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Artificialidade Intencional: um princípio para reposicionar o corpo

L’Artificialité Intentionnelle: un principe pour repositionner le corps

Resumo:

O artigo desenvolve um exercício de pensamento sobre o princípio da artificialidade intencional depreendido da obra de Edward Gordon Craig com o objetivo de fazer mover o corpo na formação docente. As noções foucaultianas de corpo dócil, corpo utópico e heterotopia são postas em operação em lateralidade com as propostas craiguianas da Übermarionnette e do Projeto Scene, com intuito de pensar o corpo artificial da marionete em relação ao corpo orgânico das estudantes de Pedagogia. Conclui-se que há duas vias coexistentes e conflitivas que operam nos processos de subjetivação, uma relacionada à ordem disciplinar e outra que aciona o corpo para a criação.

Palavras-chave:
Artificialidade Intencional; Edward Gordon Craig; Formação Docente; Teatro de Formas Animadas; Michel Foucault

Résumé :

L’article développe un exercice de réflexion sur le principe de l’artificialité intentionnelle du travail d’Edward Gordon Craig afin de déplacer le corps dans la formation des enseignants. Les notions foucaltiennes de corps docile, de corps utopique et d’hétérotopie sont mises en œuvre en latéralité avec les propositions craiguianes du Über-marionnette et du Projet Scène pour penser le corps artificiel de la marionnette par rapport au corps organique des étudiants en pédagogie. On en conclut qu’il existe deux manières coexistantes et contradictoires de fonctionner dans les processus de subjectivation, l’une liée à l’ordre disciplinaire et l’autre qui déclenche le corps pour la création.

Mots-clés:
Artificialité Intentionnelle; Edward Gordon Craig; Formation d’Enseignants Théâtre de Formes Animées; Michel Foucault

Abstract:

The article develops a reflection on Edward Gordon Craig’s principle of intentional artificiality in order to move the body in the teacher training. The Foucauldian notions of docile body, utopian body and heterotopia are put in operation in laterality with Craigian proposals of the Über-marionnette and the Scene Project, in order to think the puppet's artificial body in relation to the organic body of the Pedagogy undergraduates. It is concluded that there are two coexisting and conflicting ways that operate in the subjectivation processes, one related to the disciplinary order and another that sets the body on for creation.

Keywords:
Intentional Artificiality; Edward Gordon Craig; Teacher Training; Theater of Animated Forms; Michel Foucault

Do Corpo Inerte ao Movimento

Este artigo aprofunda um exercício de pensamento que fez parte do estudo de doutorado1 1 Tese desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em cotutela com a Université Paris Nanterre (Della Costa, 2018). intitulado O teatro de formas animadas na formação de professores: uma proposta pedagógica a partir da Übermarionnettte2 2 Neste trabalho é feita a opção de unir o prefixo alemão Über com o vocábulo marionnette em francês. As grafias encontradas são as mais diversas como Über-marionette ou Sur-marionnette. Como referencio a tese de doutorado na qual a ideia deste texto se origina (Della Costa, 2018), utilizo a mesma forma apresentada no título dessa tese posto no primeiro parágrafo. Também me refiro a esse termo no gênero feminino, tendo em vista que o contexto no qual a pesquisa se deu trata de um contingente maioritário de mulheres. e considera o princípio da artificialidade intencional, depreendido da obra do encenador inglês do início do século XX, Edward Gordon Craig, como elemento para fazer mover o corpo. Tal exercício é desenvolvido no contexto da formação docente em cursos de graduação em Pedagogia do Sul do Brasil, nos quais foram produzidos os dados que dão corpo a este estudo.

A noção de artificialidade intencional é tomada neste artigo a partir da importância que a marionete possui na obra craiguiana. Tal questão está atrelada ao fato de que, para desenvolver a sua proposta de renovação do teatro no início do século XX, Craig vale-se da concretude dos mais variados suportes materiais - além do teatro propriamente dito - como maquetes, marionetes, figuras de madeira, desenhos, escritos, entre outros. Tais suportes são instrumentos que Craig utiliza para acionar o seu pensamento, configurando-se em um procedimento de criação que considera o aspecto inerte da matéria em relação ao movimento que possui a potência de animá-la. A artificialidade está presentificada no gesto-marionete, externo ao corpo orgânico, e se constitui na força promotora de movimento. Assim, o artifício de deslocar a matéria inerte instiga o corpo a mover-se e reposicionar-se. Tendo isso em vista, o laboratório teatral de Craig instaura uma via de mão dupla do controle da matéria ao caos da criação e vice-versa, em um movimento incessante. Tal procedimento coloca-se contrário à ideia de representação e instaura um processo de performação, no qual corpos impactam outros corpos. Neste estudo, interessa o impacto do corpo artificial da marionete em relação ao corpo das3 3 Igualmente faz-se aqui a opção por tratar o plural no feminino em consonância com a informação da nota anterior. estudantes de pedagogia.

A título de introdução, o esforço que realizo aqui consiste em, primeiro, apresentar a possibilidade de uma lateralidade ético-política entre Michel Foucault e Edward Gordon Craig; segundo, apresentar o processo no qual foi depreendido o princípio da artificialidade intencional da obra craiguiana; terceiro, a operacionalização de tal princípio no contexto da formação docente e; quarto, observar os possíveis efeitos dessa operacionalização.

Tomo como ponto de partida duas inquietações que emergiram em oito anos de trabalho (2008 a 2015) como professora de teatro, em um curso de Licenciatura em Pedagogia. A primeira refere-se ao desafio de mobilizar os corpos das estudantes para atividades que demandassem movimento ou que rompessem com a cadência cotidiana de uma sala de aula universitária tradicional. Por tradicional me refiro ao formato no qual, enquanto o professor explica o conteúdo, os estudantes permanecem sentados. A esses corpos, quase que aderidos às cadeiras, dei o nome de corpo-inerte. Esse corpo-inerte pode ser pensado como uma imagem daquilo que impossibilita a criação em decorrência de uma forma de posicionar o corpo. A segunda inquietação relaciona-se com a primeira, uma vez que, nas atividades com teatro de formas animadas, era perceptível que esses mesmos corpos promoviam em si próprios um erigir de coluna, adotando uma postura mais disponível à criação. Destarte, percebi que a materialidade do corpo da marionete acionava o corpo-inerte das estudantes, fazendo-os saírem do estado de inércia.

Entendo que, ainda que tenha sido experimentado no contexto de formação docente, o princípio da artificialidade intencional pode ser pensado também no âmbito de formação das artes da cena no sentido de promover deslocamentos e “[...] fazer das artes estratégias, mecanismos, dispositivos capazes de transformar seus partícipes” (Icle, 2012ICLE, Gilberto. O que é Pedagogia da Arte? In: ICLE, Gilberto (Org.). Pedagogia da Arte Entre-Lugares da Escola. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012. P. 11-22., p. 21). A atenção concentrada que dirijo à relação do corpo inanimado da marionete com os corpos das estudantes de Pedagogia auxilia a pensar a relação entre educação, corporeidade e o teatro. Isso porque o princípio depreendido da obra craiguiana mobiliza não só o corpo em relação à concretude da matéria, que é a marionete ou o objeto, como também implica no acionamento do pensamento nesse processo.

