis também se refere a uma longa história de guerras civis. Os gregos lutavam para mostrar quem eram os verdadeiros aristocratas, aquele eugênicos apropriados para governar. Originando-se de arete (excelência) e aristos (o melhor), aristocratas significa as melhores pessoas e que, de acordo com o pensamento platônico, têm permissão para impor sua autoridade. Se stásis, o termo para guerra civil, compartilha da mesma raiz que o Estado, ambos se originando do significado fundante de ser permanente e estável, então o que é ontogeneticamente permanente?

Ao invés de uma entidade permanente, este stasis próprio do Estado se refere a uma interrupção de movimento ou kinesîs, compreendido como a única coisa que é permanente. Entretanto, e para evitar confusão, esta suposta permanência de kinesîs deve ser compreendida por meio de sua derivação etimológica de tasis, que significa tensão, intensidade, força, antagonismo, bem como o prolongamento de um som ou afirmação apenas pelo prazer de dizê-lo ou escutá-lo. Neste drama etimológico, pode-se dizer que o que tem um papel permanente, aquilo que resiste permanentemente, não é o Estado (a estagnação do poder constituído), mas paradoxalmente o movimento e sua tensão (o poder constituinte), a autoafirmação prazerosa de um povo que às vezes interrompe o alto som do Estado em seus “clarins, que sopram sons sangrentos nas batalhas”6 3 No original em inglês: “clariounes, that in bataille blowen blody sounes”. (tomando emprestado de Contos da Cantuária de Chaucer)7 4 Extraído de: CHAUCER, Geoffrey, 1342-1400. Contos da Cantuária. Tradução do inglês moderno e notas de José Francisco Botelho; tradução do inglês médio para o inglês moderno, introdução e notas de Nevill Coghill; ensaio de Harold Bloom. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013. P. 38. : e a batalha é a guerra civil do Estado contra o povo. Considerando a relação entre o Estado e os movimentos e interrompidas por ele, o princípio Foucaultiano de “onde há poder, há resistência (…)” (Foucault, 1978FOUCAULT, Michel. The History of Sexuality. Trans. Robert Hurley. v. I. New York: Pantheon Books, 1978., p. 95) é útil ao esclarecer o que está em questão: antes que a supressão e a opressão alcancem sucesso, há resistência e rebelião (isto é, o poder constituinte dos não eugênicos e dos pobres) ontologicamente anteriores aos poderes constituídos do Estado.

Portanto, o que é permanente não é o Estado, mas a guerra civil, o fluxo do poder constituinte dos não-melhores. Consequentemente, somos compelidos a dizer que o Estado é mera reação, aquilo que se segue e é subsequente à prioridade ontológica de stásis. Na medida em que o poder constituído do Estado é exercido, sempre há resistência contra a identidade homogênea imposta sobre a carne, tentando ir além do corpo natural e sua relação de poder correspondente. “(...) e não há sistema social que não fuja/escape por todas as extremidades, mesmo se seus segmentos não param de se endurecer para vedar as linhas de fuga” (Deleuze; Guattari, 2005DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. A Thousand Plateaus. Trans. Brian Massumi. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2005., p. 204)8 5 N. de T.: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo c esquizofrenia, v. 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto et alii. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. P. 78. . Mesmo em Raqqa, capital deste Estado mais recente e brutal, grafiteiros arriscaram suas vidas para escrever slogans contra o EI nos muros. Não diferente do “Homem em Pé” da Praça Taqsim, Suad Nofel fez seu “protesto de uma mulher só” todos os dias durante três meses na frente do quartel general do EI em Raqqa, segurando uma placa com estas palavras: “Não à opressão, não aos governantes injustos, não à expiação, e sim ao pensamento!” (Taleb, 2014TALEB, Julia. From Assad to ISIS, a Tale of Syrian Resistance. Waging Nonviolence, 22 August 2014. Available at: <Available at: http://wagingnonviolence.org/feature/assad-isis-tale-resistance />. Accessed on: 01 July 2018.
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, s. p.).

Estes escapes, ou linhas de fuga, podem não obstante levar a duas políticas diferentes: política de identidade antimoderna ou política altermoderna de não-identidade, a partir da qual o primeiro representa um Caliban escravizado e seu escravo-senhor, enquanto o segundo se refere à carne monstruosa. No entanto, deve ser observado que o Caliban já estava lá antes do acordo, pois era a única fonte de circunscrição eleitoral, a única força capaz de produzir riqueza na ilha. Tendo resistido e falhado frente ao Acordo Sykes-Picot, também precisou lidar com a invasão do Iraque de 2003 e a guerra transnacional que se desenrolou posteriormente no território sírio. E se a “revolução [é que] é monstruosa” (Hardt; Negri, 2009HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, MA: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009., p. 332), então a advertência de Benjamin de que o fascismo vem após o fracasso revolucionário deve ser levada a sério (apud Grigg; Sharpe, 2011GRIGG, Russel; SHARPE, Matthew. In the Name of the Father. In: OPPY, Graham Robert et al. (Ed.). The Antipodean Philosopher. Lanham, Maryland: Lexington Books, 2011. P. 81-89.). E é em relação à pergunta “O fracasso revolucionário parece com o que?” que podemos retornar à história da formação do Estado e das guerras civis que interrompe sob uma nova perspectiva.

