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Atenciografia do Corpo: interseções entre Lisa Nelson e Gilbert Simondon a partir de um fragmento de relato

Attentiongraphie du corps: intersections entre Lisa Nelson et Gilbert Simondon à partir d'un fragment narrative

Resumo:

O artigo propõe uma interseção entre arte e filosofia aproximando uma prática de atenção em uma seção de Tuning Scores, descrita pela coreógrafa e video-maker americana Lisa Nelson, à relação do indivíduo com o meio e com outros indivíduos, pensada pelo filósofo francês Gilbert Simondon. O fragmento de descrição de Lisa Nelson acerca da atenciografia do corpo será lido em conjugação com os caracteres que Simondon apresenta na relação interpessoal: individuação, individualização e personalidade.

Palavras-chave:
Tuning Scores; Atenciografia; Individuação; Individualização; Personalidade

Résumé:

L'article propose une intersection entre l'art et la philosophie par l'approche de une attention pratique dans une section Scores Tuning, décrit par la chorégraphe et vidéaste américaine Lisa Nelson, et la relation du sujet avec l'environnement et d'autres sujets dans la philosophie de Gilbert Simondon. Le fragment de description de Lisa Nelson sur l'attentiongraphie (attentionvivace) du corps doit être lu conjointement aux caractères qui Simondon présente dans la relation interpersonnelle: individuation, l'individualisation et personnalité.

Mots-clés:
Tuning Scores; Attentiongraphie (Attentionvivace). Individuation. Individualisation. Personnalité

Abstract:

The paper suggests an interconnection between art and philosophy through approaching the practice of attention upon a section of Tuning Scores, described by the American choreographer and videomaker Lisa Nelson and the individual's relationship with the environment and with others thought by the French philosopher Gilbert Simondon. Lisa Nelson's fragment describing the Attentiography of Body is presented in conjunction with Simondon's characters by covering some interpersonal relationship traits: individuation, individuality, and personality.

Keywords:
Tuning Scores; Attentiography; Individuation; Individuality; Personality

Uma mulher está entrando no espaço. Ou eu noto uma mulher entrar no espaço. Seu andar raptou meus olhos. Ou ela inseriu-se em um quarto recentemente vazio. Meus olhos a encontraram lá. Ou eu a vejo agora, ela entrou no meu espaço imagem. Eu vejo por trás dos meus olhos, alguém juntar-se a ela aqui, ver o que está no meu plano. Eu estou assistindo uma mulher que anda distante de mim. Ou eu estou assistindo o andar. Ou meus olhos estão perseguindo seus calcanhares. Percebo que me inclinei para frente. Ou eu noto que eu comecei. / Eu olho para os quadris em retirada. Ou eu observo sua caminhada alegre. Este espaço é profundo. Onde ela está indo? Minha curiosidade, sugerida por ela, é alegre também. Eu tenho tempo para olhar para fora de uma janela. E volto. Eu detecto seu cotovelo elevar-se ligeiramente, uma pequena cãibra do pulso. Ela está ensaiando um desvio para onde eu estou, em breve vou ver seu rosto1 1 O fragmento está descrito no texto Tuning Scores, an Approach to Materializing a Dance (excerpts from working draft) (2010), texto inédito cedido pela autora à pesquisadora Silvia Pinto Coelho. Tradução do autor. .

A descrição acima é de Lisa Nelson2 2 Lisa Nelson é performer, improvisadora, cinegrafista e artista colaborativa que explora o papel dos sentidos na execução e observação do movimento desde o início dos anos 1970. Investigadora do movimento, foi colaboradora de Steve Paxton na criação da improvisação de contato. Criou o método Tuning Scores e desde 1977 atua como coeditora da revista Contact Quarterly - a Vehicle for Moving Ideas. (2010NELSON, Lisa. Tuning Scores, an Approach to Materializing a Dance (excerpts from working draft). Texto inédito cedido pela autora à Silvia Pinto Coelho. 2010.), durante uma seção de Tuning Scores, procedimento de investigação de movimento, composição e comportamento humano. Ela expressa o que a própria autora chama de atenciografia3 3 Silvia Pinto Coelho, pesquisadora do trabalho de Lisa Nelson, me relatou que a primeira vez que teve contato com o termo attentiography foi em uma entrevista com Lisa Nelson em 2010 e que não encontrou, em suas anotações, correlato em francês. Desse Modo, decidi usar duas traduções possíveis no resumé, que são attentiongraphie e attentionvivace, atendendo às indicações dos tradutores Lau Santos e Nádia Luciani. do corpo; termo fundamental da sua pesquisa em dança, a atenciografia é o mapeamento sensível da atenção como suporte da imaginação do corpo que se posiciona no espaço e se prepara para responder aos estímulos dos elementos através dos quais se move (Nelson, 2010). Antes de pensar a improvisação como jogo de proposições entre colaboradores em um setting, Lisa Nelson (2010) se interessa pelo modo como cada um organiza o próprio movimento. A atenciografia, portanto, é a leitura dos disparadores da ação na improvisação e que envolve simultaneamente a percepção dos impulsos e as ações correspondentes no espaço.

