Acessibilidade / Reportar erro

Karaí Arandú na Bienal do Mercosul: educação guarani como possibilidade para uma estética decolonial 1 1 Parte dos argumentos e dos dados deste artigo foram construídos a partir da dissertação de mestrado de Dannilo Cesar Silva Melo, Kovae Ta’angá Escolas Mbyá Guarani na Bienal do Mercosul: reflexões sobre educação e estética decolonial (2016), desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com a orientação da professora Dra. Maria Aparecida Bergamaschi.

Karaí Arandú à la Biennale du Mercosur: l’éducation guarani comme possibilité pour une esthétique décoloniale

Resumo:

O artigo discute educação, estética e possibilidades para uma estética decolonial, a partir de uma vivência que denominamos mediação (inter)cultural em uma escola guarani e em uma exposição de arte na 10ª Bienal do Mercosul. A noção de escola (inserida no território indígena) como espaço de fronteira contribuiu para a compreensão de um pensamento fronteiriço, que escapa ao cânone moderno ocidental. A mediação (inter)cultural mostrou-se útil como método para o je guata - caminhada -, uma caminhada investigativa, realizada com um coletivo escolar pertencente ao povo guarani.

Palavras-chave:
Educação Guarani; Arte e Escola; Mediação Cultural; Estética Decolonial

Résumé:

Cet article porte sur l’éducation, l’esthétique et les possibilités pour une esthétique décoloniale à partir d’une expérience de recherche de médiation (inter)culturelle dans une école guarani et dans une exposition d’art à la 10e Biennale du Mercosur. Dans le contexte indigène, l’école est un espace frontalier et pour nous, elle a contribué à la compréhension d’une pensée sur la frontière qui échappe au canon occidental moderne. La médiation (inter) culturelle s’est avérée utile comme méthodologie de recherche pour réfléchir sur la je guata - la marche -, une marche d’investigation, réalisée avec un collectif scolaire guarani.

Mots-clés:
Education Guarani; Art et Ecole; Médiation Culturelle; Esthétique Décoloniale

Abstract:

This article discusses education, aesthetics and possibilities for a decolonial aesthetics, based on an experience we call (inter)cultural mediation in a Guarani school and an art exhibition at the 10th Mercosul Biennial. The concept of school (located in the indigenous territory) as a border space contributed to the understanding of a border thinking, which escapes the modern western canon. The (inter)cultural mediation proved to be useful as a method for je guata - a walking -, an investigative walking, performed with a school group of Guarani people.

Keywords:
Guarani Education; Art and School; Cultural Mediation; Decolonial Aesthetics

Je guata

Na língua guarani, uma das línguas indígenas mais faladas no continente americano, o termo je guata significa caminhada. Com a disposição de realizar uma caminhada investigativa, na busca de um entendimento de estética decolonial a partir do modo de vida guarani e de sua educação própria, construímos a reflexão apresentada neste artigo. A compreensão do tema tem como ancoragem as vivências artístico-pedagógicas com alunos, professores e gestores na Escola Indígena Karaí Arandú, localizada na Tekoá Jatai’ty, Terra Guarani Cantagalo, Viamão/RS, bem como a visita com este coletivo à 10ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre/RS. Consideramos, igualmente, a caminhada de convivência com coletivos guarani, decorrentes de projetos de pesquisa, ensino e extensão, tanto nas aldeias, como na universidade2 2 É oportuno dizer que já existe uma proximidade na convivência com coletivos Guarani, decorrente de projetos de pesquisa e extensão que versam sobre educação, desenvolvidos desde o ano 2000 sob a coordenação da Professora Dra. Maria Aparecida Bergamaschi. .

Balizamos a caminhada investigativa com algumas perguntas: como a arte, na forma que é, majoritariamente, compreendida no mundo juruá - não indígena -, é vista na escola guarani? Como alunos e alunas Guarani pensam e consideram a arte, como disciplina, em suas escolas? Como estudantes e professores indígenas se relacionam com o museu? Como o museu e as mostras de arte contemporânea se relacionam com a educação escolar guarani?

Para relatar essa experiência, organizamos o texto em dois atos: o primeiro consiste na compreensão da educação guarani, da mediação, da estética e do decolonial, como construções que situam a região teórica que habitamos, na condição de produtores dessas reflexões. No segundo ato, relatamos o conviver, o estar junto ao coletivo guarani na aldeia e na cidade, com o intuito de organizar e apreciar coletivamente a visita ao museu. Por fim, tecemos conclusões, fazendo dialogar as vivências teórico-metodológicas para compreender as possibilidades de uma estética decolonial.

I Ato: mediação (inter)cultural como compreensão

Apresentamos a educação própria guarani e sua escola, pois foi a partir desta instituição, convidada para participar das exposições nas Bienais do Mercosul na cidade de Porto Alegre, que surgiu a necessidade de compreender elementos estéticos que apontam para uma estética decolonial. Para abordar esse tema, que implica compreender um modo de vida, o estar sendo guarani na contemporaneidade, achamos importante situar nosso olhar, para interagir e refletir sobre estéticas: a mediação (inter)cultural, tanto como o diálogo que aproximou o coletivo guarani das exposições de arte contemporânea na 10ª Bienal do Mercosul, quanto como método de pesquisa, que propiciou mediar modos de vida diversos e as percepções estéticas decorrentes. No mesmo ato, registramos as compreensões sobre estética decolonial.

Educação Guarani: entre os saberes ancestrais e a escola

Quando buscamos compreender a vida guarani, em suas escolas e em vivências com alunos e professores que interagem também em espaços educativos não indígenas, como o museu, almejamos colocar em diálogo dois horizontes simbólicos que advêm de lógicas de mundos que, embora se aproximem em alguns aspectos, são distintas: a indígena e a não indígena. A lógica guarani é pautada nos saberes ancestrais, chamados por suas lideranças e pelos professores indígenas de tradição ou mbya reko, modo de vida próprio ou o estar sendo Mbya Guarani. Ao entendermos as noções de mbya reko, conseguimos perceber algumas expressões culturais, que denominamos de elementos estéticos, dessa complexa rede de ações, contextos, concepções e produções específicas.

A educação originária desse povo tem como meta a formação da pessoa na e para a integralidade da vida referenciada no mbya reko, por meio do qual se constrói aspectos da individualidade e da coletividade que perpassa a pessoa guarani, o mbya. Nesse processo de formação há uma busca constante pela plenitude e pela alegria, também entendida como a busca pela perfeição. Os referenciais da educação guarani estão em um horizonte simbólico amplo e complexo que se estabelece nos esforços pessoais pelo conhecimento, bem como por revelações advindas também de um pertencimento ao coletivo.

Predomina entre os guarani duas formas de aprender. Uma está ligada ao esforço pessoal, é a busca, desencadeada pela curiosidade que se desenvolve na pessoa, desde pequena. A outra é a revelação e se relaciona à primeira, pois para receber a revelação das divindades a pessoa faz um esforço para viver de acordo com o nhande reko (Bergamaschi, 2005BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Nhembo’e: enquanto o encanto permanece! Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani. 2005. Tese (Doutorado em Educação) -Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. , p. 154).

Um dos elementos estéticos e educativos guarani, relacionado aos saberes ancestrais, se expressa nas esculturas em madeira, os bichinhos, em geral expostos para venda em feiras de artesanato. A elaboração dessas esculturas nas aldeias envolve os homens, que se organizam para buscar a matéria-prima na mata, talhar a madeira e fazer as queimas que conferem vida às esculturas, com cores e cheiros muito característicos. Outro referencial da tradição guarani é o uso do barro, principalmente na construção de casas, seja para a moradia, seja para a construção da Opy - casa de rituais. Esse saber ancestral também está sendo retomado na educação escolar em algumas instituições, em oficinas para elaboração de utensílios de cerâmica e mesmo na construção de pequenas casas tradicionais próximas à escola.

A educação guarani não separa o fazer artístico do fazer utilitário, assim como não separa o porã - bonito - das coisas materiais ou das pessoas. Algo ou alguém é porã se existir vida, ou seja, o sentido estético de beleza está ligado ao existencial e não diretamente relacionado ao visual. Embora os preceitos do modo de vida guarani não sejam explicitamente revelados aos não indígenas, parcelas dessa totalidade de vida são mostradas como linguagem, expressões corporais, expressões linguísticas, expressões do fazer, do construir, do ser e do estar, ou de um estar sendo. Por isso, perceber a complexidade das expressões estéticas e as nuances do campo educacional no mundo guarani se mostra plausível também no cotidiano escolar: de como, por exemplo, se apresenta a organização espacial da sala de aula na aldeia, que por vezes segue sutilmente o que está posto no modo tradicional de vida guarani, ou o que as condições concretas impõem ao fazer escolar, como fileiras e círculos.

