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Dança, Música e Dramaturgia: plano de colaboração e dispositivo dramatúrgico

Danse, Musique et Dramaturgie: plan de collaboration et dispositif dramaturgique

Resumo:

Os desdobramentos do conceito de dramaturgia e as problematizações da criação coreográfica contemporânea são hoje um vasto e diversificado campo de pesquisa, tecido por inúmeras linhas de fuga que orientam a sua recíproca implicação. Além disso, a dança e a música partilham laços de complementaridade expressiva que propiciam a ponderação de uma questão composicional comum. Refletindo sobre os respectivos processos composicionais, este artigo interroga a colaboração entre coreógrafos e compositores musicais, integrando a incidência da dramaturgia nas estratégias de composição coreográfico-musical.

Palavras-chave:
Composição; Coreografia; Música; Colaboração; Dramaturgia

Résumé:

Les développements du concept de dramaturgie et la problématisation de la création chorégraphique contemporaine sont, aujourd'hui, un vaste et diversifié champ de recherche, tissé par des nombreuses lignes de fuite qui guident leur implication mutuelle. De plus, la danse et la musique partagent des liens de complémentarité expressives ce qui favorise la pondération d'un problème de composition commun. En réfléchissant sur les processus de composition chorégraphique et musicale, cet article est une étude sur la collaboration entre les chorégraphes et compositeurs, intégrant l'incidence de la dramaturgie sur les stratégies de composition.

Mots-clés:
Composition; Chorégraphie; Musique; Collaboration; Dramaturgie

Abstract:

The unfolding of the concept of dramaturgy and the problematics of contemporary choreography are, today, a vast and diverse field of research, bearing numerous disclosures that lead to their reciprocal implication. Apart from that, dance and music share significant complementary ties allowing for the consideration of a common compositional inquiry. Reflecting on the compositional processes of dance and music, this article cross-examines the collaboration between choreographers and composers, integrating the incidence of dramaturgy in the strategies of choreographic and musical composition.

Keywords:
Composition; Choreography; Music; Collaboration; Dramaturgy

Se pensarmos isoladamente nas esferas disciplinares da criação coreográfica e da composição musical, as implicações técnicas e idiomáticas da sua operacionalidade emergirão naturalmente, na medida em que a sua articulação sintetize a composição global da obra. Porém, se invertermos o sentido deste viés, partindo do todo performativo para os processos composicionais que o engendraram, os sistemas colaborativos ganham uma visibilidade distinta. Neles se alojam os esforços de composição e seus dispositivos operativos, uns e outros integrados, porém, num plano mais vasto de ponderação: o que aqui procuramos é precisamente o que está para além do trabalho individual de composição, o que se movimenta entre a colaboração e a virtual unicidade expressiva de uma obra coreográfica e musical. O presente artigo pretende interrogar os recursos operativos que produzirão a convergência expressiva e conceitual da obra; nele se problematiza o plano de vinculação entre os dois processos composicionais (da dança e da música) no âmbito da colaboração artística entre coreógrafos e compositores musicais. Não é ambição destas páginas delinear um perfil colaborativo específico, ou generalizar, num modelo normativo, a infinita diversidade de procedimentos que caracteriza cada experiência de colaboração. Antes tentaremos auscultar, na dialogia da colaboração, algumas possibilidades de aproximação entre a confusa complexidade ontológica do fenômeno performativo e a interpretação das suas contingências composicionais. Para essa finalidade cruzaremos a ponte que liga a consciência ao mundo, procurando nos mecanismos cognitivos o acesso aos planos de implicação intersubjetiva e suas redes de produção de sentido; perscrutando o trânsito e a conectividade dos sentidos coreográficos e musicais propomos, neste artigo, a sua atualização no conceito de plano de colaboração e o seu agenciamento no conceito de dispositivo dramatúrgico.

A ilustração que se segue (Figura 1) apresenta uma espécie de síntese cartográfica destes conceitos no movimento da sua implicação em processos de composição coreográfico-musical. Esta antevisão diagramática expõe já a principal tensão que orientará o percurso que estas linhas estabelecem - a diferença ontológica entre imanência e representação, projetada na dualidade entre as intensidades da presença e a produção de sentido. Se a obra, tal como se oferece ao espectador, é uma duração na qual operam imanências heterogêneas em infinita derivação no interior da sua unicidade fenomenal, os processos de composição em si lidam com o jogo de elementos internamente homogêneos, com a articulação de parâmetros temporais e movimento de volumes, com remissões poéticas e conceitualizações determinantes, com notações simbólicas e experimentações exploratórias, enfim, com sentidos dialogados numa rede de conexões que constituirá o próprio tecido da colaboração. O processo criativo de uma obra coreográfica e musical tende, assim, para uma dialogia heterológica, diálogo em que participam linguagens múltiplas, numa instável rede de significações na qual se cruzam semânticas heterogêneas ‒ movimento, som, imagem, palavra ‒ bem como fatores de intersubjetividade cognitiva - percepção, afecção, memória, intuição, inteligência e invenção. É na articulação destes dois planos - significação e intersubjetividade ‒ que estas páginas projetarão suas linhas de fuga.

Este artigo tem, por fim, uma ambição produtiva, propondo à reflexão de coreógrafos e compositores musicais (senão de qualquer criador de artes performativas) uma discussão virtualmente enriquecedora dos seus recursos compositivos. Perante uma obra criada no concurso de processos composicionais autônomos e dissociados, apenas poderemos especular sobre os virtuais benefícios que uma putativa colaboração (de maior ou menor intensidade) poderia ter acrescentado ao seu mérito artístico atual; mas aceitando que qualquer processo composicional é intrinsecamente transformador (independentemente de ser, ou não, integrado num processo colaborativo), o enriquecimento dos campos de produção de intersubjetividade latentes em cada processo de colaboração poderá redundar, num contexto intensivo de colaboração, na precipitação de elementos suplementares (de natureza heterogênea) nas rotinas compositivas de cada criador ‒ elementos imprevisíveis e provocadores, imanentes à própria colaboração e excêntricos ao âmbito estrito do seu labor criativo individual. Essa potência transformadora será, certamente, tão mais efetiva quanto mais intensa e fluida se revelar a dialogia de colaboração. A experiência de colaboração será, nessa hipótese, uma potência preciosa da criação artística, com dupla incidência no desempenho individual e na eloquência da obra.

Figura 1
"A in-disciplina da colaboração"

O Trânsito dos Sentidos: representação, imanência e o plano de colaboração

A percepção é apenas um lado do hiato, sendo a ação o outro lado. O que chamamos propriamente de ação, é a reação retardada do centro de indeterminação. Ora, tal centro só é capaz de agir nesse sentido, isto é, de organizar uma resposta imprevista, porque percebe e recebeu a excitação em uma face privilegiada, eliminando o resto (Deleuze, 1985DELEUZE, Gilles. A Imagem-Movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985., p. 77).

Lapidamos nas coisas brutas um sentido. Só então as referimos. Afirma Deleuze (1985, p. 79) que a afeção que sofremos delas é "[...] a parcela de movimentos exteriores que 'absorvemos', que refratamos e que não se transformam nem em objetos de percepções nem em atos do sujeito; eles vão antes marcar a coincidência do sujeito com o objeto numa qualidade pura". No hiato entre a percepção e a afeção, percebemos das coisas sua face privilegiada, a que nos afeta ativando o nosso centro de indeterminação sobre a sua difusa totalidade e nos fazendo coincidir com ela: "[...] as coisas e as percepções das coisas são preensões; mas as coisas são preensões totais objetivas, e as percepções de coisas, preensões parciais e partidárias, subjetivas" (Deleuze, 1985, p. 77). Só então as poderemos reconstituir, representá-las, isolar nessa qualidade pura, anterior a qualquer representação (em que coincidimos com as coisas), a sua matéria simbólica e desenraizá-la do tempo para pensá-la na síntese das suas intensidades adquiridas. Somos sujeitos na posse de uma face do nosso objeto. Podemos falar dele, simulá-lo. As coisas já não são coisas, mas conceitos nelas recortados que exprimem sentidos. Assim se diluem as vívidas intensidades da música e do corpo em movimento, ao abandonarem a sua duração performativa e ao se constituírem em representação no pensamento. Como afirma José Gil (2001GIL, José. Movimento Total - o corpo e a dança. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2001., p. 15), "[...] basta imaginarmos um movimento parado nos seus dois extremos, fechado, acabado em todos os seus elementos constitutivos, energia, velocidade, qualidade, para que ele deixe de ser dançado".

