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Língua Mata Virgem Brasílica: um perspectivismo dos saberes transversos

Langage Vierge Forêt Brésilic: un perspectivisme des savoirs transversaux

Resumo:

Apresenta-se um conjunto de recorrências discursivas em torno do problema da exterioridade americana, evidenciando linhas de força de um imaginário e de uma linguagem que constituem dispositivos coloniais. Como estratégia metodológica, assinala-se modos pelos quais a imagem da Imaculada Conceição é dada numa fulguração figurativa, rompendo o estatuto empírico do dado histórico para ensejar a transversalidade de uma apreciação perspectivista. Tal percurso se dá junto ao pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari e das perspectivas animistas estudadas por Eduardo Viveiros de Castro, a fim de discutir as tensões antropológicas do que, em nossas poéticas, chamamos de idolatria iconoclasta.

Palavras-chave:
Dispositivo Colonial; Imaginária Mariana; Perspectivismo; Linguagem; Canibal

Résumé:

On présente un ensemble de récurrences discursives autour du problème de l’extériorité américaine, en soulignant les lignes de force d’un imaginaire et d’un langage qui constituent les dispositifs coloniaux. En tant qu’une stratégie méthodologique, on signale les modes par lesquels l’image de l’Immaculée Conception se donne à voir par force d’une fulguration figurative, brisent le statut empirique du fait historique pour permettre la transversalité d’une appréciation perspectiviste. Ce parcours suit la philosophie de Gilles Deleuze et Félix Guattari et les perspectives animistes étudiées par Eduardo Viveiros de Castro à fin de discuter les tensions anthropologiques de ce que, dans notres poétiques, on appelle l’idolâtrie iconoclaste.

Mots-clés:
Dispositif Colonial; Imaginaire Mariana; Perspectivisme; Langage; Cannibale

Abstract:

A discursive recurrences set around problem of American exteriority, evinces power lines of an imagery and a language that constitute colonials dispositive. As methodological strategy, it signs the modes by which image of Immaculate Conception is given in a figurative fulguration, breaking empirical historical status to entice the transversality of a perspectivist appreciation. Such a course comes together with the thinking of Gilles Deleuze and Félix Guattari and the animist perspectives studied by Eduardo Viveiros de Castro in order to discuss the anthropological tensions of what in our poetics we call iconoclastic idolatry.

Keywords:
Colonial Dispositive; Marian Imaginary; Perspectivism; Language; Cannibal

Introdução

Figura 1
Capa do TESORO de la Lengua Guarani, edição 1639

Considerando as imagens e os discursos que constituem o Brasil desde o século XVI, mas especialmente os que desde o século XVII ainda se fazem presentes no que se denomina barroco colonial, este artigo parte de dois pontos: 1) as binômias contrastantes do velho e novo; bem e mal (em face à doutrinação cristã); selvagem e civilizado; inocente e perspicaz; 2) a transversalidade figural da imaginária e suas variações, dando especial atenção ao papel da Igreja. Essas duas linhas de acontecimentos se dão a ver no dispositivo do Brasil Colônia, sendo suas decorrências aspectos fundamentais na compreensão da constituição do povo brasileiro. Sem adentrarmos no Brasil atual, trataremos do dispositivo colonial a fim de que estudos futuros possam fazer as devidas relações. A partir da epistemologia do século XVII, com o projeto de Leibniz para uma Ciência Geral (2014LEIBNIZ, Gottfried Wilhem. A Arte das Controvérsias. Tradução de Marcelo Dascal. São Leopoldo: UNISINOS, 2014. , p. 239-263) e do arquivo imagético obtido em trabalho de campo junto à produção artística nele envolvida, pensa-se o gosto pelo inventário das “peças” (Leibniz, 2014, p. 262) do conhecimento e suas possíveis sistematizações. O inventário, embora compreenda dicionários, os thesaurus, é um catálogo mais amplo de “fatos e circunstâncias” que podem servir de “base ao raciocínio” (Leibniz, 2014, p. 262), mesmo que, com Leibniz, a discussão sobre a imprecisão da lógica, e sua aplicação quanto a uma organização do conhecimento, seja mantida no horizonte da problemática aqui discutida. As considerações que desenvolvemos convergem de achados bibliográficos, em especial via consultas à Biblioteca Digital Curt Nimuendajú2 2 A Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - línguas e culturas indígenas sul-americanas, tem seu acervo de documentos disponível em: <http://www.etnolinguistica.org/>. Acesso em: 10 dez. 2017. , e nos trabalhos de campo com monumentos coloniais nas cidades do ciclo do ouro, em Minas Gerais e em Salvador (Bahia). Nessas localidades, e em outros sítios, foram inventariadas, em 2017, gravuras e pinturas da Virgem da Conceição3 3 Não nos deteremos nos estudos específicos da Imaginária, apenas ressaltamos, no âmbito de suas pesquisas, a recorrência das imagens de Nossa Senhora da Conceição, sendo um dos arquivos da presente pesquisa o encontro de pinturas decorrente da iconografia e da estilística pictórica espanhola, observadas nas sacristias do Convento de Nossa Senhora do Carmo, em Salvador/BA, Igreja da Ordem Terceira de São Francisco em São João Del Rey/MG e no retábulo-mor Matriz de Santo Antônio de Laguna/SC, situadas nas produções e repercussões do dogma mariano no século XIX. , imagem aqui destacada devido a sua aparição em documentos históricos de domínio público, junto aos quais pensamos as relações entre língua, culto, cultura e colonização.

Articulamos, dentro de uma pesquisa poética, traços desses elementos para tensionar a imaginária colonial (em seus efeitos hermenêuticos) e, em tese, a linguagem e a noética colonizada (em seus efeitos epistêmicos e semióticos), com o intuito de mostrar as possíveis transições de uma poética descolonizadora4 4 Aqui trazemos uma das imagens (Figura 2) dessa poética, mostrada na colagem que iniciou o projeto Idolatria Iconoclasta, o qual, além da pesquisa que tomamos como pictural e epistemológica, relacionando a produção visual aos sistemas de pensamento, apresenta um rol de colagens, pinturas, esculturas e performances que têm como matéria as figuras de santos. Algumas das produções do projeto, cuja autoria converge a uma deste texto, podem ser visualizadas em: <https://plus.google.com/collection/op9FCE>. Acesso em: 10 dez. 2017. . Com base em Foucault, evocamos a historiografia a fim de se pensar os problemas da linguagem e a força de determinadas figuras nos dispositivos coloniais. Partimos da suposição de que o dispositivo heteróclito do barroco brasileiro define as bases de um modo de vida no qual nem a língua, nem os ídolos e nem a própria nação possuem modelos estáveis. Dentro de uma miríade de objetos de análise, o caso aqui evocado se detém especialmente na imagem e na discursividade em relação à Virgem da Conceição, a qual nos permite mostrar que as diferenças produzidas pelo negativo, em termos tanto de preleções como de crenças, dão lugar a uma relação não definida em termos duais, e sim delineada, em uma rica disposição sincrética, por afectos, os quais, num exercício poético dentro dos arquivos pesquisados, chamamos de a Língua Virgem Brasílica, inserindo junto o termo mata, fundamental na constituição do País, para torcer a tensionar o termo virgem.

Colo e colos

Nas primeiras páginas do seu já clássico Dialética da colonização, Alfredo Bosi define a especificidade semântica das palavras cultura, culto e colonização a partir de sua raiz comum: o verbo latino colo. “Colo é a matriz de colonia enquanto espaço que se está ocupando, terra ou povo que se pode trabalhar e sujeitar” (Bosi, 2009, p. 11). E ainda: colo “no chamado sistema verbal do presente, denota sempre alguma coisa de incompleto e transitivo” (Bosi, 2009, p. 11). A situação colonial, no corpo semântico da própria palavra, indica um signo de incompletude, ou ainda a particularidade da condição transitiva associada a um estado verbal. Colo, portanto, denota a singularidade de um espaço ocupado e a carência ontológica de um estado que demanda complemento nominal. Sem complemento, o vocábulo também se relaciona ao colo, sinônimo de seio. O colo, mais do que o espaço compreendido desde o peito ao ventre, implicando os seios, que tanto recebem como alimentam, ainda exprime o ato, nunca desvinculado desse determinado espaço no corpo, tanto o recôndito do coração como um órgão-superfície, que acolhe, que abraça.