Ao buscar o aprofundamento sobre o princípio da artificialidade intencional a partir de Craig, com o intuito de transpô-lo para o contexto de formação docente, vi-me envolvida com um assunto filosófico dos mais complexos sobre o ser e estar no mundo e os processos humanos de lhe conferir sentido. Isso porque se trata de uma questão que percorre distintas teorias sobre a relação sujeito/objeto (Piaget, Wallon, Vigotski, Simondon, Merleau-Ponty, Gumbrecht entre outros); a relação entre artificial/natural (Aristóteles, Hobbes, Haraway entre outros); conjecturas sobre o corpo como objeto de estudo e as significativas metamorfoses de pensamento sobre o tema a partir da modernidade (Descartes, Maine de Biran, Kant, Husserl, Bergson, Nietzsche, Foucault, Deleuze, Vigarello, Le Breton, entre outros); perpassando inclusive o campo da psicanálise em relação à sanidade e a “[...] elaboração do conceito de imagem corporal” (Amaral, 2007AMARAL, Ana Maria. Teatro de animação. Cotia: Ateliê Editorial, 2007., p. 11).

Dentre essas possibilidades, tomo como inspiração o pensamento foucaultiano, por considerar profícuas as ferramentas que esse autor nos oferece para pensar de outros modos e não tomar o que está dado como verdade unívoca. Neste texto, busco pensar de outros modos o corpo na formação docente em Pedagogia a partir do princípio da artificialidade intencional. Uma vez que me ocupo em pensar o reposicionamento do corpo por meio do princípio da artificialidade intencional, concentro a argumentação em torno da corporeidade em Foucault e naquilo que pode ser considerado como o pensamento do corpo (Sforzini, 2014SFORZINI, Ariana. Michel Foucault, une pensé du corps. Paris: Presses Universitaires de France, 2014.). As noções de corpo dócil, corpo utópico e heterotopia são aqui postas em destaque e em relação com a obra craiguiana.

A primeira noção, o corpo dócil, é da ordem da disciplina. Foucault (1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento e prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. ) chama de disciplina todas as técnicas que docilizam o corpo e que se configuram como uma forma moderna de poder, elaboradas e difundidas a partir do século XVII. Dentre essas técnicas é possível listar a demarcação e um cercamento do espaço (como o da escola e do hospital), no qual é determinado o que está dentro ou fora; o quadriculamento no qual o espaço disciplinar tende a se dividir para promover a localização imediata de seus indivíduos; regulariza localizações funcionais no sentido de atender à necessidade de vigiar ao mesmo tempo que cria um espaço útil (o que promove a regulamentação das idas e vindas dos sujeitos a cada área); e distribui os corpos em fila, individualizando-os e dando a cada um uma posição.

Tais mecanismos são reguladores do corpo, isto é, são “[...] métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (Foucault, 1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento e prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. , p. 118). Esses procedimentos evidenciam o corpo como objeto de estudo, bem como alvo de poder. Tal fato se dá porque a disciplina submete o corpo, tornando-o exercitado ao mesmo tempo que dissocia dele o poder. A esse corpo dividido, assujeitado e disciplinado, ao qual “[...] se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil” (1987, p. 117), Foucault deu o nome de corpo dócil.

Os corpos da professora e do estudante são corpos úteis, constituídos e constituintes da máquina de ensinar. Tal máquina se organiza no espaço escolar, que, por sua vez, sistematiza o tempo em períodos; localiza os sujeitos espacialmente em salas de aula com as classes dispostas em fileiras, de forma a promover o trabalho simultâneo de todos ao mesmo tempo que também torna possível o controle de cada um (Foucault, 1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento e prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. ). Esses corpos úteis, docilizados, submetidos e manipuláveis nos fornecem a imagem caricata de uma marionete no tecido social. São corpos-máquinas, alvos do poder, objetificados e programados tecno-politicamente para atuarem de uma única maneira nas escolas de acordo com as técnicas anteriormente expostas (Sforzini, 2014SFORZINI, Ariana. Michel Foucault, une pensé du corps. Paris: Presses Universitaires de France, 2014.).

A segunda noção, o corpo utópico, possui o sentido de apagamento do corpo ao criar um “[...] lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde eu teria um corpo sem corpo [...]; precisamente na utopia de um corpo incorporal” (Foucault, 2013FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico, As Heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013., p. 08). Essa utopia que apaga o corpo teria duas formas. A primeira, estaria nos sólidos corpos de pedra das antigas estátuas micênicas que encerram a ideia de imobilidade. A segunda, estaria na cultura ocidental configurada no grande mito da alma: a alma é pura e tem brilho eterno, enquanto o corpo é lamacento e virá a ficar putrefato. Essas ideias primeiras apagam o corpo. No entanto, Foucault entende que também o corpo resiste e não tende a se apagar, pois possui “[...] lugares sem lugar e lugares mais profundos” (Foucault, 2013, p. 10). Desse modo, as utopias nascem do próprio corpo e a ele retornam. Artifícios como máscara e tatuagem fazem com que o corpo seja “[...] arrancado de seu próprio espaço e projetado em um outro espaço” (Foucault, 2013, p. 12).

Dessa forma, entendo que as artes da marionete procedem em relação ao corpo como um artifício que instala outras possibilidades de corpo, que o relaciona não com os espaços desse mundo, mas com espaços do imaginário. Nesse exercício, demoramos a perceber “[...] que temos um corpo, que este corpo tem uma forma, que esta forma tem um contorno, que no contorno há uma espessura, um peso, em suma, que o corpo ocupa um lugar” (Foucault, 2013FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico, As Heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013., p. 15).

A terceira noção, heterotopia, é concebida por Foucault (2013FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico, As Heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013., p. 21) como “[...] espaços absolutamente outros” e possui intrínseca relação com o teatro e, por conseguinte, com o teatro de formas animadas. A heterotopia “[...] tem como regra justapor em um lugar real vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis. O teatro é uma heterotopia, perfaz no retângulo da cena toda uma série de lugares estranhos” (Foucault, 2013, p. 24). Para o autor, o que a heterotopia tem de mais essencial é que ela contesta todos os outros espaços, ou seja, além de carregar consigo a presença de outros espaços, ela evidencia o que os espaços reverberam uns nos outros.

O teatro de formas animadas, por sua vez, também é uma heterotopia na qual “[...] o manipular da marionete deve dominar dois espaços contíguos em simultaneidade: um espaço real que é aquele no qual se pratica a manipulação e um espaço virtual que é aquele onde as marionetes e suas ações estão apresentadas” (Lefort, 2007LEFORT, Stéphanie. Marionnettes: le corps à l’ouvrage. Bernin: À La Croisée, 2007., p. 83, tradução minha). O primeiro espaço é restritivo, sujeito a diversas leis e normas, enquanto no segundo espaço tudo é possível, até mesmo dissolver a lei da gravidade. O espaço tradicional do castelet4 4 Estrutura usualmente chamada de castello em italiano e castelet em francês, na qual o marionetista fica oculto. Mas “[...] também recebem outras denominações como, por exemplo, biombo, castelete, retablo, toldo, tendinha, barraca, tapadeira” (Balardim, 2004, p. 71), totem e empanada. é representativo dessa relação por plasmar em escala menor o mesmo potencial do retângulo do palco do teatro. O teatro de formas animadas por si possui “[...] a dualidade do visível e do invisível, o animado e o inanimado, o efeito e a causa, o confronto do corpo e do objeto” (Lefort, 2007, p. 83, tradução minha).

É com relação às duas últimas noções que percebo que há uma lateralidade entre as proposições de Foucault e de Craig. Os pontos que se conectam são a noção de corpo utópico com a da Übermarionnette e de heterotopia com o Projeto Scene.

Com relação à primeira proposta, Craig problematiza o trabalho do ator no teatro moderno e explica que, em sua concepção, o humano e tudo o que lhe caracteriza como tal não seria o material adequado ao teatro, pois está sujeito às emoções que afetam corpo, rosto e voz do ator, destruindo a arte, pois tudo o que o ser humano poderia oferecer seria uma “[...] série de confissões acidentais” (Craig, 2016CRAIG, Edward Gordon. O ator e o Über-marionette. In: RIBEIRO, Almir. Gordon Craig, a pedagogia do Über-marionette. São Paulo: Giostri, 2016. P. 209-234., p. 211). Dessa forma, a Übermarionnette se configura como uma proposta que retira o ator de cena para que esse possa ser substituído não por uma marionete, mas por um “[...] boneco superior” (Craig, 2017CRAIG, Edward Gordon. Rumo a um novo teatro & Cena. Tradução: Luiz Fernando Ramos. São Paulo: Perspectiva, 2017., p. 93).