Se o processo criativo enreda coreógrafo e compositor musical no diálogo que alimentará o seu esforço de composição, música e movimento estarão seguramente presentes - na medida da sua fragmentada presença em progresso - mas serão os seus sentidos que fundamentarão o debate no plano da articulação conceitual, quaisquer que sejam a sua incidência ou a sua complexidade. Conversar sobre música e dança é então projetar o seu devir1 1 Para Deleuze e Guattari (1997), devir é o que reúne os implicados numa relação binária. Eu e o que eu componho (o meu devir compositor), eu e a dança (o meu devir coreógrafo), eu e o coreógrafo (o meu devir colaborador), a colaboração e a obra (o devir obra da colaboração). O devir institui uma zona de indescernibilidade entre um termo e outro (entre o um e o outro), uma zona de vizinhança que se distingue da substituição de um termo por outro, ou pela transformação de um em outro. É na ponte que dilui a fronteira entre os termos que o devir se movimenta: "Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco ele é uma semelhança, uma imitação e, em última instancia, uma identificação" (Deleuze; Guattari, 1997, p. 18). no destino da obra, esgrimir as ideias que se poderão transformar em som e movimento, procurar na partilha da fundamentação composicional uma curvatura homogênea que virtualize o acesso à heterogênea imanência da obra. Ao falar de sentido em música ou em dança deixamos de coincidir com o movimento e com o som que o envolve no tempo e no espaço - perdemos contato com a presença da sua materialidade performativa e mergulhamos no rio caudaloso das nossas imagens neurais. Deixamos para trás os corpos envolvidos pelas vibrações sonoras da música, a sua qualidade pura, absorvida e refratada a partir de uma duração extinta, para debatermos a sua percepção num jogo transiente de semelhanças entre representações. Dialogamos. Falamos de forma e conteúdo. Falamos de emoções. Fazemos vibrar simulações metafóricas, sugestões poéticas, estratégias formais, diagramas simbólicos, partituras musicais ou coreográficas, formulações matemáticas; o diálogo pré-composicional é, assim, uma máquina tradutora de intensidades intangíveis em figuras da consciência, de perceptos e afetos em percepções e afecções representáveis; uma conferência em cuja mesa se vão sobrepondo conexões simbólicas cujo devir se escoa no plano de composição da obra2 2 Para Deleuze e Guattari (1996, p. 216), "[...] as sensações, como perceptos, não são percepções que remeteriam a um objeto (referência): se se assemelham a algo, é uma semelhança produzida por seus próprios meios" ‒ as ondas sonoras que se assemelham ao ir e vir do arco do violoncelo, o esforço físico que se assemelha à levitação do bailarino. São estas forças que enlaçam seus devires na intensidade dos afetos. Sendo os afetos devires, não se confundem com a obra, mas pertencem-lhe por direito, são potência virtual indiscernível no seu plano de composição. . Para ela concorrem eventualmente fragmentos de matéria ‒ música e dança experimentadas nos estúdios, secções parciais compostas ao longo do processo criativo ‒ apoiando ou desmentindo argumentos, desafiando novas idealidades; orientamos nossos sentidos para o mundo, como antenas, tentando captar sentido nas intensidades, mas apenas podemos aspirar a captura de simulacros ou reminiscências conceituais. É com eles que falamos. Se a intensidade da obra só existe na sua duração, ela se antecipa virtualmente nas ideias e representações do processo criativo que a precede.

O diálogo da colaboração poderá ser, assim, o plano (de fecundação, germinação e circulação destas ideias e representações) que antecede a composição, mas cujo devir abriga já a sua existência virtual: um plano de colaboração entendido como arquitetura instável (ou movente) de referências heterogêneas, sobre um plano de imanência em que os sentidos se movimentam empiricamente e se desdobram sobre si próprios, implicando-se em novos devires, abraçando renovadas virtualidades. Sobre esse plano, as representações estendem suas raízes contorcendo lógicas semânticas sobre intuições compositivas. Aos sentidos provenientes da música e da dança (desprovidas de intensidade por via da desterritorialização que a representação impõe), se juntarão todo o tipo de representações dialogáveis - palavras, gestos, imagens, sons - que respondem à intuição da sua virtualidade, que caminham juntas numa imanência partilhada, que se bifurcam continuamente nas séries divergentes3 3 De acordo com Deleuze (2006, p. 124), "[...] cada série forma uma história: não pontos de vista diferentes sobre uma mesma história, como os pontos de vista sobre a cidade, segundo Leibniz, mas histórias totalmente distintas que se desenvolvem simultaneamente. As séries de base são divergentes". do pensamento musical e coreográfico. São essas séries que marcam o eterno retorno das representações com a diferença individuante da sua mútua implicação.

Essa multiplicidade de lógicas representacionais que circula entre as séries divergentes do coreógrafo e do compositor parece ser uma dinâmica dialógica central da sua colaboração. De um confuso novelo originário se desfia a rede de sentidos que se vai ampliando na ultrapassagem dos seus próprios objetos, que vai desvelando suas faces ocultas e seus híbridos contornos nas conexões inusitadas do diálogo colaborativo, que vai urdindo os nódulos de implicação das suas diferenças e municiando os compositores com os fundamentos da sua argumentação composicional.

O Esforço de Composição, a Inventividade Cognitiva e a Operatividade Dialógica

Composição é esforço. O esforço do trato com a matéria, com formas, estruturas, movimentos, vocabulários, com uma técnica que fende a sua resistência e submete a duração contínua da consciência e a implicação recíproca das suas imagens a uma materialidade expressiva, um passo depois do outro, criando um objeto que espelha o íntimo labirinto dos nossos padrões neurais e a qualidade das nossas habilidades composicionais. Bergson (1990BERGSON, Henri. L'Énergie Spirituelle. Paris: Quadrige/Presses Universitaires de France, 1990., p. 22, tradução nossa) refere-se a esta matéria "[...] como algo que distingue, separa, soluciona em individualidades e finalmente em personalidade as tendências que antes se confundiam no élan original da vida". Compor estabiliza (em matéria musical ou coreográfica) o movimento das ideias na curvatura das suas orbitas intempestivas ou na contínua metamorfose da sua nuvem de formas incorpóreas. Se a dialogia da colaboração se engendra na porosidade das séries divergentes do compositor e do coreógrafo, o esforço de composição configura um recolhimento, um reencontro com a natureza solitária do labor composicional. O compositor Ianis Xenakis afirmou um dia que "[...] quando se tenta escrever algo, é necessário sentir-se absolutamente sozinho, como uma centelha na escuridão do universo. Isso é tudo. Você está completamente por sua própria conta"4 4 Ianis Xenakis em entrevista a Bálint Varga (Varga, 1996, p. 211, tradução nossa). . Coreógrafo e compositor, munidos de suas técnicas de composição específicas, cindem então a dialogia colaborativa com a solidão de Xenakis - como centelhas isoladas em universos paralelos; o compositor musical enfrenta a resistência das massas sonoras, seus volumes e sua continuidade; o coreógrafo desafia o silêncio do bailarino, as forças que o rodeiam e as que o ocupam, no espaço e no tempo. Os momentos de realização composicional produzem uma torção disruptiva que bifurca o plano de colaboração em dois esforços, momentaneamente divergentes, em saltos quânticos que originam duas qualidades distintas de matéria, matéria dançada e matéria musical (que se irão justapor ou sobrepor, fundir ou confundir nas imanências heterogêneas do plano de composição da obra coreográfica e musical). A duração do plano de colaboração, porém, não se interrompe, absorvendo esses objetos materiais em novas imagens e novas imanências, intensificando a circulação de representações com novos restos, novos nexos, perceptos e afetos que alimentam e ampliam o campo gravitacional do processo criativo.