A escola nas aldeias guarani possui demandas e objetivos diversos, que se estabelecem na relação de um espaço de fronteira entre a educação ancestral e a educação não indígena, ideia apresentada por Tassinari (2001TASSINARI, Antonella. Escola indígena: novos horizontes teóricos, novas fronteiras de educação. In: SILVA, Aracy da; FERREIRA, Mariana. Antropologia, História e Educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Global, 2001. P. 44-70., p. 47): “[...] a escola indígena em situações intersticiais, sugiro ser fértil considerá-la, teoricamente, como fronteira, o que pode ser extremamente útil para compreender melhor seu funcionamento, suas dificuldades e os impasses”. A concepção da escola indígena como espaço de fronteira é relevante para nossa reflexão, pois a escola, “[...] como uma porta aberta para outras tradições de conhecimentos, onde entram novidades que são usadas e compreendidas de formas variadas” (Tassinari, 2001, p. 50), é entendida também como um espaço no qual se encontram, de forma complexa e conflituosa, estéticas guarani e estéticas não indígenas.

A educação escolar na contemporaneidade possui características próprias, especialmente quando nos referimos ao modelo proposto normativamente: práticas educacionais baseadas em hierarquizações e disciplinarizações; processos educacionais que objetivam, em parte, o mercado; arquiteturas escolares baseadas em fortificações militares; homogeneizações e uniformizações de métodos pedagógicos. São estéticas diferentes das maneiras seculares de organização e educação das coletividades guarani, em que o conhecimento é compreendido como uma totalidade cosmológica, cuja produção e transmissão não corresponde a espaços e tempos apartados da vida.

As estéticas guarani e as juruá - não guarani - podem se misturar na escola, matizando oposições. Mesmo sendo a escola advinda de um universo alheio aos guarani, mesmo quando a organização administrativa e pedagógica é feita por professores não indígenas, há marcas, interferências simbólicas, intervenções patrimoniais, mudanças em tempos escolares, troca de dias letivos, cronogramas de atividades baseados em calendários próprios, projetos político-pedagógicos diferenciados, alimentação escolar diferenciada, entre outros diversos elementos que transformam a estética da vida escolar e os sentidos dela para a comunidade. São apropriações realizadas por coletivos guarani desde um modo singular de fazer e significar a escola em seus territórios (Bergamaschi, 2005BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Nhembo’e: enquanto o encanto permanece! Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani. 2005. Tese (Doutorado em Educação) -Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. ).

Contudo, as fronteiras também são demarcadas por limites precisos em várias situações escolares: as incompreensões do português por parte das crianças guarani; de outro lado, o guarani, língua fluente na sala de aula e incompreendida pelos professores não indígenas; as concepções e práticas diferenciadas do lazer e do brincar; os rituais que afastam alunos e professores da escola por alguns dias, situação nem sempre compreendida pelos gestores das políticas de educação escolar; concepções e vivências espaço-temporais que implicam em uma organização escolar diversa; relações familiares e parentais entrelaçadas na hierarquia própria entre professores e alunos indígenas; a não segregação de idades, configurando convivências intergeracionais também no espaço escolar.

A percepção do tempo guarani é expressa esteticamente de muitas maneiras, uma delas é quando nos deparamos com a escuta atenta das crianças. Igualmente, os silêncios marcam sensivelmente noções diferentes aos tempos escolares, pois não configuram apenas pausas de fala; podem significar uma estratégia cosmopolítica3 3 A noção de cosmopolítica ameríndia (Lagrou, 2007) e a abordagem de Alfred Gell (1998) inserem a estética numa rede de relações sociais. Permitem compreender as contradições colocadas pelo exercício interpretativo da forma e dos significados da arte no contexto das interações sociais. . Como relatou Vherá Poty4 4 Vherá Poty é professor guarani, reconhecido intelectual por seus conhecimentos e ações políticas. Fotógrafo, docente no Curso de Extensão Língua e Cultura Guarani, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. : “a palavra para o guarani é espírito, por isso não pode ser solta de qualquer jeito por aí” (Diário de campo, setembro, 2015). A concentração para a escuta é uma prática intensa e sensível no cotidiano guarani, afirmada na escola como postura educativa da pessoa: uma concentração silenciosa entendida como um posicionamento ético-estético de afirmação étnica quando relacionada à educação não indígena.

A educação guarani, quando expressa símbolos e modos específicos, mostra um estar sendo ameríndio5 5 “El estar expresa esa ‘rara sabiduria’ de vivir en América, que se corresponde con una forma cultural estática, vegetal y femenina como la indígena. En tanto, el ser es dinâmico, se rige por una lógica causalística que privilegia un saber de objetos. Ambas representan dos formas de instalarse en el espacio y vivir la cultura. Sin embargo, vale la pena aclarar que estar y ser se relacionan (como la copa de un árbol con sus raíces) en lo que Kusch llama estar-siendo” (Casalla, 2010, p. 107). . Esse estar sendo pode ser compreendido também como uma fronteira, porque integra de maneira orgânica e seminal saberes tradicionais que advêm do estar indígena aos conhecimentos da ciência moderna ocidental, relacionados ao ser alguém (Kusch, 2009aKUSCH, Rodolfo. América Profunda. In: KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo II. Rosário: Editorial Fundacíon A. Ross, 2009a. P. 02-254.). Por isso, a noção de estar sendo guarani mostra-se fecunda nas relações educacionais, porque reúne saberes tradicionais situados na geocultura e na história desse povo com saberes de outras sociedades, produzindo uma fronteira que delimita as diferenças, mas ao mesmo tempo matiza, originando o ser e o estar guarani6 6 Rodolfo Kusch (2009a) usa o termo fagocitação para dizer como os povos originários se apropriam de saberes e práticas exteriores às suas lógicas, conformando um ser e estar no mundo, sem, contudo, perderem suas identificações étnicas e culturais. .

Nessa perspectiva, o encontro da educação própria e a escola, gerando um espaço de fronteira, é fecundo para percepções sobre a vida guarani, pois é onde o jogo das relações estéticas florescem com maior intensidade. Ou, no dizer de Tassinari (2001TASSINARI, Antonella. Escola indígena: novos horizontes teóricos, novas fronteiras de educação. In: SILVA, Aracy da; FERREIRA, Mariana. Antropologia, História e Educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Global, 2001. P. 44-70., p. 50), a escola como “[...] um espaço de trânsito, articulação e troca de conhecimentos, assim como espaços de incompreensões e de redefinições identitárias dos grupos envolvidos nesse processo, índios e não-índios”.

A mediação (inter)cultural como método

Para Cunha (2012CUNHA, Diana K. C. da. A Arte de Criar Novos Possíveis: formação e atuação dos mediadores culturais na Ação Educativa da Exposição Séculos Indígenas no Brasil. 2012. 88 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Pedagogia da Arte) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012., p. 38), o trabalho do mediador, aquele que utiliza a mediação cultural como prática educativa, consiste em

[...] despertar a percepção e a curiosidade do grupo, criando uma atmosfera fértil ao debate e à construção de conhecimento compartilhado a partir das descobertas e dos saberes manifestados pelo grupo durante a visita à exposição. O trabalho dos mediadores culturais na exposição se desenvolve na interface entre a exposição e o público visitante, levando-a ao nível de reflexão, da experiência e da produção de conhecimento.

Essa compreensão da mediação cultural em exposições de arte vai ao encontro do que afirma Nunes (2014NUNES, Marília Forgearini. O “pulo do gato” e a mediação em arte: possibilidades de interação. Revista GEARTE, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 1, n. 3, p. 308-323, 2014., p. 319): “[...] esse fazer interativo envolve um mediador e um ou mais sujeitos da mediação num processo que visa à compreensão a partir de um objeto de sentido”.

A mediação cultural é estabelecida por meio de observações e sensibilidades e as ações mediadoras geram e potencializam encontros com a arte e a cultura. Conquanto predomine a compreensão de mediação cultural ligada à educação em museus, propomos ampliar o seu alcance e a elegemos como método de pesquisa. Para realizar uma atividade com um grupo de alunos e professores guarani na 10ª Bienal do Mercosul, fez-se necessária a mediação (inter)cultural7 7 A noção de mediação (inter)cultural é entendida a partir do pensamento filosófico intercultural, como propõe Raúl Fornet-Betancourt (2007), em que mostre não apenas a relação entre culturas mas seus efeitos éticos, suas referências contextuais na construção de sentidos, o pensamento e a crítica advinda dessas relações de alteridade. na escola indígena nos momentos anterior e posterior à visita. Exigiu também colocarmos a nós mesmos nesse lugar de fronteira entre dois mundos, entre estéticas diversas, em que a mediação se tornou intercultural.