A iconografia mariana mostra a Igreja, figurada pela mulher coroada, com muitas figuras pequenas ao seio ou colo. Datada de 1152, temos essa imagem como uma das ilustrações do Liber Scivias, da monja beneditina Hildegard de Bingen (Pernoud, 1996PERNOUD, Régine. Hildegard de Bingen: a consciência inspirada no século XII. Rio de Janeiro: Rocco , 1996.). Do dispositivo medieval, a Mater, o que, junto ao que compreendemos como dispositivo do início do mercantilismo, é o que acolhe todos os povos e raças em trocas e capitais comuns. Desde a reestruturação do Império Romano na Roma Cristã, essa estrutura matriz, que especialmente após o século XIII se organiza jurídica e hierarquicamente, é capaz de dar colo e colonizar, destarte o fortalecimento das coroas e suas empresas marítimas, as quais empregaram toda uma sorte de aventuras comerciais e extrativistas, as quais o europeu tomava como descobrimento e conquista.

Tratar os povos conquistados como crianças era vital para a imagem sobre a qual os ideais de educação e missões catequizantes se fundava. Essa maternidade espiritual, passível de ser associada às diásporas e assimilação de elementos judaicos na mística e imaginária cristã, ganha uma força notável no século XVII, especialmente nas reações contrarreformistas e nas missões evangelizadoras. É nesse contexto que o estilo barroco se desenvolve em cortes de pranchas e talhas de madeira que remetem a úteros, ventres, trompas de falópios e ovários. O próprio termo estilo, oriundo do ato de entalhar, passa a ser usado nesse século. O estilo manoelino e joanino observado nas igrejas coloniais, no Brasil, tem como elemento indispensável, na imaginária dos templos e ritos, as Nossas Senhoras. Desde o século XVI se torna incontável a produção pictórica de Madonas nas colônias e na Europa, indicando forte reação à nova igreja cristã, reformista, carente da imponência devida a um culto matricial.

Nos marcos da conquista da América, o incompleto e o transitivo passam a funcionar como motivos motores de um regime óptico-sonoro (o que doravante explicaremos como uma tópica; um agenciamento), o qual recria as imagens da diferença como contrafiguras da identidade por meio de uma escrita colonial já diferenciada do português europeu e de uma imaginária que reitera a matriz branca e cristã, ainda que se amorene e apresente variações5 5 Como é possível observar nas pinturas do Mestre Manuel da Costa Athayde, especialmente na Nossa Senhora da Assunção com traços africanos, de pele cor de bronze, no forro da cúpula da capela mor Igreja Nossa Senhora do Rosário, em Mariana/MG. . Baseada numa análise minuciosa da escrita de Pero Magalhães Gandavo, Andrea Daher afirma que “[...] os modos de vida indígenas só existem, para Gandavo, em oposição aos modos de vida daqueles que ocupam lugar, por definição, na hierarquia do corpo místico imperial luso: os colonos portugueses” (Daher, 2014, p. 396). A escrita de Gandavo apresenta o entrecruzamento dos dois sentidos entrevistos por Bosi na palavra colônia: o interesse econômico envolvido no ocupar e trabalhar um espaço; a introdução do “modelo teológico-político da doutrina católica” como suplemento à incompletude ontológica dos autóctones. “A máquina escriturária é, ela mesma, máquina conversora” (Daher, 2014, p. 398). Também é por meio da escrita, mais precisamente da arte epistolar, que a Companhia de Jesus constrói os termos do seu projeto global em torno de três aspectos interligados: a circulação de informações; o reforço ao espírito corporativo; e a transmissão de experiências místicas e devocionais. O projeto jesuítico é inseparável de um “dever de escrita” que não é apenas um meio espontâneo de expressão ou comunicação de uma realidade exterior, mas um “mapa retórico” funcional e consubstancial à própria política evangelizadora, cujo formalismo de estrutura remete à antiga tradição da ars dictaminis (Pécora, 2001PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., p. 18-29).

A conversão não é apenas evangélica, mas sim, acima de tudo, pictural, poetizada em versos, canções e imagens. E “os traços dos brasis foram sendo encontrados proporcionalmente à muita andança nas letras” (Pécora, 2001PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., p. 68). Tal funcionamento evidencia os termos de uma problemática que remete à questão que Foucault traz de Blanchot: a relação entre a linguagem e o seu exterior, alegorizada, nesse caso, pelo confronto hermenêutico entre a Europa do Renascimento e a incógnita, o fora, que vem se constituindo, ainda sem imagem e sem palavra própria, como a cultura americana. O que não tem imagem, o que não encontra palavra, cria a partir das imagens e das palavras já estratificadas. Esse tipo de embate e a necessidade de conjurar alegoricamente o fora pode ser mostrado com a aparição de Nossa Senhora de Guadalupe ou Tonantzin Coatlaxopeuh, no México, em 1531, cujo culto expressa a junção entre divindades pré-colombianas e a Grande Mãe cristã.

É como se ao mesmo tempo em que elabora uma interioridade filosófica, costurando a espessura dramática da sua própria consciência histórica e projetando seus reflexos através da identidade do sujeito e do mundo, a cultura ocidental fosse perturbada pela irrupção simultânea de um movimento que desfaz a universalidade das costuras e expõe o drama da consciência e da identidade ao enigma do seu próprio desmantelamento. A este segundo movimento, Michel Foucault denomina pensamento do exterior, e, enquanto o primeiro movimento tem os seus expoentes nas figuras de Kant e Hegel, o segundo é relacionado às experiências singulares de Sade, Holderlin, Nietzsche, Mallarmé, Artaud, Bataille e, finalmente, seu epígono contemporâneo: Maurice Blanchot. Se, no primeiro movimento, opera-se o consórcio entre a lei da História, a unidade do Sujeito e a inteligibilidade do Mundo, formalizando-se a trama a partir da qual os personagens se acomodam bem ou mal a uma ordem teleológica do discurso civilizatório, no segundo, o que se dá a ver são as convulsões do desejo, apresentando a pura materialidade de uma instância cuja única lei é a sua própria nulidade neutra e de uma poesia que desespera e despedaça o sujeito e o sentido nas ruínas de uma transcendência obstruída.

Trata-se de um tipo de experiência que não pode ser interiorizado, decifrado ou interpretado no nível macroscópico da cultura, mas que se mantém de certo modo estranho, distante, exterior. Segundo Foucault (2009FOUCAULT, Michel. O Pensamento do Exterior. In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2. ed. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. P. 219-242., p. 223), deve-se possivelmente a Sade e Holderlin a descoberta de um murmúrio infinito que percorre “uma linguagem em vias de se perder”. Esse murmúrio funciona como uma espécie de signo ao avesso, invencível e intraduzível, colado à espessura da linguagem como um continuum de abertura e desapropriação que anula a ingenuidade de primeiro grau do nexo representativo. O pensamento do exterior, também chamado de fora, designa, portanto, a própria impossibilidade dos sistemas sígnicos fecharem-se numa universalidade instrumental, vinculando a experiência da linguagem a um paradoxo de origem, segundo o qual aquele que fala não deve se manifestar, mas desaparecer, deixando cintilar, como um rastro da sua própria ausência, o vazio consubstancial ao gesto.

