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Conversas sobre Morte e Dança: os fios tramados por Thanatos e Terpsícore

Conversations à propos de la Mort et de la Danse: les fils tracés par Thanatos et Terpsichore

Resumo:

O ensaio tem como objeto a relação entre dança e morte, refletida a partir de obras coreográficas nas quais compreendemos que a dança expressa a condição existencial da morte em sua inexorabilidade, tragédia, poesia. Nesse pensamento, percebe-se a relação da morte e da vida com a temporalidade. O mesmo ocorre na dança, posto que esta é uma arte do tempo, um tempo criado no qual podemos transformar o corpo, a vida e a morte. Nessa perspectiva, buscamos tecer uma rede de significações acerca dessa relação, dialogando com a arte coreográfica e a filosofia. Essa percepção contribui para a compreensão da arte como fenômeno educativo ao nuançar questões da existência como é o caso da morte.

Palavras-chave:
Dança; Morte; Coreografia; Expressão; Estética

Résumé:

L’essai traite de la relation entre la danse et la mort, reflétée par des œuvres chorégraphiques dans lesquelles nous comprenons que la danse exprime la condition existentielle de la mort dans son inexorabilité, la tragédie, la poésie. Dans cette pensée, la relation de la mort et de la vie avec la temporalité. La même chose se passe dans la danse, puisque c’est un art du temps, un temps créé dans lequel nous pouvons transformer le corps, la vie et la mort. Dans cette perspective, nous cherchons à tisser un réseau de significations autour de cette relation, dialoguant avec l’art cherégraphique et la philosophie. Cette perception contribue à la compréhension de l’art en tant que phénomène éducatif en nuançant des questions d'existence telles que la mort.

Mots-clés:
Danse; Mort; Chorégraphie; Expression; Esthétique

Abstract:

The object of the essay is the relationship between dance and death, reflected from choreographic works in which we understand that dance expresses the existential condition of death in its inexorability, tragedy and poetry. In this thought, it is observed the relationship of death and life with temporality, a time created in which we can transform the body, life and death. In this perspective, we try to weave a network of meanings about this relationship, dialoguing with choreographic art and philosophy. This perception contributes to the understanding of art as an educational phenomenon by nuancing issues of existence, such as death.

Keywords:
Dance; Death; Choreography; Expression; Aesthetics

Viver de Morte, Morrer de Vida

As Musas, invisíveis, e em especial Terpsícore1 1 Terpsícore: Musa da Dança (Tibúrcio, 2005). , em procissão noturna, como cantoras-dançarinas, são evocadas neste ensaio para que, ao invadirem o negror da Noite, geradora de Thanatos2 2 Thanatos: Deus da Morte (Feitosa, 2004). - presentificação da Morte3 3 Ver Hesíodo (2007). , evidenciem em fluxo contínuo e perene, com a força de seus cantos e dança ao redor da fonte, a tessitura de uma rede de significações pretendidas acerca da relação entre a dança e a condição existencial da morte. Em nosso texto, os fios que constituem essa tessitura, feita por Terpsícore e Thanatos, têm na arte coreográfica a fonte da sua expressão primeira, renovada na linha poética do tempo por configurações estéticas, cênicas e técnicas múltiplas, que se dão a ver na coexistência inerente à Vida e à Arte.

A arte exerce secundariamente a função de conservar, e mesmo recolorir um pouco, representações apagadas, empalidecidas; ao cumprir essa tarefa, tece um vínculo entre épocas diversas e faz os seus espíritos retornarem. Sem dúvida é apenas uma vida aparente que surge desse modo, como aquela sobre os túmulos, ou como o retorno de mortos queridos no sonho; mas ao menos por instantes o antigo sentimento é de novo animado, e o coração bate num ritmo que fora esquecido (Nietzsche, 2000NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 116).

Evidenciamos a natureza da obra de arte coreográfica como um acontecimento cuja potência, visibilidades e gestualidades instauram uma dimensão estética e poética que transita pelo inusitado, por um certo rompimento com uma linearidade, para além dos códigos e signos peculiares às técnicas e, sem negá-las, utiliza-as para que possamos comunicar um sentido até então desconhecido, uma paisagem nova, configurações e cores jamais vistas. Ao abrir esses interstícios, a renovação e reinvenção do estofo cultural adquirem perspectivas outras, subvertem a ordem estabelecida e, nem que seja momentaneamente, adentram pelas fissuras e desestabilizam certezas postas (Nóbrega, 2015NÓBREGA, Terezinha Petrúcia da. Sentir a Dança ou Quando o Corpo se põe a Dançar... Natal: IFRN, 2015.).

Na história da dança podemos encontrar obras coreográficas nas quais o tema da morte se expressa de modo emblemático. Mas, antes de adentrarmos nesse universo trágico da dança, cabe anunciar uma compreensão significativa de nossa temática, articulando vida e morte:

Viver de morte, morrer de vida. Eis uma fórmula típica de Heráclito. À primeira vista, trata-se de um absurdo ou de uma plenitude: vivemos da morte dos animais ou plantas que comemos. [...] Nós podemos descobrir outro significado para esta fórmula. ‘Viver de morte, morrer de vida’ se aprofunda graças ao que conhecemos hoje: nosso corpo vive da morte de suas células, substituídas por células jovens, em uma regeneração permanente. E as sociedades não vivem porque as pessoas morrem e outras, mais jovens, chegam e ocupam o seu lugar? A vida e a morte são de fato inimigos fundamentais, mas a vida luta contra a morte usando a própria morte. Os dois inimigos, absolutamente antagônicos, são complementares. A vida astuta luta contra a morte, contudo, incorporando o que não cessa de ser um inimigo (Morin, 2011MORIN, Edgar. Mês philosophes. Meaux: Editions Germina, 2011., p. 24-25, tradução nossa)4 4 No original em francês: “Vivre de mort, mourir de vie. Voilá une formule typique d’Héraclite. À première vue, Il s’agit d’um non-sens, ou d’une planitude: nous vivons de la mort des animaux ou des plantes que nous mangeons. [...] On peut découvrir um autre sens à cette formule. ‘Vivre de mort, mourir de vie’, s’approfondit grâce à ce que l’on sait aujourd’hui: notre organisme vit de la mort de sés cellules remplacées par des cellules jeunes dans une régénération permanente. Et lês sociétés ne vivent-elles pas parce que des personnes meurent et d’autres, plus jeunes, arrivent et prennent leur place? La vie et la mort sont certes ennemies fondamentales, mais la vie lutte contre la mort en utilisant la mort. Les deux ennemies, absolument antagonistes, sont complémentaires. La vie ruse pour lutter contre la mort, elle integre celle-ci, que ne cesse pas pourtant d’être une ennemie”. .