A mediação cultural, como uma prática intercultural e também como método de pesquisa, mostrou-se eficaz para as vivências e aprendizagens na escola guarani. Optamos por ressignificar o termo, utilizando a mediação (inter)cultural para expressar as traduções, as compreensões e incompreensões entre os universos indígena e não indígena que se aproximaram, preparando, realizando e avaliando a visita à exposição. Nesse sentido, a mediação (inter)cultural mostrou-se útil para compreender a participação dos guarani na 10ª Bienal do Mercosul (ou a 10ª Bienal do Mercosul para os guarani), que incluiu obras relacionadas à temática indígena em seu projeto curatorial, como a exposição Antropofagia Neobarroca8 8 Segundo a curadoria da exposição, “Buscar-se-á mostrar como estratégias que remontam a formas de caráter indígena confrontaram e modificaram sistemas europeus de colonização cultural em uma espécie de antropofagia cultural (nos termos do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade de 1928) que continua em curso até os dias de hoje. O barroco permitiu a continuidade operacional da emancipação cultural nos países da América Latina apesar das rupturas das conquistas e da colonização. A exposição utilizará duas estratégias de abordagem (o barroco e a antropofagia) para repensar estrategicamente um segmento da produção destes países que interliga as formas do Barroco histórico com a contemporaneidade. Assim como a Antropofagia, o Neobarroco rejeita os princípios da modernidade ocidental como o conceito de originalidade (em favor do hibridismo e da mestiçagem), e a da homogeneização histórica e as premissas do cânone europeu construídas pela linearidade”. Disponível em: <https://www.facebook.com/bienalmercosul/photos/a.139198522908405.28897.136684429826481/426648914163363/?type=3&theater>. Acesso em: 8 dez. 2017. . Com isso, observamos uma estética que parte de outros sentidos, que revelam horizontes simbólicos próprios, que estranham formas postas aí para pretensamente dizer de si e de sua história, como veremos na continuidade do texto.

A mediação (inter)cultural pode ser considerada um fazer prático ao possibilitar a aproximação do estar ameríndio, autorrefletindo a posição mediadora nas alteridades. Por isso, a interculturalidade, compreendida também como uma vivência com o outro (Kusch, 2009bKUSCH, Rodolfo. Geocultura del Hombre Americano. In: KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo III. Rosário: Editorial Fundacíon A. Ross , 2009b. P. 05-240.), produz desestabilização, incerteza e, por vezes, incompreensões, pautadas pelas diferenças.

Estéticas Guarani

A partir das mediações (inter)culturais na escola indígena, três elementos da estética guarani foram registrados como fundantes do pensamento ameríndio e revelam sentidos situados na educação desse povo: Japyxaka - escutar/concentrar, Ta’angá - representar uma imagem e Ambovaipa9 9 A tradução destas expressões para o idioma guarani é de Vherá Poty, nas aulas de Língua e Cultura Guarani, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Diário de campo, agosto de 2015). - destruir/desfazer.

1. Japyxaka - escutar/concentrar

Uma prática que expõe os limites comportamentais entre os guarani e os outros: a calma, a tranquilidade, a temporalidade, a corporalidade, a performance, a ritualização cotidiana e a comunicação necessitam de concentração, de pôr-se em escuta atenta (Pissolato, 2007PISSOLATO, Elizabeth de Paula. A Duração da Pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo: Editora da UNESP, 2007.). Certamente, a prática guarani de concentração, escuta e atenção transcende o profundo jogo ético-estético-afetivo da relação com os não indígenas. O japyxaka é um movimento complexo, que mostra uma ancestral educação, duradoura e vital para o fortalecimento do mbya reko.

Japyxaka, quando compreendido como “sentir” (Benites, 2015BENITES, Sandra (Ara Rete). Nhe’ẽ, reko porã rã: nhemboea oexakarẽ Fundamento da pessoa guarani, nosso bem-estar futuro (educação tradicional): o olhar distorcido da escola. 2015. 40 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015., p. 36), numa perspectiva estética do sentir, produz sentidos à educação, pois arandu - sabedoria - se produz com escuta e atenção. Por isso, a prática guarani de falar baixo e suave é um movimento estético de suas coletividades.

2. Ta’angá - representar uma imagem

Talvez ta’angá seja a compreensão da estética guarani que se mostra seminal, como amplitude das noções de estética da vida no cotidiano escolar, comunitário, filosófico, sensível e fecundo das relações interculturais. Esse termo, polissêmico nos contextos de uso e nas dimensões que revela, apresenta-se como uma noção de estética do sentir o mundo vivido. Ta’angá possui um significado de coisas físicas ou estéticas visuais quando comparada ao termo i’pará, que possui sentidos mitológicos, simbólicos e sagrados.

Há duas designações para a representação imagética guarani: ta’angá, relacionada ao mundo profano, e i’pará, que designa o mundo espiritual. Por exemplo, grafismos ou desenhos sagrados, que não devem estar nos objetos comercializados, são chamados de i’pará.

Os estudos de Pissolato (2007PISSOLATO, Elizabeth de Paula. A Duração da Pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo: Editora da UNESP, 2007.) mostram que, nos textos míticos guarani, ta’angá significa o que sustenta a qualidade não plenamente verdadeira do que tem existência terrena, pois a qualidade verdadeira só os seres divinos e os habitantes de suas moradas teriam. Denota também o caráter de imitação da existência atual em relação ao tempo mítico. Dessa maneira, ta’angá pode ser entendido como algo imperfeito (não divino), advindo dessa explicação o termo ta’anga ryru - caixa de falsidade -, designação do aparelho de televisão na língua guarani.

No entanto, as representações simbólicas imagéticas, de acordo com as lógicas indígenas, são abrangentes, holísticas e seminais (Kusch, 2009aKUSCH, Rodolfo. América Profunda. In: KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo II. Rosário: Editorial Fundacíon A. Ross, 2009a. P. 02-254.) por serem frutos de filosofias de tradições e durações diferentes do conhecimento moderno-ocidental. Por isso, ta’angá, como uma percepção estética visual, pode ser utilizada na educação guarani das maneiras mais diversas, como na compreensão matemática, ortográfica, artística e científica, nos processos educacionais próprios, escolares, extraescolares e interculturais.

3. Ambovaipa - destruir/desfazer

No pensamento filosófico ameríndio, os objetos que possuem valor artístico ou estão ligados ao belo também possuem valor prático. Ou seja, um objeto que não possui uso prático provavelmente não possuirá valor estético-artístico, porque não há separação entre o fazer artístico e o fazer prático, como afirma Lagrou (2007LAGROU, Els. A Fluidez da Forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: TopBooks, 2007. ). Com isso, na cultura guarani não há diferença de objetos práticos e objetos artísticos. Os artefatos cotidianos e as criações representativas dos mitos e histórias ganham sentidos variados e específicos de acordo com as relações agenciais10 10 O sentido de agência na arte é semelhante ao sentido de agência dos objetos (Alves, 2008). dos seus objetos. No entanto, um sentido específico da cultura guarani em relação aos seus objetos é a destruição.

Na lógica guarani, algo que foi construído deverá seguir seu caminho natural de destruição, morte ou transformação, sempre guiado a partir das escolhas e das orientações de Nhanderú, a divindade suprema. Isso mostra uma compreensão diversa da sociedade ocidental, que considera a arte e a estética ligadas à arte museológica como referência patrimonial que busca a salvaguarda, a não destruição, a revitalização das coisas. Seria, na concepção de Kusch (2009aKUSCH, Rodolfo. América Profunda. In: KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo II. Rosário: Editorial Fundacíon A. Ross, 2009a. P. 02-254.), o pátio dos objetos. Para esse autor, a negação dos espaços, do solo e dos objetos como sagrados foi forçada devido à instalação do pensamento ocidental, que não reconhece o sagrado e seus destinos, que mercantiliza os objetos. A obra que concretiza essa negação é a construção da cidade para comodidade, totalização e salvação dos objetos produzidos pelos homens. Nesse sentido, a urbe-pátio que ignora a natureza divina, oriunda do incalculável, ingovernável e enigmático, se sobrepõe ao sentir ameríndio e suas lógicas.

Aportes do pensamento decolonial para compreender outras estéticas

As estéticas decoloniais, como frutos germinados de um pensamento decolonial, buscam descolonizar os conceitos cúmplices da arte e da estética para liberar a subjetividade. Se um dos objetivos das artes é dar sentido às emoções, as estéticas decoloniais, em suas produções e reflexões, mostram as feridas coloniais da arte e da estética especificamente moderno-ocidental, propondo um retorno ao corpo do mundo, ao cosmo, ao vegetal e ao sentido orgânico da vida (Goméz; Mignolo, 2012GÓMEZ, Pedro Pablo Moreno; MIGNOLO, Walter. Estéticas Decoloniales. Bogotá: Universidad Distrital Francisco José de Caldas, 2012.).

Walter Mignolo (2010MIGNOLO, Walter. Aiesthesis decolonial. Calle 14, Bogotá, Universidad Distrital Francisco José de Caldas, v. 4, n. 4, p. 11-25, ene./jun. 2010.) propõe uma diferença conceitual entre estética e aiesthesis, esta concebida como consciência elemental, não elaborada, de estimulação, uma sensação tátil, experiência sensorial, impressão sensorial. Tal proposta de separação é dirigida a uma outra experiência, que busca encontrar nos valores diversos, advindos de outros modos de vida, uma maneira de descrever cada uma das práticas. Nesse sentido, aiesthesis pode ser entendida como uma opção decolonial de estética: ambas se fundam numa história conceitual, pautada nas experiências de alteridade. “En suma, la estética colonizó la aesthesis. Se trata ahora de descolonizar la estética para liberar la aesthesis” (Goméz; Mignolo, 2012, p. 16).

