Acessibilidade / Reportar erro

História do Teatro e Performance: a insurreição do arquivo como método

Histoire du Théâtre et Performance: l'Insurrection de l'Archive comme Méthode

Resumo:

A partir do conceito de arquivo (Derrida, 1995), que subjaz à investigação da História do Teatro, propõe-se o uso da performance como método de pesquisa. Encarregada dessa função, aqui exemplificada em três iniciativas performativas, ela possibilita, ao mesmo tempo, um novo olhar, acentuadamente multidisciplinar, sobre as fontes históricas e uma outra vivência do legado cultural. Esta última vertente filia-se ao movimento internacional performing the archive (Osthoff, 2009; Jackson; Kidd, 2011; Borggreen; Gade, 2013), que prescreve tanto a dimensão pública e social quanto a dinâmica de renovação para o patrimônio artístico e cultural.

Palavras-chave:
Manuscritos; Memória; Performance; Arquivo; Historicismo Digital

Résumé:

Basée sur la notion d'archive (Derrida, 1995), qui sous-tend la recherche de l'Histoire du Théâtre, cet article propose l'utilisation de la performance en tant que méthode de recherche. Investie de cette fonction, illustrée ici par trois initiatives performatives, elle permet à la fois, un nouveau regard, nettement pluridisciplinaire, sur les sources historiques et un autre vécu du patrimoine culturel. Ce dernier se rapporte au mouvement international performing the archive (Osthoff, 2009; Jackson; Kidd, 2011; Borggreen; Gade, 2013), qui prévoit simultanément la dimension publique et sociale et la dynamique de renouvellement pour le patrimoine artistique et culturel.

Mots-clés:
Manuscrits; Mémoire; Performance; Archive; Historicisme numérique

Abstract:

By reviewing the notion of archive (Derrida, 1995) that underlies Theatre History research, performance is here presented as a new methodological insight. As such, it allows for a cross disciplinary look into the historical sources, and, at the same time, a renewed embodiment of cultural heritage. This latter aspect, here illustrated by the description of three performances, relates to the international initiative performing the archive (Osthoff, 2009; Jackson; Kidd, 2011; Borggreen; Gade, 2013), which aims at both the public and social dimension and the transformative dynamics of artistic and cultural heritage.

Keywords:
Manuscripts; Memory; Performance; Archive; Digital Historicism

A globalização, ou seja, o mundo em que vivemos, também pode ser perspectivada enquanto desafio para pensar o legado cultural, em particular o arquivo, que está sendo redimensionado a uma nova escala, além dos limites de fronteiras e nacionalidades. À luz desse contexto, o conceito de identidade surge revestido de novos sentidos, e, consequentemente, o mesmo legado cultural, com os diferentes tipos de patrimônio que nele se articulam e complementam, adquire outra pertinência e escopo, principalmente através de renovadas tentativas de apropriação e corporalização.

A partir do já estabelecido Novo Historicismo, e com base na hipótese de que o conceito de arquivo está em constante mudança, há que se pensar que o investigador das artes cênicas é influenciado pelas novas formas de arquivo, que hoje se conformam largamente à mediação tecnológica do digital. Já não é possível escrever sobre acontecimentos do passado, principalmente os do domínio das artes cênicas, sem considerar a crescente acessibilidade de informação histórica, bem patente em bases de dados, digitalização de fontes primárias, padrões de visualização de data etc. O atual dinamismo tecnológico inevitavelmente perpassa e media as nossas incursões ao passado. Em termos metodológicos, e no âmbito particular dos estudos da performance, permite-nos propor novas relações entre identidades, acontecimentos, circunstâncias, ajudando a perspectivar um passado também em mudança, rumo a um futuro que, a cada instante, se adivinha. Em outras palavras, o estudo das artes performativas consubstancia-se, atualmente, num passado muito mais perto do futuro, uma espécie de Digital Historicism, como formulado em Fickers:

Se é necessário seguir nessa direção, os futuros historiadores não podem subtrair-se à produtiva confrontação com as novas realidades técnicas, econômicas e sociais da cultura digital. Ao invés de evasão pelo digital e do convencionalismo metodológico, a disciplina da história realmente necessita de um novo historicismo digital. Este deve pautar-se pela colaboração entre arquivistas, cientistas da computação, historiadores e grande público, com o objetivo de desenvolver ferramentas para um novo criticismo digital1 1 No original em inglês: "If we are to move in that direction, future historians cannot escape the productive confrontation with the new technical, economic and social realities of the digital culture. Instead of digital escapism and methodological conventionalism the discipline of history is rather in need of a new digital historicism. This digital historicism should be characterized by collaboration between archivists, computer scientists, historians and the public, with the aim of developing tools for a new digital source criticism" (Fickers, 2012, p. 26). Assinale-se que as traduções são da responsabilidade do autor, exceto quando indicado em contrário. (Fickers, 2012FICKERS, Andreas. Towards a New Digital Historicism?: doing history in the age of abundance. Journal of European Television History and Culture, Oxford, v. 1, n. 1, p. 19-26, 2012., p. 26).