Talvez possamos perceber a morte como ‘algo’ que nos enche de humanidade, que nos aproxima uns dos outros, pois somos todos iguais face a esse fenômeno, que é capaz de manter o equilíbrio, por exemplo, no que se refere à sobrevivência da própria espécie. A sociedade funciona não apesar da morte; sua sobrevivência e organização dá-se pela morte, com a morte e na morte.

Os conhecimentos científicos desenvolvidos pela humanidade reconhecem o valor do utensílio, do cérebro e da linguagem na história da humanidade e, por vezes, esquecem que a espécie humana é a única que reconhece a morte em sua vida, acredita no renascimento dos mortos e os enterra com ritos. Ao se falar sobre a morte, seus mistérios e a atitude do homem diante dela, faz-se necessário lançarmos inicialmente um olhar para o homem e buscarmos a revelação de suas paixões pela morte e pelo mito em sua humanidade (Morin, 1970MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. 2. ed. Sintra: Publicações Europa-América, LDA, 1970.).

Nos grupos humanos que viveram na era paleolítica, a realidade da morte já era algo existente, assim como a crença numa imortalidade, num modo de viver próprio dos mortos, que não sofrem o abandono dos vivos. Quando falamos em morte nesses grupos, não nos referimos a um conceito sobre ela, mas no olhar que a vê, dentre outras maneiras e, ao mesmo tempo, de todas essas formas juntas: como uma passagem, a entrada para o mundo dos antepassados, um acidente, um sono profundo.

Portanto, existe uma consciência realista da morte incluída no dado pré-histórico e etnológico da imortalidade: não a consciência da essência da morte, que essa nunca foi conhecida e não o será jamais, pois a morte não tem ser; mas sim a da realidade da morte: embora a morte não tenha ser, não deixa por isso de ser real, ela acontece; essa realidade encontrará depois um nome próprio: a morte, e será reconhecida como lei inelutável: ao mesmo tempo que se pretenderá imortal, o homem designar-se-á a si próprio como mortal. Assim a mesma consciência nega e reconhece a morte: nega-a como aniquilamento, reconhece-a como acontecimento. É certo que parece germinar já uma contradição no interior destes dados primeiros da consciência. Mas essa contradição não nos teria por agora detido se, entre a descoberta da morte e a crença na imortalidade, no seio dessa indivisão de origem não houvesse, não menos originariamente, uma zona de mal-estar e de horror (Morin, 1970MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. 2. ed. Sintra: Publicações Europa-América, LDA, 1970., p. 26).

Desse horror, a ideia da perda da individualidade é um complexo traumático que provoca todas as perturbações vividas por ocasião da morte. É uma ideia cujo conteúdo é o inexplorável, o vazio da existência, uma vez que a essência da morte nos aparece como inalcançável e desconhecida. A esse traumatismo, Morin (1970MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. 2. ed. Sintra: Publicações Europa-América, LDA, 1970.) se refere como o traumatismo da morte.

O traumatismo da morte, a consciência da morte e a crença na imortalidade, formam um dado triplo já sentido no seio das comunidades arcaicas, que se renova continuamente, desvelando-se como uma situação que permanece, seja com a morte familiar como se deu na Idade Média, seja como se dá na contemporaneidade, morte inaudita, recusada. O triplo dado antropológico (Morin, 1970MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. 2. ed. Sintra: Publicações Europa-América, LDA, 1970.) se encontra presente nas mentalidades arcaicas e/ou contemporâneas.

A história das mentalidades e as atitudes do homem perante a morte foi estudada pelo historiador francês Philippe Ariès, em sua obra Sobre a história da morte no ocidente: desde a Idade Média (1989ARIÈS, Philippe. Sobre a História da Morte no Ocidente: desde a Idade Média. Lisboa: Editorial Teorema, 1989.). A partir de suas reflexões, consideramos que o movimento das mentalidades diante da morte, no que diz respeito às mudanças nos modos de agir e pensar, parecem não se mover por períodos muito longos. Esse fato não deve nos fazer acreditar que tal coisa possa ser uma verdade absoluta, como se de tempos em tempos não ocorressem movimentos diferenciados. Atualmente, por exemplo, referidas atitudes têm-se modificado com maior rapidez e vivemos um momento em que a morte é repelida, interdita.

Uma ruptura considerável nesse movimento, de ritmo aparentemente imperceptível, iniciou-se no cenário renascentista, no seio de um mundo imaginário e fantasmagórico, no qual a morte foi embebida por sentidos que a erotizaram. Ela, outrora familiar, como os períodos sazonais, e afastada pelos rituais dançantes e convulsivos, aproximou-se da transgressão e do rompimento, como algo desarticulador e desorganizante da vida, por não fazer parte dela, lançando o homem para fora da sua racionalidade.

Esse mundo imaginário e erótico invade o real e mensurável, instância em que morrer e sentir a morte do outro se tornará, logo a seguir, um fardo cruel e angustiante. A dor de se separar do outro pela morte se acentua com a valorização dos laços familiares a partir da segunda metade do século XVIII. O traumatismo ancestral da morte se reafirma. Entretanto, a ruptura com o transcorrer da existência, como se a morte viesse de fora e não estivesse em nós desde o nascimento, potencializa-se, ganha uma força maior, instalando uma crise de morte, uma crise da individualidade, que não pode prescindir da crise geral do mundo contemporâneo (Morin, 1970MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. 2. ed. Sintra: Publicações Europa-América, LDA, 1970.).