Tratar a estética como opção é evitar presunções de que haja um único caminho possível de percepção do mundo, bem como não ignorar a polissemia sobre as próprias noções de estética historicamente construídas. A opção decolonial busca dar o devido valor à criação e à imaginação para estéticas outras, no caso do presente estudo, estéticas indígenas. Segundo Mignolo (2015MIGNOLO, Walter. Habitar la Frontera: sentir y pensar la descolonialidad (Antología, 1999-2014). Barcelona: CIDOB/Universidad Autónoma de Ciudad Juárez, 2015.), tal opção não deve fechar suas situações limites ou o acontecer, mas sim valorizar um pensar fronteiriço, onde germinam e florescem outras formas de pensar e de fazer/atuar, para além do que está posto nos modos predominantes. Também, precisa dar foco para um pensar desde uma filosofia do limite, pois a limitação das vivências é um valor, um feito estético como construção. Por isso, nossa escolha em compreender a escola Karaí Arandú e a Exposição Antropofagia Neobarroca da 10ª Bienal do Mercosul como fronteiras ético-estéticas, em que identificações e diferenças permitem sentidos outros.

Conforme Gómez (2014GÓMEZ, Pedro Pablo Moreno. Estéticas de Frontera en el Contexto Colombiano. 2014. Tesis (Doctorado en Estudios Culturales Latinoamericanos) - Universidad Andina Simón Bolívar, Quito, 2014. ), a decolonialidade possui uma maneira outra de ser imaginada, abrindo possibilidades para a existência de outras maneiras, desconhecidas, apagadas pela colonialidade do ser e do saber. De acordo com o autor, tal proposta pode ser uma ferramenta desconstrutiva e ressignificante, aplicável em diferentes contextos sociais e culturais derivados de processos coloniais diversos, não somente eurocêntricos. Desse modo, consideramos que as produções de arte contemporânea de temática ameríndia expostas em uma das maiores e mais importantes mostras de arte do sul do Brasil, mesmo se dispondo na direção da alteridade ameríndia, ainda reproduzem lógicas colonialistas em suas práticas educativas, modelos de padronização, formação de públicos e espaço de democratização da arte. Foi uma de nossas aprendizagens: o coletivo guarani que visitou a Exposição Antropofagia Neobarroca da 10ª Bienal do Mercosul não sentiu o eco indígena nas formas e nos conteúdos ali expostos e que se diziam híbridos nas concepções/elaborações antropofágicas. A verdadeira antropofagia se fez pelo olhar que desconfiou, que se identificou e que negou. Como diz Kusch (2009cKUSCH, Rodolfo. Anotaciones para una Estética de lo Americano. In: KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo IV. Rosário: Editorial Fundacíon A. Ross , 2009c. P. 779-815.), o sentido de uma obra somente é dado pelo olhar daquele que a absorve.

II Ato: mediação (inter)cultural como vivência

Compartilhar momentos da vida com os guarani em seu solo foi uma das nossas escolhas, exercitando a mediação (inter)cultural no período anterior à visita à exposição de arte, bem como após o evento na 10ª Bienal do Mercosul. Na segunda parte do texto, apresentamos o que decorre de nosso olhar para a escola guarani, as atividades realizadas no museu e nossa posterior reflexão na escola da aldeia. O que essa vivência produz para a compreensão de elementos estéticos guarani relacionados à educação escolar?

A Escola Karaí Arandú

A Escola Indígena de Ensino Fundamental e Médio Karaí Arandú - nome que significa sábio dos sábios - foi instituída no limiar do século XXI, por solicitação das lideranças da Tekoá Jatai’ty - Aldeia Guarani do Cantagalo. Está estabelecida em um prédio horizontal, com três salas de aula, sendo uma subdividida; outra sala dividida em secretaria, biblioteca e espaço de informática; cozinha e refeitório; banheiros para alunos e professores. Outros espaços de escola foram criados, como uma sala de aula externa nos fundos do prédio escolar e outra à sombra de uma árvore lateral. Compreendemos esse movimento de criação de espaços escolares como uma alternativa ao não atendimento pleno das necessidades concretas da comunidade pelos órgãos gestores do Estado, mas também como autoria guarani que se apropria da escola, instituição de cunho moderna-ocidental que adentra na aldeia. O espaço limitado por paredes de concreto, que separa alunos e professores da mata que circunda a escola é concretamente questionado ao apresentarem outras disposições espaciais para as aulas que poderiam também acontecer, como em parte acontecem, no recinto fechado.

O total de alunos no ano letivo de 2015 era de 104 discentes, organizados em turmas de 1º ano ao 9º ano do ensino fundamental, sendo 27 alunos de ensino médio e 12 estudantes de EJA - Educação de Jovens e Adultos. O quadro de funcionários da escola era formado por 4 professores indígenas, responsáveis por ministrar componentes curriculares ligados à história, à cultura e à língua guarani e 12 professores não indígenas, responsáveis pelas disciplinas específicas que representam os conhecimentos do mundo ocidental11 11 Perguntados para que querem a escola, os guarani dizem que é para conhecer o mundo não indígena. Por isso, a escola na aldeia está originalmente organizada como as demais instituições da rede estadual de educação. Contudo, a vivência diária, a atuação de atores guarani na escola, a interação com a comunidade, produz alterações importantes na instituição, mostrando uma apropriação da escola por agentes guarani (Bergamaschi, 2005). . Complementando o quadro, atua uma diretora e um secretário administrativo não indígenas, além de 4 funcionárias merendeiras e auxiliares de serviço da comunidade.

Nossa primeira visita à escola Karaí Arandú para a realização das atividades de mediação ocorreu em 23 de outubro de 2015. Fomos recebidos pela diretora e pelo secretário. Comentamos sobre detalhes daquela edição da Bienal do Mercosul com alguns professores interessados e discutimos juntos sobre os objetivos da visita da escola guarani a uma exposição de arte contemporânea. A partir daí, encaminhamo-nos para uma sala de aula, onde conversamos sobre arte, museu e educação com alunos dos anos finais do ensino fundamental e alunos do ensino médio. Segundo definição dos professores e de lideranças ali presentes, essa atividade estaria mais apropriada para os alunos dos níveis escolares mais adiantados, com maior compreensão do português, com bases de outros conhecimentos advindos do mundo não indígena, situação que lhes permitiria um aproveitamento maior. De acordo com a diretora, aquele grupo de alunos poderia propor reflexões mais elaboradas sobre as obras. Porém, na prática, muitas crianças realizaram a atividade no museu, pois alunos e alunas dos anos finais do ensino fundamental e ensino médio levaram seus filhos, como é comum às crianças acompanharem suas famílias em atividades fora da aldeia.

Karaí Arandú vai à Bienal: percepções estéticas

Após esse encontro com o grupo que se dispôs a participar da visita à exposição, em conversa mediada por interlocutores guarani, que traduziam nossas falas para a língua originária aos demais, agendamos a visita à 10ª Bienal do Mercosul e organizamos transporte e lanche. No ônibus, que saiu da aldeia Cantagalo, foram 52 pessoas: 4 professores indígenas, 2 professoras não indígenas, 46 alunos e 2 crianças de colo. Esperamos na cidade e marcamos de nos encontrar próximo à Praça da Alfândega - centro de Porto Alegre. Depois de recebê-los, caminhamos até o prédio do Santander Cultural para visitar a exposição Antropofagia Neobarroca.

Fazia parte da estratégia pedagógica de mediação naquele museu um acolhimento ao grupo visitante, realizado por três mediadores designados para a visita guiada com os guarani. No primeiro contato com o grupo, os mediadores apresentaram sucintamente o museu e a proposta curatorial da exposição. De acordo com o percurso orientado, a primeira obra indicada para reflexão foi a pintura de óleo sobre tela e colagens A rébis mestiça coroa a escadaria dos mártires indigentes, 2013, do pintor maranhense Thiago Martins de Melo (Imagem 1).

Imagem 1
A rébis mestiça coroa a escadaria dos mártires indigentes

A mediação cultural em museus e em exposições de arte contemporânea é marcada por diversos sentidos, os quais podem ser entendidos a partir das teorias que se situam entre arte e educação como experiências estéticas. Nesse sentido, Meira (2009MEIRA, Marly. Filosofia da Criação: reflexões sobre o sentido do sensível. Porto Alegre: Mediação, 2009., p. 32) nos diz que

[...] a experiência estética coloca a cognição em permanente desconstrução e reconstrução, pela vulnerabilidade aos acontecimentos, estados de espírito, relações com a cultura, saberes múltiplos vindos do corpo e de abstrações, além do que a mente elabora a partir de paisagens do corpo, do ambiente, da memória e da ficção.