Num ensaio teórico sobre a descoberta do Novo Mundo, escrito em 1974, o escritor Italo Calvino (2010CALVINO, Italo. Coleção de Areia. São Paulo: Companhia das Letras , 2010., p. 24, grifo do autor) explicita o esquematismo específico que rege a correlação entre a alegoria e a incógnita:

A alegoria corresponde à necessidade que a Europa tem de pensar a América segundo seus próprios esquemas, de tornar conceitualmente definível aquilo que era e continua sendo a diferença, talvez a irredutibilidade americana, isto é, o fato de ter sempre algo a dizer à Europa - desde o primeiro desembarque de Colombo até hoje - que a Europa não sabe.

A experiência do não-saber e o esforço do pensamento em pensar o impensado - o irredutível americano - convivem desde o início da colonização com o enquadramento alegórico e denegativo do que se apresenta como novo a um vocabulário preexistente. “O olhar colonial, que contabiliza os corpos, os bens e as almas, permite perceber perpetuamente o encontro, o choque entre uma vontade ilimitada de controle e grupos que (voluntariamente ou não) concordam em se curvar a ela” (Gruzinski, 2003GRUZINSKI, Serge. A Colonização do Imaginário: sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol. São Paulo: Companhia das Letras , 2003., p. 16). Ou seja, “[...] descobrir o Novo Mundo era uma empresa bem difícil, como todos nós sabemos. Mas, uma vez descoberto o Novo Mundo, ainda mais difícil era vê-lo, compreender que era novo, todo novo, diferente de tudo o que sempre se esperou encontrar como novo” (Calvino, 2010CALVINO, Italo. Coleção de Areia. São Paulo: Companhia das Letras , 2010., p. 17, grifos do autor). E, como personificação de novidade, nenhuma imagem poderia ser mais precisa do que uma divindade ligada a um ideal de concepção.

Os apontamentos de Calvino convergem com um sentido especialmente evidenciado pela historiografia contemporânea: ao longo do século XVI, o círculo hermenêutico se fecha sobre a América (Todorov, 2003TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.). A irredutibilidade americana, contudo, não é circulada por um discurso monolítico capaz de opor em termos absolutos identidade e diferença; ela enseja uma proliferação polifônica, cuja complexidade é expressa pela coexistência/concorrência entre diferentes sistemas de representação (Daher, 2014DAHER, Andrea. Narrativas quinhentistas sobre o Brasil e os brasis. In: FRAGOSO, José Luis Ribeiro; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil colonial: volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. P. 389-435.). Máquinas escriturárias portuguesas, espanholas, francesas, jesuíticas, huguenotes, cosmográficas, pictográficas, concorrem para esquadrinhar uma matéria escorregadia em múltiplas modulações. Thesaurus procuram contornar o significado de palavras que, de viagem em viagem, de povo e povo, tomam diversos sentidos e usos, dificilmente tendo contornos fixos. Estes somente se tornam possíveis quando transcritos em tratados lineares, os quais tentam firmar o significado dos ditos, tal como o Tesoro de La Lengua Guarani, composto pelo jesuíta Antonio Ruiz de Montoya (1639RUIZ DE MONTOYA, Antonio. Tesoro de la lengua guarani. Madri, Juan Sanchez, 1639. Disponível em: <Disponível em: https://archive.org/details/tesorodelalengua00ruiz >. Acesso em: 10 dez. 2017.
https://archive.org/details/tesorodelale...
), o qual trazemos aqui uma reprodução da capa (Figura 1) à guisa de demonstração.

No caso da colonização brasileira, a abordagem clássica consistia em opor o modelo de leitura português (ou ibérico) ao francês, cujo Livre du Trésor, escrito no exílio de Bruno Latini, entre 1260 e 1267, se torna modelo aos subsequentes compêndios do que vem a ser a ciência, ou seja, o conhecimento esclarecido que nos 1700 será tão caro ao mundo colonial. Um olhar pragmático e depreciativo era associado ao viés mercantil estratégico do colono português, enquanto o registro do viajante francês correspondia à curiosidade e à tolerância, associadas à emergência de uma atitude pré-etnográfica consubstancial à formação do mito do bom selvagem, o qual emergirá nos círculos franceses ilustrados. Confrontada com o enfoque teórico de novas perspectivas de pesquisa e com a ampliação do acervo documental disponível, tal abordagem tende a experimentar o desafio de uma dupla prova. Por um lado, a proliferação dos relatos, sobre os quais não nos deteremos no presente texto, que escapam aos limites da língua e proveniência portuguesa, espanhola e francesa, reforçando aqui e ali um conjunto das percepções singulares que nos interessam. Por outro, a reiteração, independente da multiplicidade das fontes, de um padrão sobre “[...] a oposição entre uma terra rica, pródiga e bela e um povo, desde muito cedo, corrompido, indolente, inculto, enfim, indigno de ser o senhor de uma terra tão auspiciosa” (França; Raminelli, 2009FRANÇA, Jean Marcel Carvalho; RAMINELLI, Ronald. Andanças pelo Brasil Colonial: catálogo comentado. São Paulo: Editora Unesp, 2009., p. 13). Nossa pesquisa traz como evidência a cisão paradoxalmente coesa desses opostos nas complexas relações entre cultos, linguagens e a proliferação sem limites entre sagrado e profano, esta passível de se observar na imaginária popular mariana. A relação ibérica com o oriente, com as imagens e padrões arábicos, distingue a cultura lusitana daquilo que o tempo conserva em áreas mais continentais.

A diferença do Outro é reduzida pela insistência do Mesmo, axioma que já se tornou trivial ao discurso acadêmico contemporâneo, especialmente dentro dos paradigmas culturalistas. O que interessa destacar, contudo, é o caráter poliédrico que, mesmo nas reduções lexicais e iconográficas, é possível de ser analisado em diversas fontes, bem como o caminho dos esforços analíticos dirigidos em sentido contrário. Para o primeiro caso, o perspectivismo da historiografia contemporânea contribui com um conjunto de angulações que complicam o binômio tradicional, mencionado especialmente em termos de oriente-ocidente, Europa-América, mas também transposto ao selvagem-civilizado. Para o segundo, uma multiplicidade empírica e conceitual situada entre a filosofia da Diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari e a antropologia de Eduardo Viveiros de Castro, que nos possibilita permanecer epistemologicamente rente à irredutibilidade do fora, especialmente tomando o que seria uma fonte histórica como superfície poética. O objetivo de tal percurso é tensionar os limites entre uma ordem do discurso preconizada pelo modelo das figuras e pelo teor das escritas advindos do dispositivo colonial e seus enquadramentos, trazendo o transcurso de saberes que convergem para um exercício poético, para além de uma descolonização ética e estética do pensamento. Nesse âmbito, as molduras douradas, invenção e marca do barroco, ganham destaque, não apenas como contorção de um estilo, mas, acima de tudo, como necessidade pictural para um mundo que epistemologicamente está sendo classificado, delineado e, principalmente, enquadrado em campos específicos.

Das Diferenças em Negativo e das Superfícies de Registro

Do dispositivo foucaultiano, pautado por linhas cujos contextos avistamos em sua concretude, passamos a tratar do campo problemático, topos dado pelo processo colonizador, como agenciamento. De fato, os dispositivos possuem linhas de agenciamento (Deleuze, 1996DELEUZE, Gilles. O que é um dispositivo. In: DELEUZE, Gilles. O Mistério de Ariana. Tradução de Edmundo Cordeiro. Lisboa: Vega, 1996. P. 85-100. ), porém, ao invés das camadas de visibilidade e enunciabilidade passíveis de análise em um dispositivo (Deleuze, 1996), o agenciamento opera entre corpos e enunciações, traçando suas linhas em relações pautadas por encontros e afectos nem sempre precisamente analisáveis. Estes polígonos formulados após Guattari ter aulas com Lacan, traçados quase como funções matemáticas, são chamados de agenciamentos. Os agenciamentos seguem os princípios da Ética spinoziana, ou seja, suas relações e as formas enunciativas que articulam compõem-se e decompõem-se de acordo com a natureza dos afectos. Tanto o dispositivo quanto seus agenciamentos são expressos em uma tópica cujos pontos, linhas e interstícios podem ser transcritos a uma diversa, porém nunca estável, superfície de análise. Nesta, alguns elementos, quando apontados, nos trazem indícios para uma analítica sempre em aberto, na qual forças visíveis e enunciáveis são tratadas.