Essa individualidade burguesa, nascida no mundo maquinal, em processo de ascensão, se afasta das possibilidades da vida de outrora, também dedicada a participações místicas, mágicas, com um contato mais próximo à natureza, e se aproxima de um estilo de viver em que os ditames econômicos, competitivos e industriais se fortalecem. Esses dois polos vivem dentro dessa individualidade, que tem saudade do passado, recusa o presente, entusiasma-se com o futuro e se sente inadaptada. Morin (1970MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. 2. ed. Sintra: Publicações Europa-América, LDA, 1970.) percebe essa crise a partir de sua presença nos escritos literários, poéticos e filosóficos. Essa inadaptação foi apresentada pelo Movimento Romântico, que, em seu confronto com o presente de ascensão burguesa, apresentou muito mais do que um jogo de classes e suas ideologias. Tal movimento surgiu interrogando-se constantemente acerca dos tempos idos em que existiam as crenças na magia e no contato com o natural, em que os ditames econômicos não surgiam com tanta veemência e a máquina não invadia o espaço humano.

É justamente com a estética romântica, expressa de maneira tão consolidada no contexto da arte coreográfica, que as obras começarão a ser apresentadas neste ensaio. É a morte romântica, dramatizada, tão bem representada nos ballets. Depois convocaremos o movimento Expressionista e a dança Butô como poéticas e estéticas em cujas naturezas encontramos comunicabilidades acerca da morte como presença inelutável na vida, internalizada em suas células, espaços e tempo mensuráveis e espaço-tempo mítico.

A Morte Expressa pela Arte Coreográfica

As obras coreográficas, a seguir apresentadas, são suspendidas do contexto de criação e visibilidade da dança, “[...] assim como a rede traz do fundo do mar os peixes e algas palpitantes” (Merleau-Ponty, 1999MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 12), sob a perspectiva do nosso olhar, por compreendermos suas relevâncias e significações, tanto para o intuito deste ensaio quanto para a produção do pensamento e do arcabouço artístico da dança, na qualidade de expressão e cultura humanas. Não nos detemos numa certa linearidade histórica, mas, de certa maneira, atemo-nos à condição de que elas são obras que invadem os interstícios do tempo e da memória e, acreditamos, falam aos homens de todos os tempos: tempos-espaços arcaicos, imemoriais, permanentes e futuros, tempos poéticos engendrados pela dança, como uma arte fundamental, e suas obras:

Ela é uma arte fundamental, como sua universalidade, sua antiguidade imemorial, os usos solenes que foram feitos dela, as ideias e reflexões que sempre engendrou, sugeriu ou proveu. Isto porque a dança é uma arte deduzida da própria vida, uma vez que ela não é apenas a ação de todo o corpo humano; mas a ação que nos transpõe a um outro mundo, em uma espécie de espaço-tempo que não é mais o mesmo da vida prática (Valéry, 2015VALÉRY, Paul. Philosophie de la Danse. Paris: Allia, 2015., p. 10-11, tradução nossa)5 5 No original em francês: “Elle est un art fondamental, comme son universalité, son antiquité immémoriale, les usages solennels qu’on en a fait, les idées et les réflexions qu’elle a de tout temps engendrées, le suggèrent ou le prouvent. C’est que la Danse est un art déduit de la vie meme, puisqu’elle n’est que l’action de l’ensemble du corps humain; mais action transpose dans un monde, dans une sorte d’ espace-temps que n’est plus tout á fait de meme que celui de la vie pratique”. .

Giselle6 6 Giselle estreou em 28 de junho de 1841, na Ópera de Paris, tendo Carlotta Grisi no papel de Giselle. A música fora composta por Adolphe Adam. A coreografia passou por diversas mãos, sendo a versão mais conhecida a de Marius Petipa (Portinari, 1989). : obra-prima do ballet romântico. Na obra, os corações das willis - moças que morreram antes de consumarem seus casamentos - guardam a paixão pela dança. À meia-noite, elas se levantam e, na busca por seus pares, obrigam os jovens que encontram pelos caminhos a dançarem incansavelmente até caírem mortos. Giselle, já transformada em willi, é escolhida por Myrtha, sua rainha, para encantar o duque Loys Albrecht, fazendo-o dançar até a morte. Mas esse duque é o amor de Giselle, e ela, com seus passos fascinantes se oferece e dança no seu lugar cada vez que ele se mostra cansado, até o raiar do dia, momento em que as willis se recolhem. Ele sobrevive e Giselle nunca mais reaparece (Bogéa, 2007BOGÉA, Inês. Contos do Balé. São Paulo: Cosac Naify, 2007.).

Essa obra coreográfica trouxe em seu enredo dramatúrgico, nos elementos cênicos e caracterização dos personagens, toda a vaporização das criaturas etéreas, a força do sobrenatural, a tragédia do destino consumado com a morte, a angústia dos ideais inatingíveis, a implantação de toda uma tecnologia e maquinário para criar a ilusão do diáfano, do etéreo, na presença corpórea das bailarinas, e fortaleceu de maneira definitiva a presença feminina no palco e o símbolo ocidental da bailarina clássica: à ballerina, símbolo da delicadeza, palidez e inatingibilidade, vestida com a sua sapatilha de ponta e seu “[...] tutu romântico, de corpete ajustado que deixa os ombros e espáduas nus, e saia de tecido vaporoso, em várias camadas, de comprimento mi-mollet” (Portinari, 1989PORTINARI, Maribel. História da Dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1989., p. 87).

O motivo da morte é comovente, dramático, exaltado, emocionante e inspirador. São enredos criados a partir de lendas medievais, contos de fadas, e abrangem componentes próprios do romantismo como movimento artístico e estético, além de pensamento de uma época, como: inflação dos sentimentos, o amor entre um mortal e um espírito, a relação entre os mundos material e imaterial, o destino que se consuma com a morte, a valorização do sobrenatural e mulheres delicadas e inatingíveis que se encontram desligadas do mundo terrestre.

