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Performando a Teatralidade no Jogo de Enquadramentos: repensando a tessitura do dramático

Effectuer la Théâtralité dans un Jeu de Cadrage: repenser la performativité dans la tessiture dramatique

Resumo:

Através da análise de proposições contemporâneas e postulando o jogo de enquadramentos como princípio da construção da poética da cena, este artigo contextualiza as noções de teatralidade e performatividade como funções que coexistem. Deslocadas do campo da crítica teatral para o da atuação, teatralidade e performatividade aparecem como noções operacionais de uma análise da práxis atoral, servindo de base para uma revisão da teoria e do lugar do dramático como uma suposta prática da significação, permitindo apresentá-lo como uma modalidade de enquadramento entre outras.

Palavras-chave:
Performatividade; Teatralidade; Ator; Pós-Dramático; Enquadramento

Résumé:

À travers à l'analyse des propositions contemporaines et postulant le jeu de cadrage comme un principe de la poétique de la scène, et article contextualise les notions de théâtralité et de performativité tandis que fonctions qui coexistent. Déplacé du champ de la critique théâtrale pour la performance, théâtralité et performativité apparaissent tandis concepts opérationnels de une analyse de la praxis des actors, purge comme base à une révision de la théorie et le lieu de dramatique tandis que un exercice de signification, permettant présenter cette en tant que mode de cadrage entre autres.

Mots-clés:
Performativité; Théâtralité; Acteur; Post-Dramatique; Jeu de Cadrage

Abstract:

Through the analysis of contemporary propositions and postulating the game of framings as the principle of scene poetics building, this article analyzes the notions of theatricality and performativity as co-existing functions. Displaced from the field of theater criticism to the performance, theatricality and performativity appear as operational notions of an analysis of the actorly praxis, providing the basis for a review of theory and the place of the dramatics as an alleged practice of signification, allowing its presentation as a framing mode among others.

Keywords:
Performativity; Theatricality; Actor; Post-Dramatic; Framing

Fundamentos

A plasticidade da cena e poética corporal autônomas (em detrimento da linguagem) são atribuídas em grande parte a Artaud. No entanto, pode-se postular que o que Artaud queria para o corpo era o estatuto de linguagem; ou seja, da fragmentação (que, com a palavra, se testemunha) produzindo um efeito do que escapa à sua leitura e interpretação - propriamente o efeito poético (se pensarmos na poética como figuração do objeto a, apontando para um espaço de suspensão da linguagem, vazio, de fissura, silêncio)1 1 Proposto por Lacan e utilizado por outros autores de orientação lacaniana, como Christian Dunker, para uma Filosofia da Arte, o objeto a é um objeto sem imagem cuja figuração determina o estatuto da obra como tal. Dunker organiza como figura do objeto a: a anamorfose, a deformação, o estranhamento, a despersonalização, a problematização dos limites da forma (Dunker, 2006). .

O conceito de objeto a nos ajuda a assumir uma concepção contemporânea de poética cênica, sem, no entanto, excluir o dramático - tomando-o como uma possível modalidade de poética e apontando o que há de performativo (e metonímico) em sua construção. O termo objeto a é conceituado por Lacan como objeto sem imagem e utilizado por autores de orientação lacaniana para determinar o estatuto da poética enquanto tal. A arte aparece como "figuração deste objeto a", implicando um lugar de vazio, falha da linguagem, ausência, silêncio. A arte aponta para uma borda, um limite da forma, revelando o aspecto aberto da obra - que, estruturalmente, permite uma série de interpretações e deslizamentos do sentido.

Artaud não lutava exatamente contra o uso da fala (apesar de o seu projeto o ter preconizado), mas contra uma palavra que estaria ao nível da comunicação. Ele diz: "[...] uma vez que o sentido claro não é tudo, mas sim a música da palavra, que fala diretamente ao inconsciente" (Artaud, 1999ARTAUD, Antonin. O Teatro e Seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. , p. 140). Percebe-se que Artaud confere ao corpo um estatuto de linguagem, denotando a sua condição de despedaçamento: o corpo como algo que se pode fragmentar e refazer, remontar. "[...] verão meu corpo atual / voar em pedaços / e se juntar sob dez mil aspectos notórios / um novo corpo"2 2 Trecho retirado de transmissão radiofônica intitulada Para Acabar com o Julgamento de Deus - realizada por Artaud junto a Roger Blin, Marie Cesarès e Paule Thévenin, em 1948. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=MClA7LE5wbM>. Acesso em: 15 set. 2016. Tradução nossa. , diz na transmissão radiofônica Para Acabar com o Juízo de Deus. A fragmentação é propriamente o que se pode testemunhar na fala: um encadeamento de fonemas, que se pode arrebentar e refazer, provocando um efeito de suspensão, apontando para um espaço de vazio (de fissura e silêncio) - propriamente um efeito poético. Artaud almejava um engajamento corporal do espectador no ato cênico. Assim, é considerado como o precursor do teatro performativo. Artaud preconizava outras modalidades de enquadramento para a ação cênica - advindos do jogo com o som, a luz, os espaços e uma densidade corporal que deveria ser dotada de poderes mágicos, atingindo regiões ricas e fecundas da sensibilidade. O seu alvo era propriamente um teatro psicológico, ou seja, a palavra evocando o drama do indivíduo com a clareza da visualidade de um universo diegético.

A questão é como demonstrar o que há de performativo também no trabalho da cena com o texto dramático, desveiculando-o de uma ideia de representação. Mesmo que, em certa medida, trabalhe-se com a linearidade e a mimese, seria possível que o seu jogo de enquadramentos implique este a - e a performatividade do olhar, nos deslocamentos metonímicos, seja engendrada quando o espectador se depara com o gesto (da obra) apontando para as bordas de um vazio (de uma não-forma, objeto sem imagem, não inscrição significante).