A atenção está constantemente em movimento, assim como a imaginação, e é no movimento que ambas se articulam: "A atenção nunca para, a imaginação nunca para. É uma consequência da atenção e vice-versa. A emoção nunca para" (Coelho, 2012COELHO, Silvia Pinto. Os Tuning Scores de Lisa Nelson. In: COELHO, Silvia Pinto. Programa de Go de Lisa Nelson e Scott Smith, Ciclo Improvisações/Colaborações. Porto: Auditório da Fundação de Serralves, 2012. P. 1-14., s. p.). Atenção, imaginação e emoção estabelecem a relação do sujeito com o mundo a partir da sua orientação no espaço e sua organização corporal em movimento e no movimento. A partir desse jogo, Lisa Nelson pensa a criação de uma dança originada da própria expressão do dançarino como resultado de respostas para se organizar no movimento e em movimento4 4 O corpo é um instrumento de afinação composto por antenas finamente diferenciadas. Estas são os nossos sentidos e eles medem mudanças. Logo após o nascimento aprendemos a focar os nossos sentidos naquilo que precisamos para sobreviver. A cultura acrescenta uma camada de instruções para construir os filtros perceptuais que espera que precisemos para tirar sentido do mundo (Nelson, 2003, p. 2). Tradução de Silvia Pinto Coelho. . Mas o que é propriamente a expressão e o que ela expressa? Por um lado, ela pode ser o modo como o dançarino apresenta corporalmente certos princípios e ideias com relação a si mesmo, a dança e o mundo. Por outro, pode ser a resposta a forças quase-invisíveis presentes no aqui e agora da composição em dança. Ou mesmo as duas coisas, sendo que a atenção do dançarino flutua entre elas, organizando a si mesmo enquanto se organiza. Lisa Nelson (2003) relata que seu desconforto com a dança nos anos 1970 era pelo fato de os dançarinos se expressarem através de movimentos cotidianos para colocar em questão a estrutura consagrada da dança, enquanto ela procurava uma fonte subjacente ao corpo cotidiano5 5 Embora os bailarinos da época fossem temporariamente relaxados - acolhendo os movimentos quotidianos, comportamentos de movimento "natural", técnicas desportivas no palco e propondo novos enquadramentos para olhar para a dança - eu ansiava por ver outra coisa. Algo subjacente à interacção dos bailarinos uns com os outros e a arquitectura do espaço, algo da interacção da bailarina consigo própria - o diálogo interno que modela a superfície (Nelson, 2003, p. 2). Tradução de Silvia Pinto Coelho. .

Articulando essas duas perspectivas, tentarei mostrar, neste artigo, como a expressão é o ponto que singulariza o plano multitudinário do movimento; ou o modo como cada individualidade atualiza em movimentos particulares o fundo coletivo e impessoal que subjaz a estes movimentos.

A partir do pensamento de Gilbert Simondon sobre a individuação, mostrarei que a expressão se dá no nível da personalidade, passagem entre o nível individual e individualizado e modo de participação no coletivo. O fragmento acima descreve, antes de mais nada, uma expressão e os sentidos que ela oferece como disparador de movimentos. Dançar, portanto, é um caso da vida, expressão da vida e que não pode estar alijada do mundo.

Começarei afirmando que o relato de Lisa Nelson não é a descrição de uma figura, nem os recortes do olhar, mas a emergência de um acontecimento que se abre para duas direções diferentes, ao mesmo tempo: figura e observador. O que o relato coloca em questão é a separação de duas entidades no momento da descrição. Não há um sujeito que observa e outro que se movimenta e é observado; são dois movimentos em reciprocidade. A mulher que caminha coloca para a observadora problemas de percepção; ora ela está próxima, ora distante, ou se apresenta como um recorte definido no espaço, ou como partes em movimento. Acompanhar esses elementos obriga a narradora à auto-organização dos movimentos, pois é sempre a partir do seu ponto de observação que a mulher descrita expressa diferentes relações no espaço. Então, a mulher descrita emite sinais que expressam tanto sua participação no plano comum da humanidade quanto os modos particulares dessa participação - a caminhada alegre, a pequena elevação do cotovelo. Enquanto isso, aquela que descreve é transformada pelo estado de alegria, a emoção a transforma em sua afetividade; ela descreve a alegria que vê e aquela que sente. Agora, o ato de descrição é o modo como a narradora dá sentido ao que vê e ao que sente. No espaço, os ritmos, os percursos, os estados, são sinais que a narradora torna significativos no momento em que narra. A narrativa é a maneira como se doa significação ao que se percebe, resolvendo o problema da multiplicidade de sinais. Ao mesmo tempo, a significação torna inteligível a relação da observadora com a mulher que ela descreve. A mulher descrita nasce para a observadora no momento em que ela a elege como objeto, mas a eleição não pode ser anterior à experiência. A observadora nasce para si mesma, no mesmo momento, porque no ato de descrever, mesmo em tempo real, já existe um encaminhamento dos sinais para um sentido que só se resolverá para ela. Definitivamente não se trata de uma mulher qualquer, mas de uma mulher específica, aquela mulher, que não pode ser descrita sem que se descreva o meio no qual ela está e a sua orientação; isso não seria possível se esse meio não estivesse sendo habitado também por quem descreve. Na descrição, a atenção flutua entre os percursos de uma determinada figura no espaço e os movimentos internos do observador.

Há uma dramaturgia envolvida no processo se ela for entendida como trama, composição de linhas que se amarram a partir de um ponto comum que une a mulher descrita e a observadora. É deste ponto que uma e outra se desdobram. Uma não é anterior à outra. Quem enlaça quem na trama? O olho, que já esperava ser captado em sua atividade de recortar o espaço, selecionando estímulos - ela raptou os olhos -, ou a figura que surgiu diante da observadora que aguardava somente esse estímulo para iniciar sua atividade? Ou ela inseriu-se em um quarto recentemente vazio. Ou ambos? Certamente mais até do que isso, já que o observador ora se fixa em um quadril, em um calcanhar ou no movimento. Essas partes são separadas da figura? Ou ela é um conjunto de partes? Mas o que as une, a figura ou o olhar? Todos esses sinais se enlaçam no instante em que os sinais ganham significação; a narrativa é a dramaturgia das linhas que se enlaçam e fazem surgir as duas personagens. Três momentos da dramaturgia: uma mulher caminha e o seu caminhar prende a atenção de quem a observa - de todas as informações do meio, aquela capturou o olhar da observadora. Uma mulher caminha em um meio, mulher e meio se complementam. Algo se move, não somente a mulher que caminha, nem ela e o meio, o olhar da observadora também, mas outra coisa a mais, que, no entanto, elas compartilham, embora não seja comum a nenhuma delas.