A noção de arquivo estende-se, assim, ao campo do virtual. Por um lado, ela adquire uma dimensão doméstica e cotidiana, impensável anos atrás, e, por outro, um caráter transdisciplinar, que resgata um novo olhar crítico, mais exaustivo e abrangente, sobre as fontes de estudo.

Em Mal d'Archive (Derrida, 1995DERRIDA, Jacques. Mal d'Archive, une Impression Freudienne. Paris: Éditions Galilée, 1995.), estão em jogo duas concepções de identidade: aquela que provém de um aparato psíquico e somático, a memória, e outra ligada a um artificial aparato documental, o arquivo. A interrogação dos fundamentos do arquivo leva Derrida a propor uma condição que é a febre do arquivo, que também advém do contato do autor com um arquivo em particular, o de Freud.

É a partir do pensamento de Freud sobre o subconsciente e sua respectiva evidência, dispersa por vestígios materiais, que Derrida vai defender que não há registros originais, fontes primárias, mas somente vestígios dando origem a vestígios. Trata-se de conseguir repensar o arquivo nas suas múltiplas vertentes, enquanto espaço público, fonte reguladora de autoridade, conceito estratégico e princípio de mediação tecnológica. Um arquivo pressupõe uma mise en ordre, ou seja, uma ordem encenada (Derrida, 1995DERRIDA, Jacques. Mal d'Archive, une Impression Freudienne. Paris: Éditions Galilée, 1995., p. 16). As condições para arquivar alimentam-se de tensões, contradições e aporias, principalmente a que implica a conjugação de uma promessa de tempo futuro com o registro e preservação do passado.

É essa tensão em particular que aqui nos interessa explorar, pela performance, enquanto metodologia de investigação, propondo uma experiência presente dos vestígios do passado, os quais constituem, parcialmente, o arquivo. A performance, neste contexto, desenvolve ainda outra tensão: a da efemeridade da experiência artística em oposição à desejada perenidade do arquivo. Além disso, a performance do arquivo, performing the archive, faz convergir o aparelho psíquico da memória individual com o desejo de uma memória coletiva e institucional, e entre estas funda-se e desenrola-se uma zona de mútua influência transformadora. A ambivalência entre memória individual e a noção coletiva que perpassa o conceito de patrimônio é inerente à própria existência do arquivo. A performance pode, então, constituir-se como metodologia para interpretar e, depois, divulgar informação histórica na área das artes cênicas.

Derrida questiona igualmente a unidade e a homogeneidade em torno da conceitualização do arquivo (1995, p. 55). O autor desenvolve essa questão fundamental ao esclarecer que um conceito de arquivo implica uma noção fechada de patrimônio, de legado, e uma suposta garantia de autenticidade. Contudo, de acordo com sua perspectiva, mais do que se assumir como bagagem ou legado - isto é, um conjunto de vestígios, referenciando o passado -, o arquivo deve convocar a problemática do porvir e, mais especificamente, o momento possível de sua reinvenção. Assim, o que a performance também pode almejar no campo do arquivo é: "[...] pensar o porvir a partir de um acontecimento arquivado2 2 No original em francês: "[...] pense-t-on l'avenir à partir d'un événement archivé" (Derrida, 1995, p. 127). " (Derrida, 1995DERRIDA, Jacques. Mal d'Archive, une Impression Freudienne. Paris: Éditions Galilée, 1995., p. 127). A performance expande e transforma a repetição que o arquivo encerra, e que é condição de futuro, mas, como é irrepetível em si, acaba por alimentar inevitavelmente a vida tensional do arquivo rumo ao porvir.

O mal do arquivo que Derrida conceitualiza é o de que lhe atribui a violência da institucionalização, acompanhada da unidade e homogeneidade que a orientam. Mais do que uma realidade nacional e una, hoje o arquivo, principalmente os patrimônios literário e artístico, deve visar diferentes realidades comunitárias, em constante interação linguística, técnica, material, literária etc. É essa nova dinâmica social que justifica tanto a prática de viver o arquivo quanto sua conceitualização enquanto terreno fértil de experimentação e pesquisa.