Ao apontar para o funcionamento da poética cênica como uma sucessão de movimentos metonímicos, Féral se refere, especialmente, às obras performativas ou ao que chamamos, como Lehmann, Teatro Pós-Dramático.

Essa desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis, fluidos forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de uma referência à outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre a cena no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimética. O performer instala a ambiguidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a linguagem (Féral, 2008FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Tradução de Sônia Machado. Sala Preta, São Paulo, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade de São Paulo, n. 08, p. 197-210, 2008., p. 203-204).

Se a questão é demonstrar que a performatividade do olhar também pode estar situada no trabalho da cena com o texto dramático, é preciso abrir mão do conceito de representação.

O termo jogo de enquadramento foi proposto inicialmente (em pesquisa de doutorado desenvolvida na Universidade de São Paulo)3 3 A pesquisa intitulada O Ateliê do Ator-encenador: Enquadramento, Incidência e Vulnerabilidade foi desenvolvida de 2009 a 2014 no Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator, na Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Armando Sergio da Silva e apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) em suplência à noção de signo, exatamente para propor a ação diegética como uma forma de enquadramento (e não de signo). Essa função (enquadramento) diz respeito, prontamente, ao que tem bordas e oferece limites. A referência primeira é o enquadramento cinematográfico, que estabelece limites para tudo o que está situado dentro dele. Da mesma maneira, o desenho corporal, com sua plasticidade (capacidade de transformação) também é um enquadramento, por implicar limites para os efeitos de incidência, afecção que se passa dentro de suas bordas. E também a visualidade4 4 Entende-se visualidade como a propriedade do objeto dar-se a ver ou, propriamente, como o que se pode ver. de uma diegese (dramática ou épica) que, com suas bordas, circunscreve as relações entre personagens (que, dentro dos seus limites, ganham sentido). Assim, temos diferentes modalidades de enquadramento e um jogo de diferenças e defasagens entre eles. Também o olhar do espectador se revela como um enquadramento, pois, com seus limites e bordas (com os limites e bordas da visualidade do seu próprio mundo), situa (enquadra) a obra.

Segundo Lehmann (2007), a função do Teatro Pós-dramático seria provocar outras percepções no espectador (o que se configura como um ato político), provocando-o, desafiando-o e, até mesmo, agredindo-o, constrangendo-o. Lehmann articula a performance ao terrorismo - devido a sua vocação de interferir na realidade social. Outra modalidade de cena performativa é quando o contexto de produção da obra é colocado em questão. Percebe-se variantes no sentido da palavra performativo, também utilizado como interferência nas relações entre palco e plateia. Pode-se pensar o performativo a partir de três vertentes: a) o que coloca em questão a relação espectador-cena; b) o que coloca em questão o ato vivo (em detrimento do ato de representação); c) o que, como figura do objeto a, escapa à linguagem e resiste aos efeitos de significação, promovendo certa opacidade e o deslizamento do sentido através de um processo metonímico.

Pavis (2010PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea: origens, tendências, perspectivas. São Paulo: Perspectiva, 2010.) aponta para uma perspectiva de mistura do que pode ser performativo e o que é encenação. Tomando como encenação um sistema de efeitos de significação mais ou menos sob o controle do encenador, como uma obra relativamente fechada, ele chega a forjar o termo performise para um leque de variações entre um extremo e outro (o que seria performance pura e o que seria encenação pura).

Digamos que, ao escutarmos uma cena, a escutamos de diferentes maneiras: isto é estrutural. É claro que podemos associar coisas a partir de uma cena, ou seja, ter uma escuta e o meu colega, ao lado, ter outra. Se aumentamos as diferenças entre os enquadramentos, abrimos fissuras e, consequentemente, possibilidades de ligações produzidas por cada espectador (com os sucessivos deslocamentos metonímicos do seu olhar). Essas diferenças entre os enquadramentos, nós chamamos teatralidade: tratamos a teatralidade como um choque entre os enquadramentos5 5 Conceito desenvolvido no texto A Teatralidade como Um Choque entre Visualidades (A Questão da Visualidade em Cena), publicado pela Revista Urdimento em 2014 (Arruda, 2014). .

A performatividade seria justamente o que vem para romper essa escuta e instalar um espaço de indeterminação, que se revela como opacidade; ela estabelece o que resiste à leitura - e, assim, o olhar do espectador performa. A performatividade é o que se pode fazer do vazio que se abre graças à teatralidade (graças ao choque). Assim, em um trabalho performativo com o dramático, não existe uma visualidade ficcional a anteriori a ser representada (de maneira a fazê-la coincidir com o enquadramento cênico, para se conferir, ao significante escutado, o estatuto de ação). Trata-se de colocar o contexto da relação com o espectador em jogo através de um choque entre os enquadramentos, na medida em que a plasticidade corporal é um enquadramento e a visualidade da ação dramática é outro.

Pode-se dizer que, no Teatro Performativo, há momentos em que a angústia se estabelece pela falta de leitura (que não há o que escutar): o espectador para de associar e de deslocar as cadeias significantes. Ele se depara com uma espécie de exacerbação do estranhamento e da contradição; e, também, com a falta de sentido do ato: "Afinal o que eu estou fazendo aqui e que sentido tem isto?" Esta espécie de práxis do silêncio vem em resposta à utopia semiótica: uma palavra ou gesto significam. Este pensamento foi formalizado nos anos 1960 (segundo Pavis), mas já estava posto antes, na forma como se encenava os textos - e é contra essa forma, propriamente, que Artaud fundamentou seu projeto (chamando-a de comunicação).