Proponho, de início, que as questões elencadas a partir do fragmento de descrição de Lisa Nelson (2010NELSON, Lisa. Tuning Scores, an Approach to Materializing a Dance (excerpts from working draft). Texto inédito cedido pela autora à Silvia Pinto Coelho. 2010.), apresentado acima, sejam lidas em conjugação com as noções de individuação, individualização e personalidade em Simondon (2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015.). Para tanto, é preciso entender o que é para Simondon (2015) o processo de individuação.

Individuação

Diferentemente do pensamento hilemórfico, que pressupõe o nascimento de um indivíduo pela ação de uma forma sobre uma matéria, Simondon entende, em primeiro lugar, a gênese do indivíduo (ontogênese) como a ação de um germe de formalização em um meio sobrecarregado de energia potencial que ele chama de plano pré-individual, já que nele as fases que caracterizam a gênese do indivíduo e seu desenvolvimento ainda não estão presentes: "[...] o ser pré-individual é o ser no qual não existem fases" (Simondon, 2015, p. 10); isso quer dizer que a forma não preexiste ao meio; o germe de formalização modula o meio, desdobrando-se e estruturando zonas cada vez mais distantes; é a energia potencial do plano pré-individual que se encarrega do movimento de tomada de forma.

O plano pré-individual, por sua vez, experimenta metaestabilidade. A metaestabilidade caracteriza-se pela alta carga de energia potencial. A ação do germe de formalização altera a metaestabilidade; a energia potencial, por sua vez, amplia a ação do germe no caminho da realização de uma estrutura. Um indivíduo é uma estrutura que se realiza pela ação modal de um germe de formalização em um plano pré-individual metaestável, carregado de energia potencial. Para explicar esse processo, Simondon toma como modelo o surgimento de um indivíduo físico, os cristais de água, por exemplo: nele, moléculas de água reunidas em uma solução supersaturada (instância pré-individual, metaestável) comunicam-se com um germe de cristal, ou seja, uma partícula estruturada, que carrega em si o sinal da forma a ser criada; o surgimento e o crescimento do cristal de gelo, como indivíduo físico, opera a comunicação destas duas ordens de magnitude: o meio supersaturado e o germe de cristalização. A partir deste ponto, e abrindo-se em todas as direções, o processo de tomada de forma vai se desdobrando e estruturando zonas cada vez mais distantes do centro original, mas transportando, ponto a ponto, a informação doada pelo germe de formalização. A ampliação das zonas de formalização chama-se defasagem (Simondon, 2015). Ou seja, o indivíduo, para Simondon (2015, p. 10), apresenta fases, devindo passo a passo no processo de individuação. Isso significa que o devir não é uma instância que se liga ao ser, vindo de fora, para deformá-lo posteriormente, mas sim que ele é uma das potências do ser: "[...] o devir não é um marco no qual existe o ser; é dimensão do ser, modo de resolução de uma incompatibilidade inicial rica em potenciais".

Além disso, restam moléculas supersaturadas não formalizadas, guardando o plano pré-individual na constituição do indivíduo em formação. Assim, o pré-individual está na gênese do indivíduo e o acompanha em sua existência, como um a mais pronto para ativar novas individuações.

A individuação, como resolução das incompatibilidades energéticas, faz surgir não somente o indivíduo, mas o "par indivíduo-meio" (Simondon, 2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015., p. 10). Muriel Combes (2013COMBES, Muriel. Gilbert Simondon and the Philosophy of the Transindividual. Massachusetts: Massachusetts Institute of Technology, 2013., p. 4) exemplifica como a defasagem do ser origina um indivíduo que faz a mediação entre uma ordem de grandeza cósmica e uma inframolecular:

Uma planta, por exemplo, estabelece a comunicação entre uma ordem cósmica (que pertence à energia da luz) e uma ordem inframolecular (sais minerais, oxigénio, etc). Mas a individuação de uma planta não dá à luz somente a planta em questão. Ao se defasar, o ser simultaneamente faz nascer um indivíduo que medeia duas ordens de grandeza e também um ambiente ao mesmo nível do ser (assim o ambiente da planta será a terra em que ela está localizada e o meio imediato com o qual ela interage).

A defasagem e a relação com o meio é o que diferencia a individuação física da individuação do vivente. O primeiro, em um único golpe, determina as fases de seu crescimento: um cristal de gelo cresce sempre da mesma forma, repetindo a individuação inicial. Isso porque o indivíduo físico, ao surgir, estabelece uma fronteira entre si mesmo e o meio, e seu crescimento será sempre nos limites dessa fronteira.