Não é possível apontar os modos de funcionamento de um agenciamento colonial sem ao mesmo tempo evidenciar sua coextensão consubstancial à própria superfície de registro, seja ela imagética ou gramatical. É que a letra escrita, assim como a imagem que a ela corresponde, não comunicam simplesmente uma empiricidade visível, mas criam simultaneamente as condições do dizível, estabelecendo o limite dos contornos e uma certa ordem das regulações (Daher, 2014DAHER, Andrea. Narrativas quinhentistas sobre o Brasil e os brasis. In: FRAGOSO, José Luis Ribeiro; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil colonial: volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. P. 389-435.; Gruzinski, 2003GRUZINSKI, Serge. A Colonização do Imaginário: sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol. São Paulo: Companhia das Letras , 2003.; Pécora, 2001PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.). Há um fetichismo inerente às máquinas de escritura e gravuras coloniais, mística responsável por miracular o sentido da escrita e da imaginária. As máquinas, no caso as prensas do século XVII que se conectam ora ao “corpo pleno” do desejo mercantil (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo: Ed. 34 , 2010.), ora ao espectro doutrinário do “juízo de Deus” (Deleuze, 2011DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 2011., p. 162-175), gravam e esculpem nas superfícies disponíveis as imagens do devir canibal. Este acaba por dar lugar ao canibal livresco, personificado no devorador de livros e estilos, com o qual artistas e intelectuais brasileiros operam desde o início do século XX. Esse canibalismo absorve a contracultura alemã, as vanguardas francesas e o pragmatismo inglês, resgatando as forças indígenas e africanas numa produção burguesa, letrada e, mesmo que travestida de uma brasilidade popular, extremamente elitista. Contra essa antropofagia para poucos, outro tipo de fantasia, embrenhada nas matas virgens e na idolatria popular, um devir canibal voltado a borrar a linguagem na visão, traz possibilidades não mercadológicas, não canônicas e não devotadas à escrita livresca de origem europeia.

As funções elocutórias miraculantes de Deus, da Mãe e do Capital operam como universais que infinitizam o sentido das produções coloniais barrocas, arrancando-lhes da espessura finita dos corpos e situando o fundamento do juízo sobre os corpos e seus atos na transcendência de uma zona suprassensível, afastada da contingência dos afectos. Para Bosi (2009BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 34, grifos do autor), “[...] a escrita colonial não é um todo uniforme: realiza não só um gesto de saber prático, afim às duras exigências do mercado ocidental, como também o seu contraponto onde se fundem obscuros sonhos de uma humanidade naturaliter christiana”. Um olhar antropológico reverso lançado sobre as práticas ocidentais permite ver nessa ambiguidade onírico-mercadológica a substância animista que percorre o corpo do discurso colonizador. Isso não escapou mesmo aos indígenas, os quais eventualmente acusavam o coeficiente de bruxaria e prestidigitação presentes nos papéis falantes manipulados pelos europeus (Ginzburg, 2007GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., p. 99).

Em texto recente sobre as narrativas quinhentistas luso-brasileiras, Andrea Daher insiste que não há casualidade no caráter simultâneo da catequese e da gramaticalização e dicionarização do tupi (2014). Escrita e conversão se correspondem nos marcos da Colônia. No seu clássico A Conquista da América, Todorov (2003TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.) apontava a estreita interdependência funcional entre os verbos compreender, comunicar e colonizar. Embora a abordagem do semiólogo franco-búlgaro seja hoje passível de diversas considerações, o olhar histórico-semiológico abriu caminhos e construiu balizas fundamentais para o percurso de aprofundamento das pesquisas contemporâneas em torno do problema da alteridade. Alcir Pécora (2001PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.), por sua vez, entende que a escrita não é simplesmente um meio propedêutico de intercâmbio ou um suporte inerte de conteúdo informacional, mas a superfície na qual se opera a própria regulagem e o controle dos possíveis, segundo uma métrica performática autorizada ou reprovada pela tradição. Ao interpelar o outro (Todorov, 2003), ou nem mesmo reconhecê-lo como outro, e sim configurá-lo como “próximo” (Daher, 2014, p. 399), o que está em jogo é um tipo de redução da matéria narrável aos limites da expressão. Nos marcos da colonização, a escrita colonial é magnetizada pelo império do deus cristão, bem como pelos influxos semióticos do mercado, o que fica claramente atestado pela imagem da Virgem, alegoria da Matriz da Igreja, acoplada ao Tesoro de La Lengua Guarani. As relações entre escrita, livros que registram nascimentos, batismos, casamentos e mortes, escrituras de propriedade, testamentos, datas auríferas, entre outros documentos, representam não apenas licenciamentos circunscritos a determinadas ordens e acesso a víveres e bens, mas também o poder do capital dentro da vida individual e dos segmentos sociais em que, no contexto colonial, alguém existe.

Segundo Deleuze e Guattari (2010DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo: Ed. 34 , 2010., p. 22-24), o capital funciona como um “elemento de antiprodução”, “corpo sem órgãos”, socius improdutivo ou “superfície encantada de inscrição” que atrai para si “todas as forças produtivas e os órgãos de produção”. Tomado nessa perspectiva, o capital é a sede amorfa e fluida que concentra em seu corpo pleno a força plástica de um poder miraculante, uterino, ancorado na imaginária e no corpo da igreja (detentora dos documentos de registro). Esta, é tanto a organização abstrata que regula o nascer e o morrer como a edificação central nas comunidades coloniais, local onde todos se encontram. O capital constrói templos-monumentos de uma pujança espiritual, que brilha no ouro aplicado nas volutas de uma expressão agregadora e sublime, com lugar para todos que a ela se devotarem, que é a igreja barroca. O milagre, no entanto, depende sempre do encontro das máquinas, do jogo incerto entre acoplamentos, cortes e conexões produtores de sentidos e dinamizadores do desejo. “O desejo e seu objeto constituem uma só e mesma coisa: a máquina, enquanto máquina de máquina” (Deleuze; Guattari, 2010, p. 43).

Por toda parte, máquinas-órgãos se conectam a máquinas-energia para daí extrair um efeito de fluxo, uma rítmica de respiração. “A máquina só produz um corte de fluxo se estiver conectada a outra máquina que se supõe produzir o fluxo” (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo: Ed. 34 , 2010., p. 55). Argumentamos aqui que a Conquista da América, calcada pelo signo do martírio jesuíta e pela aparição de uma Senhora Mãe, consoladora e agregadora, pode ser lida como um grande substrato histórico de um desses acoplamentos. O encontro colonial como encontro de máquinas: máquina mercante europeia (matriz eclesiástica, figurada pela Soberana Mãe) e máquina metálica americana (os cravos do martírio, sendo o martírio dos jesuítas marcante). O próprio Gregório de Matos, em soneto dedicado à Bahia no século XVII, “[...] falava em máquina mercante, à letra, nau de mercadorias, expressão que se poderia, por metonímia, estender a toda engrenagem comercial vigente na Colônia” (Bosi, 2009BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 26).

