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As Didascálias Fora do Teatro: um exercício de teatralidade de Eugène Ionesco

Les Didascalies Hors le Théâtre: un exercice de théâtralité d'Eugène Ionesco

Resumo:

As didascálias constituem um gênero muito particular no domínio teatral: das indicações cênicas à inscrição de uma voz autoral no texto feito para ser representado. Na produção de Eugène Ionesco, as didascálias fogem das peças para encontrar uma função a mais em seus textos críticos e na correspondência com seus diretores. Neste artigo, trata-se de analisar a inserção das rubricas nos textos publicados em Notes et contre-notes e nos manuscritos do Fundo Ionesco, com base em uma discussão teórica sobre o gênero e a relevância da figura autoral, a partir de Bernard Dort, Roland Barthes e Luiz Fernando Ramos, entre outros pesquisadores da teatralidade.

Palavras-chave:
Teatralidade; Didascálias; Eugène Ionesco; Notes et contre-notes; Manuscritos

Résumé:

Les didascalies constituent un genre tout particulier dans le domaine théâtral: de l'indication scénique à l'inscription de la voix de l'auteur dans le texte destiné à être mis en scène. Chez Eugène Ionesco, les didascalies échappent des pièces pour trouver une autre fonction dans ses textes critiques, ainsi que dans la correspondance de l'auteur avec ses metteurs en scène. On analyse dans cet article l'insertion des didascalies dans les textes publiés dans Notes et contre-notes et dans les manuscrits du Fonds Ionesco, à partir d'une discussion théorique sur le genre et l'importance de la figure de l'auteur, basée notamment sur les idées de Bernard Dort, Roland Barthes et Luiz Fernando Ramos sur la théâtralité.

Mots-clés:
Théâtralité; Didascalies; Eugène Ionesco; Notes et contre-notes; Manuscrits

Abstract:

Stage directions are a special type of genre in theater, ranging from indications for the dramatic text to the emergence of the author's voice. In Eugène Ionesco's case, stage directions go beyond his plays and find another function in his critical writings and in his correspondence with directors. In this paper, we analyze how stage directions function in the texts published in Notes et contre-notes and in the manuscripts housed in Ionesco's Archives, from the perspective of a theoretical debate that involves Bernard Dort, Roland Barthes and Luiz Fernando Ramos, among other researchers interested in theatricality.

Keywords:
Theatricality; Stage Directions; Eugène Ionesco; Notes and Counter notes; Manuscripts

Autoria no Teatro do Século XX

Quem é o autor da peça de teatro? Não do texto dramático, resultado de um processo de escrita mais ou menos individual, mas da peça teatral, espetáculo que se dá a ver e ouvir, que se realiza no espaço cênico para um grupo de espectadores. Quem é esse autor? O que escreveu o texto sobre o qual se baseia o espetáculo? Aquele que o lê e o coloca em cena sob uma perspectiva própria? Os que desempenham papéis e, assim, encarnam o que antes era ideia? Ou, ainda, aqueles que observam, assistem, desempenhando, esses também, seus papéis na construção do sentido da obra? Se a noção de autoria é controversa, no teatro - obra mais aberta do que outras obras abertas - ela se dispersa sob o prisma da modernidade.

Sob a influência da poética do teatro grego, podemos ler a história do teatro ocidental, pelo menos até o início do século XX, como o primado das noções de texto e autoria ou, em outras palavras, do texto escrito por alguém. Na Poética, baliza para a teoria do teatro ocidental ao longo dos séculos, Aristóteles (2006ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Fernando Maciel Gazoni. São Paulo: Universidade de São Paulo (Tese), 2006.) estabelece o que viriam a ser lidas como as regras da arte dramática, a partir da observação e da comparação entre os poemas de Sófocles e Homero, distintos, sobretudo, pelo modo de enunciação: dramático e narrativo respectivamente. Visando provocar no público uma combinação de efeitos, temor e compaixão, a tragédia seria forjada no poema, de modo que o poeta é o grande responsável pela construção de um sistema de fatos que tenha unidade e seja verossímil, retratando a desgraça de personagens elevadas. A tragédia reside no poema, e não fora dele, enquanto o espetáculo é mais um elemento, embora constitutivo e distintivo do gênero.

Na releitura que o teatro francês fará já no século XVII do teatro clássico, tal como definido na Poética de Aristóteles no século IV a.C., o autor do texto dramático não apenas mantém, mas amplia o alcance desse lugar privilegiado. Ele já não é apenas o poeta, mas também exerce, dentro do texto, por meio das didascálias, uma função-encenador. Essa inserção do autor visava garantir a fidelidade nas montagens, uma maneira de controlar a recepção das peças desde os atores até o público. De acordo com Marie-Claude Hubert (1998HUBERT, Marie-Claude. Les Grandes Théories du Théâtre. Paris: Armand Colin, 1998.), um dos primeiros dramaturgos a defender, com justificativas, o uso das didascálias foi Pierre Corneille, o autor do Cid. No Discours des trois unités (1660), ele explica a dupla função das notas à margem para pequenas ações:

Temos ainda mais uma razão particular para não negligenciar esse pequeno recurso como eles (os Antigos) fizeram: é que a impressão coloca nossas peças nas mãos de comediantes que correm as províncias, e que só assim podem ser advertidos sobre o que lhes cabe fazer e que causariam estranhos contratempos se nós não os ajudássemos por meio dessas notas (Corneille apud Hubert, 1998HUBERT, Marie-Claude. Les Grandes Théories du Théâtre. Paris: Armand Colin, 1998., p. 55)1 1 "Nous avons encore une autre raison particulière de ne pas négliger ce petit secours comme ils l'ont fait: c'est que l'impression met nos pièces entre les mains des comédiens qui courent les provinces, que nous ne pouvons avertir que par là de ce qu'ils ont à faire e qui feraient d'étranges contretemps, si nous leur aidions par ces notes". .

Corneille aponta, nesse pequeno trecho de seu discurso das três unidades, para duas importantes revoluções que marcam um novo tempo, de releitura dos clássicos: a criação da imprensa, que amplia o público leitor; e os deslocamentos dos grupos de teatro para apresentação das peças fora do grande centro. A questão do controle da recepção nem se coloca, já que o texto seria portador de uma verdade de interpretação - e o não respeito dessa intenção primeira poderia causar estranhos contratempos. Deve-se ressaltar, contudo, que as proposições de Corneille não foram ampla nem prontamente aceitas, pois, pela opinião mais corrente, um bom texto deveria conter em si elementos suficientes que não deixassem margem de dúvida para a interpretação.

O "pequeno recurso", a que alude Corneille, não é inteiramente novo: segundo Luiz Fernando Ramos (2001RAMOS, Luiz Fernando. A Rubrica como Literatura da Teatralidade: modelos textuais & poéticas da cena. Sala Preta, São Paulo, v. 1, p. 9-22, 2001., p. 10), as rubricas ou didascálias surgem nos textos dramáticos religiosos da Idade Média, "apresentando os aspectos materiais e simbólicos do rito", e desde o Renascimento, como indica o excerto do discurso de Corneille citado acima, ocuparia essa função de indicação de cena, fazendo a ponte entre o texto e o espetáculo. A crescente emancipação do teatro como encenação faz com que o interesse pelas didascálias também aumente com o passar do tempo. Ainda de acordo com Ramos (2001, p. 10): "[...] no final do século XIX a rubrica consolidou-se como elemento inseparável do texto dramático, mas só em meados do século XX desenvolveram-se abordagens teóricas sobre suas especificidades".