Para Simondon (2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015., p. 14), ao contrário da individuação física, o vivente, no ato do seu nascimento, dá origem a um meio associado externo e também a um meio interno; o seu nascimento não resolve de uma vez por todas as incompatibilidades com a instância pré-individual, a potência metaestável que ele guarda. Nesse sentido, o vivente é um problema de incompatibilidade para si mesmo e o devir é o movimento das resoluções dessa incompatibilidade: "O vivente conserva em si uma atividade de individuação permanente; não é somente resultado de individuação, como o cristal ou a molécula, mas também teatro de individuação". Tais incompatibilidades não podem ser resolvidas nas estruturas atuais do indivíduo vivente, nesse caso é necessário que a individuação salte para estruturas mais amplas; o devir do indivíduo vivente é esse salto para uma nova estrutura a partir de uma anterior. Assim, passa-se da individuação biológica para a individuação psíquica e coletiva. Não se trata de um progresso contínuo; cada salto é um mergulho nas condições iniciais de individuação, e assim a individuação do vivente não sucede a física, mas a interrompe antes que ela se complete (Simondon, 2015). E a cada vez as novas estruturas compõem com novos elementos disponíveis no meio sem abandonar completamente outros mais antigos; os elementos anteriores restam inutilizáveis de uma vez por todas, ou retornam em outro momento da estruturação (Simondon, 2015).

Simondon (2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015., p. 502) encontra a generalização desse sistema nas pesquisas dos psicólogos americanos Gesel e Carmichael, a partir da ideia de ontogênese do comportamento:

[...] falando de um lactante humano com cerca de um ano, Gesel descobre quatro ciclos sucessivos: a reptação; depois, andar de quatro, de joelhos; de quatro em extensão; por último o caminhar de pé. Entretanto, os padrões que são adquiridos na reptação chegam a uma espécie de perfeição ao final do primeiro período; logo, bruscamente, quando a maturação é suficiente, se produz uma desadaptação, a criança repta mal; repta mal e se levanta sobre os braços, se põe de joelhos; já não avança, está desadaptado. Busca então um novo tipo de adaptação e, no interior desse novo tipo de adaptação, são reutilizadas relações ipsilaterais, contralaterais, de inibição, de facilitação que existiam na reptação; a reptação se perde, porém o conteúdo da reptação não está totalmente perdido, é reincorporado.

Individuação, Individualização e Personalidade

No fragmento O indivíduo e o meio, Simondon (2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015., p. 336) afirma que a relação interpessoal convoca nossa natureza individual, como um aceno que nos desafia, mostrando "[...] através da emoção que os princípios de existências dos seres individuados, são questionados. O medo, a admiração cósmica, afetam o ser em sua individuação e o situam de novo em si mesmo com relação ao mundo". São estados de provação que colocam em questão a existência do indivíduo como ser individuado, continua Simondon. Pode-se mesmo dizer em risco, como uma questão de vida ou morte, não necessariamente pela alusão ao medo na frase. São experiências de assombro que mostram ao indivíduo que a sua existência se estende a um plano muito maior do que ele pode perceber e tão somente nesses momentos de risco ele pode ter uma vaga ideia de si como mais do que individual (Combes, 2013COMBES, Muriel. Gilbert Simondon and the Philosophy of the Transindividual. Massachusetts: Massachusetts Institute of Technology, 2013.).

No fragmento de descrição apresentado no início do ensaio, a narradora encontra-se diante de uma mulher - uma mulher está entrando no espaço - e este é o primeiro ponto de contato. A mulher é percebida naquilo que ambas têm em comum, neste caso, pode-se dizer, a humanidade. Ambas são resultado do mesmo processo de individuação e nisso reside a emoção de estar diante de algo muito maior do que si mesmo. O outro questiona os limites do ser como individuado.

Quando, por outro lado, a relação diz respeito à individualização, o outro e o meio estão no plano do particular e cotidiano, tomando aquele que se percebe "[...] em sua particularidade, através da propriedade das coisas familiares, dos acontecimentos costumeiros e regulares, integrados ao ritmo da vida, não surpreendentes, integrados em marcos prévios" (Simondon, 2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015., p. 336). A individualização tem uma história particular, marcos espaciais e temporais que singularizam a problemática da individuação. E tem também um modo específico, um estilo, um jeito de ser que se agrega ao todo da individuação. No fragmento de descrição, a individualização se revela no ritmo dos quadris, na alegria, no pequeno elevar dos cotovelos. A realidade primeira da individuação não está completamente fora da individualização, assim como não está completamente dentro.

A individuação é a estrutura comum partilhada por todos os seres humanos ou, como diz Pascal Chabot (2003CHABOT, Pascal. La Philosophie de Simondon. Paris: Paris: J. Vrin, 2003., p. 112-113), "A individuação é transcendental, ela diz respeito às estruturas formais do sujeito". Enquanto a individualização é o modo como cada um atualiza e estiliza a individuação, a partir da sua história e preferências. As duas relações são assimétricas e, para Simondon (2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015.), a individuação coloca problemas para todos os seres que compartilham dela; e é nesse sentido que a individuação é transcendental. Mas, se a comunhão dos indivíduos se encontra no nível dos questionamentos, é no nível da individualização que as respostas operam (Simondon, 2015).

Ao mesmo tempo, todo ser individualizado comunga com os demais problemas propostos pela individuação, mas divergindo dos outros na lida com esses problemas. E Simondon (2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015., p. 336) sinaliza que: "A impressão de uma participação profunda ou a percepção corrente, são os aspectos dessas duas relações. Estes dois tipos de relação apenas se combinam, pois acontecem na vida". Individuação e individualização se combinam na vida; isso quer dizer que ambas participam do processo da gênese contínua que é a vida. Por tal motivo, cada atualização individualizada para os problemas propostos a partir da individuação concorre para manter o movimento vivo da metaestabilidade do ser: "Cada pensamento, cada descoberta conceitual, cada surgimento afetivo é uma retomada da primeira individuação" (Simondon, 2015, p. 332). Além disso, a individuação, como plano transcendental, é concretizada em cada modo particular de existência. Entretanto, os modos particulares não podem conter o todo da individuação, já que o ser não se permite ser todo individuado. Por outro lado, não pode haver também um conjunto de indivíduos não individualizados, o que significa que o ser teria se esgotado no momento da individuação. Assim, é necessário que uma outra figura surja para conjugar individuação e individualização. Então, Simondon (2015, p. 336) completa: "[...] a personalidade comporta a presença dos dois aspectos, e a experiência que corresponde à personalidade é relativa às duas condições".