A Übermarionnette é uma proposta que não chegou a ser concretizada por Craig. Tampouco há um consenso acadêmico que engendre um conceito definido para essa proposta (Le Bœuf, 2010LE BOEUF, Patrick. On the Nature of Edward Gordon Craig ’s Über-marionette. New Theatre Quarterly, Cambridge, Cambridge University Press, p. 102-114, 2010.). Em termos mais objetivos, o corpo da marionete e o corpo do ator apresentam desafios técnicos diferentes. A escolha entre considerar o “[...] ator vivo ou marionete - atormenta os praticantes de teatro” (Leabhart, 2017LEABHART, Thomas. Edward Gordon Craig ’s übermarionette and Étienne Decroux’s ‘Actor made of wood’. Mime Journal, Claremont, v. 26, p. 34-42, Feb. 2017. Disponível em: <Disponível em: http://scholarship.claremont.edu/cgi/viewcontent.cgi ?article=1048&context=mimejournal >. Acesso em: 15 set. 2017.
http://scholarship.claremont.edu/cgi/vie...
, p. 35, tradução minha) e para tal questão parece haver ao menos dois grupos de argumentação sobre o assunto. O primeiro tende ao aspecto metafórico, considerando que o próprio Craig “[...] revisou a radicalidade de seu primeiro ensaio quanto a pretender eliminar o ator de carne e osso do teatro” (Ramos, 2017RAMOS, Luiz Fernando. A relação entre atores e screens no teatro de Gordon Craig: um legado à contemporaneidade. In: TAVARES, Enéias Farias; BIANCALANA, Gisela Reis; MAGNO, Mariane (Org.). Discursos do Corpo na Arte, v. II. 1. ed. Santa Maria: Editora UFSM, 2017. P. 115-142., p. 129) e aponta para o trabalho sobre o controle do ator sobre seu corpo e emoções. O segundo argumento tende a favorecer a ideia de que a Übermarionnette possuía materialidade, ainda que não plenamente realizada, mas pertencente a um espaço mais concreto do que somente uma sugestão imagética. Nos seus escritos, como nos cadernos Uber-Marions5 5 Acervo da Bibliotéque National de France. , há algumas pistas, ainda que dispersas e indefinidas, que favorecem a ideia de que ela tinha uma certa concretude, ou mesmo que trata da dificuldade em concretizá-la. Craig não chega a explicitar ou retomar mais claramente o conceito Übermarionnette ou o procedimento técnico para sua concretização.

A indefinição que paira sobre essa proposta transforma-se na sua potência na medida em que instiga o pensamento sobre ao que a ela se relaciona. É possível constatar que a Übermarionnette não é, de fato, um elemento isolado, mas uma noção que congrega o todo maior da obra de Craig e isso fica marcadamente evidenciado no Projeto Scene. Tal projeto idealizava a cena cinética, na qual os painéis destinados ao cenário se movimentariam. Mas tal intento não encontrou subsídios técnicos na época, restando também a sua potência em instigar o imaginário.

O sistema craiguiano articula o ator inseparavelmente da materialidade cênica, ou seja, do próprio espaço cênico que é apresentado no Projeto Scene. Ao pensar o espaço como matéria em movimento e não um espaço fixo para o cenário, ocorre um deslocamento do lugar do ator: antes localizado no centro das atenções (como estrela máxima do espetáculo) para tornar-se apenas outro elemento cênico, compondo com os demais volumes do espaço. Aqui reside o princípio da animação relacionada à materialidade da marionete. Isto é, a marionete é importante para o pensamento craiguiano nas mais variadas dimensões: da “[...] ‘nobre artificialidade’ [...] das imagens de pedras dos antigos templos” (Craig, 2016CRAIG, Edward Gordon. O ator e o Über-marionette. In: RIBEIRO, Almir. Gordon Craig, a pedagogia do Über-marionette. São Paulo: Giostri, 2016. P. 209-234., p. 226) (tal qual Foucault pensa como procedimento de apagamento do corpo relacionado à noção de corpo utópico) e do boneco de luva da tradição burattini originária na Itália, até o pensamento mais complexo sobre a cena cinética e tudo o que a compõe.

Assim, ao “despertar as telas de um sono de séculos como meros panos de fundo” (Ramos, 2017RAMOS, Luiz Fernando. A relação entre atores e screens no teatro de Gordon Craig: um legado à contemporaneidade. In: TAVARES, Enéias Farias; BIANCALANA, Gisela Reis; MAGNO, Mariane (Org.). Discursos do Corpo na Arte, v. II. 1. ed. Santa Maria: Editora UFSM, 2017. P. 115-142., p. 120), Craig pensa a figura humana re-proposta em relação ao tempo e espaço, transformando-os em operadores da matéria cênica, ou na força que faz mover essas telas. Dessa forma, Craig abre outra possibilidade para o espaço, recodificando-o. A Übermarionnette, nesse caso, “[...] não seria nada mais do que uma armadura a ser utilizada por seres humanos, que, ao mesmo tempo aumentaria sua dimensão e restringiria seu movimento” (Ramos, 2017RAMOS, Luiz Fernando. A relação entre atores e screens no teatro de Gordon Craig: um legado à contemporaneidade. In: TAVARES, Enéias Farias; BIANCALANA, Gisela Reis; MAGNO, Mariane (Org.). Discursos do Corpo na Arte, v. II. 1. ed. Santa Maria: Editora UFSM, 2017. P. 115-142., p. 129). Vestir esse exoesqueleto ou essa armadura significa reduzir o movimento supérfluo do ator, apagar seu corpo identitário e promover o deslocamento de uma identidade para a entidade Übermarionnette. Nesse sentido, a expansão pretendida viria exatamente da restrição que condensa ao mesmo tempo que expande o corpo do ator.

A proposta craiguiana para o ator é a de vir a ser um corpo que se reposiciona em abertura para o vazio, ou seja, aproxima-se da proposição foucaultiana do corpo utópico, o qual “[...] posso não apenas mover-me e remover-me, como também posso movê-lo e removê-lo, mudá-lo de localização” (Foucault, 2013FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico, As Heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013., p. 07). O apagamento do corpo, tal como nos propõe a noção de corpo utópico não elimina o corpo inicial, mas abre a possibilidade de criação de outros corpos. Relaciono essa noção de corpo de Foucault à noção da Übermarionnette, entendida como o operador da matéria cênica, que move e remove, mas que, sobretudo, faz mover.

Em igual relação entendo que se pode colocar a noção de heterotopia e o palco cinético de Craig. Colocar em movimento os painéis antes condenados à imobilidade é abrir um espaço para o impensado. Tal intento é tão profícuo como imagem quanto como pensamento. O cenário de Craig se coloca em movimento em diversas direções: não apenas para cima ou para baixo, para a direita e para a esquerda, mas também em volume e diagonalidade.

Desse modo, Foucault parece se colocar extremamente craiguiano ao pensar a ideia da utopia e da heterotopia. Ou seria Craig que antecipa o pensamento foucaultiano ao conceber a Übermarionnette como uma espécie de corpo utópico do ator e o Projeto Scene como um tipo de heterotopia? Seja como for, interessa para este estudo exatamente o sufixo ‘topia’, que entende o corpo como um lugar no qual se inscrevem os acontecimentos. Ou, ainda, que concebe o próprio corpo como lugar para criação. Isso porque, para Craig, o ator e a cena são apenas um: “[...] eles devem ser mantidos enquanto um diante de nós ou estaremos olhando para duas coisas e, assim, perdendo o valor de ambas. Seu valor está em serem um” (Craig, 2017, p. 225).