Com o aparecimento da semiologia, no fim dos anos de 1960, houve a tendência a conceber-se a encenação como um sistema de sentido, um conjunto coerente, uma obra legível ou descritível para a linguística, decodificável signo a signo, tal como para a encenação clássica de um Copeau (Pavis, 2010PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea: origens, tendências, perspectivas. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. 48).

Utilizamos o termo utopia semiótica por entender (junto à psicanálise) que a linguagem (seja cênica ou outra) não está fundamentada nas relações entre significantes e significados. A estrutura da linguagem é fundamentada em duas operações: metáfora (condensação) e metonímia (deslocamento); não em relações diretas entre significantes e significados. Isso não seria possível, pois o significante não significa, mas se remete sempre a outro significante, gerando os deslocamentos metonímicos que, por sua vez, possibilitam as metáforas, ou seja, a condensação (provisória) de elementos deslocados. O significado é barrado - e se expressa como um lugar vazio, implicando o desejo como resto metonímico e a afânise do sujeito (desaparecimentos e aparecimentos sucessivos). O sujeito em Lacan é dividido, provisório e ambíguo, nunca imanente e fixo.

Pensamos que o efeito poético (seja do espetáculo dramático, Teatro Físico ou Performativo, Poema Verbal, Artes Plásticas ou Midiática) conta com deslizamentos metonímicos, metáforas provisórias, espaço de desejo e múltiplas tentativas de interpretação, sendo que algo sempre foge à designação, algo impossível de se dizer6 6 Aqui pode-se articular também a noção de sublime "[...] que, como bem disse Lyotard, sempre teima em se esquivar como um impossível da formalização" (Fernandes, 2010, p. 38). ; e que esse efeito é estrutural de qualquer poesia, fazendo também parte daquelas que contam com a utilização da fala e da linearidade. Pensamos no impossível como estrutura da poesia da cena. Assim, a teoria do Pós-dramático vem como resposta a uma utopia de tradução de qualquer obra em signos. Mais do que uma modalidade teatral, o Pós-dramático coloca em questão a necessidade da elaboração de uma nova teoria da cena.

A escuta das cadeias significantes pode, nas entrelinhas, evocar algo contrário, que advém do choque entre os enquadramentos, cada qual com a sua plasticidade. A plasticidade7 7 O termo plasticidade está sendo utilizado como propriedade de transformação de um enquadramento. A visualidade (o que se pode ver) da ação da personagem é uma modalidade de enquadramento e tem a sua plasticidade. da ação da personagem é uma camada, com certa tessitura de associações que implicam certos limites e lógica. Mas é apenas uma. Outra tessitura implica uma outra plasticidade (visualidade que se transforma): a do olhar do espectador sobre as impressões da cena. O pensamento do espectador, tecido no eixo extraficcional, ganha densidade. À produção cênica, está justaposta a cena do seu olhar. Das fissuras entre as duas se extrai, também, teatralidade.

Segundo Pavis (2010PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea: origens, tendências, perspectivas. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. 49), a "escritura teatral ligada a uma prática significante" entrou em crise nos anos 1960:

O apogeu da encenação como escritura cênica nos anos de 1960 coincidiu com o começo de sua crise: ela se transformou num sistema muito fechado, muito ligado a um autor, a um estilo e um método de atuação, muito associado à ideia de 'ler o teatro'8 8 O autor faz referência ao livro de Anne Ubersfeld (Tradução brasileira: Para Ler o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005). . A estrutura do espetáculo é batizada de 'prática significante'9 9 O autor faz referência às proposições de Julia Kristeva. .

Testemunha-se a importância da reflexão sobre as operações que uma "prática significante" implica. Como bem explica Nadiá Ferreira (2002FERREIRA, Nadiá Paulo. Jacques Lacan: apropriação e subversão da linguística. Revista Ágora, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 2002. , p. 01):

A estrutura do significante se caracteriza pela articulação e pela introdução da diferença que funda os diferentes. Uma série de consequências é produzida: 1. o privilégio do significante em detrimento do significado; 2. o significante é puro non sense e não tem relação com o significado, o que equivale a dizer que o significante não significa nada ou pode significar qualquer coisa; 3. a oposição entre significante e significado marcada pela barra coloca o significável submetido ao significante; 4. o que faz parte da própria estrutura do significante é a conexão com outros significantes formando uma cadeia; 5. só pode haver articulação entre os significantes porque eles podem ser reduzidos a puros elementos diferenciais; 6. a organização dos significantes se faz através de duas operações, que são as mesmas da linguagem: condensação (Verdichtung) e deslocamento (Verschiebung), cujos efeitos são a metáfora e a metonímia.

A ilusão desse discurso em crise (que Pavis relaciona ao ler o teatro e chama de fechado) reside em um suposto emparelhamento das relações entre significantes e significados. Leitura e interpretação se dão por constantes deslizamentos (metonímia), deixando um resto (metonímico) resistente aos múltiplos efeitos de significação; uma espécie de falha que implica o topos necessário para que se estabeleça as relações de desejo (para haver desejo é necessária a falta). O desejo está implicado em um ato de escuta onde sempre escapa algo. Este é propriamente o modo operacional da linguagem - e de um sistema de leitura (quer dramático, quer não-dramático ou pós-dramático). Assim, o termo prática significante poderia muito bem estar relacionado à prática da leitura da encenação, sem que esta esteja veiculada a qualquer tentativa de significação. Mas, trata-se de outra teoria, diferente da semiologia do gesto ou da palavra. Foi contra relações unívocas entre gesto e significado que os movimentos, a partir dos anos 1970, se estabeleceram, entre eles o pós-dramático e as teorias da performance como gênero.