Se a música e o movimento não se deixam capturar inteiramente em imagens representáveis, a sua invenção é igualmente um processo instável e fugidio. Diz Bergson (1990, p. 22) que "[...] para o pensamento se tornar distinto, ele deve dispersar-se em palavras". Nos solitários processos de composição, a confusa inventividade das ideias em implicação recíproca é desfamiliarizada da sua continuidade e submetida ao esforço de representação agenciado pelas técnicas composicionais, decomposta em unidades significantes e recompostas, pela inteligência ou pela intuição, em continuidade expressiva. Mas ambos os processos (de composição musical e coreográfica) se alimentam de um impulso interior que conduz o pensamento por entre a multiplicação do espaço - o confronto sempre crescente com novos objetos de implicação - e a complicação do tempo - a complexidade sempre crescente de conectividade heterológica entre esses objetos. Se, nos esforços individuais de composição, a criação coreográfica e a criação musical sofrem um distanciamento técnico e operativo que tende para uma espécie de silêncio colaborativo, a densidade do plano de colaboração desenha-se no fluxo de intensidades com que a circulação de imagens e conceitos precede tais esforços (e lhes sucede), no modo como a intuição se alimenta dessas imagens heterogêneas e na forma como a inteligência tece a teia dos seus nexos. Assim, a qualidade do plano de colaboração parece proceder das competências cognitivas que os colaboradores experimentam no processo criativo. O mesmo é dizer que no plano de colaboração se forja um peculiar teatro do mundo, na apreensão que dele fazem os seus sujeitos cognoscentes e que os significam (que lhes trazem o sentido de si), como espectadores das coisas representadas e como atores potenciais sobre as coisas imaginadas. O plano de colaboração é, pois, fonte de uma produção contínua de intersubjetividade:

O conceito de subjetividade é indissociável da ideia de produção. Produção de formas de sensibilidade, de pensamento, de desejo, de ação. Produção de modos de relação consigo mesmo e com o mundo. A subjetividade não é um dado, um ponto fixo, uma origem. O sujeito não explica nada enquanto não tiver sua constituição explicada com base num campo de produção de subjetividade (Kastrup, 2007KASTRUP, Virginia. A Invenção de Si e do Mundo. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 204).

A potência do conceito de plano de colaboração - a qualidade dialógica que marca a identidade dos processos criativos ‒ parece não estar tanto no sentido representável dos objetos em contato (ou na sua estrita significação), como na fronteira que desenham entre si, no território que, ao mesmo tempo, une e separa as representações, nesse movimento fugaz que reinventa o mundo antes das palavras surgirem e com o que diverge das palavras que surgem, ao qual responde à nossa capacidade de transformar e combinar imagens e ações, ou seja, a nossa habilidade cognitiva.

Virgínia Kastrup, no seu livro A Invenção de Si e do Mundo, distingue duas faces da cognição. A primeira está ligada aos estudos tradicionais da psicologia cognitiva e ao projeto epistemológico da modernidade, definida pelas categorias de sujeito objeto e a que ela se refere, de modo crítico, como recognição: "Os grandes sistemas psicológicos entendem o campo da cognição como espaço de representação" (Kastrup, 2007, p. 21), sendo este espaço orientado pela presunção de invariabilidade das leis que regulam os sistemas cognitivos de um sujeito, em face de um recorte empírico estabilizado e previsível dos objetos. Desse modo, a recognição resolve os problemas de percepção através do reconhecimento de estruturas repetitivas e da produção de identidade dos objetos nas estruturas da inteligência, relegando para os estudos da criatividade o problema da invenção: "Definir a cognição como representação não significa assegurar o seu valor de verdade, mas ancorá-la em princípios universais e invariantes, que lhe assegurem um regime de funcionamento marcado pela repetição e pela necessidade" (Kastrup, 2007, p. 55).

A segunda face da questão cognitiva está, para Kastrup, precisamente na inclusão da invenção, encarada como potência de criação de problemas que encontra, no devir dos objetos inseridos numa duração e ocupando o espaço que os distancia do sujeito, o plano de uma prática cognitiva que estabelece uma relação entre elementos heterogêneos; não mais formas puras negociadas entre sujeito e objeto, mas vetores materiais e sociais, etológicos e tecnológicos, sensoriais e semióticos, fluxos ou linhas que não se fecham em formas perfeitas e totalizadas, mas que antes absorvem os restos que sobram da representação, abrindo fendas ou rachaduras nos blocos recognitivos e produzindo subjetividade. É o plano de colaboração que fecunda a subjetividade que, simultaneamente, reúne e aparta o coreógrafo e o compositor no mútuo agenciamento da sua cognição. É na duração do plano de colaboração que a cognição opera em modo de elaboração contínua e, nesse sentido, a duração da colaboração oferece condições de possibilidade de criação, transformação e processualidade; a inventividade intrínseca da cognição permite extrapolar os limites da recognição dos objetos e atingir a sua diferença interna, abrindo as possibilidades de deslocamento e de abertura à virtualidade do seu devir. A este movimento chama Kastrup de cognição inventiva.

Assim, ao perder o caráter universal e invariante da recognição, as formas criadas, em seus instáveis contornos e na sua temporalidade transformadora, dão origem a resultados imprevisíveis, atuais e experimentais. A própria cognição se transforma num invento, naquilo que Kastrup (2007, p. 61) denomina de cognição inventada: "Produtos de uma condição temporal, as formas cognitivas não possuem limites fixos e invariantes, mas restam envoltas numa espécie de nebulosa, numa borda de tempo que, sendo marca de sua origem, assegura a sua redefinição e reinvenção permanente". Compositor e coreógrafo, na duração do plano de colaboração, implicam-se mutuamente num diálogo cujo devir se dá por bifurcações e divergência em relação a si mesmo e que é indiscernível da produção de intersubjetividade, pela ação e reação da cognição inventiva. Por outro lado, representações heterológicas da dialogia colaborativa se implicam continuamente através de elos imprevisíveis, gerando uma corrente de produção contínua: novas representações, nova matéria, novos dispositivos e nova consciência composicionais.

Na dialogia da colaboração se projeta a complexidade do processo criativo como um todo, como espaço e tempo de elaboração da unicidade expressiva da obra coreográfica e musical. O diálogo entre coreógrafo e compositor parece surgir como um processo de invenção de si próprio e do outro, resultante do confronto de representações heterogêneas, reciprocamente argumentadas, bem como dos nexos intuídos sobre os seus despojos. Representações musicais e coreográficas, naturalmente, mas também conceituais, poéticas, imagéticas, literárias, científicas, matemáticas, representações de toda a ordem que alimentam estratégias de invenção composicional, que resultam elas próprias de problematizações inventivas decorrentes da cognição. O papel da invenção não se coloca, assim, apenas no labor compositivo, mas, em grande medida, na operatividade dialógica e na rede de conexões urdida pela reconfiguração das estruturas cognitivas dos compositores, cuja instabilidade é continuamente atualizada pela invenção.