A personalidade é aquilo que mantém a coerência da individuação e o permanente processo de diferenciação da individualização. De início há a individuação do vivente, seguido da sua individualização psicossomática, a personalidade faz a passagem entre ambas. É a personalidade que articula o momento inicial da individuação com o movimento contínuo da individualização, já que, sem ela, ambos restariam como duas substâncias fechadas e sem comunicação. Haveria, assim, um comum absoluto ou individualidades absolutas. Segundo Barthélémy (2012BARTHÉLÉMY, Jean-Hugues. Fifty key terms in the works of Gilbert Simondon In: DE BOEVER, Arne et al. Gilbert Simondon: being and technology. Edinburgh: Edinburgh University Press Ltd., 2012. P. 204-231., p. 220), a personalização "[...] torna possível a passagem do regime propriamente vital da individuação para o regime psicossocial; a personalidade individual é construída dentro de um grupo que tem sua própria unidade e sua própria personalidade de grupo". É a partir da personalidade que os indivíduos particulares entram em comunidade; se por um lado elas se diferenciam, por outro elas compartilham a mesma individuação.

Por consequência, a narrativa não pode ser recorte de uma figura separada do espaço e de outras figuras; como diz Simondon (2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015.), não se trata de um caso de comunicação entre consciências. Ambas se comunicam naquilo em que se separam, ou seja, o modo singular de corresponder aos problemas comuns propostos pela individuação que elas compartilham. Nesse ponto, é possível dizer que o que elas têm em comum é o incomum.

Assim, Simondon apresenta três modos de ser que se completam mas não se esgotam: o individual, conjugação do indivíduo e o mais que individual; o individualizado, coerência consigo mesmo e com alguns aspectos do mundo comuns a outras individualidades; e, por fim, a personalidade que articula as duas primeiras instâncias por determinados períodos, tendendo a construir-se, desconstruir-se e reconstruir-se. Portanto, a individuação é única enquanto a individualização é contínua e a personalização é descontínua (Barthélémy, 2012BARTHÉLÉMY, Jean-Hugues. Fifty key terms in the works of Gilbert Simondon In: DE BOEVER, Arne et al. Gilbert Simondon: being and technology. Edinburgh: Edinburgh University Press Ltd., 2012. P. 204-231.; Simondon, 2015).

Relação com o Meio, Relação com o Outro

O outro, para Simondon (2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015., p. 337), é um questionamento ao ser como individuado; cada um se vê diante de um outro que é sempre jovem, ou doente, ou velho e saudável. Mas esse outro não é tomado em si, dentro dos limites de sua constituição, isolado, ele é tomado relativamente a quem vê: "[...] nessa relação, não se é absolutamente mais jovem ou mais velho, entretanto mais jovem ou mais velho que outro; se é também mais forte ou mais débil; ser homem ou mulher é ser homem em relação a uma mulher ou mulher em relação a um homem". A narrativa de Lisa Nelson (2010NELSON, Lisa. Tuning Scores, an Approach to Materializing a Dance (excerpts from working draft). Texto inédito cedido pela autora à Silvia Pinto Coelho. 2010.) diz respeito primeiro a uma mulher que caminha enquanto a observadora está parada; ou ela se aproxima de determinado ponto relativo à observadora. Simondon (2015, p. 337) mostra que perceber uma mulher como tal "[...] não é fazer entrar uma percepção nos marcos conceituais já estabelecidos, mas situar-se a si mesmo em relação a ela, por sua vez enquanto individuação e individualização".

Simondon (2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015.) afirma que a relação com o meio equivale à relação com o outro; isso significa que não há possibilidade de existência de um indivíduo que não carregue com ele um meio agregado. Além disso, a relação desdobra-se em duas relações; uma com emoções que só podem ser experimentadas e que questionam o ser individuado, relativamente ao outro, e outra com relação aos marcos pré-estabelecidos da vida particular de um indivíduo. Ora, esses marcos, diz Simondon (2015, p. 337), não são suficientes para caracterizar uma mulher, substancializá-la em uma forma específica e estacionária: "Portanto, os caracteres específicos não podem bastar para explicar a unidade do experimentado e do percebido, não mais que o hábito ou qualquer outro princípio de realidade exterior6 6 A referência aqui é ao associacionismo e à Teoria da Forma, teorias que Simondon define como incompletas para determinar a constituição da Individuação Psíquica, capítulo do qual o trecho analisado faz parte. ".

A percepção já está naquilo que se percebe, como orientação, diz Simondon, e não é determinada por uma realidade outra que aja sobre ela (Simondon, 2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015.). Mas, além dessa condição, embora a percepção possa ser relativa às características formais e particulares, ela aponta para algo mais do que isso.