Tais abordagens teóricas, de que trata Luiz Fernando Ramos na primeira parte de seu artigo A rubrica como literatura da teatralidade: modelos textuais & poéticas da cena, procuram definir as rubricas em relação ao texto teatral: texto secundário? complementar? autônomo? Nesse sentido, essas discussões acompanham o movimento iniciado com o surgimento do encenador (metteur en scène em oposição ao régisseur que, como o nome diz, cuidava mais da regência do espetáculo, de sua organização), passando pela coautoria, e chegaria, no final do século XX, ao teatro pós-dramático, termo usado por Hans-Thies Lehmann para se referir ao teatro contemporâneo que prescinde e/ou subverte a noção de texto. A autonomia do espetáculo, que coloca abaixo séculos de textocentrismo, faz repensar também a questão da autoria.

A exemplar colaboração entre Tchekhov e Stanislavski, no final do século XIX, é responsável por inaugurar, em alguma medida, a concepção moderna do papel do encenador. O processo da criação é entendido enfim como colaborativo, e o encenador se torna parte integrante da composição, coautor da peça teatral. Talvez coautor seja um termo temerário... por que não dizer autor? É o que faz, por exemplo, Marie-Christine Autant-Mathieu no artigo Tchekhov/Stanislavski ou la naissance de la mise en scène. Du texte dramatique à la partition scénique (2010AUTANT-MATHIEU, Marie-Christine. Tchekov / Stanislavski ou la naissance de la mise en scène. Du texte dramatirque à la partition scénique. In: GRÉSILLON, Almuth; BUDOR, Dominique; MERVANT-ROUX, Marie-Madeleine (Org.). Genèses Théâtrales. Paris: CNRS, 2010.), em que, ao abordar a gênese da encenação da peça A gaivota, realizada por Stanislavski, não lança mão dos manuscritos de Tchekhov, mas dos cadernos de mise en scène, de modo a apreender daí as propostas estéticas do diretor russo. Stanislavski aparece aqui como autor do espetáculo e, também, como autor de uma nova concepção de teatro.

Interessante observar de que maneira os encenadores reivindicam a autoria do espetáculo teatral, redimensionado para a cena desde o final do século XIX e ao longo de todo o século XX. Roger Planchon (apud Grésillon; Thomasseau, 2006, p. 32), em entrevista de 1977, traça um paralelo entre os diferentes tipos de escrita: "[...] a época contemporânea descobriu um novo comportamento diante do teatro: ela estabelece a diferença entre uma escritura dramática, que chamamos de texto, e uma escritura cênica, que é a encenação". Já em 1945, o diretor Gaston Baty ponderava:

O poeta sonhou uma peça. Ele coloca no papel o que é redutível às palavras. Mas elas só podem expressar uma parte de seu sonho. O resto não está no manuscrito. Caberá ao encenador restituir à obra do poeta o que se perdera no caminho do sonho ao manuscrito (Baty apud Grésillon; Thomasseau, 2005GRÉSILLON, Almuth; THOMASSEAU, Jean-Marie. Scènes de Genèses Théâtrales. In: LÉGER, Nathalie; GRÉSILLON, Almuth. Genesis 26: Théâtre. Revue international. Paris: CNRS- ITEM, 2005. , p. 28)2 2 "Le poète a rêvé une pièce. Il en met sur le papier ce qui en est réductible aux mots. Mais ils ne peuvent exprimer qu'une partie de son rêve. Le reste n'est pas dans le manuscrit. C'est au metteur en scène qu'il appartiendra de restituer à l'oeuvre du poète ce qui s'en était perdu dans le chemin du rêve au manuscrit". .

O surgimento e a crescente relevância do papel do diretor (encenador) são fatores determinantes que operam, ao longo do século XX, transformações na maneira de se escrever o texto teatral: as rubricas buscam inscrever o ponto de vista do escritor, ao mesmo tempo em que atestam o deslocamento do foco de atenção da textualidade para a teatralidade. O encenador, por sua vez, encarna essa emancipação do teatro em relação ao texto, cuja relevância se relativiza diante da cena. É assim que o debate sobre autoria ganha uma dimensão nova: a busca pela teatralidade no teatro.

Roland Barthes chegaria mesmo a afirmar, numa formulação que se tornou célebre, que "a teatralidade é o teatro menos o texto". Assim, isolada, a assertiva pode sugerir uma concepção de teatro exclusivamente centrada na encenação; a leitura de um trecho um pouco maior do artigo Le théâtre de Baudelaire (1954), no entanto, desfaz o engano: Barthes não nega nem o texto, nem a encenação, mas defende que a teatralidade - o devir cênico - deve estar na essência de toda obra teatral:

O que é a teatralidade? É o teatro menos o texto, é uma espessura de signos e de sensações que se edifica em cena a partir do argumento escrito, é esse tipo de percepção ecumênica dos artifícios sensoriais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior. Naturalmente, a teatralidade deve estar presente desde o primeiro germe escrito de uma obra, ela é um dado de criação, não de realização (Barthes, 1954BARTHES, Roland. Le Théâtre de Baudelaire. Théâtre Populaire, Paris, n. 8, p. 45-52, 1954., p. 54)3 3 "Qu'est-ce que la théâtralité? c'est le théâtre moins le texte, c'est une épaisseur de signes et de sensations qui s'édifie sur la scène à partir de l'argument écrit, c'est cette sorte de perception oecuménique des artifices sensuels, gestes, tons, distances, substances, lumières, qui submerge le texte sous la plénitude de son langage extérieur. Naturellement, la théâtralité doit être présente dès le premier germe écrit d'une oeuvre, elle est une donnée de création, non de réalisation". .

Na imbricada e complexa relação autor/diretor, a noção de autoria se confunde com a de autoridade - ou posse - sobre a obra. Manuscritos do escritor italiano Luigi Pirandello apresentam indícios de que ele lia para si os diálogos em voz alta a fim de estabelecer a marcação e o tom indicados para traduzir a ideia que os sustentava, segundo aponta Dominique Budor no artigo O 'canteiro' Pirandello (2010BUDOR, Dominique. Le Chantier Pirandello. In: GRÉSILLON, Almuth; BUDOR, Dominique; MERVANT-ROUX, Marie-Madeleine. (Org.). Genèses Théâtrales, Paris: CNRS 2010.). Mas a desconfiança de Pirandello em relação aos encenadores de suas peças se traduz também no exercício do controle das interpretações possíveis por meio das rubricas: para a pesquisadora, as didascálias do texto pirandelliano revelam sua tentativa de preencher todas as funções, inclusive técnicas, do espetáculo teatral, sempre com vistas a manter a fidelidade ao projeto autoral. As didascálias constituiriam, nesse sentido, "uma verdadeira protoencenação", na medida em que, valendo-se das rubricas, "Pirandello pensa controlar todos os aspectos do teatro concebido como arte total: cenário e maquinaria, figurino, posicionamento e movimento dos atores sobre o palco, tom da voz, jogo, iluminação, sons..." (Budor, 2010, p. 20).

O que Budor chama de protoencenação, a partir da ótica da genética teatral, foi identificado pelo crítico Bernard Dort que, ao abordar o teatro pirandelliano, fala de uma escritura da representação (Une écriture de la représentation, 1986DORT, Bernard. Une écriture de la représentation. Théâtre en Europe, Paris, n. 10, abr. 1986.). No texto sobre a peça Esta noite se representa de improviso, Dort ressalta a relevância que a própria questão teatral adquire na obra de Pirandello, cuja trilogia do teatro no teatro4 4 Guinsburg (1999). A trilogia é composta pelas peças Seis personagens em busca de um autor, Cada um a seu modo e Esta noite se representa de improviso. ecoa ao mesmo tempo suas preocupações na condição de autor e diretor de teatro. Nessa dualidade de papéis, parece existir uma tensão que não se resolve, pois se o movimento dos escritos do dramaturgo aponta para a preocupação com a fidelidade ao texto e às intenções do autor, é justamente no texto que o próprio autor inscreve a importância que acorda à encenação. Dort cita Pirandello para concluir a questão:

Pirandello constata que 'o drama da obra de arte é uma coisa; a representação é outra, enquanto tradução ou interpretação da obra de arte, cópia mais ou menos parecida', mas ele não se resolve nessa divisão, tomando o partido do drama e abandonando a representação à sua condição servil. Ao contrário, ele tenta inscrever a representação no próprio drama (Dort, 1986DORT, Bernard. Une écriture de la représentation. Théâtre en Europe, Paris, n. 10, abr. 1986., p. 19)5 5 "Pirandello constate que 'le drame comme oeuvre d'art est une chose; la représentation en est une autre, en tant que traduction ou interprétation de l'oeuvre d'art, copie plus ou moins ressemblante', mais il ne se résout pas à ce partage, prenant le parti du drame et abandonnant la représentation à sa condition servile. Au contraire, il essaie d'inscrire la représentation dans le drame même". .