O próprio Acordo Sykes-Picot foi uma reação dos poderes coloniais estarrecidos frente à ascensão de movimentos populares na região, que viu o Império Britânico financiar algumas facções em insurreições árabes contra o governo Otomano, promovendo Movimentos Nacionalistas Árabes. Prometeu publicamente a algumas figuras árabes nacionalistas e monarquistas que permitiria que houvesse reinos árabes independentes. E embora estas figuras fossem leais à autoridade colonial no comando, as promessas nunca foram cumpridas (Tanenbaum, 1999TANENBAUM, Jan Karl. Sykes-Picot Agreement. In: TUCKER, Spencer C.; WOOD, Laura Matysek; MURP, Justin D. The European Powers in the First World War: An Encyclopedia. London: Taylor & Francis, 1999. P. 677-78.). Ao contrário, as intervenções coloniais da Grã-Bretanha, França e, mais tarde, da Alemanha nazista levaram a um corpo hierárquico de carne monstruosa de Caliban orgânico, homogêneo e fechado. Em outras palavras, os movimentos árabes transformaram-se em um processo baseado na identidade de elaboração do Estado-nação - por exemplo, o movimento Ba’ath (البعث, renascimento) que supostamente traria o novo se revelou como “o eterno retorno da maldição” (Adorno, 2005ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflections on a damaged life. Trans. E. F. N. Jephcott. London; New York: Verso, 2005., p. 236). O Partido Socialista Árabe Ba’ath originou duas Nações-Estados de partido único na Síria e no Iraque, ambos marcados por genocídios e limpezas étnicas, enquanto a oposição do Movimento dos Jovens Turcos levou à república nacionalista de Mustafa Kemal Atatuk.

Ao mesmo tempo, outro movimento emergiu insistindo que tinha verdadeiras raízes islâmicas: a Irmandade Muçulmana. A Irmandade Muçulmana é, no entanto, apenas um ramo do movimento em questão, que atualmente é orientado principalmente para uma posição parlamentar. Com o slogan “Deus é nosso objetivo. O Profeta é nosso líder. O Corão é nossa lei. A Jihad é nossa maneira. Morrer no caminho para Deus é nossa esperança mais elevada. Deus é grande!” (Ali, 2011ALI, Ayaan Hirsi. The Quran Is Our Law; Jihad Is Our Way. Wall Street Journal, New York, 2011. Available at: <Available at: http://online.wsj.com/news/articles/ SB10001424052748704132204576136590964621006 >. Accessed on: 01 July 2018.
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). A Irmandade Muçulmana revela a extensão em que os alicerces da forma política de Estado moderno são compatíveis com o legado da assim-chamada tradição. Afinal, como seria possível abordar e nomear a tradição sem situar-se no discurso singularmente moderno do Estado-estado? Agora, por um lado, vemos estes processos se desenrolando em relação aos movimentos de protesto de sunitas iraquianos na década de 2000, que se seguiu ao estabelecimento de um governo de maioria xiita e que no fim foi substituído oportunisticamente pela militarização da Al-Qaeda. E quando a segunda geração da Al-Qaeda que emergiu no Iraque deixou claro, o alvo de sua Jihad era a fundação de um Estado.

Em seu tratado The Management of Savagery [A gestão da Selvageria] (2006), Abu-bakr Naji, um autor jihadista sobre quem se diz que tem influência sobre a liderança do EI, identificou os passos necessários e graduais exigidos para a construção de um Estado islâmico. De acordo com Naji, esta noção de gestão da selvageria refere-se a um período em que o poder do Estado central irá entrar em colapso devido aos ataques jihadistas e ao “poder do vexame e da exaustão.” Consequentemente, surgirá uma área de soberania limitada, à qual ele chama de território de selvageria. Conforme explica Naji, é este período de tempo que favorece a tentativa de formar um Estado ao desenvolver bem-estar e serviços públicos e ao estabelecer instituições militares, educacionais e de inteligência. A informação que sai dos territórios do EI por meio de vídeo-documentários e reportagens mostra uma compatibilidade teórica e prática entre os estágios explicados no tratado de Naji e estratégia concreta do EI.

Por outro lado, a revolução síria ficou encurralada em uma guerra entre diferentes Estados-nação que vem canalizando o potencial da resistência síria em identidade-política, criando suas próprias versões de Calibans escravizados a partir da carne monstruosa. O EI se nutre da mesma carne monstruosa, e com mais sucesso do que outros grupos jihadistas, pois consegue passar uma imagem monstruosa de si mesmo.

