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O Instinto de Laboratório2 1 Discurso em ocasião do recebimento do título de doutor honoris causa concedido pela Academia Janacek de Música e de Artes Cênicas de Brno (República Checa), 12 de março de 2017.

Ensinar a Aprender e Aprender Ensinando

Apenas refiz do meu jeito aquilo que aprendi. Nunca me esqueci de alguns oficiais do colégio militar de Nápoles, onde estudei, e suas diferentes formas de tratar os jovens cadetes indisciplinados e metidos a besta. Em sua oficina de Oslo, o soldador norueguês Eigil Winnje me mostrou como a força do exemplo e o orgulho do trabalho bem executado unem um grupo de artesãos. Em Opole, na Polônia, Jerzy Grotowski me revelou que o teatro não é somente um espetáculo bem feito.

Quando tinha vinte anos e estava no Golfo da Biscaia, aprendi em poucas horas que podemos ultrapassar nossos próprios limites. Eu havia acabado de embarcar como marinheiro num navio mercantil norueguês quando uma tempestade explodiu. As ondas faziam o chão balançar sob meus pés. Comecei a vomitar, fiquei mareado, não estava mais aguentando. Não tinha mais forças. Saí da sala de máquinas e me refugiei na minha cabina. De uma hora para outra, uma onda poderosa me lançou no ar: era um oficial de quarto da navegação, um homem gigante, com expressão gentil, que tinha me levantado e dizia em voz baixa: “Você acha que está num cruzeiro? Volte ao trabalho!”. E ali, ajoelhado, rolando no chão e me levantando segundo o ritmo daquelas ondas imensas, durante várias horas limpei o chão de metal todo oleoso da sala de máquinas, lavando até os rastros do meu vômito.

Meus atores é que me ensinaram a ser diretor. A partir de seus corpos e graças às suas dificuldades e insuficiências, à sua tenacidade e à diversidade de soluções que encontravam, aprendi - na prática - o artesanato teatral, com seus esoterismos e voos pindáricos. O ritmo de crescimento era diferente para cada um, assim como o tipo de relação que eu tinha com eles. Não havia um método que funcionasse para todo mundo.

Por trás do meu rigor, nutri pelos meus atores um amor especial que misturava gratidão e ternura. Foi por isso que lutei para que não me abandonassem. Para ir ao encontro de suas necessidades e individualismos artísticos, precisei mudar constantemente os meus hábitos, as dinâmicas internas do nosso grupo, a estrutura organizacional e operacional do teatro. Essas mudanças geravam incerteza e excitação em todos nós: pareciam um novo início que revitalizava a repetitividade do ofício. Esses “terremotos”, esses esforços para acabar com a rotina da nossa microcultura, são um dos fatores da longevidade do Odin Teatret. Mesmo depois de desenvolverem suas próprias asas, alguns atores continuaram lá; e outros, que saíram em busca de novos horizontes, sentiram a necessidade de voltar ao “laboratório” que tínhamos construído juntos.

Se o teatro é uma ilha flutuante, os companheiros que escolhi - que formei e que me formaram - determinaram sua duração e seu modo de flutuar. No fundo, trata-se de vínculos afetivos. Será que esse amor especial, que mistura gratidão e ternura, é um método que pode ser ensinado?

A Cidade do Teatro

Cada geração entra no teatro como se entrasse em uma cidade construída por outras pessoas: bairros, subúrbios, áreas de pedestres e mãos únicas, regras de trânsito, estacionamentos ou zonas onde é proibido estacionar, edifícios, monumentos e parques.

Dentro desse urbanismo, vigoram regras, convenções, modos de se comportar e atalhos que permitem que os recém-chegados se movimentem e vivam. A cidade do teatro tem uma cultura material que lhe é própria, uma densa rede de caminhos operacionais, econômicos e técnicos. Esses caminhos determinam como esses recém-chegados irão habitá-la: com indiferença ou paixão; com um sentimento de exclusão; vivendo tranquilamente na periferia; colaborando ou se rebelando; recusando-a ou fundando-a de novo.