As Séries Divergentes e o Dispositivo Dramatúrgico

Se a colaboração é uma dialogia, a palavra será a sua interface. Se os objetos e suas representações encontram, na cognição inventiva dos criadores, uma conectividade heterológica (convergindo nos acoplamentos ou divergindo nos atritos), que gera proposições combinatórias na sua cognição inventada, é a palavra que agencia a circulação das séries divergentes (a continuidade de distintos pontos de vista) que virtualizam já a composição coreográfica e musical. Uma interface que reflete, mais do que absorve, o fluxo disjuntivo das significações em permanente devir. A palavra torna-se assim uma espécie de ponto basculante em torno do qual giram, em órbitas divergentes, as virtualidades cinéticas e musicais que, por sua vez, se bifurcam e convergem para os centros de determinação das distintas identidades do compositor e do coreógrafo, produzindo suas distintas subjetividades e fecundando o seu esforço de composição. Na dialogia da colaboração, cada representação (cada sonoridade, cada movimento, cada imagem, cada evocação poética ou imagética, cada formulação matemática) remete para a palavra que devolve, em círculos concêntricos de irradiação significante, a sua potência inventiva. Um círculo de instabilidade semântica que envolve o núcleo da identidade dos compositores, como uma atmosfera animada por múltiplas correntes magnéticas. Na consciência alargada de cada um se processa a narrativa das faces eleitas da palavra, na organização das séries individuadas e na dupla relação que liga a coisa vista ao sujeito que a vê:

A identidade é conservada tanto em cada representação componente quanto no todo da representação infinita como tal. A representação infinita pode multiplicar os pontos de vista e organizá-los em séries; nem por isso estas séries são menos submetidas à condição de convergir sobre um mesmo objeto, sobre um mesmo mundo. A representação infinita pode multiplicar as figuras e os momentos, organizá-los em círculos dotados de um automovimento, mas nem por isso estes círculos deixam de ter um único centro, que é o do grande círculo da consciência (Deleuze, 2006DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. São Paulo: Edições Graal, 2006., p. 108).

Se as palavras (na sua ambivalência sintética e inventiva) agenciam sentidos envolvidos na irradiação dos conteúdos heterogêneos das representações a que se referem e se, por outro lado, a seriação destas representações vai desvelando o seu devir na ordenação temporal que emerge da irradiação dos seus conteúdos (as séries divergentes do compositor e do coreografo), a narrativa que se edifica com estas palavras (a ordenação das representações agenciadas) se constitui a partir das conexões produtivas da colaboração operada sobres tais representações, ordenáveis nas suas relações temporais e virtualizando no seu interior os afetos e perceptos imanentes ao plano de composição da obra, seriando o pulsar cronológico dos sentidos que os engendram. Há uma cartografia possível, para onde convergem as representações e em cuja implicação se estrutura, por um lado, uma narrativa aberta, em mutação constante - a ordenação cronológica de representações em permanente atualização do seu devir - e, por outro lado, de onde irradiam e para onde convergem as perspectivas do compositor e do coreógrafo, como um espelho de dupla face no qual se miram as identidades e que refletem a própria imagem ou a imagem do outro (a sua representação, confusamente intuída na nossa própria consciência autobiográfica):

Não basta multiplicar as perspectivas para fazer perspectivismo. É preciso que a cada perspectiva ou ponto de vista corresponda uma obra autônoma, dotada de um sentido suficiente: o que conta é a divergência das séries, o descentramento dos círculos, o 'monstro'. O conjunto dos círculos e das séries é, pois, um caos informal, a-fundado, que não tem outra 'lei' além de sua própria repetição, sua reprodução no desenvolvimento do que diverge e descentra (Deleuze, 2006DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. São Paulo: Edições Graal, 2006., p. 108-109).

Nesta exuberante coreografia de conectividades intersubjetivas, procuramos reconhecer um dispositivo pelo qual a palavra dialogada encontre suas âncoras de conexão, os pontos de contato ou sobreposição dessas séries divergentes, ou os polos de descentramento de círculos que desvelam o "monstro"; um dispositivo pelo qual as representações, conectadas em relações temporais de ativação e iridescência, se agenciem como áreas de contato ou sobreposição entre a consciência que virtualiza a dança e a consciência que virtualiza a música, e que sobre tal agenciamento nasça uma representação do seu devir. Um dispositivo que encerre a duração da peça, virtualizada na implicação ordenada dessas zonas de contato. Uma dramaturgia dessa duração. Um devir dramatúrgico de objetos enredados, plenos de remissões extrínsecas, que estabelecem relações causais como consequência do seu ordenamento na duração, ou que ordenam a duração no estabelecimento das suas causalidades.

Um dispositivo, no conceito de Giorgio Agambem (2009aAGAMBEM, Giorgio. O que é um dispositivo? In: AGAMBEM, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Editora Argos, 2009a. P. 25-54., p. 40), é "[...] qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes". Um dispositivo aciona as relações entre os viventes (ou as substâncias) no governo5 5 Por "governo" entenda-se a remissão ao conceito de oikonomia, que significa, em grego, "a administracao do oikos, da casa, e, mais geralmente, gestão, management" (Agambem, 2009a, p. 35). Apropriado pela teologia medieval, o termo encontra-se na raiz da geneologia conceitual do dispositivo de Agambem, referindo uma praxis em oposição ao ser. da sua ontologia, podendo despertar e produzir múltiplos processos de subjetivação. Se o plano de colaboração refere o metabolismo da implicação das séries divergentes (a qualidade do descentramento dos círculos da subjetividade), o dispositivo dramatúrgico estabiliza a rede dos objetos que as animam, orienta a sua direção e combina estrategicamente as suas relações de força; na racionalidade de tal dispositivo se ordenam discursos, poéticas, olhares, saberes, processos, experimentações, metodologias, proposições filosóficas, tudo o que se constitui fator de implicação de um objeto com outro, nas suas zonas de contato, sobreposição, torção ou desdobramento. O dispositivo aciona todos os conectores que virtualizam a rede das representações e dos seus nexos, "[...] o dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos" (Agambem, 2009a, p. 40). Além disso, a produção de subjetividade da cognição - inventiva e inventada - encontra no dispositivo dramatúrgico um instrumento de poder, na medida em que se doa como operatividade fundamentada na ontologia da colaboração - na sua substancialidade e na sua duração - ou seja, como poder de uma ação no corpo a corpo entre as imanências do mundo e o próprio dispositivo; o dispositivo dramatúrgico oferece aos compositores o poder de controlar o monstro de Deleuze, de o interceptar e agir sobre ele.

Dramaturgia: genealogia e expansão

Podemos, por fim, dizer que na dialogia da colaboração (em que a palavra e as representações agenciadas antecipam, envolvem ou virtualizam a composição coreográfica e musical), o dispositivo encontra o seu devir dramatúrgico. Para iluminar um pouco mais este movimento, cabe referir sumariamente a expansão que o próprio conceito de dramaturgia vem sofrendo desde os alvores da modernidade. Originariamente ligado à arte de escrever textos dramáticos e aos princípios e regras que orientam a sua produção, o sentido de dramaturgia bifurca-se progressivamente, ao longo do século XX, em amplitudes semânticas mais extensas. Tal expansão sinaliza a evolução das tensões criadas pela ligação umbilical entre a palavra e a sua presentificação performativa. As palavras não são, apenas, a representação dos conceitos a que remetem; associadas à tipografia, elas desvelam camadas visíveis que expandem a produção de subjetividade. Associadas à duração, as palavras são também o timbre das vozes, o ritmo e a intensidade da elocução, a gestualidade agregada ou as imanências suplementares da oralidade. Pôr em cena as palavras - encená-las ‒ implica fazer delas uma leitura que orienta a sua conversão no tempo performativo, numa duração. Essa leitura é privilégio do diretor, sendo no protagonismo histórico dos diretores de teatro que se funda a expansão do conceito de dramaturgia; nomes como Alfred Jarry (1873-1907), Gordon Craig (1872-1966), Meyerhold (1874-1940), Bertolt Brecht (1898-1956,) Antonin Artaud (1896-1948) ou, mais recentemente, Eugenio Barba (1936), contribuíram para distender (de forma significativa e por distintos motivos), a estrita relação entre dramaturgia e o texto dramático. Nos seus investimentos experimentais se foram fundamentando múltiplas e diversificadas ramificações conceituais da dramaturgia, desterritorializando o seu sentido original do campo da palavra para as estratégias de elaboração cênica e para o seu efeito contaminador do espaço, da cenografia, da música, da iluminação, do figurino ou, inclusive, de novas formas de interpretação. O sentido de dramaturgia se abre, ao longo do século XX e até aos dias de hoje, a uma operacionalidade cênica de qualidades divergentes de expressão, por oposição a uma concepção tradicional de dramaturgia subsumida no texto dramático.