Ao considerar tal ideia, penso que Craig soube olhar para o teatro de forma a operar nesse entrecruzamento entre codificação e espaço. Craig fez colapsar o próprio local do ator na arte teatral com a sua proposta da Übermarionnette e do espaço cênico ao abrir espaço para o impensável com sua cena cinética ou o Projeto Scene6 6 Além do dossiê sobre Craig publicado na Revista Brasileira de Estudos da Presença em 2014, há a tradução para o português feita por Luis Fernando Ramos do texto Cena. . Craig faz desmoronar o lugar comum e estático dado aos cenários e os coloca em movimento. Com essa proposição, fez desmoronar a concepção conservadora de teatro da sua época, deixando reverberar a potência da sua ideia de teatro até os dias de hoje. Nesse sentido, questiono sobre o que as artes da marionete poderiam colapsar quando pensadas em relação ao processo de formação docente.

Percebi que todo esse pensamento que posiciona Foucault e Craig - cada um em seu contexto - não só como desmoronadores do lugar comum, mas como instauradores de outras formas de pensar, parece coerente com o objetivo do que aqui me proponho ao pensar o princípio da artificialidade intencional como elemento acionador do movimento dos corpos.

Ao dar continuidade a esse objetivo no sentido de transpô-lo ao contexto de formação docente, abordo a própria noção de princípio que pode ser tomada como um “[...] ponto de partida de um movimento” ou um “fundamento de um processo qualquer” (Abbagnano, 2007ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 792). Já a noção de princípio ativo parece relacionar-se mais com a questão da marionete no que diz respeito a animar um material inerte podendo ser definida como a “[...] Razão, Causa ou Deus que dá forma à matéria [...] produzindo nela os seres individuais [...]; Fogo, no sentido de calor ou cie espírito animador” (Abbagnano, 2007, p. 793). De fato, se considerarmos que o movimento era um elemento fundante na obra craiguiana, parece producente a ideia de que a artificialidade intencional opera como seu ativador ou, como dito anteriormente, de que o corpo movimenta as coisas de lugar e, dessa forma, reposiciona a si mesmo. É sob essa perspectiva que apresento a seguir o trajeto que percorri para depreender um princípio de uma obra tão complexa quanto a de Craig.

O Princípio da Artificialidade Intencional Depreendido da Obra Craiguiana

Depreender um princípio da complexa obra craiguiana configurou-se em um desafio. Isso devido ao fato de que os elementos acionados pelo diretor inglês não se organizam de modo a se fechar em uma definição única. Antes, movimentam várias linhas de forças e diálogos com diversos pensadores. As possibilidades de escolha são distintas como, por exemplo, tomar um princípio a partir do diálogo de ideias entre Craig e Schopenhauer sobre a questão da representação ou Craig e Nietzsche sobre a questão da verdade e assim por diante. No entanto, segundo Bablet (1962BABLET, Denis. Edward Gordon Craig. Paris: L’Arche, 1962.) torna-se inócuo tentar entender Craig por suas influências e referências: primeiro porque são muitas e, segundo, porque seu trabalho não é o reflexo direto de nenhum desses pensadores, incluindo-se aí Nietzsche. Interessa observar que é no conjunto dessas influências que Craig descobre “[...] o valor de uma arte na qual a sugestão prevalece sobre a reprodução, em que a ideia conta mais do que a sua realização” (Bablet, 1962, p. 45, tradução minha).

Sendo assim, mobilizei a busca por um procedimento que se repete independente da fonte referencial com que Craig dialoga. Encontrei tal procedimento naquilo que o diretor inglês chama de imaginação, mas que prefiro tratar aqui, a partir da inspiração foucaultiana, como exercício ativo de buscar outro olhar para o que está pré-estabelecido. De fato, é possível pensar em Craig “[...] como um artista que fez da virtualidade um princípio e da realização imaginária um modus operandi” (Ramos, 2014RAMOS, Luiz Fernando. O indizível e as obras imaginárias de Klein e Craig. ARJ - Art Research Journal, [S.l.], ABRACE, ANPAP, ANPPOM, v. 1, n. 1, p. 35-47, maio 2014. Disponível em: <Disponível em: http://www.periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/article/view/5260 >. Acesso em: 01 jan. 2016.
http://www.periodicos.ufrn.br/artresearc...
, p. 72).

Ramos (2014RAMOS, Luiz Fernando. O indizível e as obras imaginárias de Klein e Craig. ARJ - Art Research Journal, [S.l.], ABRACE, ANPAP, ANPPOM, v. 1, n. 1, p. 35-47, maio 2014. Disponível em: <Disponível em: http://www.periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/article/view/5260 >. Acesso em: 01 jan. 2016.
http://www.periodicos.ufrn.br/artresearc...
) é muito preciso ao apontar para a virtualidade como princípio em Craig. A imaginação como procedimento, no entanto, toma concretude, como já foi dito, nos suportes materiais ativados pelo encenador inglês: em seus desenhos, suas marionetes, seus escritos e maquetes. Ou seja, os suportes utilizados são múltiplos e envolvem diferentes linguagens artísticas. A partir dessa observação, voltei inicialmente o foco para a ideia de uma coexistência negociada (Leabarth, 2017) dessas linguagens e que pareciam apontar na direção da desierarquização dos elementos cênicos. Tal ideia parecia coerente uma vez que o procedimento craiguiano, ao tomar a imaginação como premissa, intenciona deslocar e reordenar os elementos. Logo, ao reordenar, ele desierarquiza e, portanto, abre espaço para o impensado.

O Projeto Scene do encenador inglês é exemplar nesse sentido, pois desloca a centralidade do ator e passa a considerar o espaço cênico em movimento com suas telas (screens) e volumes cadenciados (Ramos, 2014RAMOS, Luiz Fernando. O indizível e as obras imaginárias de Klein e Craig. ARJ - Art Research Journal, [S.l.], ABRACE, ANPAP, ANPPOM, v. 1, n. 1, p. 35-47, maio 2014. Disponível em: <Disponível em: http://www.periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/article/view/5260 >. Acesso em: 01 jan. 2016.
http://www.periodicos.ufrn.br/artresearc...
). Outro exemplo da noção de desierarquização na obra craiguiana está na estratégia utilizada para pensar a sua escola e que pode ser vista como pioneira: uma escola na qual cada um ensina o que sabe e tem a oportunidade de aprender o que o outro sabe, fazendo com que ocorra uma troca, não só de informações, mas de aptidões, técnicas e saberes.

Estava de fato inclinada a tomar a desierarquização como princípio, idealizando que, dessa forma, seria constituído um mesmo sistema de presença entre os elementos cênicos. No entanto, essa ideia favorece a noção de horizontalização e tal noção me fez questionar o princípio de desierarquizar, pois instaura-se uma linearidade. Concomitantemente, deparei-me com três elementos que me auxiliaram a problematizar essa primeira escolha: a gravura (Imagem 1) feita pelo pintor californiano e colaborador de Craig, Michael Carmichael Carr (Dircks, 2004DIRCKS, Phillys T. American Puppetry: collections, history and performance. North Carolina: Theatre Library Association, 2004., p. 133); a noção de antiteatralidade de Martin Puchner (2002PUCHNER, Martin. Stage Fright: Modernism, Anti-Theatricality & Drama. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2002.) e a noção de representação emancipada de Bernard Dort (1988DORT, Bernard. La Représentation Émancipée. Paris: Actes Sud, 1988.). Os dois últimos possuem obras complexas relacionadas às rupturas teatrais ocorridas a partir do modernismo, sobre as quais não pretendo dar conta aqui. O que interessa neste momento é que serviram de alerta para questionar a escolha do princípio de desierarquização dos elementos cênicos.