Nessa co(a)lisão de máquinas, o transcurso dos ruídos sonoros e dos ajustes visuais produz uma situação ambígua: de um lado, uma tópica colonizadora se forma, redistribuindo as condições que presidem o ver e o dizer segundo um novo modelo de agenciamento; de outro, a própria dinâmica dos clichês sonoros e visuais que denotam a formação de um novo agenciamento convivendo intensamente com a possibilidade de uma atopia generalizada da mística cristã e do comércio em vias de ser globalizado. Nos marcos da escrita colonial há um jogo de forças entre a alegoria e a irredutibilidade. Entre os relevos delineados por uma tópica figural (o recurso alegórico) e a intensidade excessiva de uma atopia desfiguradora (a exterioridade, ou o irredutível americano) se emaranham os terrores de uma linguagem trêmula que tateia aos solavancos o sem-fundo do sentido. Tal linguagem se ampara nas formas e imagens de devoção, verdadeiros escapes enganchados ao in-forme sem justiça e sem misericórdia do capital. Rezar para Nossa Senhora, adorar seu aspecto maternal, pedir sua força e proteção, é conjurar tanto a precariedade servil como os constantes riscos de uma vida em terra desconhecida, a qual se desbrava em busca de riquezas e confortos materiais talvez inalcançáveis.

Matriz, Concepção, Proliferação

Ao longo do século XVI, o poder alegórico da sintonia entre a ordem de Deus e os signos do mercado produziu uma matriz esquemática de onde procedem as diferentes articulações da irredutibilidade americana. Independente do lado que olhamos, as máquinas escriturárias, operadoras de modos de ver e dizer a diferença, parecem manter com essa fonte matricial uma relação determinante que se bifurca todavia em diferentes enunciados. Tais enunciados evidenciam a força de padrões de leitura, lugares-comuns que aos poucos se convertem na especificidade de uma tópica, especialmente no caso da tópica brasileira, em que a extração do ouro e do pau-brasil estão diretamente relacionadas com a política exercida pela força do ornamento arquitetônico.

A tópica colonial, por meio das suas obsessivas recorrências temáticas negativas (o canibalismo, a antropofagia, a nudez, a poligamia, a presença do demônio, a inconstância e a acefalia social dos indígenas), denota que o encontro colonial funciona, inicialmente, como uma perturbação ontológica. O arbitrário metafísico atinente ao classicismo ocidental experimenta um face a face com a historicidade da sua própria condição. Um conjunto de circunstâncias extraordinárias põe a nu o caráter estrutural do sentido, levantando a capa da naturalidade e expondo os fundamentos da civilização europeia ao caráter não-fundamental da sua própria elaboração. Em contrapartida, a turbulência multívoca é apaziguada, especialmente no Brasil, pela figura da Virgem, Nossa Senhora da Conceição, decretada Rainha Soberana de Portugal quando coroado D. João IV, em 1646. Antes mesmo do reconhecimento pelo vaticano, seu dogma, originário de arcaicos cultos bretões, havia sido defendido em Coimbra. Observa-se que virgo, em latim, significa autonomia. Na antiguidade, as virgens eram mulheres responsáveis por templos, viviam, em certa medida, fora das regras patriarcais, pois não estavam vinculadas aos homens. O sentido da palavra pode ser interpretado como autossuficiente, não tendo, originalmente, nenhuma relação com a ausência de relações sexuais ou a preservação do hímen.

Daí nasce tanto um dogma como mitificação de um imaterial, reconhecido solenemente pela Igreja somente em 1854, pela bula Ineffabilis Deus de Pio IX. A Virgem da Conceição, a partir da Era Vitoriana tomada como a permanência de um hímen imaterial perpétuo, acolhe sob a barra do seu manto imaculado os monstros e as aberrações listadas na História Natural, aplacando os terrores da acefalia e a obsessão pelo demônio e pelos seres das matas e grutas inexploradas que atravessavam a terra dos canibais. A vertigem do não-fundamento na composição heteróclita de um pensamento afectivo brasileiro é substituída e/ou completada pela reiteração implacável de uma axiomatização: a imagem unitária se sobrepuja aos muitos ditos em milhares de sons, permitindo que, na Amazônia acreana do início do século XX, Nossa senhora da Conceição seja também a Rainha da Floresta. Esta, sob a luz do sincretismo xamânico sempre em vias de reinvenção, situamos como muita próxima da Senhora das Feras, uma das facetas da Grande Mãe dos romanos, chamada, doravante o cristianismo, de Vênus. Toda essa miríade compósita de sobreposições apresenta o drama poliédrico que se ramifica sob a aparente placidez das imagens unitárias. Um percurso, no entanto, se confirma. Há o intercâmbio ou o assombro inicial das visões; em seguida, o sequestro das perspectivas disjuntivas por um influxo imaginário de totalização. O devir inumano, imperceptível e multiforme que percorre a mata virgem brasileira é substituído pelos fantasmas da ausência; e nos fantasmas ausentes se gravam os axiomas da civilização via a iconografia validada pela hagiologia oficial, ainda que, o tempo todo, esses muitos santos escapem das versões aceitas e reconhecidas.

Esse devir insuportável, impossível de ser inscrito nas imagens seculares e na palavra escrita, se converte aos poucos num cortejo recorrente de formas grotescas e/ou mitológicas, tomadas como folclore e assombração, pois não podem figurar nos retábulos para os quais o povo dedica cuidados, faz pedidos, agradecimentos e devota orações. Repisa-se o racionalismo antropocêntrico e a fronteira ontológica entre o humano e o animal, assim como o recurso idílico à memória das origens. É a “desordem monstruosa” apontada na História da província de Santa Cruz por Pero Magalhães Gandavo (Daher, 2014DAHER, Andrea. Narrativas quinhentistas sobre o Brasil e os brasis. In: FRAGOSO, José Luis Ribeiro; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil colonial: volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. P. 389-435., p. 395). Ou, ainda, a “ferocidade nativa” e os costumes abomináveis destes “monstros humanos”, como descritos pelo jesuíta espanhol José de Acosta em sua estadia no Peru colonial (Pécora, 2001PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., p. 58-59)6 6 Segundo o autor, é nos escritos de José de Acosta que o padre Manuel da Nóbrega busca inspiração para seus relatos e métodos de conversão dos gentios brasileiros. . Situado nessa linha de modulação discursiva, o indígena americano oscila entre o bestiário e a metáfora do papel em branco - “qualificação dupla de virtualidade boa e costume ruim” (Pécora, 2001, p. 46); “sem fé, lei ou rei”: a interface sígnica que recobre a irredutibilidade americana assume a forma da desordem primitiva ou da carência cândida de normas sociais (Giucci, 1993GIUCCI, Guilhermo. Sem Fé, Lei ou Rei: Brasil 1500-1532. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.).

Sob o impacto radicalmente disjuntivo de um cosmos alheio, o vocabulário mental do colonizador efetua um bloqueio transcendental da diferença, neutralizando o risco da aniquilação dos seus próprios fundamentos mitológicos por um recrudescimento cínico do sentido pedagógico e da tarefa missionária. “As cartas propõem um estado de coisas que é, também, justificação de um movimento a imprimir-se nelas para que encontrem a via de efetuação de sua potência” (Pécora, 2001PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., p. 47). A ameaça do não-sentido reforça um influxo contrário, cujos efeitos, administrados localmente pela ordem jesuítica e pela artilharia europeia, asseguram a sobrevivência da ordem de Deus e da Palavra na terra do diabo e dos corpos nus (Souza, 1986SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras , 1986.).

Há, no entanto, outro modelo de enquadramento que começa a ganhar forma no século XVI. Trata-se do discurso humanista, abastecido especialmente pelos relatos de huguenotes e viajantes franceses e cuja ênfase na liberdade natural dos habitantes dos trópicos contrasta com a artificialidade da sociedade europeia. O ensaio sobre os canibais brasileiros, escrito por Michel de Montaigne em meados do século XVI, é um dos principais exemplos do gênero. Aqui, a imagem idealizada do selvagem americano é dinamizada pela “forte consciência literária” do escritor e pelo vivo desejo de “violar as leis da simetria clássica” (Ginzburg, 2007GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras , 2007., p. 64-65). Na escrita de Montaigne, o monstruoso associado ao Novo Mundo ganha foros maneiristas, sendo incorporado aos movimentos de uma máquina escriturária dedicada a desarranjar a palidez apolínea do registro clássico. Nesse caso, a balança valorativa se inverte e a imagem que se oferece em negativo é a do próprio europeu civilizado (rude, ambicioso, cruel).

Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um corpo entre suplícios e tormento e queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como, não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos conterrâneos; e isso, em verdade, é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado (Montaigne, 1987MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Dos canibais. In: MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios. v. 1. Tradução de Sergio Millet. Brasília: Editora UnB/Hucitec, 1987. P. 255-266. , p. 262).

O quadro, no entanto, que já era anteriormente complicado por exemplo pela singularidade de uma narrativa como a de André Thevet (França; Raminelli, 2009FRANÇA, Jean Marcel Carvalho; RAMINELLI, Ronald. Andanças pelo Brasil Colonial: catálogo comentado. São Paulo: Editora Unesp, 2009., p. 27-28), começa a se complicar ainda mais a partir da década de 1580, quando a possibilidade de envolvimento numa efetiva política colonial produz uma cisão no interior do próprio “corpus huguenote sobre a América”.

As posições assumidas pelos huguenotes como Jean de Léry - expressas no seu pessimismo radical quanto às possibilidades de conversão dos tupinambás - ou por Urbain Chauveton, tradutor de Benzoni - que denuncia as atrocidades cometidas em nome da cruz católica na América sem fornecer resposta concreta à urgência missionária - tendem a ser revistas e tomadas, a partir de então, no argumento pró-colonialista (Daher, 2014DAHER, Andrea. Narrativas quinhentistas sobre o Brasil e os brasis. In: FRAGOSO, José Luis Ribeiro; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil colonial: volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. P. 389-435., p. 398).

Se de um caso a outro a carga negativa e positiva das polaridades se inverte, oscilando entre o bom e o mau selvagem, a homogeneidade essencialista e simplificadora se mantém polarizada sob os polos da ingenuidade e da perversão. O signo passa imperturbavelmente do antropófago primitivo ao bom selvagem, permanecendo ontologicamente preso a um patamar onde é impossível discernir os opostos a um eixo arquimediano de homogênese discursiva. Tal articulação discursiva só é cindida quando surge o terceiro termo, o brasileiro esperto, o amigo da onça, o mestiço perspicaz, malandro. Poderíamos supor que este termo oscilante, esse Zé Pilintra7 7 Figura masculina popular, representada de terno e chapéus brancos e camisa vermelha, entidade que remete aos malandros cariocas, jogadores, biscateiros e sambistas. É um tipo de Exu do panteão afrobrasileiro, mais especificamente da umbanda, a qual sincretiza deuses africanos com toda sorte de espíritos ditos desencarnados. , impediria os totalitarismos e as homogeneizações lógico-retóricas, não fossem os paradoxos de figuras como o negro-branco, o mulato, que restituem as posições totalitárias de bem e mal. A história das idolatrias políticas e dos heróis nacionais brasileiros mostra o quanto esse país composto por tão diferentes povos necessita de figuras unificadoras tomadas por benfazejas e, ao mesmo tempo, maléficas. Contudo, não podemos aceitar simplificações. Descolonizar, como movimento que impede a subjugação de um povo a outro, implica combater a todo e qualquer tipo de homogeneidade discursiva e suas consequentes idolatrias e polarizações.

O enquadramento colonial opera num modo de registro analógico e homogêneo, assemelhando pouco a pouco a imagem do desconhecido ora ao monstruoso ora à criança, carecida de uma Mãe, produzindo a metafísica figural do ocidente. Situada na infância da humanidade ou na pura bestialidade primitiva, a exterioridade americana vai sendo aos poucos decodificada pela clivagem retórica entre História sagrada e idolatria (Disney, 2010DISNEY, Anthony. A expansão Portuguesa, 1400-1800: Contactos, Negociações, Interacções. In: BETHENCOURT, Francisco; RAMADA, Diogo. A Expansão Marítima Portuguesa. Lisboa: Edições 70, 2010. P. 283-313., p. 300-301). A idolatria consiste nos caracteres e práticas decorrentes do desconhecimento do Livro e indica a situação correspondente aos povos (gentios) desgarrados do rebanho cristão. É toda uma parafernália retórico-teológica que é preciso mobilizar para converter a recusa dos cânones civilizados no fantasma da aceitação filantrópica. Quando compreendemos a idolatria como paradoxalmente iconoclasta, na medida em que assujeita o fiel a toda sorte de forças invisíveis, tais forças se conjuram. Isso especialmente pode ser observado na imagem recorrente da Virgem Menina com Santa’Anna. Há uma certa inversão axiomática, especialmente se atentarmos para a imaginária que mostra o poder da alfabetização na figura Mater et Magistra, enquanto a Imaculada, seja coroada ou não, sempre é representada por uma mulher em pé, em pose frontal, sobre a lua e as nuvens, rodeada de anjos e, especialmente após o século XVII, sem véu sobre a sua cabeça. Entre uma Oxum, Senhora do Ouro, uma Conceição e uma Aparecida, decorrente de ambas as entidades, temos rarificações discursivas, cujos saltos iconológicos detectamos na ausência de uma figuração com traços africanos típicos até o século XX. Tais deusas corpo-crianças-astros-nuvens contrastam com a imaginária da menina e da mãe, quase sempre sentadas, debruçadas juntas sobre um livro.

Sabemos o quanto as imagens podem homogeneizar um ideal cujos elementos, sem a imaginária colonial e a propagação icônica do barroco, não levariam a unificações. Pela própria definição e aplicação das palavras, como vemos nos Thesauros, há, em toda unidade morfológica, o duplo registro de um sentido homogêneo, cuja lição, por estar inscrita naquilo que se reproduz em termos de verdade, seja na escrita, seja na imagem de culto, prolifera globalmente. À imagem não definida lexicalmente resta a dedicação e a reprodução de um semblante, dentro dos cânones e dos atributos que secularmente lhe foram consagrados. O desafio de aceder a um imaginário descolonizado envolve a suspensão, a saída ou a quebra desse duplo registro. O que ocorre ao visível e ao dizível (e, consequentemente, aos seus sucedâneos na imagem e na escrita) ao se despolarizar o exercício da enunciação e o gesto pictural? É possível escapar à homogênese discursiva, tanto em termos verbais quanto visuais, sem reconfigurar incessantemente o problema dos limites da linguagem e dos próprios modos de expressão?

Figura 2
Paola Zordan, Conceição, bricolagem com estampa, cetim e moldura, 1994. Arquivo das produções poéticas da pesquisa, 24 cm x 20 cm

A Crítica do Negativo Ou O Influxo dos Saberes Transversos

Embora aqui não venhamos a tratar dos problemas do limite da linguagem e suas matérias de expressão, cabe acentuar, dentro de uma tese que trata dessa questão, o esgotamento da alteridade perante as cacofonias dos encontros e a insuficiência dos ícones. Antes disso, podemos tomar o grande encontro entre o nativo do continente ocidental com o navegante que se considerava o centro do mundo. Essa percepção epicêntrica em relação a sua língua e sua cultura faz com que, inicialmente, a produção social da alteridade americana pelo discurso colonizador seja marcada pela onipresença da falta, sobre a qual observamos a necessidade da mãe/matriz. O selvagem americano é privado de marcas institucionais assinaláveis e lançado ao cenáculo instintivo do puro fluxo das pulsões, numa nítida mistura de estilos. Não há correspondência aparente entre a maioridade aglutinante de um significante qualquer e o curso caótico das relações sociais americanas. Em contrapartida, a produção discursiva da anarquia ontológica e da carência institucional fortalece o funcionamento narcísico de uma axiomática identitária. Sob um efeito heteróclito de espanto, fascínio e terror, é o universalismo europeu que se reforça, não sem desvios e perturbações, elaborando as imagens do Novo Mundo via artifícios de projeções negativas, jogos de sombras e figurações de ausências. “O olho do colonizador não perdoou, ou mal tolerou, a constituição do diferente e a sua sobrevivência” (Bosi, 2009BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 62). No encontro colonial, a força plurívoca e desenraizante da diferença pura é ontologicamente bloqueada e canalizada (colonizada) por um dispositivo de linguagem (agenciamento audiovisual expresso em ritos litúrgicos e na imaginária) que funciona como um receptáculo negativo e fantasmático. A “ideologia da falta” (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo: Ed. 34 , 2010., p. 85) enlaça os devires minoritários que percorrem o continente americano às margens oprimidas de um modelo teleológico.