Nesse momento histórico, a dança já se consolidara como uma expressão artística, cênica e técnica, e tem, na configuração estética dos espetáculos românticos, tantas outras histórias cuidadosamente contextualizadas numa trama coreográfica e cênica, de maneira semelhante à Giselle. Os belos fios tramados por Thanatos e Terpsícore, em obras criadas sob o olhar do Romantismo, como obra coreográfica, manifestava um diálogo entre dois mundos - o dos vivos e o dos mortos, a questão do desejo da imortalidade e da ideia da vida após a morte. Além disso, ressaltamos que fez florescer a tecnologia, as invenções e artefatos cênicos apropriados para expressar da maneira mais fidedigna os enredos, dramas e tragédias criadas, num desejo de criar em suas estéticas as visibilidades do diáfano e do intangível, pois, a atitude do artista, diante de uma nova tragédia, é o “[...] prazer nas invenções técnicas e artifícios engenhosos, no manejo e distribuição da matéria, no novo emprego de velhos motivos, velhas ideias. Sua atitude é a atitude estética frente à obra de arte, a daquele que cria” (Nietzsche, 2000NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 128).

A arte coreográfica manifestou os valores românticos em criações do repertório do balé romântico, de maneira marcante, até o início do século XX, personificando-os em obras-primas que caracterizam um período em que a morte parece retirar abruptamente o homem de seu mundo cotidiano e o faz sofrer de maneira mais dramática e forte. Sua presença é marcadamente forte até os nossos dias, num processo de perpetuação das técnicas, estéticas e práticas pelos corpos dos bailarinos e bailarinas de grandes companhias de repertório, como o Ballet da Ópera de Paris e as Companhias de Ballet do Teatro Bolshoi e do Teatro Kirov, ambas russas.

Atualmente, os balés do repertório clássico convivem com outras perspectivas em dança, já nascidas sobre outros horizontes de sentidos nos anos iniciais do século XX, no contexto que apontava para os acontecimentos de duas grandes guerras mundiais, fome, cidades dizimadas, um número acentuado de vítimas civis e, logo após, a Guerra Fria, o crescimento de armas nucleares e um planeta explorado em seus recursos de maneira rápida e intensa. Ou seja, ao mesmo tempo que foram consolidados os laços familiares e descobertas as condições de prolongar a vida, somos também solapados por circunstâncias violentas de poder (Morin, 1970MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. 2. ed. Sintra: Publicações Europa-América, LDA, 1970.). Nesse contexto, no qual as subjetividades buscam respostas para questões tão urgentes e pertinentes, nas artes,

[...] o movimento Expressionista assumiu a aposta de uma pesquisa independente e sem vínculos com a tradição que regrava e validava os produtos artísticos. A nova arte da dança, que ganhou visibilidade na Alemanha na mesma época, também se apropriou de alguns de seus preceitos para se afirmar como uma arte autônoma. Sobretudo a ideia da arte como expressão de uma ‘necessidade interior’, divulgada no livro de Wassily Kandinsky Do espiritual na Arte (1911), parece ter sido feita sob medida para esta arte emergente que questionava a tradição da Dança Clássica, submissa à música e aos gestos codificados. A necessidade interior valorizava a experiência do sujeito e abordava a criação como o ato de fazer surgir uma presença do labirinto do inconsciente por meio da manipulação dos materiais que dão forma visível a um produto artístico. Kandinsky pregava a expressividade do próprio meio da pintura sem a obrigação da representação do mundo exterior, o que permitia ao artista exprimir sua visão pessoal (Grebler, 2011GREBLER, Maria Albertina S. A dança moderna e o movimento expressionista alemão. In: VI REUNIÃO CIENTÍFICA DA ABRACE, 09, 2011, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.portalabrace.org/memoria/vireuniaopesquisaemdanca.htm >. Acesso em: 20 abr. 2019.
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, p. 1-2).

Sob esse olhar, nas linhas da dança expressionista da coreógrafa e bailarina germânica, Mary Wigman (1886-1973), encontramos a presença marcante do acontecimento da morte e das duas guerras mundiais que marcaram o século XX. Para Wigman a vida parece “[...] um esmagamento entre o peso de dois nadas. Os dois polos de sua arte: o desespero e a revolta” (Bourcier, 1987BOURCIER, Paul. História da Dança no Ocidente. São Paulo: Martins Fontes, 1987., p. 296). Sua dança e percepção do movimento são compreendidas a partir da relação que ela tem com o espaço: o espaço real é limitador. Faz-se necessário, com urgência, um espaço poético nascido do interior de cada intérprete, do que há no labirinto do seu inconsciente a ser experienciado e elaborado num processo de criação de uma linguagem que não se encontra previamente pronta e não se consolida dentro de signos já existentes. Ao tempo em que se desvela, cria seus próprios meios de desvelamento. O expressionismo alemão marca profundamente sua dança, nascida e vivida por muitos anos entre a Primeira e a Segunda Guerra na Europa devastada por conflitos, fome, mortes e perspectivas minadas de vida. Essa condição foi motivo para sua dança, autêntica em sua travessia frente à realidade da morte e a possibilidade de uma vida menos angustiante (Garaudy, 1980GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.). Talvez quando dançasse a vida se mostrasse menos difícil, o espaço opressor fosse vencido.