Esses caminhos são métodos: são, literalmente, ruas que levam para outro lugar. São inúmeros métodos, e cada um é diferente. Na cidade do teatro, há ruas desonradas e cheias de gente, assim como veredas honestas e entediantes; há jovens avenidas sobre as quais as pessoas ainda não formaram uma opinião, e ruelas antigas que parecem ricas herdeiras com as quais podemos nos casar sem saber que podem ser assassinas. Há vias que estão sempre bem limpas, bulevares aristocráticos, grandes estradas operárias e becos cheios de artesãos trabalhando. Esses caminhos - esses métodos - têm sempre origem num ambiente que condiciona o modo de pensar e de agir de quem os percorre. Há ruas com má reputação onde somos obrigados a morar, e ruas onde sonhamos construir nossa casa.

Como será que podemos nos orientar na cidade do teatro, que é o resultado de histórias distantes que não nos pertencem? Como transformá-lo num urbanismo que seja parte da nossa própria história e das nossas necessidades mais profundas?

Só no final da nossa vida vamos poder saber se percorremos o caminho certo - o método irrepetível que só pertence a nós mesmos. Só então seremos capazes de refletir sobre a casa que construímos, se é um teatro feito de tijolos cuja casca vazia vai sobreviver à nossa morte, ou se é um ambiente-em-vida com mulheres e homens donos de um perfil único e de um elã vital particular que vai se apagar quando eles se forem.

Nessa cidade - que podemos aceitar, combater ou ignorar - existe um valor que não pode ser explicado através das palavras. Ele aflora, tácito, no final da nossa vida, quando observamos por que, onde e como usamos o artesanato teatral, por anos a fio, numa sucessão de mudanças estimuladas pela mesma obstinação e pela coerência. Quando começamos, muita gente achava que estávamos entrando num beco sem saída. Ainda hoje é assim. Mas outras pessoas viam que esse beco tinha o chamado de uma via principal.

Isso foi o que aconteceu em 1964, quando quatro jovens noruegueses, rejeitados pela Escola de Teatro de Oslo, se juntaram ao redor de um emigrante italiano que queria virar diretor. Não fundamos o Odin Teatret como oposição à tradição existente e à sua aprendizagem formal, e sim porque não conseguimos ser admitidos. Não tínhamos ideias originais nem nutríamos ambições experimentais. Com certeza não éramos revolucionários. Queríamos fazer teatro a qualquer custo, ainda que fosse pagando do nosso próprio bolso. O teatro era nossa jangada. Sem termos como escapar, nos deixamos levar pela temeridade, ou impertinência: queríamos adivinhar nosso caminho. Nós o chamamos de “laboratório”. Foi a temeridade de um momento, mas ela se tornou uma constante. Eu diria que se transformou num instinto. É possível transmitir o instinto da temeridade?

Corpos que Ardem

No início dos anos 1960, a topografia do teatro era simples: de um lado, edifícios teatrais onde a arquitetura e as relações entre atores e espectadores eram as mesmas há séculos; do outro, textos de autores interpretados por atores que se formaram em escolas teatrais.

Hoje, depois que as coisas deram certo, muita gente admira o caminho que percorremos. Julga os resultados e se esquece de como tudo começou. Aqueles jovens sem experiência e seu diretor, que nem teto sobre a cabeça tinha, não possuíam nem originalidade nem talento - talvez tivessem uma boa dose de chutzpah, presunção e arrogância - quando resolveram se preparar para o teatro com nada mais que um punhado de atividades físicas. De que modo um futuro ator poderia usar essa mistura de balé clássico, acrobacia, posições de yoga e exercícios de “plástica” do então desconhecido teatro de Grotowski, ou os arriscados “duelos” com bastões que tínhamos inventado, ou até mesmo os études inspirados em Stanislávski, como “verter chá numa xícara e depois bebê-lo sem usar uma xícara e uma chaleira”? Todas as pessoas - inclusive eu - ficavam perplexas e se perguntavam como era possível se tornar um intérprete sensível de Sófocles ou Tchécov repetindo esses exercícios durante horas e horas, segmentando-os em fases e usando ritmos diferentes.

Eu impus disciplina e silêncio absolutos. E, no entanto, cada ator era um líder, responsável por orientar os colegas em uma dessas atividades. Tínhamos o mesmo nível de insegurança, ingenuidade e falta de prática. Tínhamos decidido aprender sozinhos e já queríamos ensinar, pretendendo que nosso teatro de principiantes fosse um “laboratório”.