Nesse sentido, as didascálias funcionam no texto teatral para fornecer indicações de cena ao diretor e aos atores que concretizam no espetáculo a peça escrita pelo autor. Em outras palavras, são as didascálias que fazem o trânsito entre a instância autoral e a encenação a que se destina o texto dramático. De alguma maneira, essas indicações de cena mimetizam o desejo do dramaturgo de dirigir a peça, mantendo-a fiel à estrutura por ele imaginada. Existe uma história dessa irrupção autoral em meio à ficção, que ganha relevo no teatro moderno; basta comparar, no entanto, uma peça clássica, a Fedra, de Racine, com Dias felizes, de Samuel Beckett, para perceber diferenças evidentes no uso desse espaço com o passar do tempo. As indicações mínimas, pontuais, dedicadas a marcar as personagens em cena, dão lugar a todo tipo de intervenção: sobre movimento, voz, emoção, iluminação, som, entre outros elementos. Há que se considerar que o teatro clássico tinha suas regras próprias, marcadas desde a questão do verso que, por si, já determinava parte do jogo cênico, além de ser metonímia de toda a questão do decoro moral dominante. No teatro moderno, as regras artísticas e morais se diluem; além disso, no começo do século XX, a figura do diretor como coautor se fortalece, de modo que a fidelidade ao texto e a própria questão do teatro textocêntrico passam a ser questionadas, sendo o espetáculo o resultado de uma pluralidade de leituras.

Ionesco Demiurgo

No teatro de Ionesco, as didascálias são um espaço de escritura particularmente interessante. Logo na primeira peça, a primeira indicação de cena já mostra ao leitor que existe ali um trabalho de linguagem, de estilo, bastante diferente do modelo tradicional, ou de qualquer outro modelo. Na rubrica inicial, lemos:

Interior burguês inglês, com poltronas inglesas. Noite inglesa. O Sr. Smith, inglês, em sua poltrona inglesa e suas pantufas inglesas, fuma seu cachimbo inglês e lê seu jornal inglês, perto de uma lareira inglesa. Ele tem óculos ingleses, um pequeno bigode grisalho, inglês. A seu lado, em uma outra poltrona inglesa, a Sra. Smith, inglesa, remenda meias inglesas. Um longo momento de silêncio inglês. O relógio inglês bate dezessete badaladas inglesas (Ionesco, 2002IONESCO, Eugène. Théâtre Complet. Paris: Pléiade, 2002., p. 9)6 6 "Intérieur bourgeois anglais, avec des fauteuils anglais. Soirée anglaise. M. Smith, anglais, dans son fauteuil anglais et ses pantoufles anglaises, fume sa pipe anglaise et lit un journal anglais, près d'un feu anglais. Il a des lunettes anglaises, une petite moustache grise, anglaise. A côté de lui, dans un autre fauteuil anglais, Mme Smith, anglaise, raccommode des chaussettes anglaises. Un long moment de silence anglais. La pendule anglaise frappe dix-sept coups anglais". .

Se pensarmos na didascália como indicação de cena, esta não indica nada de efetivo ou, por outra, indica o nonsense de uma linguagem que se repete sem que haja por isso acréscimo de sentido. Pelo contrário, veremos que a repetição, no teatro de Ionesco e, de modo particular, em La Cantatrice chauve, ressalta o vazio de uma linguagem que não deseja comunicar. Qual o sentido de uma indicação de cena que não indica? A quem se destina esse texto? Mais ligadas ao drama como gênero literário do que teatral, as didascálias da peça de estreia de Ionesco são antes exercícios de estilo, impregnadas no âmbito (habitualmente) extraficcional pela desarticulação dos jogos de linguagem que encontramos nos diálogos encenados pelas personagens. Nessa peça, não existe limite entre as rubricas e o texto das personagens, já que a própria rubrica se faz personagem, como nos momentos em que indica as batidas do relógio, sempre em contradição com a hora dada pelos Sr. e Sra. Smith, ou, ainda, quando avisa ao leitor que o relógio não bate, fazendo questão de preencher o silêncio da cena com as palavras na indicação.

Nas peças seguintes, o procedimento muda e as didascálias se mostram menos autônomas, mais de acordo com a função tradicional, sem por isso ser reduzidas à simplicidade de indicações técnicas. No artigo Proliférations didascaliques dans le théâtre de Ionesco, o pesquisador Benoît Barut analisa a presença e a função das didascálias nas peças de Ionesco, lendo-as a partir do mecanismo da proliferação, uma das marcas desse teatro. Para ele, além da proliferação numérica que identificou nas peças de Ionesco, atestada pelo número de didascálias e de caracteres em algumas peças, elas também proliferam "[...] do ponto de vista das linguagens cênicas e técnicas assim como uma proliferação, por assim dizer, estilística" (Barut, 2010BARUT, Benoît. Proliférations Didascaliques dans le Théâtre de Ionesco. In: IONESCO, Marie-France; DODILLE, Norbert. Lire Jouer Ionesco: Colloque de Cerisy. Besançon: Les Solitaires Intempestifs, 2010. P. 63-94., p. 63). Em seu texto, Barut demonstra como Ionesco vai ampliando o uso do espaço das didascálias, tanto na quantidade quanto na aplicação: em busca de controlar ao máximo as interpretações possíveis de sua obra, o autor se impõe aos diretores, por meio de didascálias que descrevem minuciosamente o jogo cênico visado: tom, postura, figurino etc., assim como as técnicas a ser utilizadas: iluminação, sonoplastia, cenografia.

No que diz respeito às didascálias estilísticas, estas se destinam, como aquela transcrita acima, à leitura mais do que à encenação. Trata-se de usar esse espaço para trabalhar a linguagem, ou então brincar com ela: assim, às indicações de tom cômico, como a de La Cantatrice chauve, juntam-se outras em que predomina ora um tom narrativo, como no retrato de Dudard no Rhinocéros: "Dudard: trinta e cinco anos. Terno cinza; [...] Se o chefe se tornasse subdiretor, é ele quem tomaria seu lugar; Botard não gosta dele" (Ionesco, 2002IONESCO, Eugène. Théâtre Complet. Paris: Pléiade, 2002., p. 573); ora um tom lírico, como na indicação de abertura de Tueur sans gages, em que o ambiente é assim descrito: "Barulho leve do vento; talvez vejamos uma folha morta atravessar o palco, flutuando. Ao longe, barulho de trem, silhuetas confusas das casas que se perdem quando 'de repente' a cena se ilumina fortemente" (Ionesco, 2002, p. 471).