Entretanto, apesar de suas diferenças e já que o desastre não-representável no Iraque e na Síria começaram a ser representado por meio dos discursos hegemônicos de direitos humanos, a lente dominante da análise hegemônica tornou-se a figura da vítima. Esta figura da vítima, entretanto, é o sujeito paradoxal de direitos humanos: incapaz de reivindicar seus próprios direitos e, assim, precisando do Outro (o senhor) para recuperá-los em seu nome - seja emitindo Comunicados e declarações ou por mísseis, drones e bombas. Às vezes, no entanto, esta vítima apresenta reações próprias. Apontando para a opressão que sofreu, a vítima grita que não quer o domínio bondoso do Norte global, assim transgredindo as normas e leis do senhor para exibir seu agenciamento. Em outras palavras, embora a vítima possa cometer atos de violência reacionária e supressora, ainda está encurralada na economia dos discursos de direitos humanos. É aqui que a imagem da vítima se conecta com as imagens horrendas das decapitações e assassinatos em massa para propagar a ilusão de uma luta monstruosa: uma estratégia direcionada para as vítimas das divisões desiguais entre Norte e Sul, das fronteiras nacionais (pós-)coloniais artificiais. O Outro paterno também faz outra vítima das imagens monstruosas emergentes, tentando puni-la: é o ponto de convergência infeliz entre a estratégia de mídia do EI e a da mídia hegemônica global.

Para resumir, o Estado Islâmico não era um monstro; ao contrário, estava baseado nos princípios eugênicos bastante modernos: domesticação da feminilidade; exclusão de todas as minorias (religiosas, sexuais, de gênero etc.); instalação de instituições jurídicas, penais, religiosas, educacionais, militares e de segurança; tentativa de regular e governar cada atividade cotidiana de seu súdito; sua organização hierárquica do corpo coletivo em torno do ponto transcendente de Califa. Entretanto, mesmo com decapitações, genocídios, banhos de sangue e corpos se autoexplodindo, o EI não conseguiu adquirir o poder constituinte do monstro. Desejando um corpo homogêneo, o EI é gregário em termos nietzscheanos, enquanto a monstruosidade é “o fato do caso específico” (Klossowski, 1997KLOSSOWSKI, Pierre. Nietzsche and the Vicious Circle. Trans. Daniel W. Smith. Chicago: University of Chicago Press, 1997., p. 9).

Caliban de Kobane

No começo, era o monstro; e o monstro estava livre. O Caliban tinha vagado livremente em sua ilha antes que o aristocrata colonial, o bem-nascido, partisse para o exterior (mar) em busca de uma terra. O monstro à espreita na dobra deste exterior (na ilha) tinha que ser parado, acorrentado e treinado, pois é a única fonte de criação, da riqueza em comum produzida. O “monstro é comum”, escreve Negri (2008NEGRI, Antonio. The Political Monster: Power and Naked Life. In: CASARINO, Cesare; NEGRI, Antonio. In Praise of the Common: A Conversation on Philosophy and Politics. Trans. Maurizia Boscagli. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008. P. 193-218., p. 205). Mas o monstro é também a luta dentro do que é comum, pois encarna a multidão autônoma, antiessencialista (carne é o corpo monstruoso). Assim, o enredo deste desenrolar monstruoso pode muito bem ser diferente de sua dramatização Shakespeariana.

O Acordo Sykes-Picot, juntamente com as fronteiras nacionais que imporia e continuaria a defender, teve consequências particularmente terríveis para o povo curdo, que desfrutava de uma autonomia relativa antes da queda do Império Otomano. Depois que as fronteiras foram traçadas, os curdos encontravam-se em grande parte sobre as fronteiras de quatro Estados-nação (Irã, Iraque, Síria e Iraque) em ambos os sentidos do termo: marginalizados por identidades nacionais hegemônicas e, ao mesmo tempo, situados literalmente nas regiões de fronteira oficial. Assim, a própria existência dos curdos foi um desafio às fronteiras coloniais de Sykes-Picot.

Após a proclamação da República da Turquia, o processo de construção da nação deste Estado de partido único - como uma parte inevitável de sua modernização - começou com foco em “uma ideologia etno-nacionalista, apesar da composição multiétnica e multilíngue do país” (Dayan, 2014DAYAN, Vedat. Kurdish or Turkish Question? Berlin: Freie Universität Berlin, 2014. Draft-Unpublished., p. 1). As mistificações eugênicas do poder constituído supunham a figura de um “turco feliz”, uma figura que também impusesse a necessidade de formar um corpo coletivo totalmente turquificados. Ismet Inonu, segundo presidente da República, explica esta crença com um tipo de violência própria a ela:

Somos francamente nacionalistas e o nacionalismo é nosso único fator da coesão. Frente a uma maioria turca, outros elementos não têm nenhum tipo de influência. Nosso dever é turquificar os não-turcos na pátria turca, não importa o que acontecer. Iremos destruir aqueles elementos que se opuserem aos turcos ou à turquificação (Inonu apud Dayan, 2014DAYAN, Vedat. Kurdish or Turkish Question? Berlin: Freie Universität Berlin, 2014. Draft-Unpublished., p. 1).

Como um desvio do corpo coletivo turco natural baseado em sangue e terra, os curdos se transformaram naquilo que era monstruoso aos olhos do Estado-nação turco; um povo cuja própria ininteligibilidade levou ao seu exílio discursivo no exterior da identidade turca em tal extensão que os curdos eram até mesmo referidos simplesmente como turcos da montanha.