A individualidade é um caso particular de participação, ela não é substancial, não guarda em si todas as potências da humanidade ou do vivente, embora seja através dela que se passe a esses universos ampliados. Não há um fosso que separe a mulher percebida e a narradora que percebe, no caso da descrição de Lisa Nelson, assim como não há diferença substancial entre a mulher e a humanidade: indivíduo e coletividade não se distinguem como realidades isoladas, assim como indivíduo e meio. Eles são correlativos, apontam um ao outro em suas orientações. O indivíduo participa da coletividade, assim como a coletividade participa do indivíduo. O conhecimento completo, diz Simondon (2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015., p. 337):

[...] corresponde a uma completa hecceidade (esta mulher, tal mulher) sendo aquilo em que coincidem individuação e individualização; é uma certa expressão, uma certa significação que faz com que esta mulher seja esta mulher; todos os aspectos da individualidade e da individuação que o ser pode ter se está realmente unificado.

A expressão é o modo como a personalidade faz a passagem entre o individual e o pré-individual. Fiéis ao pensamento de Simondon, não podemos considerar ambas as instâncias como substâncias isoladas, mas constituintes de uma mesma realidade que se organiza em estruturas comuns, por um lado, e modos particulares de existência, por outro. A expressão de um ser, continua Simondon (2015, p. 337):

[...] é uma realidade verdadeira, mas não é uma realidade captável de outro modo que como expressão, ou seja, como personalidade; não existem elementos da expressão, mas existem bases da expressão, pois a expressão é uma unidade relacional mantida no ser por uma incessante atividade; é a vida mesma do indivíduo manifestada em sua unidade; ao nível da expressão, o ser é na medida em que se manifesta, o que não é certo para a individuação ou para a individualização.

Nem o princípio único da individuação, nem a continuidade de cada individualização, somente a personalidade apresenta expressividade, somente ela se mantém na atividade incessante que faz a passagem entre a individuação individual e a individualização. Como isso se aproxima do que Lisa Nelson considera um ato de dança e que sobressai na descrição da mulher que ela vê se mover? Antes de mais nada, a dança para ela não está dissociada do movimento da vida, tanto no corpo quanto na relação com o coletivo:

Penso nos olhos. Muitas partes móveis. Penso na visão. Há mais para ver para além do óbvio. Penso na visão e no movimento. Uma dá lugar ao outro. Vem-me à cabeça o diálogo. É assim que experimento o seu casamento. E é assim que experimento a minha dança - no meu corpo e na sociedade com pessoas, coisas e espaço (Nelson, 2003NELSON, Lisa. Before your Eyes: seeds of a dance practice. Contact Quarterly Dance Journal, New York, v. 29, n. 1, p. 1-5, Winter/Spring, 2003., p. 1).

Erin Manning (2013MANNING, Erin. Always More Than One: individuation's dance. Durham; London: Duke University Press, 2013. , p. 19) denomina de uma vida, no sentido deleuzeano, a força impessoal que anima a vida vivida a cada momento: "A vida é um outro termo para o pré-individual. É o que o acompanha, o que resta por se resolver na tomada de forma, o que desafia a hierarquia do orgânico em relação ao inorgânico na organização do que comumente entendemos como 'vida'". O processo de defasagem, para Simondon, assim como o movimento de uma vida, que Manning toma emprestado de Deleuze, não são lineares, ocasionando a mudança do corpo como um todo, mas microexplosões de diferenças irrompendo no interior do que Manning (2013) descreve como uma mesma ecologia de processos.

Cada modo particular é a continuação da individuação inicial; fieis a ela (Simondon, 2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015.), mesmo distantes, cada um experimenta uma abertura para o pré-individual, aquele um a mais que não pode ser individualizado e que será retomado para novos saltos de individuação. Por último, novamente com Simondon (2015, p. 337), a expressão, a vida propriamente dita é "uma unidade relacional mantida no ser por uma incessante atividade". Então, Simondon está dizendo que a vida é um movimento incessante e ativo, que age e não para de agir, mas que, no entanto, não é dado, nem estável, no sentido de um ritmo constante e calculado; o movimento é negociado a cada instante. Aqui se encaixa o que Lisa Nelson (2004, p. 1) considera dançar:

Estamos constantemente a reposicionar o nosso corpo e a nossa atenção em resposta ao que nos rodeia, em resposta a coisas que conhecemos e outras que não conhecemos. Esta dança interna é uma improvisação básica - ler e responder às partituras (scores) daquilo que nos rodeia. É o diálogo do nosso corpo com a nossa experiência.

O movimento é causado pela passagem entre as partes móveis e imóveis, sinais conhecidos e desconhecidos, retomada contínua da ação, logo depois do repouso e o oposto, constantemente. Para Lisa Nelson, dançar é ler o diálogo do corpo com a experiência, e não há significação sem experiência, logo, não há indivíduo. O que ela está chamando de corpo só é tomado no rearranjo continuado e metaestável em relação ao que nos rodeia, seja isso conhecido ou não. Saltos e paradas; retomando a diferença entre a relação individual e a relação individualizada, os saltos correspondem ao risco de vida que une percepção e emoção diante de um acontecimento que não pode ser apreendido completamente pela individualidade, e os repousos relativos à integração aos marcos adquiridos. Improvisamos de início e sempre. A improvisação, no entanto, não é o jogo de cartas marcadas que usa movimentos sempre codificados. Ela é a recolocação continuada das estruturas do corpo em resposta às mudanças naquilo que se percebe. É preciso se arranjar, dar um jeito, criar uma certa expressão, para acompanhar a mudança. Assim, o indivíduo conhece a si mesmo e o outro, porque as mudanças enviam sinais que fazem com que ele oriente a si mesmo orientando-se no mundo.