Se as didascálias constituem mais uma marca autoral do teatro de Ionesco, impregnadas, por sua vez, das técnicas e do estilo que determinam suas peças, é possível pensar que o limite entre texto teatral e não-teatral é bastante tênue na produção do escritor. Da mesma maneira como alguns de seus textos críticos encenam uma performance, eles também são orientados por uma voz que se mistura, fazendo comentários ou dando indicações, como didascálias. Na Controverse londonienne, parte do volume Notes et contre-notes, que se compõe de textos de vários autores, ou seja, quando existe efetivamente um diálogo, as didascálias aparecem de maneira evidente, ocupando um espaço muito parecido com aquele do texto teatral. Antes de cada texto, entre a numeração e o título, aparecem em fonte diferenciada e fazem mais do que simplesmente apresentar o artigo que segue. Contaminadas pela ironia, são responsáveis por apresentar ao leitor (em 1962) o cenário em que se deu a polêmica, de um ponto de vista obviamente parcial. Nesse sentido, Kenneth Tynan é apresentado como "[...] um dos críticos que mais batalharam para fazer Ionesco ser conhecido na Inglaterra. A batalha ganha, de repente, ele teve suas dúvidas e as expôs no Observer sob um título interrogativo" (Ionesco, 2006, p. 135)7 7 "Kenneth Tynan, dont on a traduit en France un essai: Le théâtre et la vie (in: Les jeunes gens en colère vous parlent), est un des critiques qui ont le plus bataillé pour faire connaître Ionesco en Angleterre. La bataille gagnée, il eut soudain des doutes et les exposa dans l'Observer du 22 juin 1958, sous un titre interrogatif". . A fragilidade que se buscará apontar no julgamento de Tynan já é enfatizada na apresentação desse personagem, que ainda nem apareceu em cena: além de ter mudado de opinião a respeito da obra de Ionesco, ele tem dúvidas e se vale de um título interrogativo. Na rubrica, ainda fornece uma informação um pouco gratuita: o título do livro em que sai um artigo de Tynan na França, algo como Os jovens irados falam [Les jeunes gens en colère vous parlent]. O artigo de Tynan, que leremos a seguir, é desautorizado desde a apresentação que, em linguagem objetiva, fornecendo mesmo dados comprováveis, se faz absolutamente irônica e busca determinar a leitura. Orson Welles é apresentado, por sua vez, como "uma personalidade de grande estatura". Mesmo assim, no meio da argumentação de Welles, irrompe nova didascália, desta vez entre parênteses, com um comentário que traz a voz de Ionesco para dentro do texto do crítico: "(Orson Welles nega que o crítico deva se contentar em julgar se a obra é conforme ou não às suas leis internas. Um crítico é um ser humano, ele tem direito às suas reações pessoais, à expressão de suas próprias ideias)" (Ionesco, 2006, p. 150)8 8 "Orson Welles nie que le critique doive se contenter de juger si l'oeuvre est conforme ou non à ses lois internes. Un critique est un être humain, il a droit à ses réactions personnelles, à l'expression de ses propres idées". .

Não é o que ele diz da opinião do leitor H. F. Garten: a indicação adverte que "[...] a segunda carta termina com uma frase que poderia ser de Robert Kemp" (Ionesco, 2006IONESCO, Eugène. Notes et Contre-notes. Paris: Gallimard, 2006., p. 148)9 9 "En voici deux opinions de lecteurs de l'Observer. La seconde lettre s'achève sur une phrase qui pourrait être de Robert Kemp". . O crítico H. F. Garten, especialista em teatro expressionista alemão (de acordo com Emmanuel Jacquart), é apresentado apenas como leitor. Em sua carta, o crítico afirma que se as peças do escritor tivessem a mesma clareza de seus ensaios, "o Sr. Ionesco poderia ser um grande dramaturgo" (Ionesco, 2006, p. 149)10 10 "Si seulement M. Ionesco pouvait mettre um peu de cette clarté et de cette sagesse dans ses pièces, il pourrait devenir un grand dramaturge". . A observação sobre o final da carta faz referência a um artigo de Robert Kemp, publicado no Le Monde em 1955, quando da estreia de Jacques ou la soumission. Nesse texto, Kemp termina por uma formulação de fato bastante próxima da de Garten: "Se ele [Ionesco] aplicasse seriamente seus dons de escritor, produziria coisas que contam" (Kemp, 1955KEMP, Robert. Un spectacle Ionesco à la Huchette. Le Monde, Paris, 17 out. 1955., p. 4). Memória? Arquivo? O fato é que o leitor Garten é apresentado em 1962 pelo viés de uma crítica de 1955 para ironizar, ao mesmo tempo, um e outro crítico.

Na cena final desse embate, a rubrica tem outro tom: trata-se de apresentar Le coeur n'est pas sur la main, resposta final de Ionesco à Tynan. O debate já tinha se encerrado no jornal alguns anos antes, mas, em Notes et contre-notes, Ionesco encena que a última palavra é sua: "O debate é inesgotável. Para lhe dar uma conclusão (provisória), daremos o texto de uma resposta de Ionesco a Kenneth Tynan. Esse texto é inédito. O Observer comprou os direitos para a Inglaterra, mas não o publicou" (Ionesco, 2006, p. 152)11 11 "Le débat est inépuisable. Pour lui donner une conclusion (provisoire), nous donnerons le texte d'une réponse de Ionesco à Kenneth Tynan. Ce texte est inédit. L'Observer en a acheté les droits pour l'Angleterre mais ne l'a pas publié". . Tal o personagem Bérenger do Rhinocéros, que, único ser humano em meio aos rinocerontes, termina a peça clamando "Contra todo o mundo, eu me defenderei, contra todo o mundo, eu me defenderei! Eu sou o último homem, e serei até o final! Eu não capitulo!" (Ionesco, 2002IONESCO, Eugène. Théâtre Complet. Paris: Pléiade, 2002., p. 638), o escritor, antes de clamar pela defesa de suas ideias, deixa bem clara ao leitor-cúmplice a tentativa de o fazerem calar. Se nas peças de teatro as didascálias funcionam para orientar diretor e os atores na construção da cena, no texto crítico elas acabam por orientar o leitor, valendo-se da objetividade do tom e do caráter pseudoinformativo dos textos para ampliar a performance de autor injustiçado.

Sobre a Controverse londonienne, é preciso destacar ainda uma questão relacionada ao que chamamos de didascálias do conjunto de textos no cenário em que se deu a primeira publicação. O dossiê com os textos da polêmica com Kenneth Tynan foi publicado primeiro na revista Cahiers des Saisons, n. 15, inverno de 1959 e, já nessa primeira versão, os artigos eram introduzidos pelas breves rubricas de apresentação não assinadas. No novo contexto de publicação, assim reunidos, os textos pareciam apresentados por uma voz editorial, que saia da própria revista e compartilhava o ponto de vista de Ionesco ao dar a ele a possibilidade final, lograda pelo Observer, de fechar o debate com o crítico inglês. Ao ser retirado como um bloco da revista e publicado no livro que leva a assinatura de Ionesco, os textos de apresentação passam a ecoar sua voz.

Essa apropriação se dá a ver de maneira ainda mais nítida na observação do exemplar do periódico conservado no Fundo Ionesco: a capa impressa apresenta o sumário do número dedicado a Ionesco. No alto, a inscrição manuscrita em caneta azul, seguida de uma flecha indicativa: Prendre p. 255 à 268 incl. [Pegar p. 255 a 268 incluídas]. A flecha aponta no sumário a que se referem as páginas a ser tomadas:

KENNETH TYNAN, PHILIP TOYNBEE et ORSON WELLES

Controverse londonienne

traduction de Jean-Louis Curtis

No exemplar, as páginas que encerram a controverse foram, com efeito, arrancadas, constituindo os rascunhos para a edição do volume. O título, as didascálias, e mesmo a escolha das cartas dos leitores do Observer, é impossível determinar se foram escolhas de Ionesco, pois é difícil precisar o grau de autoria de Ionesco desse dossiê de que, a princípio, ele é objeto, e não autor. No entanto, ao se apropriar desse conjunto de textos e reuni-los a seus artigos, ele encena uma postura autoral. A indicação ao final do artigo Le coeur n'est pas sur la main, de que fora publicado no Cahiers des Saisons, suscita a ambiguidade: trata-se daquele texto ou do conjunto? Como consequência, o arranjo de documentos que acabamos de ler é do autor ou dos editores da revista?