Contudo, este (curdo-)Caliban parece ter sido criado de novo em nosso momento contemporâneo. Pois quando ninguém conseguia parar o aparato de captura fascista do EI, foi este monstro curdo, manifestando sua alegre força em Kobane, que conseguiu parar os militares jihadistas com suas máquinas de guerra. Ademais, em uma passagem nas Teses sobre o Conceito de História, Benjamin escreve que o “modo de pensamento” crítico atual precisa tornar o mundo “repugnante” ou, pode-se dizer, monstruoso. Pois os políticos “em quem os oponentes do fascismo tinham depositado suas esperanças” se comprometeram com o fascismo e, exatamente por este motivo, o modo de pensamento monstruoso deve pretender livrar “a política das malhas do mundo profano, em que ela havia sido enredada”9 6 N. de T.: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. Tradução do inglês de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 222-232. (Benjamin, 2003, p. 393). E com certeza este é o caso do monstro de Kobane, para quem o curdo serve apenas como um substantivo comum e não um significante de qualquer identidade.

Porém, o que criou a carne monstruosa da luta em Kobane ocorreu defronte a este cantão, graças a sua defesa audaz, transformada em uma imagem espetacular na mídia hegemônica. A forma-de-vida singular e monstruosa ligada ao nome de Kobane, seu devir cantão em vez de “cidade-Estado”, a forma de organização do corpo coletivo, e as narrativas menores sobre a vida de seus militantes constroem juntos a verdade de Kobane, onde camaradas dançam e cantam tanto pelos vivos como pelos mortos, onde a marginalização e a domesticação aparentemente tradicional das mulheres não têm lugar, e onde a identidade é recusada.

Kobane é um dos três cantões de Rojava na SíriaROJAVA CANTONS. The Constitution of the Rojava Cantons. February 2014. Available at: <Available at: http://civiroglu.net/the-constitution-of-the-rojava-cantons/ >. Accessed on: 02 July 2018.
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. Insistindo no direito à autodeterminação, estes cantões formaram um território autônomo. Originalmente, cantão significava região ou canto e se referia a membros autônomos da Antiga Confederação Suíça durante os séculos XIV e XV com sua própria forma de democracia direta. Inspirado pela ideia de confederação de cantões, os moradores de Rojava escreveram sua própria constituição, ainda que limitada, para uma organização alternativa dos corpos coletivos que começa com o seguinte:

Nós, o povo das Regiões Autônomas Democráticas de Afrin, Jazira e Kobane, uma confederação de curdos, árabes, siríacos, aramaicos, turcos, armênios e chechenos, livre e solenemente declaramos e firmamos esta Carta. Em busca de liberdade, justiça, dignidade e democracia, e conduzidos por princípios de igualdade e sustentabilidade do meio ambiente, a Carta proclama um novo contrato social […] nós, o povo das Regiões Autônomas, unidos no espírito de reconciliação, pluralismo e participação democrática […] a construir uma sociedade livre de autoritarismo, militarismo, centralismo e de intervenção de autoridade religiosa.

Entretanto, a maneira como os militantes de outras regiões se juntaram à luta em Kobane e a formação histórica do corpo coletivo nesta cidade aponta mais para uma aliança monstruosa com o corpo coletivo do que um contrato social, como uma maneira de fazer “estar-junto”.

Kobane é uma cidade feita pela Primeira Guerra Mundial e seus Estados nacionalistas consequentes. Seu nome significa companhia e se refere à Empresa Alemã de Ferrovias, encarregada de construir a controversa ferrovia Berlim-Bagdá. Durante o genocídio armênio no Império Turco, os refugiados construíram Kobane perto da ferrovia e, posteriormente, os curdos que fugiram da turquificação da República Turca se juntaram a eles. A cidade liminar foi dividida outra vez por uma nova fronteira nacional como consequência do Acordo Sykes-Picot e se encontrou de novo situada literalmente na fronteira entre Turquia e Síria (Taştekin, 2014TAŞTEKIN, Fehim. Erdogan plays ‘Arab card’ in Kobani. Al-Monitor, 28 October 2014. Available at: <Available at: http://www.al-monitor.com/pulse/originals/2014/10/turkey-kobani-erdogan-deals-arab-card.html >. Accessed on: 01 July 2018.
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). Agora, este monstro centenário apresenta-se com um novo corpo coletivo; heterogêneo, multiétnico e multilíngue; que recusa ativamente a forma moderna natural do Estado-nação. É por este motivo que nenhum discurso a respeito da natureza do conviver em Kobane pode ser compreendido simplesmente por meio da noção moderna e liberal do contrato social.

Atualmente, o terror e os bombardeios, tiros e chacinas, facas na garganta e correia explosivos no torso, bombas escondidas dentro do corpo, tudo isto indica que certamente um fantasma está assombrando nosso mundo contemporâneo - o fantasma da morte. Morrer em paz em um quarto branco isolado, a solidão do morrer conforme diz Elias (2001ELIAS, Norbert. The Loneliness of the Dying. New York: Continuum, 2001.) como uma catástrofe existencial, é agora um milagre na Mesopotâmia. É exatamente face a esta situação que o Caliban autônomo de Kobane defende sozinho uma imagem do próprio sentido de política hoje, na medida em que a política é definida como a autodeterminação da ação coletiva por um povo enriquecido com diferenças, que “desenrola as consequências de uma nova possibilidade” (Badiou, 2008BADIOU, Alain. The Communist Hypothesis. New Left Review, London, v. 49, p. 29-42, 2008., p. 31). E é em situações como estas que precisamos de “novos gigantes e novos monstros capazes de articular natureza e história, trabalho e política, arte e invenção e com isto demonstrar o novo poder que está nascendo na multidão” (Hardt; Negri, 2004HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multitude. New York: Penguin Press, 2004., p. 194). Com sua arte política e criativa de fazer máquinas de guerra, mesmo no sentido literal da palavra, o Caliban de Kobane demonstra o poder da carne, resistindo ao avanço do ressentimento gregário do escravo-senhor para o bem do caso específico.