Sobre a inspiração para a criação da coreografia Chamado da morte, Mary Wigman assim se expressa:

De início, o sentimento de seu chamado, um apelo vindo de longe, emergindo das trevas, lancinante, imperioso. Era como uma força atraindo meu olhar em direção a profundezas longínquas, obrigando meus braços a se estenderem e a se elevarem como uma barreira, à aproximação daquele poder. Mas, já aos primeiros passos, eu era forçada a parar, como se meu corpo tivesse sido trespassado. Estava pregada ao solo como por um comando mágico. Quem ou o que me chamava assim e logo me obrigava a parar? Uma voz? Um ser humano? Uma lembrança? Nada disto. E, no entanto, ela estava lá, uma presença inegável, um polo oposto a mim, um ponto no espaço que petrificava meus olhos e meus passos. A tensão criada em mim impunha a meu corpo uma torção, arqueava fortemente minhas costas, esticava meus braços, desta vez num sentimento de desemparo e de desespero. Aquela força me paralisava, e sua sombra imensa, espessando-se à minha volta, impedia-me de fugir. Basta! Chega de fraqueza! Não, não quero mais me separar desta presença, mas, ao contrário, nela penetrar profundamente, viver plenamente esta experiência (Garaudy, 1980GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980., p. 111).

Algo a atrai para baixo, deixando-se vencer pela gravidade, como quem se deixa reconhecer o inevitável: a morte. Conhecê-la, explorá-la, não a negar. Vivenciar sua angústia e pavor poderia conduzir-nos ao conhecimento dessas forças que minam a vida, como caminho de responsabilidade pela realização de um mundo mais espiritualizado. Ela acreditava que essa configuração da dança sensibilizava as pessoas de maneira direta, sem intermédios, pois essa experiência do trágico já estava no cotidiano e linguagem humana. Há uma sensibilidade voltada para o grotesco, para a descontinuidade e o imprevisto, numa leitura dessa tensão entre vida e morte, caos, paixões e êxtases, vividos no espaço-tempo poético engendrado pela arte coreográfica (Portinari, 1989PORTINARI, Maribel. História da Dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1989.; Bourcier, 1987BOURCIER, Paul. História da Dança no Ocidente. São Paulo: Martins Fontes, 1987.).

Ela não recua. Em sua operação expressiva, o processo e a obra nos dão a ver, em suas visibilidades e gestualidades, uma dança que tem como ponto central o confronto ou destino trágico inerente ao humano: o desafio de viver ante a morte certa. Sua expressão artística e coreográfica não prima pela leveza, mas sim pela concentração, espaço mínimo, gestos fortes num contato íntimo com o chão. Sua movimentação evocava a solidão e o terror, a cabeça pendia para baixo, os ombros caiam e os braços se movimentavam num sentido de oposição e luta.

Em ato, por sua sinergia corporal, Mary Wigman, dá-nos a ver seu êxtase na personificação e interpretação da dor, na experiência de esvaziar-se a si mesmo, expondo fantasmas e condições precárias e reais de vida, numa linguagem artística que atuou no desprender-se dos códigos estabelecidos e na construção de processos criativos e obras coreográficas nas quais a singularidade do intérprete e seus êxtases interiores pudessem expressar elementos de seu inconsciente, num “[...] movimento plasmado pela interioridade de cada indivíduo, descoberto na memória corporal substitui, para ela, o movimento estranho e exterior que se copia e aprende” (Grebler, 2011GREBLER, Maria Albertina S. A dança moderna e o movimento expressionista alemão. In: VI REUNIÃO CIENTÍFICA DA ABRACE, 09, 2011, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.portalabrace.org/memoria/vireuniaopesquisaemdanca.htm >. Acesso em: 20 abr. 2019.
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, p. 4).

Como referência última, mesmo que não nascida da cultural ocidental, porém aceita e reconhecida por esta, trazemos, para estas conversas sobre dança e morte, o caminho traçado pela dança butô. Consideramos suas expressão e visualidade tramadas como fundamentais para a compreensão da relação entre a dança e a morte na existência humana, em nossa contemporaneidade. “Nascido no Japão, o butô traz na sua gestualidade a cultura de um povo que cultua os seus mortos, [...] ritualiza a própria morte no corpo” (Tibúrcio, 2005TIBÚRCIO, Larissa Kelly de Oliveira Marques. A Poética do Corpo no Mito e na Dança Butô: por uma educação sensível. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Centro de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005. , p. 21).

O butô surge no ambiente pós-guerra (Segunda Guerra Mundial), num momento de nacionalismo e recuperação de um país devastado, por corpos como Tatsumi Hijikata (1928-1986), Kazuo Ohno (1906-2010) e Akira Kasai (1943-), que se doam numa jornada de investigações sobre o corpo e seu potencial metamorfoseador e o imbricamento com questões existenciais como o inconsciente, o nascimento, o grotesco, a sexualidade, o amor e a morte. Ressaltamos, aqui, num entrelaçamento de suas vidas e de seus estudos e práticas na arte coreográfica, que Kazuo Ohno foi aluno de Mary Wigman, no Mary Wigman’s Dance Institute,

[...] de onde trouxe a influência do Expressionismo para o Butô com ênfase no dramático, grotesco e místico. Assim, juntamente com Tatsumi Hijikata (1928-1986), Ohno fez desta abordagem base da sua estética coreográfica. A ênfase interior do corpo é evidente na dança Butô onde, mesmo no não-movimento, o movimento está presente enquanto fluxo corporal interno (Reis, 2007REIS, Andréia Maria Ferreira. O Corpo Rompendo Fronteiras: uma experiência a partir do movimento genuíno e do sistema laban/bartenieff. 2007. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) - Escola de Dança e Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007. , p. 54).

A dança, sem um código norteador, como conhecemos aqui no ocidente, mas com princípios e regras definidos, traça seus primeiros passos e apresentações por volta do final da década de 1950. O aprendizado do butô não começa por uma síntese de passos e gestos que se classificam como butô. Essa dança rejeita as classificações, aceita e mantém:

[...] similaridades que nos façam dizer ‘isso é ou não é butô’. [...] As regras que manipulam o jogo são o conteúdo, a ‘carne do butô’. Uma dessas regras está ligada a uma concepção espaço-temporal e [...] outra regra aparece na formatação do butô, que aqui é entendida como uma espécie de organização singular das leis que estão presentes no estado de ser vivo, portanto, no corpo. [...] Para a maioria dos pesquisadores e artistas, a suposta ‘forma’ do butô nasceu na obra de Hijikata (Greiner, 1998GREINER, Christine. Butô: pensamento em evolução. São Paulo: Escrituras Editora, 1998., p. 63).