Nesse cenário de conflitos estéticos e ideológicos bastante frequentes, outro elemento interessante pode colaborar para a leitura do dossiê Controverse londonienne. Um ano antes da publicação dos Cahiers des Saisons, a revista Théâtre populaire, que concentrava os principais antagonistas de Ionesco, também publicara a sua versão da disputa do dramaturgo com Tynan, sob o título Ionesco à l'heure anglaise. A estrutura, a numeração das partes, a escolha de publicar também cartas de leitores, é tudo muito parecido com o dossiê dos Cahiers, reproduzido em Notes et contre-notes - menos o artigo final de Ionesco. Os editores da Théâtre populaire não fazem textos de apresentação para cada artigo, mas apenas uma introdução geral ao "dossiê inglês":

Esse 'dossiê inglês' não apenas fornecerá preciosos elementos de informação a nossos leitores (o que sabemos exatamente sobre a influência do teatro francês contemporâneo no exterior?), ele lhes dará, temos certeza, a vitalidade da discussão sobre o teatro em um país estrangeiro, onde as pessoas não se contentam, ao que parece, em decretar que o 'teatro é o teatro', uma ideia que nos fará mais modestos - e mais exigentes (Théâtre Populaire, 1958THÉÂTRE POPULAIRE. Introduction. Paris, n. 34, p. 5-12, 1958., p. 5)12 12 "Ce 'dossier anglais' non seulement fournira de précieux éléments d'information à nos lecteurs (que savons-nous exactement de l'influence du théâtre français contemporain à l'étranger ?), il leur donnera, nous en sommes sûrs, de la vitalité de la discussion sur le théâtre dans un pays étranger, où l'on ne se contente pas, semble-t-il, de décréter que le 'théâtre c'est le théâtre', une idée qui nous rendra plus modestes - et plus exigeants". .

O diálogo entre as publicações é muito evidente, e faz da apropriação discursiva de Ionesco ainda mais interessante como encenação. Os mesmos textos e a mesma estrutura funcionam em duas revistas que se opõem para defender pontos de vista diferentes sobre o teatro francês dos anos 1950 - pontualmente, sobre o estetismo puro das vanguardas em oposição à proposta de arte engajada, cuja função deve ser mais do que o prazer estético. Ao se apropriar dessas estruturas, Ionesco joga, teatralmente, com o dossiê formativo ou informativo, conferindo-lhe outra função: a construção de uma imagem de si como o autor incompreendido na constante luta contra a crítica literária. No suporte livro, muito mais perene do que o jornal ou a revista, é que essa imagem pode encontrar a densidade e a duração necessárias para se consolidar.

Didascálias na Correspondência com Diretores

Entende-se, pois, as didascálias de Ionesco em um sentido bastante amplo, como indicação de cena que pode se dar tanto no texto no teatral quanto no texto crítico, mas que participa, sempre, do maquinário de construção da teatralidade. Nesse sentido, leio as cartas trocadas entre o dramaturgo e seus encenadores como índices de didascálias, na medida em que comportam uma série de instruções do autor que visam garantir a fidelidade às intenções originais e, também, no quanto de encenação autoral o escritor mobiliza nesse tipo de diálogo específico. Vale notar, um pouco por curiosidade, mas não por acaso, que a relação de Ionesco com os diretores que montaram suas peças costumava ser bastante conflituosa, de acordo com os testemunhos dos próprios encenadores e de atores e críticos da época.

As cartas enviadas a Sylvain Dhomme, primeiro diretor de Les Chaises, no âmbito privado, transformam-se em outro tipo de texto no momento em que são publicadas compondo o dossiê da peça em Notes et contre-notes. Grandes didascálias que indicam ao profissional como encenar o texto dramático, publicadas, essas cartas se fazem didascálias para o leitor/público sobre como ler/ver a peça, além de procurar estabelecer a função do encenador na construção de sentido do espetáculo. Para Ionesco (2006IONESCO, Eugène. Notes et Contre-notes. Paris: Gallimard, 2006., p. 258)13 13 "Vous avez voulu tout naturellement tirer la pièce à vous alors que vous deviez vous y abandonner ; le metteur en scène doit se laisser faire. Il ne doit pas vouloir quelque chose de la pièce, il doit s'annuler, il doit être un parfait réceptacle". , "o diretor deve se deixar levar" pelo texto; mais que isso, ele deve "se anular". O desejo de se fazer compreender, de ver em cena o espetáculo por ele imaginado que invade o espaço das didascálias, também se mostra no momento em que o texto de foro íntimo se torna público, e dirigido ao público, na tentativa de preencher os espaços, de orientar, enfim, a compreensão de sua obra.

As cartas que constituem a correspondência ativa de Ionesco com Sylvain Dhomme, em 1952, aparecem na edição publicada de Notes et contre-notes com uma lacuna em um dos componentes estruturantes do gênero correspondência, a saber, o destinatário. Assim, o nome do diretor é substituído por metteur en scène ou premier metteur en scène, o que tanto pode ser lido como uma maneira de poupá-lo da exposição, já que o conteúdo das cartas é bastante enfático sobre o reduzido lugar do diretor teatral, quanto como mais uma maneira de anular o nome de alguém que deseja intervir na obra do dramaturgo.

A primeira carta, datada do inverno de 1951-1952, traz indicações do dramaturgo, quer no âmbito da realização cênica quanto na concepção ideológica de sua peça, de modo a precisar ao máximo para o diretor as intenções que o levaram a algumas escolhas: assim, o número de cadeiras em cena deve ser "caricatural, excessivo", ainda que pareça "supérfluo" aos olhos do encenador (Ionesco, 2006IONESCO, Eugène. Notes et Contre-notes. Paris: Gallimard, 2006., p. 259). As indicações ao diretor vêm completar as didascálias do texto; no momento em que são publicadas, desejam também, de alguma maneira, condicionar o olhar do espectador.

Deve-se atentar, no entanto, para o limite entre o público e o privado: como saber se a carta publicada foi enviada, e tal qual, para o diretor Sylvain Dhomme? As provas de edição do volume Notes et contre-notes nos dão pistas de modificações do esboço para a versão publicada. Nas primeiras provas, anotações manuscritas comportam uma série de movimentos de escritura: rasuras, supressões, acréscimos, que transformam o texto e o discurso. Se na versão publicada da carta a função do encenador é questionada por Ionesco, que se opõe à ideia de coautoria entre o dramaturgo e o diretor, na prova corrigida a vaidade do escritor se mostra mais contundente por trás das rasuras. Em um trecho censurado pelo autor na correção, logo, não publicado, lemos uma afirmação dessa superioridade em relação ao encenador:

Pode-se ser encenador e autor então, dois egos habitariam o mesmo personagem. É raro, mas pode acontecer. Com toda a modéstia, eu poderia (ou nós poderíamos). Há crise de Pode haver crise do teatro porque há encenadores orgulhosos que escrevem, eles, a peça14 14 "On peut être metteur en scène et auteur alors, deux égo habiteraient le même personnage. C'est rare, mais cela se peut. En toute modestie, moi je pourrais (ou nous nous pourrions). Il y a crise de Il peut y avoir crise du théâtre parce qu'il y a des metteurs en scène orgueilleux qui écrivent, eux, la pièce". Fundo Ionesco. Departamento Arts du spectacle da Biblioteca Nacional da França (BnF). Os demais excertos em que não constam as referências bibliográficas constituem trechos extraídos do Fundo Ionesco. .