Abordaram-se então os textos e, a seguir, os espetáculos, de maneira bastante diferente. Esta mudança de perspectiva veio em proveito da prática teatral, na medida em que se dispunha a rever todas as noções da dramaturgia: o personagem, a cena, o sentido, o sujeito que percebe e a finalidade do teatro. Nessa atmosfera de crise da retomada em questão, a performance tornou-se uma forma de contestar o teatro e sua concepção literária, julgada muito logocêntrica, mas também uma maneira de ultrapassar uma semiologia preocupada demais com a leitura dos signos e da encenação (Pavis, 2010PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea: origens, tendências, perspectivas. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. 49).

O conceito de teatralidade como choque entre enquadramentos nos permite retomar a ideia de prática significante na medida em que os deslizamentos metonímicos produzem visualidades outras que não estão no palco - por associações múltiplas. Essas visualidades não implicam uma inteireza (elas têm falhas, buracos), mas um espírito investigativo por parte do espectador; uma espécie de engajamento. É nas fissuras entre uma visualidade e outra que o efeito de teatralidade é construído. A visualidade da ficção (evocada na escuta de significantes) é diferente da plasticidade do corpo em cena; e é diferente da visualidade do mundo do espectador posto na cena do seu olhar. É pela diferença (choque) entre um e outro que a teatralidade é forjada. O mesmo se dá quando um objeto é enquadrado na ficção (sendo nesta inscrito como um significante): resta algo da sua forma que não está enquadrado pela diegese. Uma vassoura, por exemplo, pode evocar um personagem, o que gera um efeito de teatralidade (ou a teatralização da vassoura) graças à diferença (choque) entre vassoura e personagem.

A performatividade, por sua vez, implicaria a incerteza e a indeterminação - ou seja, quando o significante não encontra enquadramento. O significante, por princípio, é diferença, ou seja, ele precisa se remeter a outro significante para que uma cadeia seja engendrada. Na performance, isso pode se romper, e o espectador se vê implicado: no engendramento da própria situação a partir da qual é convocado à ação ou na ausência dos efeitos de significação (o que o leva diretamente à falência da linguagem). Aqui, podemos articular a ideia de "[...] fala disforme, gesto avesso, cena assimétrica e disjuntiva, colagem estranha" (Fernandes, 2010FERNANDES, Silvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2010., p. 38) de Renato Cohen.

Em certo momento de Teatro Pós-dramático, Lehmann se apoia em Lyotard para exemplificar um teatro que, justamente por se afastar da representação, estaria além do drama - ou seja, o drama aparece colado à teoria da representação (onde a ideia que prevalece é a de que a cena representa as ações de um texto).

Lyotard fala aqui de uma ideia de teatro diferenciada, da qual se deve partir caso se queira pensar um teatro além do drama, o qual é chamado de 'teatro energético'. Não seria um teatro de significado, mas das 'forças, intensidades, afetos em sua presença'. Diante dos coros falados de Einar Schleef marcando em direção ao público, por exemplo, quem não vê o 'energético' mas procura por signos, por 'representação', encerra o cênico no modelo da cópia, da ação e assim do 'drama' (Lehmann, 1999LEHMANN, Hans-Thies. O Teatro Pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 1999. , p. 58).

É preciso desatrelar o Teatro Dramático de uma teoria do signo que, por sua vez, reduz as ações físicas a signos das ações dramáticas do texto que as antecede. Porque, estruturalmente, a linguagem não se organiza em signos, mas em deslizamentos metonímicos. Introduzindo o conceito de enquadramento, o dramático se revela como uma modalidade de jogo de enquadramento específica.

No Pós-dramático, enquadramentos relativamente estáveis (como a fábula e a visualidade da realidade), são descartados. Prevalece o que o espectador não consegue enquadrar e que o perturba, pois está fora do reconhecimento habitual. Lança-se mão da indeterminação do enquadramento - e isso define uma modalidade de teatro diferente do dramático. No entanto, o Teatro Dramático pode, ainda assim, em detrimento de uma teoria do signo, veicular forças, intensidades e afetos em sua presença (já que não é representação). Mesmo que um dos enquadramentos em jogo seja a linearidade de uma diegese, o texto falado é um material que entrará em choque (e em jogo) com uma série de outros.

Ao elidir os enquadramentos lineares e diegéticos do discurso cênico, o Teatro Performativo joga com certa opacidade: "Na maior parte das vezes não há personagens psicologicamente elaborados nem individualizados em um contexto cênico coerente (como em Kantor), mas apenas figuras que agem como emblemas incompreensíveis" (Lehmann, 1999LEHMANN, Hans-Thies. O Teatro Pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 1999. , p. 130-131). "Quando o conceito de ação se dissolve de tal maneira em favor de um acontecimento de metamorfose contínua, o espaço da ação aparece como uma paisagem continuamente modificada por variações de luz, por objetos e formas que surgem e desaparecem" (Lehmann, 1999, p. 133).

Sem fábula linear, sem evocar a permanência de personagens e conflitos que se desenvolveriam em cadeias articuladas, no Pós-dramático, o que passa a prevalecer é a estrutura de enunciação com materiais justapostos, constituída de cadeias relativamente autônomas, que não se articulam de maneira sintagmática. Silvia Fernandes, uma das estudiosas do Teatro Pós-dramático no Brasil destaca diferentes procedimentos:

[...] a economia dos elementos cênicos, em processos de repetição e ênfase na duração ou no ascetismo dos espaços vazios de Jan Fabre e do Théâtre du Radeau; [...] as encenações depuradas de Antunes Filho e Márcio Aurélio, que privilegiam o silêncio, o vazio e a redução minimalista dos gestos e dos movimentos, cria elipses a serem preenchidas pelo espectador; [...] a multiplicação dos dados de enunciação cênica, que resulta em espetáculos sobrecarregados de objetos, acessórios e inscrições, cuja densidade desconcertante chega a desorientar o público, como acontece nas encenações de Frank Castorf (Fernandes, 2010FERNANDES, Silvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2010., p. 55).