Imbuídos desses sentidos, acompanhamos a visita, observando, escutando e também nos perdendo diante da vulnerabilidade dos sentimentos que nos atravessavam, tanto por estar com um grupo guarani admirando obras de arte que mostravam o olhar ocidental, ou pelo menos o olhar juruá, sobre a história, sobre a colonização, sobre modos de vida, como pelo envolvimento com as obras apresentadas.

Em seguida, por interesse dos guarani, que começaram a direcionar a visita, antecipando curiosidades, nos dirigimos para a obra Matilha, 2012, do artista plástico carioca Barrão: uma escultura de porcelana e resina epóxi (Imagem 2). Os guarani mostraram interesse pela escultura que exibia cachorros entrelaçados com jarros, potes e outros recipientes de porcelana. Diante da obra, alguns alunos perguntaram: “o que significam esses cachorros? Qual o sentido disso? Qual material é feito?” Um aluno comentou: “Gostei dessa aqui, porque um cachorro está saindo dentro de outro”.

Imagem 2
Matilha

No decorrer da visitação afloraram interesses vários sobre os materiais usados nas produções artísticas, as histórias das obras e também sobre o prédio do museu. Em nenhum momento anterior à visita à exposição nos ocorreu que o prédio poderia também causar indagações e, surpreendidos, tanto os mediadores como nós que acompanhávamos o grupo, escutamos, observamos e desvendamos curiosidades. Indagaram por que foi construído, observaram vitrais e pinturas nas paredes, fazendo muitos comentários em sua língua originária, idioma oficial da atividade, mediado por intérpretes da comunidade, mais especificamente os professores guarani. Em especial, uma obra chamou bastante a atenção dos estudantes: Família, 2004, do colombiano Carlos Castro Arias (Imagem 3), referente à estampa de papel que decorava a casa do autor em sua infância. O papel de parede foi reproduzido fielmente com sangue retirado de cada um dos membros da família do artista: pai, mãe e os quatro irmãos.

Imagem 3
Família

A obra chamou a atenção pela riqueza de detalhes e pela beleza de suas estampas. Depois que alguns alunos leram a descrição e comentaram em língua guarani que era uma pintura de sangue, todos foram atentar e comprovar visualmente. No momento que um grupo de meninas admirava a obra Família, uma mediadora perguntou: “essa pintura poderia ser sangue de menstruação? Se fosse, o que vocês acham disso?”. As meninas ficaram inquietas, riram da situação e comentaram algumas coisas em seu idioma. Um professor indígena que observava a situação falou em português: “é melhor não continuar falando sobre esse assunto porque isso não se comenta entre os não guarani”. Tal situação transparece um conflito de concepções sobre limites culturais. No contexto fronteiriço das estéticas artísticas e educativas indígenas e não indígenas as incompreensões mostram que tais percepções são potentes no processo educativo mediado. Pairou um silêncio entre os juruá, enquanto as pessoas guarani que participavam da exposição comentavam em tom baixo e sem tradução o que observavam.

A obra Kuna Metal, 2011, de José Castrellón (Imagem 4), foi bastante admirada pelos estudantes guarani, que se detiveram na escuta e na apreciação visual e em conversas entre eles, obviamente em sua língua originária. A obra era composta por quatro fotografias, um vídeo reproduzido em aparelho televisor e dois fones de ouvido reproduzindo áudio. O filme mostrava uma pequena ilha caribenha rodeada de águas azuis, dando-lhe a aparência de tranquilidade e paisagem intocada. Ao lado estavam quatro fotografias dos componentes da banda de punk rock chamada Kuna Metal, cujos integrantes são indígenas do povo Kuna, que vive no Panamá e na Colômbia. A música hard punk tocada nos fones contrastava esteticamente com as imagens da tranquila ilha paradisíaca. Diante dessa obra, o olhar e a escuta guarani se demoraram e quase todos os participantes experimentaram a audição oferecida. Em conversas paralelas, buscávamos compreender a curiosidade que expressava identificações com estéticas corporais dos jovens Kuna, representados na obra de arte, provavelmente expressando também algumas estéticas corporais de jovens guarani.

Imagem 4
Kuna Metal

A obra Cosecha, 2001, de Carlos Castro Arias (Imagem 5), também chamou a atenção do grupo: uma pequena representação escultural de uma espiga de milho. Porém, essa espiga era formada não por grãos de milho, mas por dentes humanos. Conversamos sobre quais os sentidos da obra e um professor guarani comentou: “essa obra é interessante e ao mesmo tempo estranha para a gente porque, para a gente, o milho é uma coisa sagrada13 13 Avaxi Ete - milho verdadeiro da tradição guarani, considerado sagrado, com o qual eles têm o cuidado especial em conservar as sementes. Os antigos guardam e carregam consigo em seu caminhar e logo que se fixam numa terra plantam a semente sagrada, mesmo que em diminutos espaços (Bergamaschi, 2005). ”. Estranheza, admiração, curiosidade: os olhares atentos registravam detalhes; risos e conversas paralelas mostravam também desconfiança. Era isso que pensavam encontrar? Obtivemos apenas silêncios e risos como respostas.

Imagem 5
Cosecha

Percebemos que, no decorrer da visita, alguns olhares de visitantes não indígenas se dirigiam ao nosso grupo, fazendo-nos pensar sobre a relação entre os diferentes públicos que visitam o museu, ou talvez sobre uma homogeneidade que costuma figurar nesses espaços. Pareceu-nos que vivenciávamos uma performance distinta, um jogo das identidades em um espaço onde pessoas indígenas não eram pertencentes. Igualmente, notamos um desconforto por parte de mediadores da Bienal e de funcionários da instituição, talvez preocupados em atender à diversidade, pois destinaram muita atenção e respeito aos visitantes guarani.

Esse jogo de estéticas nos espaços educativos mostra-se como fronteira, além de uma situação fecunda e potencializadora de reflexões sobre as estéticas indígenas e não indígenas. A presença de mães, crianças de colo, meninas, meninos, professores que constituem o grupo da escola Karaí Arandú que foi à Bienal, gerou impressões em todos os envolvidos, como possibilidade educativa de encontro com a alteridade. Como ação performática, o museu foi interferido esteticamente pela língua guarani, pela maneira de educar dos professores indígenas, pela presença daqueles diferentes modos de escutar atentamente, de ler as imagens e refletir desde outro lugar: o estar sendo guarani se mostrava no museu.

Retorno à escola Karaí Arandú

Como forma de complementar o processo de mediação (inter)cultural na escola Karaí Arandú, retornamos à aldeia Cantagalo, com intenção de estabelecer uma conversa crítico-reflexiva com os alunos e professores sobre a exposição visitada. Fomos recebidos com notícias, anunciadas pela diretora, de que o grupo gostou muito da visita e que algumas professoras já haviam realizado uma atividade avaliativa. A atividade referida pela diretora fez parte dos Seminários Integrados, componente curricular do ensino médio, em que os alunos e alunas já haviam sido avisados, anteriormente à visita, para que fotografassem algumas obras da exposição Antropofagia Neobarroca. De volta à escola, em pequenos grupos os alunos descreveram, tanto em português, quanto em guarani, uma ou mais obras escolhidas. O trabalho escolar intitulou-se: Releituras das Obras da Bienal do Mercosul em Guarani e Português. Estavam expostos no corredor do prédio escolar cartazes com a fotografia da obra escolhida pelo grupo e uma sucinta descrição, primeiro em português, seguida pela descrição na língua guarani. Presume-se que são, pelo menos, descrições similares, mas nosso desconhecimento do idioma e as impossibilidades de tradução que predominam nas comunicações nos permite pensar que talvez ali, no que registram em sua língua originária, coloquem o que realmente pensaram sobre as obras observadas na exposição.

Descrições da obra Matilha ‘Nessa obra de arte, podemos observar um grupo de gatinhos em posições estranhas’. Apy jaexa jagua kuery ivaikue ikue va’e. ‘Monte de cães lindos, brancos e pretos. Nunca vi assim. A arte tão legal, demais’. Iporã jagua kuery hûû ka’egui xîî aexa va’e’ y teri, ta’anga aexama igutorema.

Descrição da obra Cosecha ‘Nessa imagem vejo uma espiga de milho, mas as sementes parecem com os dentes humanos’. Kova’e ta’ãga py ma aexa peteĩ y avaxi, va’eri ha’yĩngue ma taĩgue merãmi (Diário de campo, 2015).

Nessas primeiras descrições observamos poucos posicionamentos: apenas a escrita do que o olhar mais simples registrou. Nas avaliações que seguem, notamos que as obras escolhidas diziam também de um posicionamento anticolonial diante da invasão. Indagados sobre o que pensavam realmente diante da obra fotografada, sorriam, mantendo um silêncio enigmático. Talvez elaborando ideias críticas ou significando incompreensões que não ousaram verbalizar.