Iniciarei pela poesia do desenho.

Imagem 1
A oficina. Desenho de Michael Carmichael Carr, 1907

Carr conseguiu materializar em uma imagem o que vinha à minha mente enquanto percorria a obra de Craig: o homem que parece olhar através da figura de madeira que tem na mão; o homem que se ocupa da materialidade das suas figuras enquanto o plano de fundo (inundado pela luz vertical tão característica da visualidade craiguiana e composto por corpos em movimento ocupados em mover a matéria cênica) parece ser um desdobramento do seu pensamento, da sua visão da construção do teatro do futuro.

Qual a potência de um pensamento? Como ele opera na materialidade? E vice-versa? Tais perguntas incitam um olhar mais atento sobre os corpos, uma vez que é “[...] sempre de corpos que se trata, de uma radical materialidade” (Rodrigues, 2011RODRIGUES, Heliana de Barros Conde. Cartografias Minoritárias do Enclausuramento: sobre Michel Foucault e Charles Fourier In: ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de; VEIGA-NETO, Alfredo; SOUZA FILHO, Alípio (Org.). Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. P. 149-164., p. 152). Nesse sentido, o pensamento de Craig olha através da materialidade das marionetes que, limitadas em seus movimentos, remetem a uma ideia hierática da vida. Trata-se de um objeto artificial que traduz mais a visão do artista do que a realização concreta de sua obra (Innes, 1998INNES, Christopher. Edward Gordon Craig , a vision of a theatre. London: Routledge, 1998.).

A dualidade natural/artificial é parte fundamental da constituição da obra craiguiana. Craig caminha entre a objetificação do humano e a humanização do objeto; evoca a nobre artificialidade das estátuas dos antigos templos (Craig, 2013CRAIG, Edward Gordon. De l´Art du Théâtre. Belval: Circé, 2013.); condena o excesso de humanidade dos atores; personifica as suas screens dando-lhes movimento e restringe a possibilidade de movimento para o corpo humano. É a partir desses deslocamentos que o diretor inglês transita entre o ator e a marionete ou, dito de outro modo, o movimento é acionado na relação entre o homem e o artifício. Tal procedimento, que rompe

[...] com os processos de ordem representacional faz com que a teatralidade por ele sugerida se aproxime, drasticamente, daquilo que poderíamos reconhecer como uma espécie de anti-teatralidade própria à poética de alguns simbolistas (Belloni, 2011BELLONI, Arthur Eduardo Araújo. Automatismo Divino: Teatralidade e anti-teatralidade na poética cênica de Edward Gordon Craig. Revista Cena, Porto Alegre, n. 10, 2011., p. 6/7).

O prefixo ‘anti’, aplicado à ‘teatralidade’, traz consigo um posicionamento. Puchner (2013PUCHNER, Martin; YOSHITAKE, José. Pânico de Palco: Modernismo, Antiteatralidade e Drama. Sala Preta, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-46, jun. 2013. Disponível em: <Disponível em: http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57529/68219 >. Acesso em: 13 maio 2018.
http://www.revistas.usp.br/salapreta/art...
) e Cruciani (1995CRUCIANI, Fabrizio. Registi Pedagoghi e comunita’teatrali nel novecento: e scritti inediti. Roma: Editori & Associati, 1995.) falam do perigo de ser definido exatamente pela coisa a qual nos colocamos em oposição. Então, se Craig inventou a si mesmo e suas práticas recusando o realismo e o superficialismo caricato do teatro de divas, tal posição não é rígida, pois nos “[...] territórios da arte, a definição tem sido sempre pessoal e temporária” (Cruciani, 1995, p. 55). Assim, o posicionamento - que requer a elaboração de um pensamento - também produz “[...] uma forma de teatro no interior de seu próprio ato de resistência. É esta cumplicidade entre rejeição e produção que está por trás das várias formas de drama moderno” (Puchner, 2013, p. 44).

Isso significa que, ao tomar as ideias de Wagner sobre a obra de arte total 50 anos depois, Craig as atualiza ao buscar a não subordinação de um elemento cênico a outro (Dort, 1988DORT, Bernard. La Représentation Émancipée. Paris: Actes Sud, 1988.). De certa forma, o diretor inglês utiliza um procedimento que posteriormente Foucault (2008FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.) denominaria de suspender as unidades. As unidades aqui, no caso, são: ator, teatro, cena, que Craig suspende sem se ocupar de uma continuidade histórica evolutiva do teatro, mas promovendo ele mesmo uma ruptura com o que havia sido conhecido até então como ator, teatro e cena. Tal movimento preparou o terreno para que, aproximadamente 100 anos após as ideias de Craig terem sido divulgadas, seja possível constatar

[...] hoje uma emancipação gradual dos elementos da representação teatral e observamos uma mudança estrutural: a renúncia à unidade orgânica ordenada a priori e o reconhecimento do fato teatral enquanto polifonia significante, aberta ao espectador (Dort, 2013DORT, Bernard. A representação emancipada. Revista Sala Preta, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 47-55, 2013., p. 51).

É aqui que é possível problematizar o princípio da desierarquização de elementos. Ainda que Dort (1988DORT, Bernard. La Représentation Émancipée. Paris: Actes Sud, 1988.) solicite uma revisão das ideias craiguianas pela posição do ator e do encenador, a possibilidade de hoje tratarmos de uma polifonia significante é viável se considerado o terreno preparado por Craig. Por conseguinte, hoje é possível considerar que os elementos nem sempre serão postos com o mesmo peso em um sistema de presença que se pretende desierarquizado, pois, além do processo criativo, há a recepção do espectador, que não é garantia de uniformidade. É a equivalência que é colocada em questão e a ponderação de que a desproporção, a justaposição, o alternar lugares de importância fazem parte do processo. O diálogo existe, mas não se dá necessariamente de forma horizontal. Parece que hoje no teatro é possível propor e absorver dissonâncias e isso passa a ser interessante nesse campo. A busca pelo movimento continua, pois, nesse pensamento, a rigidez determina posições e postula hierarquias.

Isso posto, espero ter explicado razoavelmente o porquê de ter declinado do princípio de desierarquização. Resta justificar a escolha pelo princípio da artificialidade intencional e sua relação com a formação docente em Pedagogia.

Para tal, retomo à gravura de Carr e ao desenho de Craig segurando uma figura. O procedimento que considera a intenção de emprego da artificialidade busca a construção dessa ponte, na qual se estabelece “[...] a continuidade entre a evidência da matéria e da vida, e para fazer isso, há transferências constantes entre corpos e objetos, entre os corpos dos homens e os corpos dos deuses” (Borie, 2013BORIE, Monique. Corps vivant et corps objet: une approche antropologique. In: GUIDICELLI, Carole (Org.). Surmarionnettes et mannequins - Craig, Kantor et leurs heritage contemporains. Lavérune: L´Entretemps, 2013. P. 137-145., p. 138, tradução minha).

É dessa forma que trabalhar com a matéria, tendo o uso de uma artificialidade intencional que mobiliza os corpos, se coloca em questão oposta à naturalidade e a uma tentativa de representação do real. A marionete é o princípio ostensivo do artificial, solicita uma ativação necessariamente artificial, o que recai sobre o trabalho do ator no sentido de sua natureza e técnica, e, portanto, em sua formação. Definir o que é natural constitui-se em um desafio e, nesse sentido, a oposição direta ao artificialismo pode ser profícua. É nesse território complexo que Craig escolheu caminhar quando rechaçou o naturalismo na atuação.