Etimologias Rizomáticas

No livro II de Física, Aristóteles define o monstro (τέρας, teras) como um erro em ou um desvio da natureza, como os bebês recém-nascidos mal formados ou os animais híbridos com corpos humanos e cabeças de animais. Jacques Derrida se refere a esta definição médica inicial do monstruoso quando escreve que “A natureza desnaturando-se a si mesma, afastando-se de si mesma, acolhendo naturalmente seu fora no seu dentro, é a catástrofe, evento natural que perturba a natureza, ou a monstruosidade, afastamento natural na natureza” (Derrida, 1997DERRIDA, Jacques. Of Grammatology. Trans. Gayatri Chakravorty Spivak. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 1997., p. 41, ênfase adicionada)10 7 N. de T.: DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Ianini Ribeiro. São Paulo: Perspectiva; Ed. da Universidade de São Paulo, 1973. P. 50. .

A palavra “τέρας se refere, inicialmente, a um presságio espantoso e, consequentemente, estarrecedor de um evento futuro, enviado por deuses e necessitando de interpretação” (Mollendorf, 2009MOLLENDORF, Peter von. Man as Monster: Eros and Hubris in Plato’s Symposium. In: FÖGEN, Thorsten; LEE, Mireille M. Bodies and Boundaries in Graeco-Roman Antiquity. Berlin: Walter de Gruyter GmbH, 2009. P. 87-111., p. 94). Teras significa sinal, mas principalmente um sinal de ameaça que contém um poder divino em si. Etimologicamente, teras se origina do proto-indo-europeu *kʷer- (fazer, construir e realizar) que mantém sua forma na palavra indo-iraniana kār (کار, trabalho). O equivalente latino a teras, monstrum, compartilha os significados importantes do termo grego, pois provém da mesma raiz que o verbo demonstrar e o substantivo demonstração. Entretanto, o sentido significante de monstro possui uma natureza particular: significa a si mesmo, o aviso de uma ameaça à assim-chamada humanidade, por sua presença pura. Não é necessário nem mesmo fazer nada: sua mera aparição, como o divino, é sua ação, transformando uma situação em inumana; simplesmente porque a monstruosidade, acima de tudo, se refere à pura potencialidade de construir e de fazer (*kʷer-).

Ademais, monstro como uma categoria do vivo está sempre situada entre o humano e o animal - daí porque inúmeros monstros são híbridos animal-humanos, ou alguns animais foram chamados de monstros ao ameaçarem os humanos. Esta intermediação do monstro dificultou ao ser humano conseguir identificá-lo, colocá-lo nas funções epistemológicas de similaridade e comparação em ciências naturais, e categorizá-lo para uma compreensão lógica apropriada. Talvez esta seja a razão pela qual teras e monstrum venham originalmente destes significados abstratos, e somente depois disso puderam se referir a manifestações naturais da monstruosidade desnaturante.

Ifrit (عِفریت), o substantivo para monstros supernaturais em árabe, revela a mesma abstração-técnica frente aos monstros. A palavra vem de Iferr (عِفِرّ), forte e enorme ou diabólico malévolo, e simultaneamente de afar (عَفَر), “solo, pó ou dispersar-se como pó”. Por outro lado, origina-se etimologicamente do persa médio āfrīt (آفریدن), que significa criação. Assim, ifrit não apenas é muito forte, mas também volátil e fugaz como o pó, embora estas características pertençam ao seu poder criativo. De acordo com mitologias islâmicas, também se diz que ifrit é constituído por fogo (ou fumaça), (e como suas raras ocorrências no Corão testemunham, ifrit também escapa à possibilidade de ser totalmente conhecido. Em Surat An-Naml (27: 39-40), um ifrit promete ao “Rei Salomão” trazer-lhe “o trono da Rainha de Sabá” em uma estrofe: “Trarei a vós antes que saia de seu lugar, e certamente sou forte e certamente digno de confiança para esta [tarefa]. O último versoe, que começa com “certamente”, uma tradução aproximada de انّی (ennī) que funciona como uma ênfase, revela que ninguém, nem mesmo um mensageiro de Deus como Salomão - que, de acordo com o Corão, conhece tudo no mundo, até mesmo a língua de criaturas não-humanas - poderia conhecer um ifrit completamente, ou poderia prever suas ações. Isto quer dizer que até mesmo o conhecimento divino não sabe o que um corpo monstruoso pode fazer para que os monstros desafiem o transcendente.

Monstro Político: um caso de fascínio

Espreitando calmamente na era moderna, os monstros estão longe da extinção: “sempre definiram os limites de comunidade em imaginações ocidentais” (Haraway, 1991HARAWAY, Donna. Simians, Cyborgs and Women: the reinvention of nature. New York: Routledge, 1991., p. 181). Isso é assim porque o monstro transgressor não-natural e não-identificável tem sido há muito tempo uma fonte de fascínio para pensadores modernos e contemporâneos.