Um aspecto que a historiografia contemporânea não cansou de documentar e demonstrar por diferentes vias metodológicas é o funcionamento repressivo e normalizador da presilha imaginária que produz a imagem do outro sob a pressão identitária e estilística do mesmo no contexto do encontro colonial. É justamente nesse nível problemático que se desenha o limite entre o recorte histórico e a abordagem antropológica. A obra de Pierre Clastres, por exemplo, insiste sobre o ponto no qual um pensamento de Estado neutraliza a imanência imediatamente política dos regimes de ver e dizer ameríndios, convertendo-lhes num versículo simplificado de variações negativas. Pelo efeito ressonante de uma armadilha epistemológica, sociedades que guardam, em seu repertório de práticas políticas, modos particulares de conjurar a própria formação do aparelho de Estado, convertem-se na figuração anacrônica e na forma de sobrevivência potencialmente (conceitualmente) vazia de uma sociedade sem Estado (Clastres, 2003CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado - pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.; 2004CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência - pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify , 2004.). Clastres via nessa armadilha uma espécie de “neoteologia da história” ancorada num fanático continuísmo (Clastres, 2004, p. 150). A partir desse registro, formula-se a variante histórico-etnográfica da “história de um longo erro”, pela qual o funcionamento autárquico ou a “autodeterminação ontológica” (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac & Naify , 2015., p. 25) são confundidos e semanticamente intercambiados por um precário conjunto de ausências (econômicas, políticas, sociais, religiosas e, no fim das contas, ontológicas).

A narrativa usual cria um modelo de interface discursiva que torna a multiplicidade da imaginação conceitual impermeável ao influxo disjuntivo da diferença. Seguindo o caminho aberto pelo trabalho de Pierre Clastres, contra a mesquinhez narrativa e a reprodução multiforme da “história de um longo erro”, encontramos a perspectiva filosófica de Gilles Deleuze e Félix Guattari e a antropologia de Eduardo Viveiros de Castro. Situado nessa encruzilhada perspectivista antropológico-filosófica, o pensar se condensa e se refrata num exercício de descolonização permanente, recusando-se a fazer o “repertório das ausências”, como propõe Viveiros de Castro (2015, p. 26-27), e concentrando-se em libertar a pura produtividade do desejo das suas formas sociais e psíquicas de subordinação e recontextualização repressiva, como queriam Deleuze e Guattari (2010, p. 75).

Irredutível ao vocabulário axiológico pertinente aos “saberes de Estado” e às “ciências administrativas” da economia e da sociologia, a antropologia de Clastres e Viveiros de Castro, secundada pela filosofia política de Deleuze e Guattari, circunscreve a singularidade de seu procedimento intelectual a uma dimensão ética que consiste em combater na própria gênese o problema da desigualdade e da “redução epistemocêntrica do pensamento” (Viveiros de Castro, 2015, p. 25). Em Clastres, combater a desigualdade é impedir a eclosão do mau encontro, afecto triste para Spinoza, que distribui o desejo numa realidade bifacial dividida entre o poder e a submissão, o comando e a obediência, a tirania e a servidão. A máquina territorial primitiva se caracteriza pelo esforço coletivo envolvido na manutenção de um ser social indiviso que recusa e conjura a experiência seccional do Estado (Clastres, 2004, p. 162-165). Clastres afirma que o ser indiviso das sociedades primitivas é preexistente e primeiro em relação ao inominável encontro com o fundamento divisível do aparelho de Estado (Clastres, 2004, p. 159).

Embora sigam de perto a trilha aberta pela antropologia de Clastres, Deleuze e Guattari veem, nessa postulação de uma anterioridade e na configuração da preexistência histórica da máquina social primitiva em relação ao Estado, uma confusão realizada pelo antropólogo entre “independência real” e “exterioridade formal”.

Pierre Clastres, à força de aprofundar esse problema, parecia privar-se dos meios para resolvê-lo. Tendia a fazer das sociedades primitivas uma hipóstase, uma entidade auto-suficiente (insistia muito nesse ponto). Convertia a exterioridade formal em independência real (Deleuze; Guattari, 1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 5. São Paulo: Ed. 34 , 1997., p. 22).

Em função de uma leitura diferente dos dados históricos e etnográficos (e talvez mesmo de um ligeiro desnível na colocação do problema), Clastres afirma a preeminência real do ser uno e indivisível das sociedades primitivas em relação ao Estado, enquanto Deleuze e Guattari insistem na coexistência e na concorrência entre as duas formações sociais num “campo perpétuo de interação” (Deleuze; Guattari, 1997, p. 24, grifo dos autores), recuando o advento do Estado até os confins da pré-história. Em lugar da anterioridade e da idealidade real, Deleuze e Guattari postulam a coexistência problemática entre tendências em regime de exterioridade formal. Isso nos permite afirmar que o animismo persiste mesmo quando sobrecodificado pela imagem totalizante de Deus. Ou seja, a própria discursividade homogeneizante é efeito coextensivo à precariedade de uma palavra derrisória. O Estado não passa de um guardião de tesouros, dispositivo in situ, que conserva víveres e material escrito. As trocas, as moedas, as entidades de culto e outros traços que virão compor o capital em suas múltiplas e imprecisas formas, acontecem nas bordas das aparelhagens estatais. O mundo colonial descreve um território em expansão, sem domínios estatais e limites políticos claramente definidos, mas com relações comerciais, trocas, roubos e tráficos vigentes. Novos tipos de agenciamento, novas línguas e novas enunciações se criam junto a essa territorialidade imprecisa, da qual, o que mais podemos destacar como objeto de estudo são textos escritos, imagens e edificações arquitetônicas cuja importância dentro de uma comunidade permitem que resistam ao tempo. Imagens, textos e frases que proliferaram e constituíram camadas de crenças e saberes, as quais, a poética, ao descascar todos esses platôs que as estratificam, tira matéria para a criação de linguagens. Linguagens nem sempre passíveis de decodificação, a não ser para aqueles que fizeram os códigos.

Figura 3
Capa da Arte da Lingua Brasilica

Arte, Língua e Porvir

O que hoje chamamos arte está intrincado nas perspectivações e fragmentações de múltiplos códex. A arte marca o andar de um plano de consistência próprio, sem o qual a linguagem não poderia ser suportada. Uma evidente miscigenação estilística, imagética e transdutiva, vivida hoje, mostra que um processo descolonizador parece ser irreversível, ainda que nossa cultura permaneça colonizada por códigos seculares e línguas em devir. Como rol de procedimentos, arte, empregada no mesmo sentido que saber, em seu sentido colonial designa uma série de produtos, ainda que advindos de produções cujos resultados também intelectuais exigem mais do que o domínio técnico e suas regras. Outrora, quando ilustrava discursos representativos, a arte compunha os contornos de deidades abstratas: escudos reais, a madre igreja, a morte, o juízo e a vida eterna. A arte era o próprio elemento historicizador pelo qual se conservavam saberes e os devires pensados. Ao enSignar, ou seja, ao dar signos, a arte produz forças para tentar educar o corpo e canalizar o desejo em palavras e imagens. Ao se imbricar em processos colonizadores, a arte reproduz discursos, assume modas, promove figuras, articula poderes não necessariamente monetários, colonizando de outro modo, fora do próprio conceito de colonização.