Não caberia no contexto deste artigo a exploração exaustiva dos fatores históricos de deslocação ou expansão do conceito de dramaturgia, nem dos diferentes encadeamentos significantes que enunciam outras tantas derivações semânticas (como dramaturgia da cena, dramaturgia do ator ou dramaturgia da atuação, etc.), mas cabe, todavia, assinalar a emergência da Dança-Teatro e do que se vem chamando de dramaturgia da dança, pelo que representa de apropriação conceitual dos fatores estruturantes da dramaturgia pela composição coreográfica. A designação de dança-teatro remete ao expressionismo alemão, mas, como é sabido, a sua popularização e a irradiação da sua influência na dança contemporânea são indissociáveis da obra de Pina Bausch (1940-2009) e da sua companhia Tanztheater Wuppertal. Mais do que criar uma síntese entre dança e teatro, o conceito de dança-teatro se propõe a acolher, no terreno da criação coreográfica, a articulação inclusiva de códigos, processos e técnicas provenientes de diversas disciplinas expressivas. Nas palavras de Ciane Fernandes (2012FERNANDES, Ciane. Dança-Teatro: fluxo, contraste, memória no glossário. Mimus - Revista Online de Mímica e Teatro Físico, Salvador, Padma Produções, ano 2, n. 4, p. 76-79, 2012. Disponível em: <Disponível em: www.mimus.com.br >. Acesso em: 27 mar. 2016.
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, p. 78),

[...] a dança-teatro não é apenas a somatória de várias artes, nem apenas o rompimento de suas fronteiras, mas a descoberta de que a dança está presente em todas as formas de arte e na vida, enquanto lei energética e relacional fundamental da matéria, em ebulição e repouso, tensão e relaxamento, ondulação, contraste, motivação.

A definição de Fernandes cria um enfoque no que nos parecer ser fundamental para a nossa discussão, ao vincular a conceitualização do teatro-dança à multiplicidade ontológica de um complexo heterogêneo de matérias expressivas, transversais a artes distintas. Ao gerar o termo de dramaturgia da dança, a Dança-Teatro produz uma síntese de poderosa efetividade funcional, ao mesmo tempo em que absorve um compromisso paradoxal entre a semântica linguística e as instáveis significações do movimento dançado e das demais expressividades que convergem no seu território (como é o caso da música). A produção de sentido verbal, intrinsecamente associada ao conceito histórico de dramaturgia, ganha, com o teatro-dança, não apenas uma mera expansão das suas implicações semânticas com outras putativas linguagens simbólicas (em cuja discussão não cabe insistir), mas um novo devir. O próprio encadeamento vocabular do conceito de Dança-Teatro (tão sintético como enigmático) ilumina a qualidade do seu acoplamento; na articulação entre as representações da palavra e as intensidades ontológicas da dança se desenha a zona de contato indiscernível de umas e de outras. Por outro lado, a dramaturgia da dança refere mais o resultado da colaboração entre dramaturgos e coreógrafos do que uma processualidade estável, ou dotada de propriedades funcionais específicas e recorrentes; ela refere mais a implicação do pensamento de um determinado coreógrafo com um determinado dramaturgo do que um processo sistemático de construção de sentido. A título de exemplo podemos referir que a colaboração de Pina Bausch com o dramaturgo Raimund Hoghe se construiu, ao longo de dez anos, num processo de mediação entre a criação das cenas e as consequências da sua articulação exploratória, recorrendo tanto ao sentido da palavra ‒ através da criação de textos ou da oralidade dos intérpretes - como a um profundo investimento na pesquisa de relações musicais entre a performatividade dos bailarinos e a trilha sonora. Interrogado sobre a sua relação criativa com Bausch, Hoghe afirmou: "Eu trouxe um pouco de música, algumas vezes textos, que ela usou nas apresentações. Mas acima de tudo eu estava lá para ajudar com a estrutura, para colocar as coisas em conjunto" (Hoghe, 2010HOGHE, Raimund. Entrevista com Bonnie Marranca in Dancing the sublime. PAJ: A Journal of Performance and Art, Cambridge MA, MIT Press, v. 32, n. 2, p. 24-37, maio 2010. , p. 25, tradução nossa). Esse conjunto nada mais é que a fina rede que se entretece com as séries divergentes das ações dançadas, das elocuções verbais, da música, das transformações do cenário, das temperaturas da iluminação, enfim, com a polifonia expressiva de intensidades divergentes, desterritorializadas e sintetizadas em nexos convergentes. A colaboração entre coreógrafos e dramaturgos tem-se multiplicado desde as últimas décadas do século XX, contribuindo para a consolidação e alargamento de um conceito de dramaturgia da dança como operatividade de descodificação de nexos e estruturação de narrativas heterológicas, com maior ou menor incidência de abstração expressiva. A dramaturga Marianne Van Kerkhoven, cúmplice de Anne Teresa De Keersmaeker6 6 Anne Teresa De Keersmaeker (1960) é uma coreógrafa belga, mentora e diretora da companhia Rosas. em muitas das suas obras, se refere à dramaturgia como um processo metamórfico de significações:

Sejam quais forem as tarefas adicionais - por vezes muito práticas e, certamente, muito variadas - que o dramaturgo assuma no curso de um processo artístico, sempre permanecem várias constantes no seu labor; dramaturgia está sempre relacionada com a conversão do sentimento em conhecimento, e vice-versa (Kerkhoven, 1994KERKHOVEN, Marianne Van. Looking without pencil in the hand. SARMA Laboratory for criticism, dramaturgy, research and creation, Bruxelas, 1994. Disponível em: <Disponível em: http://sarma.be/docs/2858 >. Acesso em: 23 jan. 2015.
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, p. 3, tradução nossa).