Descrições da obra A rébis mestiça coroa a escadaria dos mártires indigentes. ‘Essa foto tem muitas pessoas diferentes, mas essa foto só conta uma história, é a chegada dos homens brancos e os índios tentando defender a nossa terra’. Koova’e ta’anga o’i heta joegua he’y he’y va’eri koova’e ta’anga omonbeu petei kaxo, jurua kuery ava’e remo mbyá kuery ojoko nha’ã nhande yvy. ‘Neste quadro aparece os não indígenas e a guerra contra os índios’. Kova’e py ma ojekua jurua kuery joguero’a mbyá kuery revẽ. ‘Na minha visão, nessa foto aparecem vários índios, alguns deles são agredidas pelos brancos e outra está segurando uma bandeira e mostrando para os povos. Também aparece um grande chefe do povo indígena’. Xee Koova’e ta’anga aexa ramo ma, ojekua reta mbyá, hamongue va’e mbyá pe jurua pete’i bandeira guaxu oexauka haguã pavẽ pe, há’e [...] mbyá ruvixa guaxu (Diário de campo, 2015).

As descrições de algumas obras da 10º Bienal do Mercosul produzidas por alunos e alunas da escola Karaí Arandú mostram o resultado de experiências estéticas e vivências educativas nos espaços do museu e no contato reflexivo com algumas peças artísticas de temática indígena. O trabalho pedagógico escolar ganhou o sentido de pontuar a característica mais forte daquele quadro ou daquela escultura, ou como cada um ou cada grupo se sentiu afetado ao observar uma obra de arte que diz respeito a sua história.

O trabalho mostrou que os modos de manifestação estética ou artística dos alunos da escola Karaí Arandú estão centrados em caracterizações pessoais e coletivas, em que a experiência estética se expressa na materialidade e nos objetos. Essas manifestações se apresentam de várias formas no cotidiano, mas foi por meio da escola que a estética guarani se mostrou para nós com maior intensidade, pelo menos nos campos da visualidade e da materialidade artística: pintura, grafia, gravura, talha, escultura, instalação, entre outras atividades lúdico-artísticas.

Compreendemos uma estética indígena caracterizada também por um investimento nos conceitos visuais de natureza cosmológica presentes na decoração das salas de aula, na representação dos animais, nas narrativas históricas em atividades escolares e expressões do grafismo guarani, como, por exemplo, a pintura que segue (Imagem 6).

Imagem 6
Pintura feita em uma sala de aula da Escola Karaí Arandú

O que viram no museu em pouco se assemelha ao que fazem na escola quando produzem algo que no currículo é denominado de artes. Os desenhos, pinturas e grafismos guarani nas paredes e colunas da escola ou nas salas de aula são evidências de processos criadores de afirmação étnica, política e de apropriação dos espaços escolares. Nesse mesmo sentido, pontuamos que as expressões estéticas guarani, tendo as pinturas como exemplo, podem ser entendidas como práticas políticas de uma estética decolonial na educação. Ocorre-nos também pensar que aqui há um (des)encontro das compreensões de arte. Se, para os juruá, o fazer artístico pode ter compreensões múltiplas de criação e de expressão, para os guarani há uma compreensão utilitária e/ou sagrada. Com que ferramentas conceituais visitam o museu? Que indagações íntimas fazem da arte que ali visualizam?

Estética numa perspectiva decolonial

As discussões sobre estética numa perspectiva decolonial ainda são novidades no contexto brasileiro, mas há estudos e reflexões potentes sobre o tema em autores sul-americanos. Segundo Mignolo (2009MIGNOLO, Walter. Prefácio. In: PALERMO, Zulma. Arte y Estética en la Encrucijada Decolonial. Buenos Aires: Del Signo, 2009. P. 7-14., p. 11), “[...] estética deriva de Aierthetikos, palavra que refiere a sensaciones físicas, al mundo de los sentidos”. Nessa perspectiva, Dussel (1994DUSSEL, Enrique. Estética y Ser. In: DUSSEL, Enrique. Historia de la Filosofia Latino Americamericana y Filosofia de la Liberación. Bogotá: Nueva América, 1994. P. 289-296., p. 290) comenta que “[...] la filosofía del arte se la ha llamado ‘estética’ es porque, en el tiempo de los que plasmaron esta ciencia, dicha filosofía era una filosofía de la sensibilidade”. De acordo com esses comentários, indagamos reflexivamente: um objeto possui o sentido atribuído apenas por sua forma, ou também se compõe de outros sentidos que integram sua percepção a partir de uma determinada cultura?

Ao refletirmos sobre as noções de estética decolonial, partimos do pressuposto da existência de uma dimensão estética da vida ou, como descreve Kusch (2009cKUSCH, Rodolfo. Anotaciones para una Estética de lo Americano. In: KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo IV. Rosário: Editorial Fundacíon A. Ross , 2009c. P. 779-815., p. 782) em suas anotações sobre uma estética da tenebrosidade americana, precisamos de uma estética que não se baseie em produções, mas sim em criações “de un ámbito rigurosamente vital”. Por isso, podemos compreender a estética como um corpo ou uma casa onde reside uma cultura. No dizer de Kusch, a estética, com a concepção que predomina na racionalidade moderna-ocidental, é uma invenção da burguesia europeia depois da tomada de poder no século XVIII, ideia transportada do mundo grego antigo, em que tinha outro sentido (sensível, perceptível). Segundo o autor, estética se tornou um termo usado para identificar apenas a arte renascentista (bela, sublime), porque a burguesia não se sentia capaz de criar uma nova arte.

A constituição da estética como um exercício de contemplação do belo se deu a partir da conjunção de razão e racionalidade do pensamento kantiano, como aprofundou Zulma Palermo. A autora diz: “Estoy imaginando claro, pero el certo es que lo estético y el concepto secular de razón van de la mano y cumplen funciones complementaries” (Palermo, 2009PALERMO, Zulma. Arte y Estética en la Encrucijada Decolonial. Buenos Aires: Del Signo, 2009., p. 11). Dessa maneira, a estética na perspectiva artística moderna e contemporânea, grosso modo, ainda se sustenta majoritariamente na racionalidade moderna.

Tal racionalidade, como efeito, historicamente define o americano. Para Kusch, o americano primordialmente é o indígena que posteriormente se mistura com filhos de imigrados. No entanto, essa definição é pautada na relação entre morte e vida. Criticamente, o autor mostra que o indígena é considerado morto perante à racionalidade objetiva científica, pois a objetividade ocidental é, no fundo, uma “filosofia dos objetos utilizáveis”, que depois do advento da racionalidade moderna transforma-se em uma “filosofia dos sujeitos utilizáveis” (Kusch, 2009c, p. 786). Nesse sentido, assevera que

[...] lo índio, en el ámbito de la visión del mundo occidental, no tiene ninguna validez política, social o artística, es decir que no entra vitalmente a formar parte de dicho ámbito. En este sentido lo índio es estrictamente lo muerto y por lo tanto se relega al museo como algo monstruoso y aberrado (Kusch, 2009cKUSCH, Rodolfo. Anotaciones para una Estética de lo Americano. In: KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo IV. Rosário: Editorial Fundacíon A. Ross , 2009c. P. 779-815., p. 786).

Entretanto, seguindo ainda a crítica de Kusch, a estética subverte a história, ao redefinir a posição do indígena como coisa/sujeito do passado e o coloca no presente como fundamental para a vida americana. Além disso, mostra que a história como estética do passado, sobretudo a positivista, funcionava como uma drenagem da plenitude vivida no passado dos mitos e das epopeias nativas. Isso se transformou, através de estudos sobre estéticas indígenas, que concebem como vidas sendo vividas aqui e agora, em um estar ameríndio. O apagamento, a invisibilidade, o desconhecimento ou a compreensão deformada produzida por práticas educativas coloniais cria uma estética do que é ser indígena, na qual o exótico ainda predomina, especialmente nos espaços escolares.

A noção de estética como prática produz efeitos que nos permitem pensar a colonialidade, conforme comenta Mignolo (2009MIGNOLO, Walter. Prefácio. In: PALERMO, Zulma. Arte y Estética en la Encrucijada Decolonial. Buenos Aires: Del Signo, 2009. P. 7-14., p. 11): “[...] fuera de Europa, la estética emerge como un nuevo concepto y critério para (de)evaluar y jerarquizar la creatividad sensorial de otras civilizaciones. Así aparece el critério de que una ‘tela’ es arte y un objeto de arcilla ‘artesania’”. A relação entre arte e artesanato é bastante discutida na contemporaneidade em relação à ética, autoria em produções, mas também como um problema de decorrência colonial, em que a produção artística indígena é reconhecida, majoritariamente, como artesanato. Quando os guarani esculpem em madeira os bichinhos que vendem nas feiras de artesanato estão cientes que não estão produzindo arte. “Arte para nós consiste em ir ao mato, armar armadilha”, disse um professor guarani da escola Karaí Arandú (apud Bergamaschi, 2005BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Nhembo’e: enquanto o encanto permanece! Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani. 2005. Tese (Doutorado em Educação) -Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. , p. 243). “Cada bichinho tem um segredo, tem uma história. Ele é humano, ele tem sentimento”, comentou um sábio perguntado sobre o significado das esculturas que fazem para vender. Mostram nessa concepção uma compreensão ampla de humanidade, revelando uma ética e uma estética próprias do mundo guarani.