Tomar o princípio da artificialidade intencional significa lançar o experimentador à pesquisa de seu próprio corpo em campos impensados. O corpo, em relação ao objeto, torna-se um dispositivo para o processo de experimentação e investigação do movimento e das composições de imagens no qual analisa-se as possibilidades de gestos e de corporalidades que poderiam surgir; ou seja, elas não estão dadas, pois não partem de uma referência fixa de corpo.

De forma intrínseca a essas análises está posta a questão da matéria: a radicalidade da separação entre o vivo e o inerte bem como a relação entre a matéria bruta e o pensamento humano. Nessa relação, o corpo se torna o espaço no qual a operação simbólica tem lugar, uma vez que, ao ser posto em contato com a matéria inerte, reitera e aciona o questionamento da morte, evidenciado na natureza sem vida da marionete. Isso significa que pensar a matéria tem relação direta com a sua animação (Borie, 2013BORIE, Monique. Corps vivant et corps objet: une approche antropologique. In: GUIDICELLI, Carole (Org.). Surmarionnettes et mannequins - Craig, Kantor et leurs heritage contemporains. Lavérune: L´Entretemps, 2013. P. 137-145.). Significa, ainda, que animar um corpo sem vida remete à força da vida. Por analogia, é possível pensar então que animar o próprio corpo significa a animação de uma matéria bruta que se põe em movimento de pensamento.

O exercício desse pensamento pertence ao reino do símbolo (tão caro a Craig). Ou seja, não se trata de buscar a construção de um corpo similar ao real, mas de abrir possibilidades de criação de outro corpo. Dito de outro modo, não é a utilização de uma técnica específica de manipulação, mas de criar sistemas de articulação do corpo com o objeto no qual o que interessa é exatamente o ponto de toque do corpo com a matéria e o espaço no qual essa interação tem lugar.

Nesse sentido, é importante o registro de que Craig incorporou ao programa curricular da sua escola em Florença a fabricação e a manipulação da marionete. Craig justifica tal proposta:

Parece-me mais conveniente que o homem crie, fabrique um instrumento que o ajude a se expressar do que ele se sirva de si mesmo [...] Pois o homem, com seu próprio corpo, pode apenas ultrapassar pequenos obstáculos, no entanto, se servindo de suas ideias, ele pode criar invenções que ultrapassam tudo (Craig, 2013CRAIG, Edward Gordon. De l´Art du Théâtre. Belval: Circé, 2013., p. 74, tradução minha).

A justificativa apresentada pelo diretor inglês evidencia a inseparabilidade entre a concretude da matéria (incluindo o próprio corpo) e a potencialidade existente nas ideias. A sugestão em “ultrapassar tudo” convoca ao exercício constante em ultrapassar formas pré-estabelecidas e ao jogo de multiplicidades e descentramento do sujeito em relação ao objeto. A partir disso é possível pensar que a ideia de artificial vem do jogo entre o corpo e o que é externo a ele. Isso significa que colocar o corpo em relação a algo implica necessariamente em reposicioná-lo. No entanto, a ideia de intencionalidade se coloca em um campo de formação docente como exercício de escolha e possibilidade de criação. Trata-se de abrir espaços, da busca por promover possibilidades para a experiência.

Para Operacionalizar o Princípio da Artificialidade Intencional

A proposta para trabalhar o teatro de formas animadas que propus a partir do estudo da obra craiguiana toma como princípio a artificialidade intencional como ativador desse processo. Ao trazer essa noção para o contexto da formação docente, inevitavelmente está implicado o fato de que há artificialidades intencionais pré-existentes mas que são de outra ordem. Lidamos com elementos que nos antecedem, nos atravessam e nos subjetivam. Alguns deles, Foucault (1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento e prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. ) se ocupou em problematizar, como, por exemplo, a configuração espacial da escola (juntamente com a da prisão e do hospital): sua estrutura arquitetônica foi intencionalmente projetada para controlar os corpos e torná-los dóceis conforme a noção apresentada anteriormente. Destarte, a configuração de uma sala de aula, seja do espaço de formação em nível de graduação ou em nível de educação básica, é uma artificialidade intencional acionada, mobilizadora de corpos e de processos de subjetivação.

Essas artificialidades intencionais pré-existentes trazem o alerta para a complexidade implicada nos processos de subjetivação ou de produção de subjetividade. Esse processo, no entanto, não produz sempre a mesma consequência. Um processo no qual a constituição de um sujeito se dá é um “[...] processo pelo qual uma subjetividade se afirma não apenas negativamente - [...] contra as relações de poder cujo reino ela destrói - mas positivamente no mundo: de maneira breve, um movimento constituinte” (Revel, 2014REVEL, Judith. O nascimento literário da biopolítica. In: ARTIERES, Philippe (Org.). Michel Foucault, A Literatura e as Artes. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2014. P. 49-69., p. 64). Esse movimento constituinte refere-se a dois tipos de análise.

O primeiro é aquele que se refere a práticas de objetivação do sujeito, “[...] o que significa que, para o poder, só há sujeitos objetivados e que os modos de subjetivação são, neste sentido, práticas de objetivação” (Revel, 2014REVEL, Judith. O nascimento literário da biopolítica. In: ARTIERES, Philippe (Org.). Michel Foucault, A Literatura e as Artes. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2014. P. 49-69., p. 65). Corpos que se encontram na relação utilidade-docilidade são gerados nos processos de objetivação. Nesse sentido, os corpos que passaram por essa captura apresentam essas marcas.

O segundo tipo de análise traz a relação consigo mesmo, “[...] por meio de um certo número de técnicas de si, permite a alguém constituir-se como sujeito de sua própria existência” (Revel, 2014REVEL, Judith. O nascimento literário da biopolítica. In: ARTIERES, Philippe (Org.). Michel Foucault, A Literatura e as Artes. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2014. P. 49-69., p. 65). Nesse tipo de análise é possível considerar a “[...] perspectiva de sujeito como dotado de toda consciência possível que ele irá recusar - para fazer, no lugar disso, emergir um sujeito cindido, disperso, um efeito de sentido, um lugar no discurso” (Icle, 2010ICLE, Gilberto. Pedagogia Teatral como Cuidado de Si. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2010., p. 33).

Com efeito, é possível observar que o corpo está sempre implicado nesses processos. Se, para o poder só há sujeitos objetivados, interessa então procurar, no interior dessas relações de poder, formas de recusa da objetificação. Nesse aspecto, cabe a pergunta: “[...] quais processos o indivíduo põe em ação a fim de apropriar-se da sua relação consigo” (Revel, 2014REVEL, Judith. O nascimento literário da biopolítica. In: ARTIERES, Philippe (Org.). Michel Foucault, A Literatura e as Artes. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2014. P. 49-69., p. 65)? Entendo esses processos como artificiais e intencionais, nos quais os homens se produzem e se transformam. Para Foucault (2008FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.), há um caráter histórico nos processos de subjetivação. No entanto, o sujeito não é apenas o resultado inexorável das determinações históricas, “[...] mas é também o espaço inédito de um trabalho sobre si cujas modalidades são por vezes históricas, mas que fazem surgir a dimensão do fora (a criação, a invenção, o inédito)” (Revel, 2014, p. 66).

A partir de tais ideias, entendo que a proposta para o teatro de formas animadas neste estudo tem proporções bem mais modestas que as de Foucault. Ainda que pudéssemos tomar de inspiração a concepção do espaço cênico de Craig e imaginar as paredes, as classes, o quadro (branco ou negro), as janelas, as portas, e tudo mais que é característico do espaço tradicional de uma sala de aula desencaixando-se e tomando vida própria; transformando-se em volumes com movimento para frente, para trás, para cima, para baixo, em diagonal, ondulado etc.; já sabemos de antemão da impossibilidade da sua concretização.