Aquilo de que Kerkhoven nos fala parece remeter precisamente para a possibilidade de representação das preensões imanentes ao plano de composição coreográfico (o que ele tem de qualitativo) naquilo que possibilita de agenciável e extensivo (o que apresenta de quantitativo). Podemos ligar naturalmente esses polos à tensão entre o sentido profundo e impronunciável do movimento e à sua superfície manejável, sua possibilidade de recorte, interpretação e justaposição. Se Kerkhoven refere um processo de conversão, Heidi Gilpin (que colaborou com William Forsythe7 7 William Forsythe (1949) é um dançarino e coreógrafo estadunidense, conhecido pelo seu trabalho com o Ballet de Frankfurt e pela reorientação que deu ao balé clássico. ), define sua produção dramatúrgica como "[...] tradução de ideias que podem ser linguísticas, matemáticas, científicas ou de qualquer outra natureza, de forma a criar um território comum com o coreógrafo em que obsessões mútuas possam interagir" (Gilpin, 2000GILPIN, Heidi. Debate moderado por Scott LaHunta in Dance Dramaturgy: speculations and reflections. SARMA Laboratory for criticism, dramaturgy, research and creation, Bruxelas, 2000. Disponível em: <Disponível em: http://sarma.be/docs/2869 >. Acesso em: 23 jan. 2015.
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, p. 13, tradução nossa). Gilpin entende a dramaturgia da dança como veículo de transdução negociada entre coreógrafo e dramaturgo; se a referência a obsessões mútuas sinaliza a conexão intersubjetiva dos dois criadores, a tradução de ideias procede à sua segmentação em vetores de representação e de síntese conceitual diferenciados. Já André Lepecki (2000LEPECKI, André. Debate moderado por Scott LaHunta in Dance Dramaturgy: speculations and reflections. SARMA Laboratory for criticism, dramaturgy, research and creation, Bruxelas, 2000. Disponível em: <Disponível em: http://sarma.be/docs/2869 >. Acesso em: 23 jan. 2015.
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, online), que assina a dramaturgia de várias peças de Meg Stuart8 8 Meg Stuart (1965) é uma destacada coreógrafa estadunidense, atualmente sediada na Europa. , recorre à expressão "explosões metafóricas", nas quais são intuídas irradiações de sentido, de conexões éticas e estéticas, um elenco de propriedades derivadas de uma apropriação dramatúrgica da mecânica abstrata que o movimento, a música, o espaço e o tempo e até a palavra - imersa num oceano de derivações funcionais - elaboram e movimentam num corpo dúctil e instável. A explosão metafórica de Lepecki coloca-nos perante às conexões inesperadas e imprevisíveis dos objetos na senda da sua própria representação, perante a abertura de fendas ou de rachaduras na estabilidade da sua recognição; ela é a duração microscópica na qual se produz a subjetividade que orienta a produção de sentido ‒ o devir identidade da consciência pré-verbal.

O papel do dramaturgo da dança é, por fim, caracterizado por Kerkhoven como "olho externo" do labor do coreógrafo, numa cadeia de permanente reciprocidade que apreende, transforma e devolve as estruturas em formação:

Dramaturgia é a paixão do olhar. O processo ativo do olho; o dramaturgo é o primeiro espectador. Ele deveria ser aquele amigo, algo tímido, que cuidadosamente, pesando as palavras, expressa o que viu e que traços isso deixou; é o 'olho externo' que quer olhar de um modo puro, mas que ao mesmo tempo conhece suficientemente bem o que acontece no interior do processo para ser movido e envolvido no que lá se passa. A dramaturgia alimenta a desconfiança (Kerkhoven, 1994KERKHOVEN, Marianne Van. Looking without pencil in the hand. SARMA Laboratory for criticism, dramaturgy, research and creation, Bruxelas, 1994. Disponível em: <Disponível em: http://sarma.be/docs/2858 >. Acesso em: 23 jan. 2015.
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, p. 4, tradução nossa).

Lepecki questiona esse conceito pela distância que ele implica entre o pensamento e a matéria. A tarefa do dramaturgo é, para ele, penetrar na substância da criação, mergulhar no oceano profundo em que as suas multiplicidades heterogêneas, confusas e contínuas, prosperam umas sobre as outras e em que o fluir das suas intensidades ilumina, aqui e ali, imagens homogêneas distintas e discretas. Para isso, ele precisa de um novo corpo e de novos sentidos, um corpo competente para receber estímulos em todos os seus terminais nervosos, capaz de transmitir à consciência não apenas imagens visuais, mas também sonoras e somato-sensoriais, capaz, enfim, de expandir a cognição e enfrentar a resistência à significação, inventando a implicação das suas multiplicidades qualitativas:

Acredito sinceramente que a dramaturgia da dança implica a reconfiguração de toda a anatomia do dramaturgo, não apenas dos seus olhos. Quando entro no estúdio para iniciar o trabalho numa nova peça, a questão da anatomia torna-se uma questão muito importante e quase literal. [...] A questão é que eu posso reinventar esse olho. Eu posso fazê-lo ouvir. Ou usá-lo para lamber e sentir o gosto da cena. Resumindo, eu entro no estúdio como dramaturgo fugindo do conceito de 'olho externo'. Eu entro para encontrar um novo corpo (Lepecki, 2000LEPECKI, André. Debate moderado por Scott LaHunta in Dance Dramaturgy: speculations and reflections. SARMA Laboratory for criticism, dramaturgy, research and creation, Bruxelas, 2000. Disponível em: <Disponível em: http://sarma.be/docs/2869 >. Acesso em: 23 jan. 2015.
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, p. 29, tradução nossa).

No estúdio de dança a dramaturgia acolhe as suas representações, tecendo a textura dos sentidos em camadas que não apenas se sobrepõem, mas que se interpenetram, moldando o seu devir na materialidade dos corpos em movimento e nas virtualidades expressivas do universo em que duram. Dessa duração emerge uma narrativa de sentidos instáveis, ela própria uma representação que cria os pontos de contato entre as séries divergentes da dança, da música9 9 Não nos debruçaremos, nos limites deste artigo, sobre a questão da dramaturgia musical, porque esta se encontra intimamente associada, desde tempos muito remotos, ao vasto espectro do teatro musical e, de forma muito particular, ao surgimento da ópera, em cujo contexto a música assume uma função estruturante. A partir do período barroco, o libreto é, simultaneamente, um texto dramático e uma matriz que orienta a composição musical, na medida em que a composição da ópera se apoia na narrativa dramática do libreto para fundamentar a produção de funcionalidade musical, procurando na intriga entre os personagens, na temperatura das cenas e nas dinâmicas dos diálogos, as matrizes estruturantes das suas virtualidades remissivas. Ao contrário da dramaturgia da dança, cuja conceitualização nasce de problematizações relativamente recentes sobre o primado linguístico da dramaturgia, a dramaturgia musical se remete às próprias origens do teatro e, embora se trate de um campo epistemológico potencialmente relevante, as implicações que lhe oferece têm algumas afinidades redundantes, como as que foram sinalizadas na abordagem da dramaturgia da dança, no que respeita à conceitualização de um dispositivo dramatúrgico como ferramenta da colaboração artística entre composição musical e coreográfica. e de todos os demais elementos que se atualizam na mesma simultaneidade, moldando as intensidades da sua duração.

O dispositivo dramatúrgico surge, neste estudo, no prolongamento genealógico da expansão conceitual de dramaturgia, do mesmo modo em que se abre à invenção de zonas de contato, sobreposição, torção ou desdobramento entre os objetos coreográficos e os objetos musicais, acionando os seus os conectores e virtualizando os seus nexos. Nesse aspecto, aproxima-se da máquina abstrata de Deleuze, uma máquina de mutação que opera por descodificação e desterritorialização. Não se confunde, porém, com dramaturgia, quer no seu sentido originário, quer nas suas derivações históricas. Ele não representa apenas a obra, mas o agenciamento da implicação e da temporalidade dos objetos que orientam o esforço composicional, configurando um instrumento que regula o acoplamento entre a inventividade cognitiva dos compositores e a substância inventada da composição. Interessa-nos tal dispositivo dramatúrgico como um devir, que se poderá atualizar num roteiro, numa simples ou complexa partitura, numa tabela que ordena ou num diagrama que orienta, num único conceito intensivo ou num plano conceitual extensivo, numa palavra, num poema como gesto do mundo ou na prosa que o convoca, nas imanências de uma imagem ou nas imagens-movimento de um filme, na arquitetura inclusiva de tudo isso ou, até, na sua radical neutralização, que confina a divergência das séries à sua aleatória convergência na duração - como ousaram fazer John Cage e Merce Cunningham; um dispositivo dramatúrgico cujo devir coloca o criador, na condição de ser-no-mundo, perante um abismo plural, heterogêneo, imanente e remissivo, numa abertura infinita à multiplicidade ontológica da colaboração e à cumplicidade inventiva dos colaboradores.