Olhando a partir da perspectiva do monstruoso, entretanto, moderno é em si uma noção problemática. A palavra moderna vem do latim tardio modernus, que é derivada da raiz latina modo (agora mesmo, presente no aqui e no agora). Por sua vez, modo vem de med-, uma raiz indo-europeia que significa medir, aconselhar e curar. Estes três significados podem revelar vagamente as implicações normativas inerentes à modernidade da palavra como uma noção ocidentalizada do próprio começo. Por exemplo, Santo Agostinho usava a palavra “moderno” já no século V para compara “a nova era cristã com a antiguidade pagã”, como um “meio de descrever e legitimar novas instituições, novas regras legais ou novas suposições científicas” (Martinelli, 2005MARTINELLI, Alberto. Global Modernization: rethinking the project of modernity. London; Thousand Oaks: Sage Publications, 2005., p. 5).

Mesmo assim, nossos discursos contemporâneos a respeito da modernidade também estão muito longe destas funções iniciais do moderno no discurso teológico-político. Se o monstro for definido inicialmente em termos médicos como a doença natural que derrota a natureza, então parece que a modernização poderia ser interpretada como um processo de medir sua naturalidade; de identificar a monstruosidade para aconselhar contra ela e para curar esta aberração da natureza.

Abordado a mesma problemática por meio de uma referência à eugenia - um termo do grego antigo que signifique alguém que é bem-nascido - Antonio Negri define a eugenia como o fundamento metafísico da soberania moderna como segue: “somente aqueles que são bons e bonitos, eugenicamente puros, têm o direito de comandar” (Negri, 2008, p. 194). Contra isto, ele convoca o monstro, ecoando alguns dos significados etimológicos do termo previamente discutidos:

O monstro vaga no sonho e no imaginário da loucura: é um pesadelo para aqueles que são ‘bons e bonitos’: só pode existir como destino catastrófico que deve ser expiado, ou como evento divino (Negri, 2008NEGRI, Antonio. The Political Monster: Power and Naked Life. In: CASARINO, Cesare; NEGRI, Antonio. In Praise of the Common: A Conversation on Philosophy and Politics. Trans. Maurizia Boscagli. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008. P. 193-218., p. 194).

Não diferente da crítica de Negri à eugenia, Michel Foucault também segue os procedimentos modernos de sobrepor, apropriar-se e colonizar o monstruoso desde o século XVIII. Define o monstro como uma noção “jurídico-biológica”, pois “[...] o que define o monstro é o fato de que sua existência e forma são não apenas uma violação das leis da sociedade, mas também uma violação das leis de natureza” (Foucault, 2003, p. 56). Aqui, o monstro sempre se revela como o limite e a exceção: o anormal.

Contra a dramatização negativa de monstro em Foucault, DeleuzeDELEUZE, Gilles. Foucault. Trans. Seán Hand. Minneapolis: University of Minnesota, 1988. e Guattari usam o termo “anômalo” em vez de “anormal”. Para eles, enquanto anormal “se refere àquilo que está fora das regras” e é individualista, anômalo “designa… a ponta de desterritorialização” e implica em uma multiplicidade (2005, p. 243-44)11 8 N. de T.: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, v. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997. P. 151. . O monstro aqui torna-se afirmativo e se apresenta como a força criativo-resistente ou revolucionária de uma situação que funciona por meio de “alianças monstruosas”, de tal maneira que “o empreendimento originário” do devir-monstruoso é “ruptura com as instituições centrais, estabelecidas ou que buscam se estabelecer” (Deleuze; Guattari, 2005, p. 247)12 9 N. de T.: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, v. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997. P. 30. .

Consequentemente, da mesma forma que há diferença entre o processo esquizoide revolucionário e “a maneira como os esquizofrênicos são produzidos como casos clínicos” (Deleuze; Guattari, 1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. On Anti-Oedipus. Negotiations. New York: Colombia University Press, 1995. P. 13-24., p. 23), também se deve distinguir entre os monstros não-identificáveis afirmativos, que estão sempre em processo de devir e de alteração, dos monstros identificados, encurralados em influência médica, judicial e penal do poder constituído ou transformados em servos do soberano.

Além disso, o fascínio pelos monstros não-identificáveis vem de sua afinidade com o poder constituinte: aquelas forças inter-relacionadas de devir que constituem o ser, estendem seus limites e destroem as barreiras do poder constituído. E precisamente porque é o monstro que reside no limite, na zona do devir, de alterações e desterritorializações, na zona exclusiva do poder constituinte. “o monstro não é apenas evento, mas evento positivo”, escreve Negri, definindo o monstruoso como “um mecanismo de… construção (material e/ou utópica)” (2008NEGRI, Antonio. The Political Monster: Power and Naked Life. In: CASARINO, Cesare; NEGRI, Antonio. In Praise of the Common: A Conversation on Philosophy and Politics. Trans. Maurizia Boscagli. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008. P. 193-218., p. 200).

Deve ser aqui observado que embora os significados etimológicos de teras, monstrum ou ifrit ainda possam ser escutados nos discursos contemporâneos em torno do monstro, é claro que sua figura, seu corpo e sua relação com a humanidade mudaram ao longo da história. Apesar destas diferenças, em todos os lugares o monstro aparece como aquele que desafia o arque, a origem, e assim preserva a relevância de seus antigos significados no presente.