Percebe-se o jogo entre visualidades e sonoridades. Estas são plásticas, ou seja, se transformam. "A música se transforma em uma espécie de dramaturgia sonora" (Fernandes, 2010FERNANDES, Silvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2010., p. 55). Ao mesmo tempo, "[...] este texto musical também pode ser composto da melodia das falas dos atores, de timbres e acentos diversificados". Lança-se mão de sobreposições. As fissuras entre diferentes plasticidades não articulam necessariamente uma escuta, ou a escuta não produz uma cadeia (ela se rompe): a sua articulação é opaca. Algo se insinua como enigma na tradição performativa.

Já no Teatro Dramático, tanto a plasticidade do corpo quanto a visualidade da ficção articulam um mesmo significante: o nome da ação (o verbo-de-ação) que se pode escutar. Apesar de algo da plasticidade corporal restar (e resistir) à ação (porque é pura materialidade), o verbo-de-ação, como ação dramática, está inscrito na fábula - e, ao mesmo tempo, em cena. Percebe-se uma articulação (e não a disjunção).

Segundo Fernandes, Lehmann utiliza o termo "teatro concreto" para se referir à plasticidade corporal: "ao imediatismo dos corpos humanos, das matérias e das formas" pós-dramáticas. O termo, ele empresta de Kandinsky - o que nos remete diretamente ao que, da plástica corporal, é abstração, forma, cor, qualidade palpável. Reverberando esse pensamento, Fernandes cita as "estruturas formais de movimento e luz do teatro de Jan Fabre" (Fernandes, 2010, p. 57). A abstração (do corpo) seria um modo de ultrapassar a esfera da representação dramática - segundo Lehmann - ou seja, daquela visualidade figurativa de um corpo inscrito na realidade cotidiana diegética. Assim, aponta-se para um mundo de formas geométricas ou para uma poética da deformação, tal como as Artes Plásticas fizeram na passagem do figurativo para o abstrato.

Performatividade e Teatralidade no Campo da Formação de Atores

Dependendo de quais procedimentos são utilizados, os atores podem acentuar a performatividade e a teatralidade na construção de ações físicas para um trabalho com o texto dramático. Quando Grotowski, Burnier ou Stanislavski dão exemplos de ações físicas, engendram um contexto de relações no qual o conceito de ação se inscreve. Mas é possível desmembrar o conceito de ação: a ação dramática (veiculada à diegese); a ação física (plasticidade corporal que veicula, provisoriamente, uma diegese e se articula à visualidade de um pensamento, intencionalidade ou impulso); ação interna (veiculada à visualidade do pensamento ou intencionalidade e que pode ser trabalhada em oposição à ação externa); a ação externa (quando a plasticidade corporal está desvinculada da ação interna). Esse desmembramento nos ajuda em certos procedimentos.

Ao utilizarmos um Teatro Performativo (de Pina Bausch, por exemplo) como um campo possível de extração de movimentos (materiais carregados de abstração) para inscrevê-los em um contexto diegético (fornecido por um texto dramático) e, assim, transformá-los (em ações físicas), algo da sua performatividade permanece - e algo de teatralidade surge.

Por que não representar a diegese? Por que trazer materiais abstratos de outro contexto (espetáculo de Pina Bausch) para chocar a sua forma contra a forma da ação dramática? Se a forma do corpo resultante (ação física) não cabe totalmente dentro dos limites da plasticidade da ação dramática, evidencia-se a teatralidade: porque há choque - e também a performatividade (já que algo opaco força o espectador a performar o seu olhar para enquadrar a forma do corpo). E por fazer aparecer a lida do ator com o jogo dessa construção no instante-já da cena, a cada vez que essa cena for repetida, mantém-se vivo o seu performar.

Figura 1
Condensação de Visualidades na Formação da Ação Física

O sinal de igual (Figura 1) implica a absorção de uma visualidade na outra, síntese e condensação. O ato de jogar essa absorção no instante-já implica algo da forma que escapa à escuta da ação, apresentando-se como opacidade, enigma, mistério (e poética), performatividade. Esse é um caminho para operarmos os conceitos da performatividade e a teatralidade no campo da Formação de Atores (e no trabalho com o texto dramático).

O Teatro Performativo pode ser utilizado como campo de extração de imagens para a mimese corporal. No entanto, existem outros. A visualidade do cotidiano, por exemplo, quando utilizada como material, implica pura plasticidade - e entra em choque (servindo mesmo de oposição) às ações dramáticas. Provoca-se, portanto, teatralidade. As questões da performatividade e da teatralidade se inscrevem em função de um jogo onde a forma utilizada como material, ao se inscrever em cena (em tensão com outras), produz uma resultante. Esta resultante, por sua vez, possui algo (um pedaço) que resta e está a mais, excede a ação dramática, não entra na cadeia da escuta dos significantes - apontando para um não lido, não dito, efeito de materialidade pura, resistência, opacidade, indeterminação.