Entretanto, interessa pensar essa noção de espaço cênico de Craig como um espaço de criação, um espaço poético que pode vir a ser uma sala de aula. Ou seja, um espaço no qual professores e alunos possam abrir lugares para a criação e para o impensado. Vale lembrar que a ideia de Craig era a construção de uma “[...] cena com natureza mutante” (Craig, 2017, p. 220), envolta em um espírito moderno, ou seja “[...] o espírito da mudança incessante” (Craig, 2017, p. 220). Com efeito, Craig pensou de outro modo os cenários estáticos e conferiu-lhes movimento impensado na sua época. Um viés possível é pensar no marionetista e na possibilidade que ele possui de criar uma poética do espaço. Isso porque a materialidade da marionete anima-se em um tempo e espaço em relação a outros corpos. O corpo da marionete não está sujeito às leis da gravidade nem à lógica biológica e anatômica. Ele pode mover-se de outros modos, aumentar e reduzir, destroçar-se e remontar-se. O gesto-marionete traz em si a potência de apagar o corpo ao mesmo tempo que abre a possibilidade de criação de outros corpos. Esse processo não busca o retorno à unidade, mas a criação de outras possibilidades por meio da recombinação desses fragmentos. Assim, é possível considerar que a “[...] transgressão da lógica do espaço é um privilégio da marionete” (Valantin apud Le Bœuf, 2009LE BŒUF, Patrick et al. (Ed.). Craig et la Marionnette. Avignon: Actes Sud et Bibliothèque nationale de France, 2009., p. 67, tradução minha). Nesse aspecto, o burilar das figuras de madeira de Craig significa o anseio pelo movimento incessante do espaço. O seu exercício toma forma na materialidade dos corpos e no acionamento da matéria cênica, da qual o ator é seu operador (Ramos, 2017RAMOS, Luiz Fernando. A relação entre atores e screens no teatro de Gordon Craig: um legado à contemporaneidade. In: TAVARES, Enéias Farias; BIANCALANA, Gisela Reis; MAGNO, Mariane (Org.). Discursos do Corpo na Arte, v. II. 1. ed. Santa Maria: Editora UFSM, 2017. P. 115-142.).

A partir dessas inquietações e relações, nos anos de 2015 e 2016 foram realizados 11 cursos com futuras professoras de educação infantil e séries iniciais nos quais foram produzidos os dados que compõem este texto. Nesse processo, o estudo da obra craiguiana e dos elementos anteriormente expostos configuraram-se como guia na estruturação das atividades com teatro de formas animadas e o princípio da artificialidade intencional foi tomado como um ativador do corpo e do pensamento.

Tendo essas questões em mente, elaborei a estrutura do curso de teatro de formas animadas com futuras professoras. Estruturei a ordenação dos exercícios selecionados inspirada na obra craiguiana. Isso significa que o trabalho inicia tendo como referência o corpo do ator, ou seja, a forma do corpo humano para então “[...] mover-se para a abstração” (Innes, 1998INNES, Christopher. Edward Gordon Craig , a vision of a theatre. London: Routledge, 1998., p. 193, tradução minha). Com base nessas considerações, compus o curso em três etapas, sendo que em cada uma havia uma sequência de exercícios.

A primeira etapa tinha como foco o corpo antropomórfico. Assim, tomei como ponto inicial a exploração a partir da referência do próprio corpo, isto é, da forma antropomórfica, suas possibilidades e movimentos. A escolha por trabalhar com a técnica híbrida habitável, na qual o corpo do manipulador se mescla com o corpo da marionete, trouxe a possibilidade da experimentação de criar um corpo externo, mas a partir do corpo orgânico. Tal relação exige um jogo de presenças, no qual o corpo que anima se apaga e dá lugar e evidência ao corpo da marionete.

A segunda etapa promovia possibilidades para o corpo, no sentido de brincar com a forma antropomórfica, abrindo espaço inclusive para desconstruí-la a partir da construção de outras formas. Foram utilizados materiais diversos, além do corpo da marionete, como por exemplo um tecido vermelho de quatro metros de comprimento realizado por um grupo de cinco pessoas. Buscava-se a exploração de outras lógicas corporais, podendo um mesmo corpo ter várias cabeças ou braços, por exemplo.

Por fim, a terceira etapa propunha experimentar o corpo e a forma, com a animação de formas geométricas, privilegiando o movimento, a pausa, o volume no espaço e a possibilidade de composições abstratas diversas, como pode ser observado na imagem a seguir. Entendo que essa etapa é a que mais se aproxima da proposta da cena cinética de Craig, no sentido de tornar corpo o espaço. O corpo mesmo se afasta da delineação da configuração inicial restando tão somente figuras geométricas e as possibilidades de composição oferecidas por essas formas.

Essas experimentações visavam sobretudo possibilitar às futuras professoras uma ampliação da percepção de corpo. O que ficou evidente, a partir dos dados produzidos, é que os materiais inertes da marionete e do objeto se tornam um convite para se dispor a mover o corpo, a pôr em movimento a sua própria matéria-corpo-orgânico. Dentre os variados registros dos cursos com estudantes de Pedagogia, apresento aqui a manifestação de uma das delas ao dizer que nunca mais olharia para um tecido ou para um boneco do mesmo jeito (Dossiê São Judas Tadeu, 2016DOSSIÊ São Judas tadeu. Relato das aulas e da conversa final. Arquivo confidencial não publicado. 36f. 2016. ). Tal registro evidencia que, mais do que um convite ao movimento, um dos efeitos da operalização do princípio da artificialidade intencional constitui-se em abrir espaço para um procedimento capaz de inverter a lógica de um discurso sumariamente instituído no campo educacional “[...] substituindo a fórmula do ‘conhecer para transformar’ por ‘transformar para conhecer’” (Dias, 2012DIAS, Rosimeri de Oliveira (Org.). Formação Inventiva de Professores. Rio de Janeiro: Lamparina, 2012., p. 30). O tecido foi extraído do seu conhecido contexto utilitário para se tornar um objeto portador de diversas possibilidades de transformação e criação. Mas tal possibilidade de abrir-se ao impensado só se tornou possível por ter sido colapsada a referência anterior de tecido. Nesse processo há uma justaposição, ou seja, o tecido como tal não cessa de existir, mas ao mesmo tempo que é apagada a sua função primária, são criadas para essa materialidade outras possibilidades. Assim, o teatro de formas animadas parece também ser capaz de animar fórmulas pedagógicas, uma vez que o material inerte convoca primeiro à transformação - da inércia para o movimento - e depois para as suas possibilidades de composição do movimento no espaço.

Configura-se, dessa maneira, esferas distintas nas quais é possível operacionalizar o princípio da artificialidade intencional.

Em uma esfera se evidencia a reação direta dos corpos em contato com os objetos propostos. O material disponibilizado para os exercícios não passa tão somente de matéria inerte, que assim permanecerá, e, a menos que uma força lhe dê movimento, ele restará inanimado. Essa força vem do reposicionamento dos corpos que foram instigados a se colocar nas mais diversas posições - que não a posição tradicional do estudante que permanece sentado para ouvir o professor. A partir desse reposicionamento, há algo que ocorre na espessura desse espaço de aproximadamente 30 centímetros de distância entre o corpo do manipulador e o objeto que oferece possibilidades e impossibilidades de movimento. Há algo que ocorre na espessura do corpo, como se referiu Foucault (2013FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico, As Heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013.). Há aqui, também, um exercício que não diz respeito somente às técnicas referentes ao teatro de formas animadas7 7 Beltrame (2003) discorre sobre as técnicas utilizadas no teatro de formas animadas de forma minuciosa. Também as publicações da Móin-Móin: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas fornecem um excelente referencial na língua portuguesa. , mas ao espaço relacional criado entre os corpos. Interessa, portanto, o contato com a brutalidade da matéria, de modo a explorar o próprio corpo como tal, até torná-lo plástico e moldável e, dessa maneira, passível de modificação.