Hayulā: a Carne Monstruosa

Em sua tradução de conceitos aristotélicos, os primeiros filósofos muçulmanos arabificaram a palavra hyle (ὕλη, matéria prima) para hayulā ou, para ser mais exato, al-hayulā al-o’la (الهیولیالاولی, هیولایاولی, “hayulā primeira ou prima). De acordo com Aristóteles, hyle é a matéria primordial, que serve como matéria bruta e sem forma de, e, consequentemente, a causa subjacente, de todos os objetos. De acordo com esta perspectiva, hyle é pura potencialidade, que pode agir por si ou sofrer a ação para adquirir uma forma, ser concretizada. Hyle como potencialidade pura é estritamente diferente de forma como concretude pura, mas seus compostos constroem a substância identificável e cognoscível.

Nas traduções do pensamento de Aristóteles em árabe e em farsi, particularmente nas contribuições de Ibn-Sīnā (ابنسینا, Avicenna em latim), hyle na forma de hayulā tornou-se mais claramente determinada como um conceito. Na filosofia islâmica, hayulā como matéria é categorizada em hayulā prima (ou primeira), a matéria disforme que é a potencialidade pura para adquirir uma forma, e hayulā secundária, que se refere a uma matéria já formada com a possibilidade de modificar sua forma. Especificamente, Ibn-Sīnā considera hayulā prima como uma substância que acompanha o Corpo, a Forma, a Alma e o Intelecto (Rezai; Hedayat-Afza, 2013REZAI, Mohammad Javad; HEDAYAT-AFZA, Mahmoud. (رضایی، محمد جواد و محمود هدایت‌افزا). Suhrawardi’s Viewpoint on Peripatetic Hayulā (‘دیدگاه سهروردی درباره‌ی هیولای مشائی’). Sino Wisdom, v. 49, p. 117-137, 2013. , p. 115; Richardson, 2008RICHARDSON, Kara. The Metaphysics of Agency: Avicenna and his Legacy. PhD Thesis - Department of Philosophy, University of Toronto, Toronto, 2008., p. 68, p. 87). O corpo natural é, assim, um composto de hayulā prima com a forma, da qual é o elemento comum a um corpo, constitutivo de sua continuidade. Este argumento serve para demonstrar a existência de hayulā, cuja forma é contínua, mas em si é simplesmente a potencialidade a ser formada (ou deformada). A suposta continuidade e extensão do corpo e sua relação contraditória com discrição, continua sem ser comprovada na filosofia de Ibn-Sīnā (Rezai; Hedayat-Afza, 2013, p. 115; Richardson, 2008, p. 68, p. 87).

Tentando rejeitar a existência de hayulā prima, entretanto, Shahab al-Din Suhrawardi, outro filósofo muçulmano, aponta para a falácia no argumento de Ibn-Sīnā ao dizer que

[...] a continuidade não é receptiva de discrição; é verdadeira somente se a continuidade pretendida for uma continuidade entre dois corpos… pensar que a continuidade pretendida em um único corpo remonta à continuidade que perece através da discrição está equivocado (Suhrawardi 75 apud Rezai; Hedayat-Afza. Tradução do árabe pelo autor do artigo).

De acordo com Suhrawardi, a conexão entre hayulā prima e sua forma como continuidade externa não se prova ser necessária. Quando a ligação entre potencialidade (hayulā) e concretude (forma) é quebrada, hayulā torna-se a potencialidade pura, a “potencialidade para não-ser”, como Giorgio Agamben coloca (1999AGAMBEN, Giorgio. Potentialities: Collected Essays in Philosophy. Trans. Daniel Heller-Roazen. Palo Alto, CA: Stanford University Press, 1999., p. 183)13 10 Aparentemente, Agamben se refere a Suhrawardi, “um neoplatônico persa”, para deixar mais clara a distinção entre estes dois tipos de potencialidades (Agamben, 1999, p. 270-271). .

Portanto, hayulā prima incorpora a potencialidade para não-ser, pois é uma matéria primordial que desafia a posição de Deus como Concretude pura e não tem ou não necessita de nenhuma forma ou essência natural. Assim, hayulā vai de encontro a todo essencialismo, recusa-se a se emanar de formas naturais pré-existentes, e justamente por este motivo não se deixa ser enrijecida ou identificado. Além disso, quando hayulā prima “se preserva como tal em concretude”, exibe uma autodemonstração, semelhante ao monstro que se demonstra por seu mero aparecimento (então não é surpreendente que hayulā tenha se transformado ao longo de sua história na língua farsi em um sinônimo de monstro). Atualmente, entretanto, esta palavra lembra as pessoas mais do EI ou de ifrit do que de Aristóteles e Ibn-Sīnā.