Para Kusch (2009cKUSCH, Rodolfo. Anotaciones para una Estética de lo Americano. In: KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo IV. Rosário: Editorial Fundacíon A. Ross , 2009c. P. 779-815.), os problemas mais profundos estão em perceber como a estética da arte se tornou dominante de outras estéticas. Segundo o autor, o processo se dá pela justificativa e convencimento da arte moderno-ocidental em se adequar a formas (estilos, escolas artísticas, gêneros, correntes, técnicas). Dessa maneira, a forma se constitui como um direito de convencimento que pode ou não ser alcançado. Devido a isso, a vida indígena e o horizonte simbólico ameríndio são, em geral, considerados pejorativamente como artesanato, folclore, lenda. Ou seja, não podem ser oficializados por não alcançarem tipos formais mais ou menos compreensíveis às formas dominantes.

Diante disso, entendemos que estética no pensamento decolonial latino-americano não é mera teoria das formas clássicas do cânone moderno-ocidental ou do seu conceito de beleza, mas sim um caminho que leva em consideração duas coisas: a estética como uma instância que supera a ciência e a história; e um meio intercultural para a integração americana a partir da categoria solo (geocultura), entendido como ethos cultural desde o pensamento indígena e popular americano (Casalla, 2010CASALLA, María del Milagro. Aproximaciones a uma estética de lo americano. Analisis, Bogotá, Universidad Santo Tomás, n. 77, p. 103-116, 2010. ).

Apontamentos sobre estéticas da vida guarani

Observamos que a escola, assim como o museu, são considerados importantes para a formação educacional dos guarani. No entanto, espaços museais como o Santander Cultural, no centro da cidade de Porto Alegre, não são usualmente frequentados pelas pessoas ou coletivos indígenas por vários motivos, e um destes pode ser o discurso utilizado para consagrar um museu, como, por exemplo, sua referência arquitetônica justificada pela grandiosidade, valor patrimonial, material e histórico.

Por isso, a imponência visual daquele “museu-banco” no centro da cidade também foi percebida pelo grupo guarani como uma grande diferença. As referências comentadas, desde as primeiras expectativas, se haveria “obras de arte caras” no museu, apontaram visões sobre as diferenças entre a escola indígena e as grandes exposições. O imaginário que construíram acerca de museu fez pensar que para os não indígenas aquele lugar de arte é muito valioso, tanto que questionaram: “por que nossa arte não pode estar aqui?”. Em parte, mostram que esse imaginário encontra eco concreto, pois se sentem distantes desse lugar.

A vivência de ir à Bienal do Mercosul, tanto como o valor de visitar uma grande exposição, quanto de ir a um museu importante, claramente não foi a motivação do coletivo indígena, mas de ter uma experiência com algo novo. A novidade, o estranho, o não pertencimento estão no campo da educação escolar guarani. Por isso, a vivência dessa atividade extraescolar ganhou o sentido de um complemento para a função da escola indígena na aldeia. Uma forma de conhecer o mundo não indígena e, dessa maneira, fomentar as práticas de reciprocidade. Talvez por isso tenham se negado a fazer descrições e reflexões mais demoradas e profundas do que vivenciaram no museu, como por vezes tentamos forçar. Foi apenas mais uma forma de conhecer o mundo juruá e não a vivência de arte como a principal afetação nessa atividade.

Nesse jogo de estéticas, a concepção de museu se mostra distinta aos guarani. Se imaginarmos um significado para esse coletivo, um museu não poderia ser definido como uma casa para guardar, para preservar objetos, intactos. Tal ideia se aproxima de uma crítica à forma pela qual se constitui aquele espaço museal ao expor obras, muitas vezes para mera observação. Mesmo que saibamos da diversidade de possibilidades criativas de uma mostra artística contemporânea, esse modelo de exposição ainda se estabelece no limiar das diferentes concepções e visões de mundo mbyá guarani. Quem sabe, diferente do que seria um museu no pensar guarani: vivo quando vivido; potente nos sentidos mais amplos; duradouro pela ancestralidade; mantenedor dos mitos e formas consagradas, que preserva o que justamente não pode ser revelado; salvaguarda de maneiras de comunicação e dimensões cosmológicas; constituído a partir do que a comunidade apropria.

Outro apontamento que consideramos esclarecedor é sobre as noções de estéticas como padrão de formas, sentidos de arte, corporalidades ou visualidades, referentes de um contexto cultural. Dessa maneira, não pode ser transportada para outra cultura: nem tudo na vida e no cotidiano guarani é estético. Certamente, todos os povos, culturas e coletivos possuem noções estéticas diferentes. No entanto, a estética da vida indígena possui sentidos e expressões que marcam diferenças, decorrentes de compreensões cosmológicas, ontológicas e filosóficas situadas em modos de vida específicos (Kusch, 2009cKUSCH, Rodolfo. Anotaciones para una Estética de lo Americano. In: KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo IV. Rosário: Editorial Fundacíon A. Ross , 2009c. P. 779-815.).

As estéticas guarani também não são todas as ações, emoções, relações, mitologias, histórias, produções artísticas ou qualquer outra forma capturada por um olhar fragmentado do não indígena. São de outra ordem, de uma outra racionalidade, portanto, outros olhos, ouvidos, bocas, peles e corações.

Palavras para Concluir

As percepções dos alunos guarani sobre as obras de arte da 10ª Bienal do Mercosul, suas leituras e reflexões sobre a arte não indígena, tiveram a influente participação dos professores não indígenas. Nesse aspecto, os processos educacionais também estão pautados nas relações afetivas entre professores sensibilizados com a vida indígena, diretores que militam nas lutas cotidianas por melhorias para as escolas, além de mediar a administração burocrática da educação na fronteira de dois mundos. Por isso, notamos que, para a apropriação da escola pelos guarani, os professores não indígenas também são protagonistas integrantes do cotidiano, dos conflitos, das aprendizagens, por conseguinte, da estética da educação guarani.

A partir dessas vivências junto aos guarani e das mediações culturais realizadas no ano de 2015 na aldeia e no museu, sentidos específicos revelaram a composição de uma rede de estéticas da vida cotidiana, escolar e tradicional, que se entrelaçam constantemente na educação das crianças e dos adultos. Observar essa rede foi importante para compreendermos algumas maneiras guarani de ensinar e, sobretudo, de aprender.

Com relação à estética, percebemos que mesmo com a utilização da arte guarani para expressar suas histórias, seus mitos e referenciais culturais, as estratégias educativas constituem uma complexa rede de comunicação que, para nós, pesquisadores, é de difícil compreensão. Essa rede, tramada e sustentada no e para o equilíbrio do modo de vida guarani, possui uma dimensão estética que, embora em espaços fronteiriços, se estabelece a partir de limites culturais bem definidos. O modo de vida guarani, como uma formulação teórica, pode ser perceptível por meio da arte, língua, pedagogia, política, educação, espiritualidade, compondo uma totalidade.

Na intenção de anunciar uma razão sensível capaz de perceber um mundo menos fragmentado, Maffesoli (1996MAFFESOLI, Michel. No Fundo das Aparências. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 58) comenta que

[...] a estética não é mais um suplemento de alma secundário e unicamente distrativo, torna-se uma realidade global, ao mesmo tempo existencial e intelectual, que, ultrapassando (e integrando) as clássicas separações modernidade, moral, política, física, lógica, torna-se uma realização, um ‘imperativo vital’.

Compreendemos que o modo de vida guarani, o mbya reko e sua estética como um “imperativo vital” constitui uma composição complexa, em que a educação evoca uma totalidade cultural, fundamental para a afirmação cultural.