Nosso autodidatismo tinha a forma de um diálogo com mestres distantes ou mortos. Após alguns anos, ficou claro que aqueles silenciosos e intermináveis exercícios eram um modo de pensar com o corpo todo, de se livrar dos reflexos utilitaristas da nossa mente, de combater os movimentos e os clichês da nossa “espontaneidade” privada. Para o ator, o treinamento era a pista de onde levantar voo, transportado pelo próprio vento interior.

Para mim, foi importante descobrir que o treinamento não é somente uma série de exercícios. Isso pode até funcionar nos primeiros anos. Depois se torna um nomadismo criativo do ator, uma bricolagem pessoal, acompanhada pela surpresa e pela capacidade de fazer um ‘organismo vivente’ crescer. No início, pode ser um organismo simples: uma pequena cena. Depois, esse organismo vai se tornando cada vez mais complexo, com relações, objetos, textos e cantos que o ator estrutura individualmente como demonstrações de trabalho, espetáculos, iniciativas pedagógicas ou projetos artísticos.

No Odin Teatret, o treinamento foi um modo para se integrar na específica cultura do grupo: com seu histórico de atores, provenientes de vários países e sem uma língua comum entre si, e com os espectadores. Mas o treinamento também representou um tempo de liberdade para cada ator, acompanhando-os ao longo dos anos independentemente das prioridades produtivas do teatro e dos interesses do diretor.

Eu reparava que esse caminho de trabalho, cada vez mais pessoal, fazia o ator “voar”. Via seus corpos se transfigurarem durante os ensaios e os espetáculos, iluminando zonas obscuras da minha vida e das minhas obsessões. Uma dessas obsessões vinha da minha condição de emigrante: como viver sem desonrar a própria dignidade e a dignidade dos outros. Outra obsessão era a História, a geografia que nos circunda e onde se encontram Guernica e Auschwitz, Hiroshima e Aleppo, a discriminação e o abuso em relação aos mais fracos.

No final dos anos 1960, meus olhos não focavam apenas na transformação dos meus atores. Enquanto ensaiava o espetáculo Ferai, eu pensava no corpo em chamas de Jan Palach, aquele estudante universitário checo que, num canto da Praça Venceslau de Praga, tinha ateado fogo em si mesmo para resistir à invasão soviética e à “desmoralização” de seus compatriotas. “Mensagens enviadas de uma fogueira”, escreveu Artaud quando falava do ator. É a ambição das pessoas do teatro e a impiedosa realidade da História. Arder: será um modo de resistir e manter a própria dignidade, no teatro e na própria época? Será que esse instinto pode ser transmitido?

Ir Longe

Todo grupo de teatro formado após o encontro de pessoas motivadas produz um veneno: a repetição involuntária dos próprios conhecimentos e das próprias experiências. Essa é uma das razões de sua desagregação após alguns anos.

Aprender a aprender - descobrir algo que nunca vimos antes seguindo caminhos aparentemente áridos e inúteis: desvios longos e supérfluos; a alternância de atividades desenfreadas e de impasse; um excesso de energias desperdiçadas com tarefas simples ou infantis; ir contra a natureza, aceitando que o problema é mais importante que a solução. Como diretor, esse foi meu antídoto contra o veneno que destrói os grupos de teatro.

O acúmulo de conhecimento vira uma fortaleza que permite enfrentar ataques e adversidades. Mas é também uma prisão da qual não se consegue escapar. O que sabemos vem antes das nossas decisões. Então usamos todas as nossas forças dando nós em lençóis e entrelaçando cordas ou cabos para, à noite, lançá-los fora de uma janela tentando fugir da fortaleza na qual nossa experiência nos aprisionou.

Aprender a desaprender: é o prazer da velhice. Viajamos para mudar nosso modo de ver e pensar, e não para mudar de lugar. Só vamos para longe quando ignoramos aonde estamos indo. É possível ensinar essa ignorância?

Cancelar

Gosto de fazer um espetáculo crescer como se ele fosse uma paisagem habitada por fantasmas sisudos e brincalhões que atravessaram a morte e as paixões extremas. Gosto de alavancar um processo que gere crescimento selvagem, acúmulo, abundância de elementos contrastantes, transbordamentos, digressões, trilhas que se perdem no meio da mata. O resultado é uma paisagem viva que fala com vozes dissonantes e cuja gênese está na biografia, nas fantasias e no que os meus atores sabem fazer. Depois, eu gosto de cancelá-la. Fico imaginando os subterfúgios mais complicados para desencadear uma tempestade que, após várias ondas gigantes, desmantele a paisagem e me faça ver seus fantasmas - portadores de mensagens pessoais para alguns espectadores, eu sou um deles. Durante os ensaios, na fúria da tempestade, percebo sua aparição. Então sinto uma intensa felicidade, igual à que sentimos quando nos damos conta de estarmos apaixonados.