Como obra criada sob a vertente da dança butô, trazemos uma mais recente, intitulada UTT. Aqui, apreciada em registro fílmico de 21 de setembro de 2015.

“UTT é uma jornada, a jornada de uma mulher da vida à morte, ou pode ser da morte ao nascimento. UTT é um grito, uma onomatopeia, como se estivéssemos recebendo um golpe brutal no ventre”, assim Carlota Ikeda delineia sua própria obra, coreografada em parceria com Ko Murobushi e dançada por Maï Ishiwata, na Maison du Japon (2014CARLOTA IKEDA. Cie Ariadone/Carlotta Ikeda - UTT - GLOB. Théâtre de Bordeaux - Du 10 au 17 octobre 2014. 2014. Disponível em: <Disponível em: https://vimeo. com/104329003 >. Acesso em: 20 abr. 2019.
https://vimeo. com/104329003...
).

Em UTT, há o negrume, e dele surge um corpo em seu vulto, revelado pela luz a preencher o espaço e esse mesmo corpo em sua brancura. Corpo que parece sair do espaço negro e branco, curvado e escondido, a distender esse mesmo espaço por seus passos lentos. Tudo se passa como um chamado; o chamado daquele corpo que nos vemos e que nos olha, a nos convocar a uma jornada de desnudamento de nós mesmos, das nossas sombras e nossas dimensões translúcidas e ambíguas. Os ventres - o meu, o seu, os nossos, os dos outros -, carregados de ancestralidade, se abrem e parem novos horizontes de sentidos e possibilidades. Todos esses ventres estão ali, nas gestualidades da dançarina. Seu corpo em sua sinergia e operação expressiva desvela todos os ventres históricos, subjetivos. O espaço-tempo torna-se cíclico, mítico em uma temporalidade e fluxos de movimentos que expressam imagens e paisagens a nos convocar a experiência da linguagem pré-reflexiva, da ordem do sensível e do espaço-tempo mítico.

Essa concepção espaço-temporal se refere ao ma, pesquisado a partir dos mitos japoneses, como um intervalo tempo-espaço, descontínuo, que instaura um estado de permanência no tempo e no espaço. Não se trata de uma ideia abstrata, mas o intervalo concreto entre ações:

Ma é o espaço ou tempo entre um movimento e o outro. No entanto, não é simplesmente o espaço vazio. É um tempo-espaço que pode ser transportado artisticamente [...]. É a base do sentido físico e estético do movimento das pessoas. Por isso mesmo, não há uma definição clara e lógica da palavra (Greiner, 1998GREINER, Christine. Butô: pensamento em evolução. São Paulo: Escrituras Editora, 1998., p. 40).

“Tempo-espaço descontínuo, mítico, possível de voltar ao começo para ser diferente, rompendo com o fluxo evolutivo linear e seguindo as intensidades do corpo em cada acontecimento, incluindo as suas pausas e os seus silêncios” (Tibúrcio, 2005TIBÚRCIO, Larissa Kelly de Oliveira Marques. A Poética do Corpo no Mito e na Dança Butô: por uma educação sensível. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Centro de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005. , p. 106), em que se abrem fissuras e dobraduras outras no espaço, que permitem a rememoração de nossa ancestralidade, das memórias perdidas por entre vísceras, ossos e musculaturas congestionadas por um fluxo linear e lógico de utilização do tempo e do espaço.

É no estado de ser vivo, de ser corpo, que a dançarina nos apresenta o corpo morto, o corpo numa situação que pode “habitar o ma”. Hijikata o instaura como o caminho para se dançar fora do eixo evolutivo. É o corpo que tem a qualidade para dançar nesse intervalo, que reconhece as tramas e fios desse tempo-espaço. “Só a morte rompe o fluxo do tempo. Suspende o corpo neste intervalo espaço-temporal. Trabalha com descontinuidades, destruição e criação” (Greiner, 1998GREINER, Christine. Butô: pensamento em evolução. São Paulo: Escrituras Editora, 1998., p. 44).

Trata-se de uma desconstrução para o nascimento de conexões, dobraduras, gestos e formas outras que brotam do corpo morto, do acesso a possibilidades do sentir e do mover-se que já estão no corpo; mas não surgem com clareza, com facilidade. Precisam da morte como continuidade da vida, para se permitirem a uma descontinuidade no fluxo que desencadeia mapeamentos, singularidades e gestualidades outras. É um emergir das profundezas corpóreas.

A ideia do corpo morto está intimamente ligada a essa questão de deixar de ser algo ou alguém e renascer como outra coisa ou outra pessoa. Mas também pode ser entendido como uma espécie de leitura de Hijikata para o ma. A descoberta desse caminho envolve formas diferentes de pensamento. [...] Isso porque, uma coisa é ter consciência de que o corpo morto pode ser transformado em dança ou ter consciência da possibilidade de se transformar em uma pedra ou vegetal; outra coisa é ter consciência de corpo morto, de pedra e de vegetal para dançar. [...] O que interessa nesse momento é que só o corpo morto parece capaz de trabalhar neste registro, habitando o lugar/não-lugar chamado, pelos japoneses, de ma. [...] é um corpo que trabalha em um universo de leis particulares. [...]. Trabalha com processos invisíveis, emprestados de outros universos de criação, como aqueles que coexistem em nosso corpo, mas não aparecem com clareza. [...] O corpo morto é ainda uma afirmação da vida (Greiner, 1998GREINER, Christine. Butô: pensamento em evolução. São Paulo: Escrituras Editora, 1998., p. 61-62).

Na dança butô, assim como percebemos em UTT, a dançarina se coloca à mercê da morte, para viver um mapeamento outro de suas ações e sua dança. Não segue um padrão, nem vive as classificações que nos direcionam a um modelo único de dançar. Ao mesmo tempo, mantém as similaridades e particularidades estéticas dos princípios norteadores de uma configuração da dança que coloca o corpo em constantes experimentações e sínteses que não se concluem, ficam em aberto, mas não se operam sem nexos.