Em outra esfera são acionados processos que promovem não só o exercício do corpo, mas do olhar para esse corpo e para o lugar que o seu corpo ocupa no mundo. Trata-se do exercício de um corpo poético, que implica em “[...] colocar o corpo” (Sanchez, 2017SANCHEZ, José. Cuerpos Ajenos. Segovia: Ediciones La una Rota, 2017., p. 131, tradução minha) e criar o seu próprio movimento. Esse procedimento é o oposto do entendimento do corpo como uma engrenagem dócil, individual particionada, classificada e ordenada. Relaciona-se mais com os processos conscientes de ação nos quais o indivíduo busca a apropriação de si mesmo. É nessa esfera que é possível pensar que o corpo dócil e professores e estudantes não cessam necessariamente de ser uma marionete - no sentido de ter as marcas da captura pelos processos de objetificação -, mas que podem se valer da artificialidade intencional para acionar métodos de força intencionais que permitam ultrapassar a forma primeira de sujeição e docilização dos corpos e justapor outras formas de ser e estar no mundo.

E para que nos atermos a exercícios com marionetes na formação de professores? Se considerarmos, retomando Foucault (1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento e prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. ), que quanto mais útil e docilizado é um corpo, mais reduzida é a sua força política, o inverso também faz parte desse jogo: o corpo vivo que se reposiciona e que se recria resiste com mais potência a ser conduzido e marionetizado. Nesse sentido, a artificialidade intencional parece oferecer, dentre tantas, uma possibilidade de recusa ao corpo-máquina, de apagamento do corpo objetificado pelo poder. O antídoto que se apresenta está na relação com as artificialidades intencionais - aquelas que já nos antecedem e aquelas que o indivíduo pode operar para pôr-se em ação.

Considerações em Movimento

Neste artigo, procurei promover uma aproximação entre as noções foucaultinas e criaguianas, respectivamente, de corpo utópico, com Übermarionnette, e de heterotopia, com Projeto Scene. Evidenciei o processo do qual depreendi o princípio da artificialidade intencional, bem como me esforcei em apresentar seus efeitos nas duas vias em que tal princípio se manifesta.

A primeira via está relacionada ao corpo dócil - que Foucault (1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento e prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. ) entende como um corpo esquartejado pela maquinaria do poder. Isto é, entende o corpo na espessura “[...] de uma relação que no mesmo mecanismo o torna mais obediente quanto é mais útil, e inversamente” (Foucault, 1987, p. 119). Tal ideia neste texto foi posta em relação com a noção caricata de marionete: professores e estudantes marionetizados por sutis mecanismos de controle da ordem do poder disciplinar. Essa via seria a de uma marionete desvitalizada, que somente reproduz, acionada por artificialidades que engendram uma batalha que cansa e exaure o corpo. Dessa forma, o corpo-inerte se desvitaliza ainda mais e mais se exaure.

A segunda via entende, através da noção de heterotopia, o corpo como um lugar, portanto um corpo utópico, ou ainda melhor: um corpo heterotópico. Essa via possui sua principal referência na obra de Craig, no princípio da artificialidade intencional responsável por acionar o movimento às coisas do mundo e, portanto, dar movimento ao pensamento. Dar movimento às coisas do mundo não está na ordem da repetição, do controle e da ordenação ao qual o corpo é submetido. Antes, constitui-se de um procedimento que desenha outras formas, mas não se fixa nelas, pois está artificialmente e intencionalmente promovendo o seu próprio movimento. No próprio cerne da noção de corpo utópico, Foucault (2013FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico, As Heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013.) coloca duas concepções que parecem inconciliáveis: a do corpo como lugar ao qual se está condenado pela incapacidade de ir além dele, da sua finitude, das configurações cotidianas do trabalho, da condição biológica do sono, ou seja, como um lugar do qual é impossível escapar. E o corpo heterotópico, capaz de olhar para suas diferentes formas e transfigurar seus mundos (Sforzini, 2014SFORZINI, Ariana. Michel Foucault, une pensé du corps. Paris: Presses Universitaires de France, 2014.). Logo, por analogia, seria possível pensar a ultrapassagem das formas (im)postas às professoras em formação, e exercitar no âmago da relação de poder uma abertura: a busca por estratégias para evitar o movimento coercitivamente imposto e engendrar o próprio movimento.

Ambas as vias são acionadas por uma artificialidade intencional, mas seus efeitos apontam em direções opostas. E ambas coexistem, gerando fricções e conflitos. Oscilamos entre esses movimentos e essas direções. É possível então pensar a artificialidade intencional a partir de um duplo processo: não se deixa exatamente de ser uma marionete no sentido caricato, ou seja, um corpo objetivado, mas um espaço se abre como possibilidade quando nos propomos a estar em relação com o corpo-marionete: quando fazemos do artifício a potência de sair de si. Trata-se de uma linha de força que nos impulsiona em direção ao objeto. Uma linha, entre tantas. Uma possibilidade de deslocar-se por intermédio do trabalho com as artes da marionete8 8 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. .

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  • SANCHEZ, José. Cuerpos Ajenos. Segovia: Ediciones La una Rota, 2017.
  • SFORZINI, Ariana. Michel Foucault, une pensé du corps. Paris: Presses Universitaires de France, 2014.
  • 1
    Tese desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em cotutela com a Université Paris Nanterre (Della Costa, 2018DELLA COSTA, Rossana. O Teatro de Formas Animadas na Formação de Professores: uma proposta pedagógica a partir da Übermarionnette. 2018, 336 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.).
  • 2
    Neste trabalho é feita a opção de unir o prefixo alemão Über com o vocábulo marionnette em francês. As grafias encontradas são as mais diversas como Über-marionette ou Sur-marionnette. Como referencio a tese de doutorado na qual a ideia deste texto se origina (Della Costa, 2018DELLA COSTA, Rossana. O Teatro de Formas Animadas na Formação de Professores: uma proposta pedagógica a partir da Übermarionnette. 2018, 336 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.), utilizo a mesma forma apresentada no título dessa tese posto no primeiro parágrafo. Também me refiro a esse termo no gênero feminino, tendo em vista que o contexto no qual a pesquisa se deu trata de um contingente maioritário de mulheres.
  • 3
    Igualmente faz-se aqui a opção por tratar o plural no feminino em consonância com a informação da nota anterior.
  • 4
    Estrutura usualmente chamada de castello em italiano e castelet em francês, na qual o marionetista fica oculto. Mas “[...] também recebem outras denominações como, por exemplo, biombo, castelete, retablo, toldo, tendinha, barraca, tapadeira” (Balardim, 2004BALARDIM, Paulo. Relações de Vida e Morte no Teatro de Formas Animadas. Porto Alegre: Edição do Autor, 2004., p. 71), totem e empanada.
  • 5
    Acervo da Bibliotéque National de France.
  • 6
    Além do dossiê sobre Craig publicado na Revista Brasileira de Estudos da Presença em 2014, há a tradução para o português feita por Luis Fernando Ramos do texto Cena.
  • 7
    Beltrame (2003BELTRAME, Valmor Níni. O trabalho do ator-bonequeiro. Revista NUPEART, Núcleo Pedagógico de Educação e Arte, Florianópolis, v. 2, n. 2, p. 33-52, set. 2003. ) discorre sobre as técnicas utilizadas no teatro de formas animadas de forma minuciosa. Também as publicações da Móin-Móin: Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas fornecem um excelente referencial na língua portuguesa.
  • 8
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2018
  • Aceito
    02 Set 2018
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