Referências

  • ALVES, Caleb Faria. A agência de Gell na antropologia da arte. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ano 14, n. 29, p. 315-338, jan./jun. 2008.
  • BENITES, Sandra (Ara Rete). Nhe’ẽ, reko porã rã: nhemboea oexakarẽ Fundamento da pessoa guarani, nosso bem-estar futuro (educação tradicional): o olhar distorcido da escola. 2015. 40 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.
  • BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Nhembo’e: enquanto o encanto permanece! Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani. 2005. Tese (Doutorado em Educação) -Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.
  • CASALLA, María del Milagro. Aproximaciones a uma estética de lo americano. Analisis, Bogotá, Universidad Santo Tomás, n. 77, p. 103-116, 2010.
  • CUNHA, Diana K. C. da. A Arte de Criar Novos Possíveis: formação e atuação dos mediadores culturais na Ação Educativa da Exposição Séculos Indígenas no Brasil. 2012. 88 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Pedagogia da Arte) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.
  • DUSSEL, Enrique. Estética y Ser. In: DUSSEL, Enrique. Historia de la Filosofia Latino Americamericana y Filosofia de la Liberación. Bogotá: Nueva América, 1994. P. 289-296.
  • FORNET-BETANCOURT, Raúl. Reflexiones de Raúl Fornet-Betancourt sobre el Concepto de Interculturalidade. México: CREFAL, 2007.
  • GELL, Alfred. Art and Agency. Oxford: Clarendon Press, 1998.
  • GÓMEZ, Pedro Pablo Moreno; MIGNOLO, Walter. Estéticas Decoloniales. Bogotá: Universidad Distrital Francisco José de Caldas, 2012.
  • GÓMEZ, Pedro Pablo Moreno. Estéticas de Frontera en el Contexto Colombiano. 2014. Tesis (Doctorado en Estudios Culturales Latinoamericanos) - Universidad Andina Simón Bolívar, Quito, 2014.
  • KUSCH, Rodolfo. América Profunda. In: KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo II. Rosário: Editorial Fundacíon A. Ross, 2009a. P. 02-254.
  • KUSCH, Rodolfo. Geocultura del Hombre Americano. In: KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo III. Rosário: Editorial Fundacíon A. Ross , 2009b. P. 05-240.
  • KUSCH, Rodolfo. Anotaciones para una Estética de lo Americano. In: KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo IV. Rosário: Editorial Fundacíon A. Ross , 2009c. P. 779-815.
  • LAGROU, Els. A Fluidez da Forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: TopBooks, 2007.
  • MAFFESOLI, Michel. No Fundo das Aparências. Petrópolis: Vozes, 1996.
  • MEIRA, Marly. Filosofia da Criação: reflexões sobre o sentido do sensível. Porto Alegre: Mediação, 2009.
  • MELO, Dannilo Cesar Silva. Kovae Ta’angá Escolas Mbyá Guarani na Bienal do Mercosul: reflexões sobre educação e estética decolonial. 2016. 118 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.
  • MIGNOLO, Walter. Prefácio. In: PALERMO, Zulma. Arte y Estética en la Encrucijada Decolonial. Buenos Aires: Del Signo, 2009. P. 7-14.
  • MIGNOLO, Walter. Aiesthesis decolonial. Calle 14, Bogotá, Universidad Distrital Francisco José de Caldas, v. 4, n. 4, p. 11-25, ene./jun. 2010.
  • MIGNOLO, Walter. Habitar la Frontera: sentir y pensar la descolonialidad (Antología, 1999-2014). Barcelona: CIDOB/Universidad Autónoma de Ciudad Juárez, 2015.
  • NUNES, Marília Forgearini. O “pulo do gato” e a mediação em arte: possibilidades de interação. Revista GEARTE, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 1, n. 3, p. 308-323, 2014.
  • PALERMO, Zulma. Arte y Estética en la Encrucijada Decolonial. Buenos Aires: Del Signo, 2009.
  • PISSOLATO, Elizabeth de Paula. A Duração da Pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo: Editora da UNESP, 2007.
  • TASSINARI, Antonella. Escola indígena: novos horizontes teóricos, novas fronteiras de educação. In: SILVA, Aracy da; FERREIRA, Mariana. Antropologia, História e Educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Global, 2001. P. 44-70.
  • 1
    Parte dos argumentos e dos dados deste artigo foram construídos a partir da dissertação de mestrado de Dannilo Cesar Silva Melo, Kovae Ta’angá Escolas Mbyá Guarani na Bienal do Mercosul: reflexões sobre educação e estética decolonial (2016MELO, Dannilo Cesar Silva. Kovae Ta’angá Escolas Mbyá Guarani na Bienal do Mercosul: reflexões sobre educação e estética decolonial. 2016. 118 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.), desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com a orientação da professora Dra. Maria Aparecida Bergamaschi.
  • 2
    É oportuno dizer que já existe uma proximidade na convivência com coletivos Guarani, decorrente de projetos de pesquisa e extensão que versam sobre educação, desenvolvidos desde o ano 2000 sob a coordenação da Professora Dra. Maria Aparecida Bergamaschi.
  • 3
    A noção de cosmopolítica ameríndia (Lagrou, 2007LAGROU, Els. A Fluidez da Forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: TopBooks, 2007. ) e a abordagem de Alfred Gell (1998GELL, Alfred. Art and Agency. Oxford: Clarendon Press, 1998.) inserem a estética numa rede de relações sociais. Permitem compreender as contradições colocadas pelo exercício interpretativo da forma e dos significados da arte no contexto das interações sociais.
  • 4
    Vherá Poty é professor guarani, reconhecido intelectual por seus conhecimentos e ações políticas. Fotógrafo, docente no Curso de Extensão Língua e Cultura Guarani, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
  • 5
    “El estar expresa esa ‘rara sabiduria’ de vivir en América, que se corresponde con una forma cultural estática, vegetal y femenina como la indígena. En tanto, el ser es dinâmico, se rige por una lógica causalística que privilegia un saber de objetos. Ambas representan dos formas de instalarse en el espacio y vivir la cultura. Sin embargo, vale la pena aclarar que estar y ser se relacionan (como la copa de un árbol con sus raíces) en lo que Kusch llama estar-siendo” (Casalla, 2010CASALLA, María del Milagro. Aproximaciones a uma estética de lo americano. Analisis, Bogotá, Universidad Santo Tomás, n. 77, p. 103-116, 2010. , p. 107).
  • 6
    Rodolfo Kusch (2009aKUSCH, Rodolfo. América Profunda. In: KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo II. Rosário: Editorial Fundacíon A. Ross, 2009a. P. 02-254.) usa o termo fagocitação para dizer como os povos originários se apropriam de saberes e práticas exteriores às suas lógicas, conformando um ser e estar no mundo, sem, contudo, perderem suas identificações étnicas e culturais.
  • 7
    A noção de mediação (inter)cultural é entendida a partir do pensamento filosófico intercultural, como propõe Raúl Fornet-Betancourt (2007FORNET-BETANCOURT, Raúl. Reflexiones de Raúl Fornet-Betancourt sobre el Concepto de Interculturalidade. México: CREFAL, 2007.), em que mostre não apenas a relação entre culturas mas seus efeitos éticos, suas referências contextuais na construção de sentidos, o pensamento e a crítica advinda dessas relações de alteridade.
  • 8
    Segundo a curadoria da exposição, “Buscar-se-á mostrar como estratégias que remontam a formas de caráter indígena confrontaram e modificaram sistemas europeus de colonização cultural em uma espécie de antropofagia cultural (nos termos do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade de 1928) que continua em curso até os dias de hoje. O barroco permitiu a continuidade operacional da emancipação cultural nos países da América Latina apesar das rupturas das conquistas e da colonização. A exposição utilizará duas estratégias de abordagem (o barroco e a antropofagia) para repensar estrategicamente um segmento da produção destes países que interliga as formas do Barroco histórico com a contemporaneidade. Assim como a Antropofagia, o Neobarroco rejeita os princípios da modernidade ocidental como o conceito de originalidade (em favor do hibridismo e da mestiçagem), e a da homogeneização histórica e as premissas do cânone europeu construídas pela linearidade”. Disponível em: <https://www.facebook.com/bienalmercosul/photos/a.139198522908405.28897.136684429826481/426648914163363/?type=3&theater>. Acesso em: 8 dez. 2017.
  • 9
    A tradução destas expressões para o idioma guarani é de Vherá Poty, nas aulas de Língua e Cultura Guarani, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Diário de campo, agosto de 2015).
  • 10
    O sentido de agência na arte é semelhante ao sentido de agência dos objetos (Alves, 2008ALVES, Caleb Faria. A agência de Gell na antropologia da arte. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ano 14, n. 29, p. 315-338, jan./jun. 2008. ).
  • 11
    Perguntados para que querem a escola, os guarani dizem que é para conhecer o mundo não indígena. Por isso, a escola na aldeia está originalmente organizada como as demais instituições da rede estadual de educação. Contudo, a vivência diária, a atuação de atores guarani na escola, a interação com a comunidade, produz alterações importantes na instituição, mostrando uma apropriação da escola por agentes guarani (Bergamaschi, 2005BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Nhembo’e: enquanto o encanto permanece! Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani. 2005. Tese (Doutorado em Educação) -Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. ).
  • 12
    Banco de imagens da Fundação Bienal do Mercosul: <http://www.fundacaobienal.art.br/site/pt/imprensa/banco-de-imagens>. Acesso em: 27 jun. 2016.
  • 13
    Avaxi Ete - milho verdadeiro da tradição guarani, considerado sagrado, com o qual eles têm o cuidado especial em conservar as sementes. Os antigos guardam e carregam consigo em seu caminhar e logo que se fixam numa terra plantam a semente sagrada, mesmo que em diminutos espaços (Bergamaschi, 2005).
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2017
  • Aceito
    22 Maio 2018
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Av. Paulo Gama s/n prédio 12201, sala 700-2, Bairro Farroupilha, Código Postal: 90046-900, Telefone: 5133084142 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: rev.presenca@gmail.com