Evitando a tentação de pretender revelar os motivos que levaram Ionesco a apagar o trecho acima, é possível, no entanto, observar esse movimento: o que foi suprimido? O ego, a modéstia e o eu. O que ocupa esse lugar? A crise do teatro e o orgulho dos diretores. Se pensarmos nessa carta dentro de um dossiê que busca apreender a peça Les Chaises, a superfície de contato é pequena; o que realmente sobressai aí é a visão do dramaturgo sobre a configuração do teatro na contemporaneidade, cada vez mais marcado pela pluralidade de vozes que o constituem e que desestabilizam a instância autoral. A supremacia do espetáculo sobre o texto é duramente criticada por Ionesco em vários artigos, e as cartas a Sylvain Dhomme acabam por se inserir nesse grupo de documentos. Nesse mesmo parágrafo, um pouco abaixo, uma menção a Brecht também é barrada, seguida do nome de Vilar, também suprimido: apagam-se, assim, todos os nomes de diretores/homens de teatro de uma carta primeira, e o que permanece para passar ao suporte livro são as concepções de Ionesco sobre o que deve ser o trabalho do encenador: "deixe-se, por um tempo, modelar pela peça" (Ionesco, 2006IONESCO, Eugène. Notes et Contre-notes. Paris: Gallimard, 2006., p. 259).

Diretor, mas também ator, editor, teórico, enfim, um homem de teatro, que movimentou a cena francesa por décadas, Jean-Louis Barrault foi um dos principais agentes que determinaram a mudança de recepção da obra teatral de Ionesco, ao colocar em cena a peça Rhinocéros, no Odéon Théâtre de France, em 1960. A entrada para o repertório de Barrault, que já era um diretor de prestígio na época, e a montagem em um teatro subvencionado, operaram a ampliação do público, uma reviravolta da crítica e a consagração do autor. Ionesco não menosprezava a importância de Barrault para a cena francesa e para seu sucesso individual, e chegava mesmo a reconhecê-la publicamente em entrevistas ou, no âmbito privado, na correspondência. Em Notes et contre-notes, entretanto, o diretor é ligeiramente mencionado no dossiê da peça Rhinocéros, e sua montagem, igualada em qualidade à alemã, é considerada "válida, as duas encenações-tipo da peça" (Ionesco, 2006, p. 284).

A correspondência com Barrault, conservada no Fundo Ionesco, se concentra principalmente na montagem da peça Piéton de l'air (1963), a segunda colaboração entre eles. Note-se que o sucesso de Rhinocéros, resultante do encontro entre uma proposta textual e uma proposta cênica, não abalou certas convicções do dramaturgo que, havia mais de dez anos, queria fazer Sylvain Dhomme se resignar a seu lugar de orquestrador da partitura teatral/textual. A primeira carta do dossiê Piéton de l'air data de 31 de julho de 1962 - o contrato entre as partes se dera em 12 de julho. Nela, Ionesco começa justamente por marcar uma posição autoral:

Meu caro Jean-Louis, Porque não tomar o texto como ele é? Bérenger voa, ele volta, ele diz o que viu: o fim do mundo iminente, um cataclismo cósmico vai se produzir15 15 "Mon cher Jean-Louis,/ Pourquoi ne pas prendre le texte à la lettre ? Bérenger s'envole, il redescend, il dit ce qu'il a vu: la fin du monde imminente, un cataclysme cosmique va se produire". .

Nessa mesma carta, o dramaturgo aplica uma ideia desenvolvida em textos anteriores, segundo a qual texto e encenação devem se opor a fim de criar um efeito. Em 1952, sobre A lição, Ionesco (2006IONESCO, Eugène. Notes et Contre-notes. Paris: Gallimard, 2006., p. 252) anotava em seu diário: "Sobre um texto burlesco, um jogo dramático. Sobre um texto dramático, um jogo burlesco". Para a peça Le piéton de l'air, que toca o fantástico, o jogo imaginado pelo dramaturgo e indicado ao diretor na missiva deveria conter "pouca estilização" e "nenhum balé". Vale observar um momento de inserção da voz do autor nas didascálias da peça, que dialogam tão de perto com as cartas prescritivas enviadas a Barrault. Trata-se de uma cena musical, em que o canto da personagem Joséphine faz cantar as outras personagens em cena. Na rubrica, lemos:

Depois todos os ingleses retomam em coro os mesmos trinados. Sozinha, a voz de John Bull é um pouco mais grave, a da Jovem, um pouco mais aguda. Essa cena musical deve ser muito curta. A encenação não deve insistir, nem complicar a cena. Os ingleses terão apenas o tempo, cantando, de esboçar dois sorrisos (Ionesco, 2002IONESCO, Eugène. Théâtre Complet. Paris: Pléiade, 2002., p. 679, grifos do autor)16 16 "Puis tous les Anglais reprennent em choeur les mêmes trilles. Seule, la voix de John Bull est un peu plus basse, celle de la petite fille, un peu plus aigüe. Cette scène musicale doit être très courte. La mise en scène ne doit pas insister, ni compliquer la scène. Les Anglais auront tout juste le temps, en chantant, d'esquisser deux sourires". .

A peça é dedicada a Madeleine Renaud e a Jean-Louis Barrault, que assumiram a encenação e o constante diálogo com Ionesco. As didascálias do texto teatral parecem continuar esse diálogo estabelecido na correspondência. Na carta seguinte, de 26 de setembro de 1962, persistindo alguns impasses, Ionesco insiste em suas prescrições, na tentativa de apreender tanto a realização cênica quanto o efeito sobre os espectadores:

Foi assim que eu quis a peça, foi isso que eu quis fazer. Minhas ambições talvez sejam muito grandes, minhas exigências intransponíveis. Mas é isso mesmo que eu quis fazer. Talvez eu tenha conseguido um pouquinho na sinceridade da angústia. Pode ser também um conto fantástico, um pouco leve, depois atroz. Não pode ser mais que isso. Em todo o caso, é assim que deve aparecer, eu acho, para o espectador17 17 "C'est ainsi que j'ai voulu la pièce, c'est cela que j'ai voulu faire. Mes ambitions sont peut-être trop grandes, mes exigences insurmontables. Mais c'est bien ce que j'ai voulu faire. Peut-être ai-je réussi un tout petit peu dans la sincérité de l'angoisse./ Ce peut-être aussi qu'un conte fantastique, un peu léger, puis atroce. Ça ne peut être que cela. En tout cas, c'est ainsi qu'il doit apparaître, je crois, au spectateur". .

Às questões conceituais da peça, tanto textuais quanto cênicas, deve-se acrescentar outras de ordem prática, mas não menos influentes no curso da troca epistolar entre dramaturgo e diretor. Barrault adiou várias vezes a estreia da peça - segundo Ionesco em carta de novembro/1962, "Le Piéton que devia ser montado em outubro, foi deixado para novembro, final de novembro, para 5 de dezembro, e agora você adia tudo para dia 10"18 18 "Le Piéton, qui devait être monté en octobre, a été remis em novembre, fin novembre, au 5 décembre, et que maintenant, vous ajournez tout pour le 10". . A peça só foi finalmente levada à cena em 8 de fevereiro de 1963. Na correspondência entre autor e diretor, essa lacuna temporal é preenchida pelas exigências e pedidos, de um lado e de outro, na reivindicação da liberdade criativa. Os adiamentos, mais ou menos justificados pela solicitação de ajustes no texto, fazem o tom das cartas de Ionesco se tornar menos (auto)explicativo, mais autoritário. No entanto, aparentemente, seus impulsos mais violentos foram mantidos em estado de manuscrito, e é possível depreender que Barrault não chegou a ler as seguintes linhas de um rascunho de carta de fevereiro/1963:

Recto19 19 "Mon cher Jean-Louis,/ Madeleine Renaud pense que la scène avec le journaliste, du début, est un peu longue. Après tout, pourquoi ne pas la couper ? Madeleine Renaud trouve que la scène de l'envol, ou plutôt ce que dit Bérenger pendant qu'il s'envole, doit être allegé. Peut-être devrait-on l'alléger entièrement. Supprimons même toute la scène. Car pourquoi Bérenger s'envolerait-il? Supprimons la potence. Mais si on supprime la potence, - " la présence de la mort, - cette potence qu'on lui propose, qu'on lui montre, qu'elle regarde,- la scène n'aurait pas de sens. Alors coupons aussi cette scène. Entièrement./ Coupons aussi les 2 juges, et même les 3 juges... gardons simplement". :

Meu caro Jean-Louis,

Madeleine Renaud acha que a cena com o jornalista, do início, é um pouco longa. Afinal, por que não a cortar? Madeleine Renaud acha que a cena do voo, ou melhor, o que Bérenger diz enquanto voa, deve ser mais leve. Talvez devêssemos aliviá-lo inteiramente. Suprimamos mesmo toda a cena. Pois por que Bérenger voaria? Suprimamos a potência. Mas se vamos suprimir a potência, - 'a presença da morte' - essa potência que se lhe propõe, lhe mostra, que ela observa, - a cena não teria sentido. Cortemos então também essa cena. Inteiramente. Cortemos também os 2 juízes, e mesmo os 3 juízes... preservemos simplesmente

Verso20 20 "Madeleine, avec disant son monologue... on pourrait l'allonger un peu, lui... et cela suffirait un peu pour la soirée! A moins tout de même que l'on coupe toute la pièce. A quoi bon faire une pièce? Coupons la pièce et moi je me coupe les testicules... puisqu'on peut tout couper. Avant de la couper toutefois, - je retirerai ma pièce si on la réduit encore... si chaque coup de fil met tout le monde en panique. J'aime bien Madeleine mais j'espère ne plus travailler avec elle. Elle me coupe le soufle.../ Je vous embrasse Eugène Ionesco". :

Madeleine, com dizendo seu monólogo... poderíamos alongá-lo um pouco... e isso bastaria um pouco para a noite! A menos que se corte toda a peça. Para que fazer uma peça? Cortemos a peça e eu corto os meus testículos... já que se pode cortar tudo. Antes de cortá-la, no entanto, - eu retiroarei minha peça se ela for mais reduzida... se cada telefonema põe todo mundo em pânico. Eu gosto muito de Madeleine, mas espero não trabalhar mais com ela. Ela me corta o fôlego... Um abraço, Eugène Ionesco.

No rascunho provavelmente não enviado, a violência do discurso se faz ironia grotesca, sem disfarces: exagera-se no uso de um léxico provocativo, na repetição do verbo cortar, utilizado em seus sentidos conotativo e denotativo, na simulação de um diálogo com o receptor por meio de perguntas cujas respostas já estão dadas. Mas no esboço de uma carta em que Ionesco se coloca tão teatral quanto violentamente, uma pequena correção, subscrita, vem modalizar o discurso: ele não "retira" sua peça, mas a "retirará" se o texto continuar a ser cortado. Da certeza de uma afirmação presente para um futuro hipotético, condicionado por outras circunstâncias que adquirem aqui a forma de ameaça, o discurso desliza e restabelece, no final da carta, um laço que vinha sendo cortado desde o início.

A versão enviada a Barrault, cuja cópia datiloscrita se encontra no Fundo Ionesco, parece mais um exercício de racionalização dos impulsos que motivaram a escritura do documento acima transcrito. As objeções à leitura que o diretor deseja imprimir a seu texto, Ionesco as faz em forma de lista, numerando os itens que merecem ser discutidos e dando-lhes títulos: I. Cena dos Juízes", "II. Cena do Sonho com o Pai, etc. Embora ainda apresente algumas críticas ao trabalho de Madeleine Renaud, elas são muito atenuadas nessa versão da carta, de modo que se pede apenas mais potência na interpretação da atriz.

Le Piéton de l'air teve uma recepção ruim. Partidários do primeiro Ionesco sentiam falta dos jogos de palavras, do absurdo posto a nu no fundo e na forma de suas peças; aqueles que tinham se entusiasmado com Rhinocéros não encontraram na peça posterior a mesma universalidade, a mesma aderência a questões sociais e filosóficas em voga. Em carta de 22 de fevereiro, depois da estreia e da primeira repercussão nos jornais, Ionesco escreve a Barrault para defender a sua peça. A parte datilografada do documento comporta as lamentações do autor em relação à montagem: três parágrafos começam com "eu lamento" [je regrette] e, o quarto, "eu não entendo" [je ne comprends pas]. Seria a encenação, aos olhos de Ionesco, a responsável pela recepção ruim, por ter deturpado o sentido mais puro de sua obra? Acréscimos manuscritos parecem tirar o peso das reprovações: a atuação de Madeleine é "infinitamente emocionante". Por fim, Ionesco escreve a Barrault como quem escreve a si mesmo:

[...] eu juro que o texto é bom, eu juro que você não se enganou, eu juro que é preciso apostar nesse texto e não tratar de camuflá-lo21 21 "[...] je vous jure que le texte est bon, je vous jure que vous ne vous êtes pas trompé, je vous jure qu'il faut jouer sur ce texte, ne pas tâcher de le camoufler". .

A relação entre Ionesco e seus diretores pode ser lida nas didascálias das peças, nos textos críticos, nas entrevistas, pois o desejo de, tal um demiurgo, manipular os cordões que dão vida aos personagens de seu teatro, está presente para além da correspondência específica com os encenadores. Assim como os cordões deveriam aparecer em cena segundo a Expérience du théâtre, nos manuscritos eles também se dão a ver: na ponta visível, espetacular, o discurso que se constitui dos diálogos que o formam; na outra ponta, apenas perceptível, o autor, cujo desejo de domínio se vê enredado em outros fios de outros discursos que, necessariamente, participam de sua cena.