Imaginamos ser como um metamorfosear-se que não se processa a partir de um determinismo biológico, mas de uma escolha pela possibilidade de registros, mapeamentos e criações que brotam da continuidade da vida que morre, vive, joga e dança num espaço-tempo mítico e descontínuo de suas memórias e ancestralidades, num ressignificar, clarificar ou, quem sabe, num nascer de saberes, cheiros, danças, tramas e gestualidades outras, tão bem desveladas nos corpos e nas imagens que produzem.

Pensar essa obra coreográfica é uma tentativa de um estado de tensão e de questionamento acerca da morte num contexto mais recente, de sua acentuada confiscação e negação. Na obra, a morte e a vida não se separam, são complementares, são inerentes à jornada daquela mulher que expressa, em seu corpo e gestualidades, a jornada de todos, rumo à morte. O que acontece no século XX, mais precisamente nos seus últimos trinta anos, é uma relação inaudita e brutal quando nos referimos à morte: outrora familiar, da vida doméstica, passa a ser não falada, não referida, recusada. O que não significa estar com os olhos cerrados para ela. Não necessariamente precisaria ser desejada, mas sua recusa nesses tempos tem sido impactante.

Na contemporaneidade, o homem ocidental manifesta uma dificuldade em lidar com a morte, percebe-a como externa a ele, um acontecimento contrário à vida. A atitude antiga, relacionada a uma morte familiar e atenuada, se opõe muito à nossa, em que a morte nos causa medo. Ariès (1989ARIÈS, Philippe. Sobre a História da Morte no Ocidente: desde a Idade Média. Lisboa: Editorial Teorema, 1989.) chama essa morte familiar de morte domesticada. Com isso, o autor não pretende dizer que a morte tenha sido anteriormente selvagem, e, sim, pelo contrário, que ela se tornou selvagem em nossos dias. Não há espaço para se viver os lutos numa atitude diante da vida na qual se pretende um estado de felicidade constante. Não podemos estar tristes ou cabisbaixos, e devemos evitar os acontecimentos que nos causem desprazeres, além de apresentarmos, sempre, uma animação perante os outros (Morin, 1970MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. 2. ed. Sintra: Publicações Europa-América, LDA, 1970.). Neste momento, referimo-nos a uma necessidade que se apresenta como uma imposição, ou um estado de negação das dificuldades existenciais pelas quais qualquer ser humano passa; referimo-nos a um sentimento de felicidade que nega os momentos de angústia inerentes à espécie humana, social e culturalmente construída, que sente, intervém e se refaz constantemente.

Considerações Finais

Montaigne, referindo-se a Cícero, mostra como filosofar é aprender a morrer, posto que a contemplação nos arranca para fora de nós, separando-nos do corpo, o que, em suma, se assemelha à morte. A meta de nossa existência é a morte. Quíron recusou a imortalidade quando Saturno, seu pai, deus do tempo e da mortalidade, lhe revelou as condições dela: “Todos os dias levam à morte, só o último o alcança” (Montaigne, 1975MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Coleção Os Pensadores)., p. 54).

Nesse pensamento, percebe-se fortemente a relação da morte e da vida com a temporalidade. O mesmo ocorre na dança, posto que esta é uma arte do tempo conforme apreendemos da leitura de Paul Valéry, para quem a dança é uma forma do tempo, um tempo criado no qual podemos transformar o corpo, o espaço, a vida e a morte. Em seu ensaio sobre filosofia da dança, o filósofo afirma que a pessoa que dança se fecha de alguma maneira em uma duração feita de uma energia atual, que só existe no instante da própria duração: “No estado de dança, todas as sensações do corpo moventes e movidas são, ao mesmo tempo, entrelaçadas” (Valéry, 2015, p. 24, tradução nossa)7 7 No original em francês: “Dans l’état dansant, toutes les sensations du corps à la fois moteur et mû sont enchaînées”. . Podemos dizer que, no estado dançante, também podemos experimentar sensações de vida e morte, tais como elencadas neste ensaio em obras coreográficas que transmutam o corpo de seus bailarinos, nosso olhar, nossa leitura desse tema.

Nosso pensar sobre a morte reflete-se também nas escolhas e nos diálogos com nossos interlocutores, compreendendo que o dado triplo antropológico sobre ela, estudado por Morin (1970MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. 2. ed. Sintra: Publicações Europa-América, LDA, 1970.), é, para nós humanos, uma questão ancestral que se renova continuamente. Vivemos uma condição de nos sentirmos mortais e imortais, cultuamos nossos mortos em ritos funerários desde tempos pré-históricos ou arcaicos, e lentamente fomos modificando-os, como nos aponta Ariès (1989ARIÈS, Philippe. Sobre a História da Morte no Ocidente: desde a Idade Média. Lisboa: Editorial Teorema, 1989.). Para além das crenças religiosas ou espirituais, em geral, o humano acredita na imortalidade, na continuação da vida, seja num mundo dos mortos, em paralelo ao mundo dos vivos, seja na ancestralidade que trazemos em nossas células e em nossos hábitos e costumes, na nossa cultura, que perpetua e ressignifica atitudes e pensamentos que foram dos nossos avôs, bisavôs, e tantos outros que nos precederam.

Compreendemos que as obras de arte em dança, com as quais conversamos, realizam tramas coreográficas que revelam e são reveladas por corpos que expressam a visibilidade do humano corporal, espiritual, paradoxal, racional e poético, todos ao mesmo tempo, o tempo todo, todo o tempo num espaço único de concretude: o corpo que se faz e se refaz na existência. Dessa forma, “[...] ao dançar, ultrapassamos as necessidades fisiológicas do corpo em um êxtase motriz exasperado cuja vibração ecoa no tempo e no espaço e transforma as ligações, os sentidos, os hábitos” (Nóbrega, 2015NÓBREGA, Terezinha Petrúcia da. Sentir a Dança ou Quando o Corpo se põe a Dançar... Natal: IFRN, 2015., p. 126).