Como demonstrei logo acima, para Simondon não existe diferença em entrar em relação com o meio e com o outro indivíduo. Logo, o meio também tem seus arranjos e rearranjos. Ficamos face a face com o outro e com seu meio associado, que não param de se rearranjar. Mas ficar face a face é ser percebido, logo, nos inserimos no sistema indivíduo-meio que compõe o outro como mais um dado de metaestabilidade. Claro, de lá para cá também. Isso é dançar. E o que articula tudo isso é o movimento que expressa uma certa resposta a uma determinada situação. É o que Lisa Nelson (2004, p. 1) descreve como uma dança casual no momento em que estamos na iminência do encontro com alguém que não queremos ver e que não queremos que nos veja: "Antes de nos darmos conta o nosso corpo já se colocou de forma a estar invisível, ou os olhos se desviaram para outro lado na eventualidade de sermos observados com persistência".

Somente nos casos patológicos o outro é tomado somente como unidade e identidade consigo mesmo, estabilidade que a percepção reconheceria como sendo diferenciada da emotividade7 7 O percebido e o experimentado só se desdobram na enfermidade da personalidade. Minkowski cita o caso de um jovem esquizofrênico que pergunta por que o fato de ele ver uma mulher na rua lhe causa uma emoção determinada: não vê nenhuma relação entre a percepção da mulher e a emoção experimentada (Simondon, 2015, p. 337). . Entrar no mundo do outro, portanto, é ter que compor com os arranjos que ele compõe consigo mesmo e com o meio que lhe é associado. Não é excessivo repetir, cada indivíduo para Simondon (2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015.) é indissociável do seu meio, que faz nascer no momento do seu surgimento. Por outro lado, esse mesmo indivíduo experimenta arranjos e rearranjos que não param ou, se param, é só para retomar o movimento.

No fragmento de narrativa algo escapa e que não pode ser da ordem da relação interindividual: nem a unidade da individuação, nem a continuidade da individualização, mas a descontinuidade da personalidade (Simondon, 2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015., p. 340):

A personalidade aparece como algo mais que relação: é o que mantém a coerência da individuação e o processo permanente de individualização: a individuação só tem lugar uma vez; a individualização é tão permanente quanto a percepção e as condutas correntes; a personalidade, ao contrário, é domínio do quântico, do crítico [...].

Uma boa palavra para descrever a personalidade é malemolência. A sonoridade da palavra é ideal, meio mole, meio sustentada, em movimento. Ninguém parado é malemolente. O dicionário Aulete (2016CALDAS AULETE, Dicionário. Malemolência. Aulete Digital - dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 2016. Disponível em: <Disponível em: http://www.aulete.com.br/malemol%C3%AAncia >. Acesso em: 01 maio 2016.
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, online) oferece um significado apropriado para malemolência: "Forma de comportamento que denota malícia, manha, destreza ou elegância de alguém". A malemolência vai do espectro da malícia à elegância; na gíria carioca, manha se relaciona com habilidade - fulano tem a manha, então ele sabe como fazer, conhece os percursos. Isso se relaciona também com a capacidade de atenção que se emprega em uma atividade, mesmo maliciosa.

Tim Ingold (2015INGOLD, Tim. Estar Vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015.), assim como Deleuze e Guattari (1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs. V. 5. São Paulo: Ed. 34, 1997. ), concebem essa atenção como habilidade de agir certeiramente no movimento, em movimento, como no caso de um artesão experiente que obtém resultados certos do seu movimento, mas que não apresenta regularidade na execução; Deleuze e Guattari (1997) chamam isso de itineração, mais do que iteração. Não é a regularidade do movimento que leva ao resultado preciso, mas a desenvoltura nas curvas incertas que levam da intenção ao resultado, isso que se chama destreza. Por fim, a elegância; conjunto das curvas incertas com o resultado certeiro, algo a mais que acompanha o artesão, o seu instrumento e o material trabalhado, conjunto de forças agindo em conformidade, que Tim Ingold (2015) e Gilbert Simondon (2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015.) chamam de sinergia. E se pensarmos em outra palavra para a elegância? Se pensarmos naquilo que Deleuze (Deleuze; Parnet, 1996DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. L'Abecedaire de Gilles Deleuze. Entrevista feita por Claire Parnet, filmada e dirigida por Pierre-André Boutang. Paris: Vidéo, Éditions Montparnasse, 1996. (Transcrição sintetizada, em inglês, por Charles J. Stivale. Disponível em: <http://www.langlab.wayne.edu/cstivale/d-g/abc1.html>. Acesso em: 10 ago. 2016. Tradução Disponível em: <http://stoa.usp.br/prodsubjeduc/files/262/1015/Abecedario+G.+Deleuze.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2016)., online) chama de "charme"? Para Deleuze:

As pessoas só têm charme em sua loucura, eis o que é difícil de ser entendido. O verdadeiro charme das pessoas é aquele em que elas perdem as estribeiras, é quando elas não sabem muito bem em que ponto estão. Não que elas desmoronem, pois são pessoas que não desmoronam.

A malemolência, finalmente, é um charme, devido ao equilíbrio incerto da relação do corpo com o meio, que se constitui no plano do somático, da percepção e do ambiente. A referência de Deleuze à loucura faz lembrar o que Simondon diz a respeito do esquizofrênico que diferenciava percepção de emoção, ao ver uma mulher na rua. A loucura está em não captar a curva incerta, a malemolência, e em tomar a certeza do resultado como modelo. Além disso, entendemos melhor a colocação de Simondon, a personalidade é domínio do crítico, estruturas que se mantém por certo tempo, que resistem nas suas dificuldades e, não podendo mais manter as antigas relações, desabam e dão lugar a outras novas. Elas são como as pessoas que Deleuze fala acima, que perdem o chão, mas não desmoronam, mergulham dentro de um si mais profundo do que sua própria individualidade e retornam. Qual a relação disso com a dança?