De maneira que, para o desenvolvimento do teatro performativo, é possível a utilização de fontes de extração diversas, desde o cotidiano, fatos da vida pessoal, partituras físicas abstratas advindas de treinamentos corporais, descrições de corpo extraídas da literatura, cinema, etc. Desde que fixados e colocados em relação com outros materiais, fabricarão a ação física de maneira inesperada, impensada - o que denota uma estrutura no trabalho do ator: a imagem-suporte do jogo de criação não é o que o espectador lê, vê e escuta. A sua escuta depende das resultantes do jogo - ou seja, de uma inscrição nova (outra). Esta é uma estrutura evidenciada em relatos de Grotowski, quando conta que Cieslak, para O Príncipe Constante, utilizou uma imagem da sua vida pessoal (o toque apaixonado na adolescência) para gerar a excitabilidade corporal de um sacrifício religioso (situação escutada pelo espectador). Grotowski relata, não sem certa surpresa, a perspectiva de o ator utilizar, como material, algo totalmente diferente. Ou seja, a visualidade da inscrição do corpo em cena evoca outra coisa - diferente daquela que o ator utilizou como material. Essa operação torna evidente o jogo dos choques e encontros entre materiais advindos de campos diferentes. De maneira que a essência da prática com as ações físicas está em brincar com a perspectiva da performatividade e da teatralidade.

No que se refere ao texto dramático como um possível campo de extração de materiais, postulamos que é preciso superar o princípio da representação e provocar encontros entre enquadramentos diferentes. Essa seria uma espécie de saída para o trabalho da encenação com o material palavra extraído da peça teatral ou da literatura. Propõe-se que ações produzidas com esse material textual não sejam tomadas como significados, mas modalidades de enquadramento. A ação é um enquadramento que participa da lógica da poética cênica porque existem outros que dela se diferenciam. Assim, o jogo é fazer aparecer e desaparecer algo em função de uma série de diferenças e defasagens.

Acredita-se que materiais advogados por Stanislavski (considerando-o uma espécie de pai da teoria do ator dramático) não precisam ser abandonados quando o princípio é o performativo. Como formações internas, eles ocupam o ator, fornecendo sustentação para o trabalho plástico do corpo, enquanto o jogo de enquadramentos implica defasagens. No entanto, é necessária uma revisão da teoria do ator dramático.

Foi possível defender, por exemplo, que a fala é consequência do movimento interno (objetivo, intenção ou ação interna). Stanislavski sustentou a proposição do ator descobrir o que o personagem quer e pensa para imprimir a verdade ou organicidade na fala. Ao analisarmos essa operação, percebemos que se trata de uma construção, pois o ator nomeia um objetivo, intenção ou ação interna, ou seja, cria material que antecede a fala; instala, na cadeia do texto, um material novo. Assim, ele constitui um efeito de movimento interno.

Consideramos que o ator pode escolher a modalidade de jogo: predeterminar o material, instalando-o de maneira intencional, ou constituí-lo em improviso no instante-já da cena. Em ambos os casos, deparamo-nos com o performativo como tessitura de um ato. Mesmo quando se joga com o material pré-deteminado, não se sabe seus efeitos no instante-já. Trata-se de provocar o efeito da fala como consequência de movimento interno quando o foco está em constituí-lo ou utilizá-lo no instante-já da cena e no interior de um jogo que implica uma série de defasagens.

Figura 2
Fala externa e material interno que a antecede

Assim, a fala é utilizada como segundo elemento na cadeia; antes vem a ação física, com a qual, imediatamente, entra em relação. O ator inscreve a ação física antes da fala entrar em jogo. A fala dita aparece, para o espectador, como consequência da ação que a antecedeu. Isso é um efeito (é uma construção de um enquadramento); e é necessária a instalação de um material para produzi-lo (Figura 2).

Outro enquadramento que o ator dramático produz em cena é a relação com o próprio pensamento, utilizado como um lugar (um espaço para onde se pode olhar). Assim, ele se afirma como um enquadramento contemporâneo. Encontramos, por exemplo, a instrução olhar para os pensamentos em um relato de Galizia sobre a criação de A Vida e a Época de Joseph Stalin (de Robert Wilson, em 1976). Essa instrução estabiliza o foco de atenção (do ator) em certo lugar (ou em certa procura desse lugar). Pode-se dizer que olhar para o pensamento é uma tentativa de estabelecer um enquadramento interno. De acordo com Galizia (2005GALIZIA, Luiz Roberto. Os Processos Criativos de Bob Wilson. São Paulo: Ed. Perspectiva , 2005.), Wilson pedia para que os atores olhassem para o pensamento com o objetivo de evitar a representação.

Da mesma forma, em uma poética da atuação dramático-realista, a relação com o próprio pensamento é utilizada. Evoca-se a cotidianidade do corpo, diluindo a ideia de representação. Evita-se a atualização de um desenho corporal que possa vir a indicar a ideia da representação (que se torne índice do ato de representar). Pois, se o ator utiliza apenas a palavra externa - deixando-a reverberar (sem qualquer filtro ou oposição que um enquadramento interno instalaria) - acaba por acusar sua situação de representação. A visualidade da representação torna-se evidente quando o ator não constrói um antes (material interno) para a fala ser construída como um efeito. A visualidade do pensamento (ou a ação interna), por se tratar de outro enquadramento, oferece resistência e cria um jogo de oposição.

Na teoria de Lehmann sobre o Pós-dramático, Wilson é um dos diretores modelares. Mas também Maria Knébel (representante de uma teoria do dramático), propõe que o ator atue pensando. São utilizadas associações com a própria vida, para que o ator crie laços entre a memória corporal e os enquadramentos externos. Em textos de próprio punho estão construções (visuais e acústicas) que não dizem respeito ao universo diegético, mas se apresentam como um outro enquadramento. O ator se utiliza de seus pensamentos, porque incidem sobre ele e pressionam o enquadramento externo, dilatando-o. A tessitura corporal atualiza as reverberações da história de vida, afeto e memória daquele corpo-sujeito-ator. O ator também se apropria da sua própria situação de jogo e cria ações físicas a partir de suas sensações reais - por sua vez enquadradas (situadas) no contexto ficcional (da personagem). O deslocamento da ação (do contexto do ator para o contexto diegético) é performativo, pois implica saltos, defasagens e a produção no instante-já. Em nome da personagem, a ação interna é situada em outro contexto: o da ficção - o que se dá como efeito metonímico (um deslocamento).