O Devir Composicional do Dispositivo Dramatúrgico

Tal como a composição, a elaboração dramatúrgica requer um esforço. O dispositivo dramatúrgico agencia o seu próprio trato com a matéria (a composição partilhada de relações significantes, intuídas na dança das idealidades imanentes ao plano de colaboração), que redundará na estabilização das imagens e dos conceitos e que irão orientar, por sua vez, a criação de movimento e de música, numa esfera de implicação solidária com as séries divergentes do pensamento musical e do pensamento coreográfico. A cartografia gerada pelo dispositivo dramatúrgico é, pois, a face visível do plano de colaboração. Mas o plano de colaboração não se esgota na operatividade do dispositivo dramatúrgico, antes se alimenta dele para se expandir em múltiplas polaridades divergentes, que aproximam ou afastam os compositores, que criam pontos de contato e rotas de abandono entre lógicas compositivas, que ora sublinham cumplicidades expressivas, ora afirmam ásperas autonomias. A paradoxal palindromia das reflexões divergentes das palavras ou das imagens (cuja projeção nas consciências autobiográficas10 10 É importante precisar o sentido colocado na expressão consciência autobiográfica. Ela decorre, neste contexto, de uma aproximação neurobiológica ao estudo da consciência. Para o neurologista António Damásio (1999, p. 36), "[...] tanto o passado como o futuro antecipado são sentidos em simultâneo com o aqui e agora, numa visão abrangente cujo alcance é tão vasto como o de uma história épica". Esta ubiquidade cronológica se possibilita pelo concurso da consciência nuclear (que fornece ao organismo um sentido de si num determinado ponto do tempo e do espaço) e de um "si autobiográfico", dependente de memórias sistematizadas (situações em que a consciência nuclear permitiu o conhecimento das características mais invariantes da vida de um organismo). Os objetos individuantes da experiência humana se alojam na memória autobiográfica, classificados em termos conceituais ou linguísticos e recuperáveis na recordação ou no reconhecimento. A consciência autobiográfica se constitui, assim, como um dos veículos produtores de identidade. do compositor e do coreógrafo produz distintos recortes ou processamentos) faz do dispositivo dramatúrgico o gatilho das erráticas implicações entre os círculos descentrados dos compositores, num plano de colaboração que se constitui como organismo instável e imprevisível, mas em cujos alvéolos se inscreve a conformidade de um único devir; um devir que virtualiza a obra e o seu plano de composição, que antecipa a unicidade da sua duração.

Assim, embora não se esgote nele, o dispositivo dramatúrgico representa, em sua atualização funcional, a matéria da colaboração, na medida em que realça, numa fronteira imprecisa e volúvel entre expressões e operatividades divergentes, a ordenação empírica de uma convergência virtual, atualizando-a num sistema de representações dinâmico, funcional e produtivo. Há uma espécie de meta-dramaturgia implícita na operatividade do dispositivo dramatúrgico, que não só se alimenta da produção de sentidos entre representações, como orquestra os próprios gestos colaborativos e suas implicações funcionais. Além da vinculação que o dispositivo dramatúrgico proporciona na produção da dramaturgia de nexos, ao orientar a produção de matéria composta ela atua no alargamento da percepção do outro, na medida em que cria novas conexões entre o seu gesto composicional e as premissas originárias da dialogia colaborativa. O dispositivo dramatúrgico, em sua inventividade intrínseca, aproxima os colaboradores da ontologia de um processo criativo dual, competente para agregar a silenciosa solidão do compositor e refleti-la em novos objetos cognoscíveis que permitem reinventar a imagem do outro, renovando os dados empíricos da colaboração e promovendo inéditas possibilidades de convergência entre o pensamento coreográfico e o pensamento musical. No metabolismo do plano de colaboração, o dispositivo dramatúrgico agencia, pois, o seu próprio gesto de composição. Ao contrário da composição coreográfica ou da composição musical, não pressupõe uma técnica ou habilidades específicas; antes vai urdindo, no contínuo fluir do plano de colaboração, os recursos operativos que produzem efetividade expressiva e que aderem empiricamente a um programa de convergência conceitual entre a invenção coreográfica e a invenção musical. As técnicas e as habilidades de composição de uma dramaturgia coreográfico-musical (entendida como narrativa de nexos e causalidades entre representações heterológicas) são conquistadas no tecido do próprio processo criativo e decorrem das especificidades cognitivas dos seus sujeitos, refletindo a inventividade da sua mútua implicação.

A In-Disciplina do Devir Colaborativo

Pudemos verificar, nesta já longa jornada, que a eloquência do plano de composição não decorre do mero somatório das disciplinas da dança e da música, antes deriva do agenciamento operado pela cognição sobre as suas séries divergentes. Existirá, todavia, a possibilidade de acolher, nos processos composicionais, um plano metodológico de gestos processuais organizáveis? Será possível encontrar no devir colaborativo o esboço de um campo disciplinar? Sem prejuízo para a ampliação deste horizonte de pesquisa, muitas das considerações tecidas ao longo deste estudo nos sugerem a improbabilidade de sucesso em tal demanda: aproximámo-nos da riqueza potencial da colaboração coreográfico-musical inferindo, precisamente, a possibilidade de ultrapassar as categorias utilizadas para delimitar as especificidades das disciplinas da música e da coreografia.

Contudo, o percurso delineado nestas páginas clama agora por um desfecho produtivo. Embora subsista a dificuldade de determinar uma confluência específica de teoria, método e modelos discursivos capazes de esboçar os contornos de uma disciplina dedicada à colaboração artística, existe nesta um rol de objetos de interesse, singularidades e relações interdisciplinares que nos impelem nessa direção. Com efeito, se da leitura destas páginas reverbera um sentido de multiplicidade inerente aos processos composicionais resistente à representação ou à categorização - uma ontologia do presente irredutível à mera confrontação das disciplinas composicionais da música e da dança ‒ tal sentido sinaliza, todavia, um horizonte de ação e a possibilidade de uma virtual processualidade colaborativa. Nossa proposta se direciona assim, livremente e para nosso governo imediato, para a qualificação da colaboração coreográfico-musical como uma "in-disciplina11 11 O prefixo "in" pretende, por um lado, referir o antônimo de disciplina, de modo a se distinguir desta mantendo, ainda assim, uma implicação semântica com um virtual campo disciplinar. Por outro lado, a utilização do itálico sugere a leitura deste prefixo em língua inglesa, propondo uma relação de pertinência conceitual com o interior de um campo específico de conhecimento, o qual tem sido explorado ao longo desta pesquisa e para o desenvolvimento do qual ficam abertas algumas linhas de fuga. Na designação de indisciplina está ainda presente o sentido corrente de negação ou transgressão da norma. "; nem a disciplina da dança, nem a disciplina da música, mas a in-disciplina do devir colaborativo entre composição coreográfica e composição musical.

A exposição intersubjetiva à experiência de colaboração ‒ movimento que se atualiza na copresença em face da multiplicidade ontológica do processo criativo ‒ encontra no desempenho dialógico o seu eminente canal de agenciamento. Sendo a experiência um caminho que produz intensidade e sentido, a sua incidência é, em larga medida, pré-representacional; por outro lado, na relação dialógica entre coreógrafo e compositor se traduzem as intensidades intangíveis em figuras da consciência, possibilitando o tráfego de representações (desterritorializadas da sua diferença ontológica) no movimento contínuo da cognição inventiva. As ocorrências empíricas se traduzem, assim, numa rede de sentidos que ultrapassa os seus próprios objetos, desvelando conexões inusitadas na arquitetura heterológica da intersubjetividade. Do mesmo modo se projetam movimento e som (como fenômenos de espaço e de tempo) nas redes da cognição e nas estruturas da inteligência. Na duração do plano de colaboração (como plano de imanência) prospera um diálogo cujo devir se dá por bifurcações e divergência em relação a si mesmo, agenciando a atualização do devir compositivo na implicação das séries divergentes do coreógrafo e do compositor musical.