Ao demonstrarmos visualmente os indícios do problema via a folha da capa A arte da língua brasílica, do padre Luis Figueira, publicada em 1621FIGUEIRA, Luis. Arte da Lingua Brasilica. Lisboa: Cia. de Jesus, 1621. Disponível em: <Disponível em: http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Afigueira-1621-arte/figueira_1621_arte_documenta.pdf >. Acesso em: 10 dez. 2017.
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(Figura 3) e do já referido Tesoro dedicado a Virgem Maria, para compreensão e uso do Guarani, datado de 1639, do Padre Antonio Ruiz, temos algumas pistas desse agenciamento de línguas indígenas e latinas, missões catequizantes e dedicação ao que acolhe, dá colo, alimenta e coloniza. Entre uma série de outros documentos, estes apontam a discrepância entre a situação de uma língua e a sua codificação de acordo com as normas e regimes semióticos do quem vem de fora. E esse tipo de acolhimento ocorre numa nova língua em vias de estruturação. A Nossa Senhora da Conceição, sem véus, com lua crescente aos pés e anjos em seu entorno, gravada na capa do Tesoro de la Lengua Guarani, nos permite supor que o desenho manual, anônimo e mundano, apto a ser transcrito em matrizes diversas (de madeira, pedra ou metal), é similar às pinturas com o mesmo tema, especialmente a série Inmaculada Concepción do pintor Bartolomé Esteban Murrillo (1617-1682), expoente do barroco espanhol. Tais produções do século XVII mostram as continuidades e saltos entre estilos (expressos pelos cortes das gravuras e relevos entalhado em madeiras) e temas que assombram as produções coloniais, especialmente na reprodução imaginária e a adentrada das chinesices presentes nas edificações do reinado de Dom João V (1706-1750).

Situando o século XVIII como o ápice da colonização, o marco da relação entre o território hoje dito brasileiro e a coroa de Portugal, podemos entender o lapso secular como perpetuação e reconfiguração das estratégias catequizadoras do início do século XVII. A biblioteca joanina de Coimbra supera, em Tesouros, o templo-teatro da liturgia popular. O século XVIII cria divisões entre os esclarecidos ou ilustrados e os incultos, instituindo uma verdade acima de tudo livresca, com separações de classe e status nunca outrora percebidas. A língua correta passa a se pautar na norma gramatical, não mais empregada apenas entre aqueles que dela se ocupavam, agora se tornando insígnia de classe e passaporte para ascensão social. Um modo de vida calcado nos livros e nos textos, do qual não conseguimos mais escapar, destarte a desvalorização capitalística do trabalho intelectual exigido nesse aspecto, se institui produzindo marcas de distinção. Ao erigir um templo, a arte agrega, promove ídolos, comunica, cria o comum. Ao rachar as verdades que o comum calca nas palavras e nas imagens, a arte, iconoclasticamente, impede uma comunicação clara e cria desconfortos: a Virgem, como a mata ainda não explorada pelo homem, é sua Rainha.

Em um modo de vida pós-colonialista, sensível aos signos não-europeus, alheios ao mundo da escritura e seus registros, a estabilidade dos modelos não se perpetua. A homogeneidade do discurso começa a ser quebrada perante o reconhecimento de uma unidade morfológica entre os corpos num espaço que possibilita as relações reais dos devires. Jaguar, onça, pássaro emplumado, cobra grande: devires também expressos na figura fugidia feminina sobre a lua, em seus mantos e filhos, anima mundi. O devir, na condição de relação não específica entre seres, mas entre estados e forças ontológicas, animais, vegetais, minerais, possibilita a tradução de uma alegoria em potência, forma tanto aterrorizadora como consoladora, na tensão típica do que vem a ser, conceitualmente, o barroco tanto como estilo pictórico quanto literário. Trata-se de pensar as relações entre a história e o presente, entre a imagem e sua persistência secular. O que Viveiros de Castro mostra como “deslocamento maior” no que define, desde O anti-Édipo, o conceito de devir, explica a transição de horizontes personológicos intraespecíficos ao desejo histórico-mundial interespecífico (Viveiros de Castro, 2015, p. 187). Essa transição acontece numa mistura transespecífica, a qual se expressa numa economia de afectos imanentes à força inumana do desejo. Quanto a essa força, podemos apenas ver como se faz presente na discursividade imagética, com alegorias encontradas tanto na literatura como na iconografia, mesmo que as relações sejam sempre imprecisas e nossas sobreposições somente possam se calcar naquilo que se repete. São as simbioses entre escalas e reinos distintos, as quais podemos elencar numa série de formas semelhantes, firmadas por alianças sociopolíticas e ambiguidades marcadoras de diferenças. No estabelecimento de continuidades entre palavras, imagens e sentidos, para fora das relações entre apenas dois termos, é possível abrir a aliança de suas contrariedades sociais, culturais e ainda das contranaturalidades intensivas. O que se inicia em termos de aliança, ao produzir agenciamentos mais complexos dos que implicam duas variáveis, dá sorte a uma série de funções cujas variáveis só podem ser expressas em poliedros de muitas faces. Na qualidade de conjunto de saberes nunca separados e distintos de algo realizado corporalmente, a arte depreende-se facilmente das limitações da linguagem e dos vernáculos de um tempo em que a linguagem, com suas regras e estruturação próprias, impõe. Ao dobrar a linguagem, a arte faz das palavras mais uma de suas múltiplas matérias, fazendo assim, de uma língua, um corpo.

Referências

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  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac & Naify , 2015.
  • 1
    Disponível em: <https://archive.org/details/tesorodelalengua00ruiz>. Acesso em: 10 dez. 2017.
  • 2
    A Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - línguas e culturas indígenas sul-americanas, tem seu acervo de documentos disponível em: <http://www.etnolinguistica.org/>. Acesso em: 10 dez. 2017.
  • 3
    Não nos deteremos nos estudos específicos da Imaginária, apenas ressaltamos, no âmbito de suas pesquisas, a recorrência das imagens de Nossa Senhora da Conceição, sendo um dos arquivos da presente pesquisa o encontro de pinturas decorrente da iconografia e da estilística pictórica espanhola, observadas nas sacristias do Convento de Nossa Senhora do Carmo, em Salvador/BA, Igreja da Ordem Terceira de São Francisco em São João Del Rey/MG e no retábulo-mor Matriz de Santo Antônio de Laguna/SC, situadas nas produções e repercussões do dogma mariano no século XIX.
  • 4
    Aqui trazemos uma das imagens (Figura 2) dessa poética, mostrada na colagem que iniciou o projeto Idolatria Iconoclasta, o qual, além da pesquisa que tomamos como pictural e epistemológica, relacionando a produção visual aos sistemas de pensamento, apresenta um rol de colagens, pinturas, esculturas e performances que têm como matéria as figuras de santos. Algumas das produções do projeto, cuja autoria converge a uma deste texto, podem ser visualizadas em: <https://plus.google.com/collection/op9FCE>. Acesso em: 10 dez. 2017.
  • 5
    Como é possível observar nas pinturas do Mestre Manuel da Costa Athayde, especialmente na Nossa Senhora da Assunção com traços africanos, de pele cor de bronze, no forro da cúpula da capela mor Igreja Nossa Senhora do Rosário, em Mariana/MG.
  • 6
    Segundo o autor, é nos escritos de José de Acosta que o padre Manuel da Nóbrega busca inspiração para seus relatos e métodos de conversão dos gentios brasileiros.
  • 7
    Figura masculina popular, representada de terno e chapéus brancos e camisa vermelha, entidade que remete aos malandros cariocas, jogadores, biscateiros e sambistas. É um tipo de Exu do panteão afrobrasileiro, mais especificamente da umbanda, a qual sincretiza deuses africanos com toda sorte de espíritos ditos desencarnados.
  • 8
    Disponível em: <https://www.paolazordan.xyz/cortes>. Acesso em: 10 dez. 2017.
  • 9
    Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:A_Arte_da_L%C3%A Dngua_Bras%C3%ADlica.jpg>. Acesso em: 10 dez. 2017.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Mar 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2017
  • Aceito
    09 Jul 2018
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