Sabe-se que a dramaturgia contemporânea dispõe muito pouco de tessituras dialógicas e que o material narrativo se torna um forte aliado, entrando em relação de tensão com o dramático. Trata-se de extrapolar o presente para (brechtianamente) fazer aparecer um outro tempo (o tempo passado, narrado). De tal modo que a relação entre dois tempos (presente e passado) deixa entrever a visualidade do olhar e do pensamento de quem narra - a relação do narrador com o fato narrado. Nesse caso, a distância entre duas cenas (narrada e vivida) produz uma poética do pensamento - e também a teatralidade.

Essas operações testemunham que a poética da ação atoral não é constituída a partir de um enquadramento específico, mas a partir de vários. Graças às defasagens entre estes enquadramentos, surge um espaço novo, de articulações e disjunções, que se pode dizer poético - na medida em que produz uma lógica: a lógica de trabalhar diferenças, a lógica propriamente daquela encenação.

Para figurá-lo, apoiamo-nos em algumas evidências que as Artes Plásticas nos oferecem. Tomamos o exemplo da pintura de uma mulher sentada em um café (Figura 3). Temos a visualidade de uma ação: esperar alguém, refletir sobre a vida, remoer as dores, ganhar tempo ou qualquer outra que se venha a escutar (a ler no quadro). A ação está inscrita em uma situação que a pintura evoca - evocação esta que poderia ser realizada, no entanto, de outra maneira, por exemplo, com palavras.

Figura 3
Automat (Edward Hopper, 1927).

A visualidade (plástica) da tessitura de uma obra é específica: não se reduz à ação, mesmo que a obra seja figurativa. A tessitura plástica da obra é diferente da visualidade das ações que esta evoca dentro de (enquadrada por) uma situação (para a qual o quadro aponta). Há jogo; uma lógica da relação entre elas, que, por sua vez, define a poética do quadro. O mesmo acontece com uma ficção e uma fala dramática. O ator enquadra a fala em determinado tempo-espaço ficcional, no entanto, a plasticidade da voz e do corpo restam à ficção.

Existem poéticas que não se utilizam da plasticidade da ficção, mas abusam da plasticidade do som ou da abstração do movimento (privilegiam outras modalidades de enquadramento); existem poéticas em que a plasticidade do corpo se desprende totalmente da visualidade das ações (evocadas de outras maneiras) (Figura 4). Em algumas peças de Bob Wilson, o desenho do corpo nada tem a ver com as ações que as falas evocam - disjunção proposital entre as duas camadas (linhas, textos paralelos).

Figura 4
Plasticidade Estranhada

A pintura do corpo na cena evoca associações que podem articular uma fábula ou dela se distanciar, implicando outras camadas. O corpo pode ou não evocar uma ação para enquadrá-lo. A parte da plasticidade corporal que não se encontra dentro do enquadramento da ação, pode-se dizer que é estranha (o mesmo com a sonoridade da voz e a palavra). A absorção da abstração do movimento na visualidade da ação implica gradações (Figura 5). Há poéticas que contam com uma absorção intensa, quase total, de maneira que a visualidade da situação encobre a abstração, produzindo o que se nomeia mimese da realidade (ou, em certos casos, da realidade da ficção).

Figura 5
Plasticidade abstrata absorvida na visualidade de uma situação

Atividades perfeitamente inscritas na visualidade do cotidiano, como cortar cebolas, estender uma toalha ou acender a lareira (para citar exemplos que aparecem em Stanislavski), também podem ser utilizadas como enquadramento plástico-corporal. De qualquer maneira, a plasticidade corporal e a plasticidade ficcional implicam camadas diferentes e evocam associações diferentes (há jogo entre elas). Abre-se um campo de experimentação para a inscrição do corpo em uma poética da cena e observa-se a necessidade de criar repertório corporal para atualizá-lo no jogo com os outros enquadramentos. Assim, pode-se trabalhar as formas corporais ou movimentos cênicos sem qualquer relação de representação de um texto, mesmo quando este está presente como campo de extração de materiais. De maneira que a articulação acontecerá em cena com a absorção de um enquadramento no outro, revelando uma lógica de uma poética que se descobre em processo, performando. A imagem do corpo é inscrita na cadeia da ficção e entra em relação com a palavra (também situada nessa cadeia), dando vazão a outros vetores de associação. O corpo tem a própria plasticidade (é um enquadramento diferente da diegese que o abraça), tal como a voz e a estrutura formal da palavra. A ficção onde se situa a ação dramática é uma modalidade de enquadramento apenas (com plasticidade própria). Como diferença, a plasticidade do corpo, da voz, da fala e da ficção podem se articular ou não; podem gerar mais ou menos estranhamento. Para que uma poética da cena (e da atuação) surja, é preciso instalar uma lógica da articulação entre os enquadres; lógica própria que se estabelece como poética autônoma.

Conclusão

A teoria contemporânea conta com nomes como Schechner, Fischer-Lichte, Féral, Lehmann, trazendo uma perspectiva de superação do efeito de significação em cena e apontando a materialidade como afetação imediata do espectador. Tomando o trabalho de encenação como escritura (e não representação), concordamos que efeitos de significação não são pré-determinados, pois o espectador enquadra a obra com o seu olhar (trata-se de um processo singular e diferencial a partir de uma história de vida); que a realidade mesma desse enquadre implica afeto, fruição, descoberta, na medida em que está sujeita a uma série de deslizamentos metonímicos e desencaixes. O que resta desses deslizamentos se traduz como um espaço de falha da linguagem (ausência de inscrição significante) que, por sua vez, torna possível a performatividade.