Referências

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  • BARTHES, Roland. Le Théâtre de Baudelaire. Théâtre Populaire, Paris, n. 8, p. 45-52, 1954.
  • BARUT, Benoît. Proliférations Didascaliques dans le Théâtre de Ionesco. In: IONESCO, Marie-France; DODILLE, Norbert. Lire Jouer Ionesco: Colloque de Cerisy. Besançon: Les Solitaires Intempestifs, 2010. P. 63-94.
  • BUDOR, Dominique. Le Chantier Pirandello. In: GRÉSILLON, Almuth; BUDOR, Dominique; MERVANT-ROUX, Marie-Madeleine. (Org.). Genèses Théâtrales, Paris: CNRS 2010.
  • DORT, Bernard. Une écriture de la représentation. Théâtre en Europe, Paris, n. 10, abr. 1986.
  • GRÉSILLON, Almuth; THOMASSEAU, Jean-Marie. Scènes de Genèses Théâtrales. In: LÉGER, Nathalie; GRÉSILLON, Almuth. Genesis 26: Théâtre. Revue international. Paris: CNRS- ITEM, 2005.
  • GUINSBURG, Jacó. Pirandello: do teatro no teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
  • HUBERT, Marie-Claude. Les Grandes Théories du Théâtre. Paris: Armand Colin, 1998.
  • IONESCO, Eugène. Notes et Contre-notes. Paris: Gallimard, 2006.
  • IONESCO, Eugène. Théâtre Complet. Paris: Pléiade, 2002.
  • KEMP, Robert. Un spectacle Ionesco à la Huchette. Le Monde, Paris, 17 out. 1955.
  • RAMOS, Luiz Fernando. A Rubrica como Literatura da Teatralidade: modelos textuais & poéticas da cena. Sala Preta, São Paulo, v. 1, p. 9-22, 2001.
  • THÉÂTRE POPULAIRE. Introduction. Paris, n. 34, p. 5-12, 1958.
  • 44
    Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    "Nous avons encore une autre raison particulière de ne pas négliger ce petit secours comme ils l'ont fait: c'est que l'impression met nos pièces entre les mains des comédiens qui courent les provinces, que nous ne pouvons avertir que par là de ce qu'ils ont à faire e qui feraient d'étranges contretemps, si nous leur aidions par ces notes".
  • 2
    "Le poète a rêvé une pièce. Il en met sur le papier ce qui en est réductible aux mots. Mais ils ne peuvent exprimer qu'une partie de son rêve. Le reste n'est pas dans le manuscrit. C'est au metteur en scène qu'il appartiendra de restituer à l'oeuvre du poète ce qui s'en était perdu dans le chemin du rêve au manuscrit".
  • 3
    "Qu'est-ce que la théâtralité? c'est le théâtre moins le texte, c'est une épaisseur de signes et de sensations qui s'édifie sur la scène à partir de l'argument écrit, c'est cette sorte de perception oecuménique des artifices sensuels, gestes, tons, distances, substances, lumières, qui submerge le texte sous la plénitude de son langage extérieur. Naturellement, la théâtralité doit être présente dès le premier germe écrit d'une oeuvre, elle est une donnée de création, non de réalisation".
  • 4
    Guinsburg (1999GUINSBURG, Jacó. Pirandello: do teatro no teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.). A trilogia é composta pelas peças Seis personagens em busca de um autor, Cada um a seu modo e Esta noite se representa de improviso.
  • 5
    "Pirandello constate que 'le drame comme oeuvre d'art est une chose; la représentation en est une autre, en tant que traduction ou interprétation de l'oeuvre d'art, copie plus ou moins ressemblante', mais il ne se résout pas à ce partage, prenant le parti du drame et abandonnant la représentation à sa condition servile. Au contraire, il essaie d'inscrire la représentation dans le drame même".
  • 6
    "Intérieur bourgeois anglais, avec des fauteuils anglais. Soirée anglaise. M. Smith, anglais, dans son fauteuil anglais et ses pantoufles anglaises, fume sa pipe anglaise et lit un journal anglais, près d'un feu anglais. Il a des lunettes anglaises, une petite moustache grise, anglaise. A côté de lui, dans un autre fauteuil anglais, Mme Smith, anglaise, raccommode des chaussettes anglaises. Un long moment de silence anglais. La pendule anglaise frappe dix-sept coups anglais".
  • 7
    "Kenneth Tynan, dont on a traduit en France un essai: Le théâtre et la vie (in: Les jeunes gens en colère vous parlent), est un des critiques qui ont le plus bataillé pour faire connaître Ionesco en Angleterre. La bataille gagnée, il eut soudain des doutes et les exposa dans l'Observer du 22 juin 1958, sous un titre interrogatif".
  • 8
    "Orson Welles nie que le critique doive se contenter de juger si l'oeuvre est conforme ou non à ses lois internes. Un critique est un être humain, il a droit à ses réactions personnelles, à l'expression de ses propres idées".
  • 9
    "En voici deux opinions de lecteurs de l'Observer. La seconde lettre s'achève sur une phrase qui pourrait être de Robert Kemp".
  • 10
    "Si seulement M. Ionesco pouvait mettre um peu de cette clarté et de cette sagesse dans ses pièces, il pourrait devenir un grand dramaturge".
  • 11
    "Le débat est inépuisable. Pour lui donner une conclusion (provisoire), nous donnerons le texte d'une réponse de Ionesco à Kenneth Tynan. Ce texte est inédit. L'Observer en a acheté les droits pour l'Angleterre mais ne l'a pas publié".
  • 12
    "Ce 'dossier anglais' non seulement fournira de précieux éléments d'information à nos lecteurs (que savons-nous exactement de l'influence du théâtre français contemporain à l'étranger ?), il leur donnera, nous en sommes sûrs, de la vitalité de la discussion sur le théâtre dans un pays étranger, où l'on ne se contente pas, semble-t-il, de décréter que le 'théâtre c'est le théâtre', une idée qui nous rendra plus modestes - et plus exigeants".
  • 13
    "Vous avez voulu tout naturellement tirer la pièce à vous alors que vous deviez vous y abandonner ; le metteur en scène doit se laisser faire. Il ne doit pas vouloir quelque chose de la pièce, il doit s'annuler, il doit être un parfait réceptacle".
  • 14
    "On peut être metteur en scène et auteur alors, deux égo habiteraient le même personnage. C'est rare, mais cela se peut. En toute modestie, moi je pourrais (ou nous nous pourrions). Il y a crise de Il peut y avoir crise du théâtre parce qu'il y a des metteurs en scène orgueilleux qui écrivent, eux, la pièce". Fundo Ionesco. Departamento Arts du spectacle da Biblioteca Nacional da França (BnF). Os demais excertos em que não constam as referências bibliográficas constituem trechos extraídos do Fundo Ionesco.
  • 15
    "Mon cher Jean-Louis,/ Pourquoi ne pas prendre le texte à la lettre ? Bérenger s'envole, il redescend, il dit ce qu'il a vu: la fin du monde imminente, un cataclysme cosmique va se produire".
  • 16
    "Puis tous les Anglais reprennent em choeur les mêmes trilles. Seule, la voix de John Bull est un peu plus basse, celle de la petite fille, un peu plus aigüe. Cette scène musicale doit être très courte. La mise en scène ne doit pas insister, ni compliquer la scène. Les Anglais auront tout juste le temps, en chantant, d'esquisser deux sourires".
  • 17
    "C'est ainsi que j'ai voulu la pièce, c'est cela que j'ai voulu faire. Mes ambitions sont peut-être trop grandes, mes exigences insurmontables. Mais c'est bien ce que j'ai voulu faire. Peut-être ai-je réussi un tout petit peu dans la sincérité de l'angoisse./ Ce peut-être aussi qu'un conte fantastique, un peu léger, puis atroce. Ça ne peut être que cela. En tout cas, c'est ainsi qu'il doit apparaître, je crois, au spectateur".
  • 18
    "Le Piéton, qui devait être monté en octobre, a été remis em novembre, fin novembre, au 5 décembre, et que maintenant, vous ajournez tout pour le 10".
  • 19
    "Mon cher Jean-Louis,/ Madeleine Renaud pense que la scène avec le journaliste, du début, est un peu longue. Après tout, pourquoi ne pas la couper ? Madeleine Renaud trouve que la scène de l'envol, ou plutôt ce que dit Bérenger pendant qu'il s'envole, doit être allegé. Peut-être devrait-on l'alléger entièrement. Supprimons même toute la scène. Car pourquoi Bérenger s'envolerait-il? Supprimons la potence. Mais si on supprime la potence, - " la présence de la mort, - cette potence qu'on lui propose, qu'on lui montre, qu'elle regarde,- la scène n'aurait pas de sens. Alors coupons aussi cette scène. Entièrement./ Coupons aussi les 2 juges, et même les 3 juges... gardons simplement".
  • 20
    "Madeleine, avec disant son monologue... on pourrait l'allonger un peu, lui... et cela suffirait un peu pour la soirée! A moins tout de même que l'on coupe toute la pièce. A quoi bon faire une pièce? Coupons la pièce et moi je me coupe les testicules... puisqu'on peut tout couper. Avant de la couper toutefois, - je retirerai ma pièce si on la réduit encore... si chaque coup de fil met tout le monde en panique. J'aime bien Madeleine mais j'espère ne plus travailler avec elle. Elle me coupe le soufle.../ Je vous embrasse Eugène Ionesco".
  • 21
    "[...] je vous jure que le texte est bon, je vous jure que vous ne vous êtes pas trompé, je vous jure qu'il faut jouer sur ce texte, ne pas tâcher de le camoufler".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2014
  • Aceito
    30 Abr 2015
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