Os detalhes, assim como as palavras, possuem um significado literal, metafórico ou arcano; mas também carregam uma fisicidade estética, um poder de sedução, una natureza voluptuosa. Os fantasmas que habitam os espetáculos do Odin Teatret são feitos com a substância dos detalhes - microdinamismos, acenos, transições, pausas, silêncios, estranhas modulações da voz, ritmos ambíguos, acelerações repentinas. Os espetáculos nascem de uma vitalidade centrípeta indecifrável que abraça e cicatriza a paisagem despedaçada que os atores e eu tínhamos cultivado com tanto cuidado e por tanto tempo. Cada novo espetáculo avança cuidadosamente, reagindo ao espetáculo anterior. Uma vingança entre irmãos e irmãs. O mesmo sangue, a mesma genealogia, um interminável combate entre Etéocles e Polinices, entre Antígona e Hismene. Há temas que voltam sempre, como se fossem fantasmas. Não é por acaso que a peça Espectros de Ibsen, em norueguês, se chama Gjengangere - os que voltam. Assim como em francês - Les revenants.

Isso tudo é um “saber fazer” impregnado de superstições pessoais. Fazer teatro é uma escolha, e o sentido profundo dessa escolha é diferente para cada um de nós. E nem pode ser comunicado. Essa incomunicabilidade decide as nossas visões, os procedimentos técnicos, as relações, o modo de dirigir um teatro, as satisfações e as categorias estéticas. Nossa ziguezagueante prática cotidiana consolida o respeito recíproco para essa incomunicabilidade. É possível ensinar a incomunicabilidade?

Laboratório

Desde a sua criação em 1964, o Nordisk Teaterlaboratorium/Odin Teatret desenvolveu três campos de ação: artístico, pedagógico e de pesquisa. As diferentes atividades se desenvolviam dentro de áreas separadas, cada uma com sua própria denominação. O Odin Teatret se ocupava de espetáculos e pedagogia; a ISTA (International School of Theatre Anthropology) se concentrava na pesquisa; havia a Universidade do Teatro Eurasiano, o Centre for Theatre Laboratory Studies, os Arquivos do Odin Teatret; o Odin Teatret Film; e a editora do Odin Teatret. É óbvio que todas essas áreas interagiam entre si durante o desenvolvimento das atividades propostas (Barba; Savarese, 2012BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: um dicionário de antropologia teatral. São Paulo: É Realizações, 2012.).

No âmbito desses campos de ação, nasceram outros projetos e iniciativas: estudos sobre o gênero, com o Magdalena Project, o Transit Festival e a revista The Open Page; simpósios; publicações sobre a transmissão de técnicas incorporadas e sobre o “conhecimento tácito”; laboratórios interculturais de práticas atorais; e, principalmente, um leque de atividades dirigidas à comunidade, como a Festuge - a Semana de Festa de Holstebro -, a mais importante de todas. São atividades nas quais a criação artística, a prática pedagógica e a consciência social se entrelaçam com a pesquisa. Essa zona fértil e intermediária corresponde ao que, nas ciências sociais, é conhecido como pesquisa aplicada.

No teatro, a pesquisa pura corresponde à busca de princípios de base. Uma das abordagens consiste em retornarmos às origens, investigando a fundo os primeiros dias de aprendizagem e nos fazendo perguntas ingênuas para nos obrigarmos a re-ver nossa consciência de um outro ponto de vista.

Tanto a pesquisa pura quanto a aplicada estão relacionadas ao crescimento de um ambiente onde seja possível experimentar a eficácia dos instrumentos usados na prática. O ambiente de artistas e estudiosos que cresceu ao redor do Odin Teatret compartilha curiosidade e empenho. A combinação de teoria e história, de prática e reflexão criativa é essencial para o desenvolvimento de uma cultura do teatro, e é parte da bagagem metodológica dessa ciência pragmática - como foi definido por Jerzy Grotowski - que pode ser aplicada em nosso ofício.