As construções cênicas e coreográficas, bem como as configurações estéticas que permearam nosso texto, refletem historicamente uma relação entre a dança e a morte que independe de uma obediência a um código técnico e artístico estabelecido. A morte já nasce conosco, aliás, talvez seja melhor dizer que nós é que nascemos com ela. Não sabemos se faz diferença. Para Montaigne é indiferente, como já vimos anteriormente. “Quantas maneiras diversas tem a morte de nos surpreender?” (Montaigne, 1975, p. 50).

Desse modo, as Musas, invisíveis, e em especial Terpsícore, em procissão noturna, como cantoras-dançarinas, ao serem evocadas, invadem o negror da Noite, geradora de Thanatos - presentificação da Morte -, e nos presenteiam com a presentificação e renovação da Dança como lugar de comunicabilidade da Morte. Os fios que constituíram a tessitura feita por Terpsícore e Thanatos, neste ensaio, enquanto dialogávamos com nossos interlocutores, nos mostram uma diversidade de gestos e pensares que nos fazem refletir sobre a extensa capacidade simbólica e criativa humana, que produz e se alimenta de imagens díspares e, por vezes, dissonantes acerca de um mesmo motivo: a morte e os registros vivenciais de nossas experiências com ela, numa linha poética do tempo que se dá a ver em processo de coexistência, em círculos de vozes, gestos e linguagens renovadas, continuamente...

Referências

  • ARIÈS, Philippe. Sobre a História da Morte no Ocidente: desde a Idade Média. Lisboa: Editorial Teorema, 1989.
  • BOGÉA, Inês. Contos do Balé. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
  • BOURCIER, Paul. História da Dança no Ocidente. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
  • CARLOTA IKEDA. Cie Ariadone/Carlotta Ikeda - UTT - GLOB. Théâtre de Bordeaux - Du 10 au 17 octobre 2014. 2014. Disponível em: <Disponível em: https://vimeo. com/104329003 >. Acesso em: 20 abr. 2019.
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  • FEITOSA, Charles. Explicando a Filosofia com Arte. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
  • GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
  • GREBLER, Maria Albertina S. A dança moderna e o movimento expressionista alemão. In: VI REUNIÃO CIENTÍFICA DA ABRACE, 09, 2011, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://www.portalabrace.org/memoria/vireuniaopesquisaemdanca.htm >. Acesso em: 20 abr. 2019.
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  • GREINER, Christine. Butô: pensamento em evolução. São Paulo: Escrituras Editora, 1998.
  • HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. 7. ed. São Paulo: Iluminuras, 2007.
  • MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. 2. ed. Sintra: Publicações Europa-América, LDA, 1970.
  • MORIN, Edgar. Mês philosophes. Meaux: Editions Germina, 2011.
  • MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Coleção Os Pensadores).
  • NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • NÓBREGA, Terezinha Petrúcia da. Sentir a Dança ou Quando o Corpo se põe a Dançar... Natal: IFRN, 2015.
  • PORTINARI, Maribel. História da Dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1989.
  • REIS, Andréia Maria Ferreira. O Corpo Rompendo Fronteiras: uma experiência a partir do movimento genuíno e do sistema laban/bartenieff. 2007. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) - Escola de Dança e Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.
  • TIBÚRCIO, Larissa Kelly de Oliveira Marques. A Poética do Corpo no Mito e na Dança Butô: por uma educação sensível. 2005. Tese (Doutorado em Educação) - Centro de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005.
  • VALÉRY, Paul. Philosophie de la Danse. Paris: Allia, 2015.
  • 1
    Terpsícore: Musa da Dança (Tibúrcio, 2005).
  • 2
    Thanatos: Deus da Morte (Feitosa, 2004FEITOSA, Charles. Explicando a Filosofia com Arte. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.).
  • 3
    Ver Hesíodo (2007HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. 7. ed. São Paulo: Iluminuras, 2007.).
  • 4
    No original em francês: “Vivre de mort, mourir de vie. Voilá une formule typique d’Héraclite. À première vue, Il s’agit d’um non-sens, ou d’une planitude: nous vivons de la mort des animaux ou des plantes que nous mangeons. [...] On peut découvrir um autre sens à cette formule. ‘Vivre de mort, mourir de vie’, s’approfondit grâce à ce que l’on sait aujourd’hui: notre organisme vit de la mort de sés cellules remplacées par des cellules jeunes dans une régénération permanente. Et lês sociétés ne vivent-elles pas parce que des personnes meurent et d’autres, plus jeunes, arrivent et prennent leur place? La vie et la mort sont certes ennemies fondamentales, mais la vie lutte contre la mort en utilisant la mort. Les deux ennemies, absolument antagonistes, sont complémentaires. La vie ruse pour lutter contre la mort, elle integre celle-ci, que ne cesse pas pourtant d’être une ennemie”.
  • 5
    No original em francês: “Elle est un art fondamental, comme son universalité, son antiquité immémoriale, les usages solennels qu’on en a fait, les idées et les réflexions qu’elle a de tout temps engendrées, le suggèrent ou le prouvent. C’est que la Danse est un art déduit de la vie meme, puisqu’elle n’est que l’action de l’ensemble du corps humain; mais action transpose dans un monde, dans une sorte d’ espace-temps que n’est plus tout á fait de meme que celui de la vie pratique”.
  • 6
    Giselle estreou em 28 de junho de 1841, na Ópera de Paris, tendo Carlotta Grisi no papel de Giselle. A música fora composta por Adolphe Adam. A coreografia passou por diversas mãos, sendo a versão mais conhecida a de Marius Petipa (Portinari, 1989PORTINARI, Maribel. História da Dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1989.).
  • 7
    No original em francês: “Dans l’état dansant, toutes les sensations du corps à la fois moteur et mû sont enchaînées”.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2018
  • Aceito
    25 Abr 2019
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