A dramaturgia performativa (ou pós-dramática) valoriza a plasticidade do eixo extraficcional, no qual um efeito de pensamento da obra acontece. Ao contrário desta, a dramaturgia dramática enfatiza o contexto da personagem como um universo fechado. Assim, performativo e dramático se estabeleceram como dois modelos opostos na teoria do Pós-dramático. No entanto, a performatividade está implicada também no dramático quando se considera as operações dos jogos de enquadramento, tecidas no instante-já da cena. Isso se refere também ao trabalho do ator: a atuação como uma poética sujeita a jogos de enquadres e possíveis lógicas construídas a partir destes. Considera-se, ainda assim, os dois modelos, de maneira a experimentar hibridismos, seja através da síntese ou outras soluções, como a alternância ou a justaposição (onde os diferentes não se misturam).

Podemos dizer que, no caso do trabalho com o texto dramático (que se utiliza das operações do jogo de enquadramento tecidas no instante-já), existe a contaminação do performativo no dramático. Ou podemos, ainda, sustentar que, ao se trabalhar com o texto dramático, o trabalho do ator implica, estruturalmente, o performativo (ou seja, o inacabado, o processual, a tessitura instantânea quando o ato é realizado na carne viva), escapando à elaboração semiótica.

A noção de jogo de enquadramentos aponta para visualidades em choque, com defasagem, articulação, disjunção, etc. Assim, pode representar uma solução quando se propõe o texto dramático como campo de extração de materiais - pois permite ao ator desvencilhar-se do arcabouço teórico da teoria da significação e da representação.

Referências

  • ARRUDA, Rejane K. A teatralidade como um choque entre visualidades (e a questão da realidade em cena). Revista Urdimento, Florianópolis, v. 1, n. 22, p. 211-218, 2014. Disponível em: <Disponível em: http://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573101222014211 >. Acesso em: 15 set. 2016.
    » http://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573101222014211
  • ARTAUD, Antonin. O Teatro e Seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • DUNKER, Christian. A Imagem entre o Olho e o Olhar. In: RIVERA, Tânia; SAFATLE, Vladimir. Sobre Arte e Psicanálise. v. 1. São Paulo: Ed. Escuta, 2006. P. 14-29.
  • FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Tradução de Sônia Machado. Sala Preta, São Paulo, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade de São Paulo, n. 08, p. 197-210, 2008.
  • FERNANDES, Silvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2010.
  • FERREIRA, Nadiá Paulo. Jacques Lacan: apropriação e subversão da linguística. Revista Ágora, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 2002.
  • GALIZIA, Luiz Roberto. Os Processos Criativos de Bob Wilson. São Paulo: Ed. Perspectiva , 2005.
  • LEHMANN, Hans-Thies. O Teatro Pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 1999.
  • PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea: origens, tendências, perspectivas. São Paulo: Perspectiva, 2010.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    Proposto por Lacan e utilizado por outros autores de orientação lacaniana, como Christian Dunker, para uma Filosofia da Arte, o objeto a é um objeto sem imagem cuja figuração determina o estatuto da obra como tal. Dunker organiza como figura do objeto a: a anamorfose, a deformação, o estranhamento, a despersonalização, a problematização dos limites da forma (Dunker, 2006DUNKER, Christian. A Imagem entre o Olho e o Olhar. In: RIVERA, Tânia; SAFATLE, Vladimir. Sobre Arte e Psicanálise. v. 1. São Paulo: Ed. Escuta, 2006. P. 14-29.).
  • 2
    Trecho retirado de transmissão radiofônica intitulada Para Acabar com o Julgamento de Deus - realizada por Artaud junto a Roger Blin, Marie Cesarès e Paule Thévenin, em 1948. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=MClA7LE5wbM>. Acesso em: 15 set. 2016. Tradução nossa.
  • 3
    A pesquisa intitulada O Ateliê do Ator-encenador: Enquadramento, Incidência e Vulnerabilidade foi desenvolvida de 2009 a 2014 no Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator, na Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Armando Sergio da Silva e apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)
  • 4
    Entende-se visualidade como a propriedade do objeto dar-se a ver ou, propriamente, como o que se pode ver.
  • 5
    Conceito desenvolvido no texto A Teatralidade como Um Choque entre Visualidades (A Questão da Visualidade em Cena), publicado pela Revista Urdimento em 2014 (Arruda, 2014ARRUDA, Rejane K. A teatralidade como um choque entre visualidades (e a questão da realidade em cena). Revista Urdimento, Florianópolis, v. 1, n. 22, p. 211-218, 2014. Disponível em: <Disponível em: http://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573101222014211 >. Acesso em: 15 set. 2016.
    http://www.revistas.udesc.br/index.php/u...
    ).
  • 6
    Aqui pode-se articular também a noção de sublime "[...] que, como bem disse Lyotard, sempre teima em se esquivar como um impossível da formalização" (Fernandes, 2010FERNANDES, Silvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2010., p. 38).
  • 7
    O termo plasticidade está sendo utilizado como propriedade de transformação de um enquadramento. A visualidade (o que se pode ver) da ação da personagem é uma modalidade de enquadramento e tem a sua plasticidade.
  • 8
    O autor faz referência ao livro de Anne Ubersfeld (Tradução brasileira: Para Ler o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005).
  • 9
    O autor faz referência às proposições de Julia Kristeva.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    26 Dez 2015
  • Aceito
    05 Out 2016
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