Ao comentar a noção de hyle, Howard Robinson (2014ROBINSON, Howard. Substance. In: ZALTA, Edward N. (Ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Spring 2014. n.d. Available at: <Available at: http://plato.stanford.edu/archives/spr2014/entries/substance >. Accessed on: 01 July 2018.
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) escreve que “‘Matéria’ [hayulā] é mais o nome para qualquer [...]. Em relação ao corpo humano, a matéria é carne e sangue.” Para traduzir esta sugestão em nossa conceituação de monstro, o sangue deve ser removido da fórmula, porque serviu historicamente como uma base essencialista - à exceção de sua função no caso dos monstros vampíricos, onde é assumido independente de gênero ou raça. Então, a carne é a matéria prima, a materialidade do hayulā-monstro. Foi desta maneira que Merleau-Ponty conceituou a carne como um Elemento, “no sentido em que foi usado para falar de água, terra, ar e fogo, isto é, no sentido de uma coisa geral, a meio caminho entre o indivíduo espaço-temporal e a ideia, um tipo de princípio encarnado que traz um estilo de ser onde quer que haja um fragmento de estar” (1968MERLEAU-PONTY, Maurice. The Visible and the Invisible. Trans. Alphonso Lingis. Evanston: Northwestern University Press, 1968., p. 139). A carne torna-se, assim, a encarnação do monstro no entre, “a meio caminho entre o indivíduo espaço-temporal [o concreto]” e “a ideia [o virtual]”. Pois os monstros sempre residem no limite, no limiar, “na vanguarda de desterritorializações” de Ser; pois a encarnação do monstruoso virtual, o corpo do monstro, só poderia ser carne, ou seja, a matéria prima, al-hayulā al-o’la’. Daí a tautologia do monstro (Foucault, 2003FOUCAULT, Michel. Abnormal: lectures at the College de France 1974-1975. Ed. Arnold I. Davidson. Trans. Graham Burchell. London; New York: Verso , 2003., p. 57) “monstro é monstro; o monstro demonstra”.

Na poética da carne, onde a carne é vista como básica e comum, não haverá nenhuma hierarquia antropomórfica, pois a carne é o continuum autodiferenciador do ser; heterogêneo, em fluxo e plástico. Como um Elemento do ser, é constituinte: A carne encarna a potência. Portanto, o único monstro apropriado a esta formulação é o monstro criativo, o esquizoide alegre no processo de devir-esquizofrênico; ou como tantos monstros esperançosos de Mosley, “nascidos talvez um pouco antes de seu tempo; quando não se sabe se o ambiente está completamente pronto para eles” (1990MOSLEY, Nicholas. Hopeful Monsters. Elmwood Park: Dalkey Archive Press, 1990., p. 71).

O corpo monstruoso é, portanto, nada a não ser carne: o corpo não-formado, não-natural apropriado para aquilo que excede a medida da soberania e a captura do Estado.

Além disso, se deslocarmos esta perspectiva ontogenética para o nível do político, pode-se discutir que monstruosos são os corpos coletivos que não se deixam ser subjugados a nenhuma identidade estabelecida e escapam de se tornarem organizados segundo formas pré-existentes e assim-chamadas “naturais”. Que tipo do corpo é este corpo monstruoso, e o que pode fazer? - esta é a pergunta que deve ser respondida pelos monstros de nossos tempos.

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  • 1
    Este termo foi inventado por John Williamson, um economista internacional, no mesmo ano da Queda do Muro de Berlim em 1990, referindo-se a “10 recomendações políticas cujo emprego apropriado Washington deve construir um grau de consenso razoável”.
  • 2
    Caliban aparece em A Tempestade de ShakespeareSHAKESPEARE, William. The Tempest. Ed. David Hamilton Horne. New Haven: Yale University Press, 1955.. O protagonista da peça é Próspero, Duque de Milão por direito, que é traído por Antônio, seu irmão, e aprisionado em uma ilha. O Duque por direito faz da ilha sua base para mais tarde se vingar e Caliban, que é descrito como “um escravo selvagem e deformado”, é o nativo desta ilha, destronado por Próspero, colonialista racional, que por sua vez descreve Caliban como um monstro: é tão desproporcional em seu comportamento quanto no seu formato. A peça recebeu enorme atenção anticolonial e decolonial, tendo sido reescrita e reinterpretada através destas lentes. Um exemplo famoso é Une Tempête, de Aimé Césaire (1985).
  • 3
    No original em inglês: “clariounes, that in bataille blowen blody sounes”.
  • 4
    Extraído de: CHAUCER, Geoffrey, 1342-1400. Contos da Cantuária. Tradução do inglês moderno e notas de José Francisco Botelho; tradução do inglês médio para o inglês moderno, introdução e notas de Nevill Coghill; ensaio de Harold Bloom. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013. P. 38.
  • 5
    N. de T.: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo c esquizofrenia, v. 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto et alii. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. P. 78.
  • 6
    N. de T.: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. Tradução do inglês de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 222-232.
  • 7
    N. de T.: DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Ianini Ribeiro. São Paulo: Perspectiva; Ed. da Universidade de São Paulo, 1973. P. 50.
  • 8
    N. de T.: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, v. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997. P. 151.
  • 9
    N. de T.: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, v. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997. P. 30.
  • 10
    Aparentemente, Agamben se refere a Suhrawardi, “um neoplatônico persa”, para deixar mais clara a distinção entre estes dois tipos de potencialidades (Agamben, 1999, p. 270-271).
  • Este texto inédito, traduzido por Ananyr Porto Fajardo, também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2018
  • Aceito
    18 Dez 2018
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