A nossa in-disciplina colaborativa oferece, ainda, um instrumento de operacionalidade efetiva que atua sobre estas séries divergentes, estabilizando a rede dos objetos que as animam, orientando a sua direção e combinando estrategicamente as suas relações de força. A este instrumento atribuímos a designação de dispositivo dramatúrgico, a ser entendido como ordenação temporal das representações, sentidos ou conceitos que circulam no plano de colaboração, implicando-os numa narrativa aberta, seriando o seu pulsar cronológico e virtualizando os pontos de convergência dos gestos de composição coreográfica e musical. A singularidade de cada dispositivo dramatúrgico é indiscernível da singularidade de cada devir colaborativo; é a face visível de cada plano de colaboração, agenciando os recursos operativos que produzem efetividade expressiva e que aderem empiricamente a um programa de convergência conceitual entre a invenção coreográfica e a invenção musical.

Acreditemos que um diálogo entre compositor musical e coreógrafo, em face da eventual opacidade sentida reciprocamente entre as especificidades disciplinares da música e da dança, possa alcançar pela in-disciplina da colaboração a real magnitude da sua potência. A ampla entrega a uma experiência de colaboração é um mergulho com o outro, num oceano cruzado por múltiplas correntes, em cujas profundidades abissais reluzem miríades de incandescências interpretativas. Uma in-disciplina da colaboração lida com essa infinitude oceânica; atrai para os seus poros vulcânicos o olhar dos mergulhadores, permite que o seu pulsar telúrico se imprima nas suas retinas e que desse instante nasça uma imagem preciosa, testemunhada por ambos na sua efêmera intensidade e sintetizável em mil conceitos simultaneamente distintos e coincidentes.

Referências

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  • VARGA, Bálint András. Conversations with Xenakis. Londres: Faber and Faber, 1996.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    Para Deleuze e Guattari (1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia, v. 4. São Paulo: Editora 34 , 1997.), devir é o que reúne os implicados numa relação binária. Eu e o que eu componho (o meu devir compositor), eu e a dança (o meu devir coreógrafo), eu e o coreógrafo (o meu devir colaborador), a colaboração e a obra (o devir obra da colaboração). O devir institui uma zona de indescernibilidade entre um termo e outro (entre o um e o outro), uma zona de vizinhança que se distingue da substituição de um termo por outro, ou pela transformação de um em outro. É na ponte que dilui a fronteira entre os termos que o devir se movimenta: "Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco ele é uma semelhança, uma imitação e, em última instancia, uma identificação" (Deleuze; Guattari, 1997, p. 18).
  • 2
    Para Deleuze e Guattari (1996DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Que é a Filosofia? São Paulo: Editora 34, 1996., p. 216), "[...] as sensações, como perceptos, não são percepções que remeteriam a um objeto (referência): se se assemelham a algo, é uma semelhança produzida por seus próprios meios" ‒ as ondas sonoras que se assemelham ao ir e vir do arco do violoncelo, o esforço físico que se assemelha à levitação do bailarino. São estas forças que enlaçam seus devires na intensidade dos afetos. Sendo os afetos devires, não se confundem com a obra, mas pertencem-lhe por direito, são potência virtual indiscernível no seu plano de composição.
  • 3
    De acordo com Deleuze (2006DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. São Paulo: Edições Graal, 2006., p. 124), "[...] cada série forma uma história: não pontos de vista diferentes sobre uma mesma história, como os pontos de vista sobre a cidade, segundo Leibniz, mas histórias totalmente distintas que se desenvolvem simultaneamente. As séries de base são divergentes".
  • 4
    Ianis Xenakis em entrevista a Bálint Varga (Varga, 1996VARGA, Bálint András. Conversations with Xenakis. Londres: Faber and Faber, 1996., p. 211, tradução nossa).
  • 5
    Por "governo" entenda-se a remissão ao conceito de oikonomia, que significa, em grego, "a administracao do oikos, da casa, e, mais geralmente, gestão, management" (Agambem, 2009aAGAMBEM, Giorgio. O que é um dispositivo? In: AGAMBEM, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Editora Argos, 2009a. P. 25-54., p. 35). Apropriado pela teologia medieval, o termo encontra-se na raiz da geneologia conceitual do dispositivo de Agambem, referindo uma praxis em oposição ao ser.
  • 6
    Anne Teresa De Keersmaeker (1960) é uma coreógrafa belga, mentora e diretora da companhia Rosas.
  • 7
    William Forsythe (1949) é um dançarino e coreógrafo estadunidense, conhecido pelo seu trabalho com o Ballet de Frankfurt e pela reorientação que deu ao balé clássico.
  • 8
    Meg Stuart (1965) é uma destacada coreógrafa estadunidense, atualmente sediada na Europa.
  • 9
    Não nos debruçaremos, nos limites deste artigo, sobre a questão da dramaturgia musical, porque esta se encontra intimamente associada, desde tempos muito remotos, ao vasto espectro do teatro musical e, de forma muito particular, ao surgimento da ópera, em cujo contexto a música assume uma função estruturante. A partir do período barroco, o libreto é, simultaneamente, um texto dramático e uma matriz que orienta a composição musical, na medida em que a composição da ópera se apoia na narrativa dramática do libreto para fundamentar a produção de funcionalidade musical, procurando na intriga entre os personagens, na temperatura das cenas e nas dinâmicas dos diálogos, as matrizes estruturantes das suas virtualidades remissivas. Ao contrário da dramaturgia da dança, cuja conceitualização nasce de problematizações relativamente recentes sobre o primado linguístico da dramaturgia, a dramaturgia musical se remete às próprias origens do teatro e, embora se trate de um campo epistemológico potencialmente relevante, as implicações que lhe oferece têm algumas afinidades redundantes, como as que foram sinalizadas na abordagem da dramaturgia da dança, no que respeita à conceitualização de um dispositivo dramatúrgico como ferramenta da colaboração artística entre composição musical e coreográfica.
  • 10
    É importante precisar o sentido colocado na expressão consciência autobiográfica. Ela decorre, neste contexto, de uma aproximação neurobiológica ao estudo da consciência. Para o neurologista António Damásio (1999DAMÁSIO, António. O Sentimento de Si: o corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência. Lisboa: Publicações Europa-América, 1999., p. 36), "[...] tanto o passado como o futuro antecipado são sentidos em simultâneo com o aqui e agora, numa visão abrangente cujo alcance é tão vasto como o de uma história épica". Esta ubiquidade cronológica se possibilita pelo concurso da consciência nuclear (que fornece ao organismo um sentido de si num determinado ponto do tempo e do espaço) e de um "si autobiográfico", dependente de memórias sistematizadas (situações em que a consciência nuclear permitiu o conhecimento das características mais invariantes da vida de um organismo). Os objetos individuantes da experiência humana se alojam na memória autobiográfica, classificados em termos conceituais ou linguísticos e recuperáveis na recordação ou no reconhecimento. A consciência autobiográfica se constitui, assim, como um dos veículos produtores de identidade.
  • 11
    O prefixo "in" pretende, por um lado, referir o antônimo de disciplina, de modo a se distinguir desta mantendo, ainda assim, uma implicação semântica com um virtual campo disciplinar. Por outro lado, a utilização do itálico sugere a leitura deste prefixo em língua inglesa, propondo uma relação de pertinência conceitual com o interior de um campo específico de conhecimento, o qual tem sido explorado ao longo desta pesquisa e para o desenvolvimento do qual ficam abertas algumas linhas de fuga. Na designação de indisciplina está ainda presente o sentido corrente de negação ou transgressão da norma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2016
  • Aceito
    26 Ago 2016
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