Referências

  • BARTHÉLÉMY, Jean-Hugues. Fifty key terms in the works of Gilbert Simondon In: DE BOEVER, Arne et al. Gilbert Simondon: being and technology. Edinburgh: Edinburgh University Press Ltd., 2012. P. 204-231.
  • CALDAS AULETE, Dicionário. Malemolência. Aulete Digital - dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 2016. Disponível em: <Disponível em: http://www.aulete.com.br/malemol%C3%AAncia >. Acesso em: 01 maio 2016.
    » http://www.aulete.com.br/malemol%C3%AAncia
  • CHABOT, Pascal. La Philosophie de Simondon. Paris: Paris: J. Vrin, 2003.
  • COELHO, Silvia Pinto. Os Tuning Scores de Lisa Nelson. In: COELHO, Silvia Pinto. Programa de Go de Lisa Nelson e Scott Smith, Ciclo Improvisações/Colaborações. Porto: Auditório da Fundação de Serralves, 2012. P. 1-14.
  • COMBES, Muriel. Gilbert Simondon and the Philosophy of the Transindividual. Massachusetts: Massachusetts Institute of Technology, 2013.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs. V. 5. São Paulo: Ed. 34, 1997.
  • DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. L'Abecedaire de Gilles Deleuze. Entrevista feita por Claire Parnet, filmada e dirigida por Pierre-André Boutang. Paris: Vidéo, Éditions Montparnasse, 1996. (Transcrição sintetizada, em inglês, por Charles J. Stivale. Disponível em: <http://www.langlab.wayne.edu/cstivale/d-g/abc1.html>. Acesso em: 10 ago. 2016. Tradução Disponível em: <http://stoa.usp.br/prodsubjeduc/files/262/1015/Abecedario+G.+Deleuze.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2016).
  • INGOLD, Tim. Estar Vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015.
  • MANNING, Erin. Always More Than One: individuation's dance. Durham; London: Duke University Press, 2013.
  • NELSON, Lisa. Before your Eyes: seeds of a dance practice. Contact Quarterly Dance Journal, New York, v. 29, n. 1, p. 1-5, Winter/Spring, 2003.
  • NELSON, Lisa. Tuning Scores, an Approach to Materializing a Dance (excerpts from working draft). Texto inédito cedido pela autora à Silvia Pinto Coelho. 2010.
  • SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    O fragmento está descrito no texto Tuning Scores, an Approach to Materializing a Dance (excerpts from working draft) (2010), texto inédito cedido pela autora à pesquisadora Silvia Pinto Coelho. Tradução do autor.
  • 2
    Lisa Nelson é performer, improvisadora, cinegrafista e artista colaborativa que explora o papel dos sentidos na execução e observação do movimento desde o início dos anos 1970. Investigadora do movimento, foi colaboradora de Steve Paxton na criação da improvisação de contato. Criou o método Tuning Scores e desde 1977 atua como coeditora da revista Contact Quarterly - a Vehicle for Moving Ideas.
  • 3
    Silvia Pinto Coelho, pesquisadora do trabalho de Lisa Nelson, me relatou que a primeira vez que teve contato com o termo attentiography foi em uma entrevista com Lisa Nelson em 2010 e que não encontrou, em suas anotações, correlato em francês. Desse Modo, decidi usar duas traduções possíveis no resumé, que são attentiongraphie e attentionvivace, atendendo às indicações dos tradutores Lau Santos e Nádia Luciani.
  • 4
    O corpo é um instrumento de afinação composto por antenas finamente diferenciadas. Estas são os nossos sentidos e eles medem mudanças. Logo após o nascimento aprendemos a focar os nossos sentidos naquilo que precisamos para sobreviver. A cultura acrescenta uma camada de instruções para construir os filtros perceptuais que espera que precisemos para tirar sentido do mundo (Nelson, 2003NELSON, Lisa. Before your Eyes: seeds of a dance practice. Contact Quarterly Dance Journal, New York, v. 29, n. 1, p. 1-5, Winter/Spring, 2003., p. 2). Tradução de Silvia Pinto Coelho.
  • 5
    Embora os bailarinos da época fossem temporariamente relaxados - acolhendo os movimentos quotidianos, comportamentos de movimento "natural", técnicas desportivas no palco e propondo novos enquadramentos para olhar para a dança - eu ansiava por ver outra coisa. Algo subjacente à interacção dos bailarinos uns com os outros e a arquitectura do espaço, algo da interacção da bailarina consigo própria - o diálogo interno que modela a superfície (Nelson, 2003NELSON, Lisa. Before your Eyes: seeds of a dance practice. Contact Quarterly Dance Journal, New York, v. 29, n. 1, p. 1-5, Winter/Spring, 2003., p. 2). Tradução de Silvia Pinto Coelho.
  • 6
    A referência aqui é ao associacionismo e à Teoria da Forma, teorias que Simondon define como incompletas para determinar a constituição da Individuação Psíquica, capítulo do qual o trecho analisado faz parte.
  • 7
    O percebido e o experimentado só se desdobram na enfermidade da personalidade. Minkowski cita o caso de um jovem esquizofrênico que pergunta por que o fato de ele ver uma mulher na rua lhe causa uma emoção determinada: não vê nenhuma relação entre a percepção da mulher e a emoção experimentada (Simondon, 2015SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Buenos Aires: Cactus Ed., 2015., p. 337).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2016
  • Aceito
    29 Jul 2016
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