É assim que eu poderia descrever as inúmeras atividades que nosso laboratório desenvolveu com o mesmo núcleo de atores por mais de cinquenta anos. As palavras correspondem aos fatos. Mas mesmo assim, quando as leio, fico incomodado. Sou como um mapa que indica o caminho que ainda não existe e onde os resultados parecem garantidos antes mesmo que se comece a caminhar. Pior ainda: parece uma receita. No entanto, o teatro não é nem um remédio nem uma abstração, assim como não é nem metáfora nem poesia. O teatro é uma técnica para mostrar a Vida. Atores e espectadores devem vê-la com os olhos dos seus sentidos e da sua memória.

Meu ofício me lembra o trabalho daquele artesão que, no Ceilão de antigamente, pintava os olhos das estátuas do Buda que deveria ser colocado nos templos. Era o último detalhe que devia ser finalizado. Os olhos eram o estopim que transformava a estátua num ardente objeto sagrado. Tinham que ser pintados quando a noite clareava: o príncipe Gautama havia recebido a Iluminação e se tornado Buda às cinco horas da manhã. O artesão, com vestimentas suntuosas, todo enfeitado com joias e com uma espada na cintura, observava a face monstruosa da estátua sem olhos, sem existência, sem luz interior. Sua tarefa era dar-lhe Presença, Vida, Verdade.

Ele subia uma escada diante da estátua acompanhado por um ajudante que levava os pincéis, as tintas e um espelho de metal. O artesão molhava o pincel numa cor enquanto dava as costas para a estátua como se quisesse evitá-la. O ajudante, que ficava um degrau abaixo, levantava o espelho. O artesão elevava o pincel acima do seu ombro esquerdo e pintava primeiro um olho, depois o outro. Ele nunca olhava para a cara da estátua diretamente, deixava-se conduzir pelo reflexo do espelho. Somente o espelho recebia a imagem direta do olhar no momento em que estava sendo criado. Nenhum olho humano podia cruzar com o olhar do Buda quando ele recebia a Iluminação e passava a ver. A tarefa podia levar várias horas ou um minuto. Em alguns casos, meses ou anos.

Penso nos meus atores como se fossem artesãos que pintam os olhos dos personagens da ficção teatral. Eles despertam sacralidade, dignidade e beleza, que são algumas das qualidades sublimes da vida. Eu os observo enquanto pintam, concentrando-se no espelho que eu coloco diante de seus olhos, e que lhes mostra apenas uma parte da face cega e sem feições de um fantasma que chega de longe - um personagem. Eles precisaram de meio século para incorporar esse “saber fazer” - ou temeridade - e deram a essa tarefa um sentido profundo, diferente para cada um, mas que nos liga profundamente e que compartilhamos com alguns happy few.

Esse foi meu laboratório: pintar olhos, para que eu possa ver e possa fazer os outros verem. Ávido para arrancar os segredos dos pintores de olhos.

Não sei de onde vem o instinto que me leva a agir assim. Do mesmo modo, para mim, continua sendo um mistério o instinto que leva meus atores a me seguirem. Será isso a santidade da ficção? É possível transmitir esses instintos?

Nos meus sentidos e na minha cabeça, o tempo atenuou fronteiras, categorias e certezas. Nesta paisagem onde me encontro, ainda gosto de me abaixar e buscar rastros que escaparam dos meus interesses e das minhas necessidades. Explorei essa paisagem por mais de meio século, e o tempo cobriu-a com uma areia bem fininha. Rodeado por meus atores durante os ensaios de um novo espetáculo - o único e verdadeiro laboratório -, reconheço sob meus pés a paisagem coberta pela areia: um deserto sem fim. De uma rachadura oculta, pode surgir um vento repentino que levanta a areia e me deixa cego. Vejo tudo vermelho: o fogo interior dos atores transforma a areia, a cancela e a remodela como vidro. Através de sua transparência, num redemoinho de ficção, vejo a dança dos contrários. É a Vida me ninando em seus braços.

Référence

  • BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. L’énergie qui danse: un dictionnaire d’anthropologie théâtrale. Paris: L’Entretemps, 2008.
  • BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: um dicionário de antropologia teatral. São Paulo: É Realizações, 2012.
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    Discurso em ocasião do recebimento do título de doutor honoris causa concedido pela Academia Janacek de Música e de Artes Cênicas de Brno (República Checa), 12 de março de 2017.
  • Este texto inédito, traduzido do italiano por Patricia Furtado de Mendonça, também se encontra publicado em francês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    2019
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