Este artigo está estruturado em quatro partes: na primeira, Perspectivas sobre Arquivo e Performance, faz-se uma revisão das principais contribuições no âmbito da mútua influência conceitual e metodológica entre arquivo e estudos da performance. Na segunda, apresento uma contextualização histórica, focando a tradição do escriba e as características gerais da coleção teatral que investigo, com o objetivo de especificar a informação histórica pesquisada e, simultaneamente, enquadrar, da melhor maneira, as iniciativas desenvolvidas no domínio do movimento performance do arquivo. Na terceira, descrevo e documento, com alguma exaustão, três performances que promovi - sendo que, em duas delas, também fui performer - para repensar e divulgar publicamente a minha investigação em torno de um arquivo de teatro. Na quarta e última, faço uma síntese das principais ideias teóricas e práticas apresentadas e desenvolvidas ao longo do artigo, das quais ressalta a transição da pesquisa documental em torno do teatro do século XVIII para o domínio atuante e corporalizado da prática performativa.

Perspectivas sobre Arquivo e Performance

Na última década, o trabalho sobre a relação entre arquivo e performance tem sido intenso, sistemático e desenvolvido em vários níveis por artistas, investigadores e arquivistas - que, num esforço conjunto, procuram cruzar as narrativas emanadas do arquivo com a dimensão comunitária da performance. A título de exemplo, em 2002, a revista Performance Research promoveu uma edição especial On Archives and Archiving. Esse número reúne diversas contribuições que abarcam desde a questão da imponderabilidade na escrita da história do teatro até o uso de conceitos de arquivo nas performances de determinados artistas.

Kobialka (2002KOBIALKA, Michal. Historical Archives, Events and Facts: history writing as fragmentary performance. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 3-11, 2002.) argumenta que o historiador de teatro deve considerar que um documento não pode ser arquivado em sua totalidade, ou seja, há vestígios de sua realização discursiva, de sua concretização em acontecimento de que o arquivo não consegue dar conta. Essa realidade silenciada no/pelo arquivo pode ser campo fértil para a exploração performativa. O documento é um vestígio da língua do passado, mas o é em muito menor grau de seus acontecimentos, como, por exemplo, espetáculos. Esse é apenas um dos domínios em que a prática performativa pode situar-se e que envolve não tanto a tentativa de reconstrução da ação passada, mas a inscrição do documento, entendido num sentido lato que não se restringe ao vestígio escrito, como ação presente. Kobialka também desenvolve a hipótese de que um objeto histórico pode ser repensado em termos de acontecimento passado, passível de ser recriado através de uma determinada narrativa, em função do modo de representação escolhido. Essa nova maneira de abordar o objeto de estudo da história implica novos desafios na relação entre o historiador e os objetos do arquivo.

Por ação da performance, um objeto pode ser alvo de múltiplas perspectivas e enquadrado em tantas outras narrativas. Além disso, dessa maneira, estamos dando a ver seus modos de representação, não a ler, mas a ver. Estamos, pois, consubstanciando sua representação.

Freshwater (2002FRESHWATER, Helen. Anti-Theatrical Prejudice and the Persistence of Performance: the Lord Chamberlain's plays and correspondence archive. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 50-58, 2002.) centra-se no arquivo de teatro de Lord Chamberlain, que vigora até 1968 e cuja natureza é censória. Essa personalidade/autoridade e o restante pessoal ligado a ela estavam encarregados de decidir que peças podiam ser representadas nos palcos ingleses. A ideia-chave da autora consiste em apresentar esse arquivo como caso exemplar da crença na perdurabilidade dos efeitos da performance, para além de seu término material. Para Lord Chamberlain, não havia dúvida de que, mesmo depois de finalizada, a performance afetava o público e todos aqueles que o contatassem. É claro que, considerando que se trata de um arquivo de censura, os efeitos eram, na falta de melhor prova contra, nefandos, de possível contágio generalizado e bastante difíceis de erradicar:

Lord Chamberlain e seu pessoal estavam absolutamente convencidos de que o teatro emanava uma influência performativa. Suas intervenções baseavam-se na crença do poder da corporalização; numa preocupação acerca da transmissão corpo a corpo de imagens e identidades corruptoras; na ansiedade de que a performance efetivamente 'perdurasse' e no medo do alastramento contagioso, corruptor e quase viral de atos repetidos3 3 No original em inglês: "The Lord Chamberlain and his staff were firmly convinced that theatre possessed performative influence. Their interventions were motivated by a belief in the influence of physical enactment; created by a concern over the body-to-body transmission of corrupting imagery and identities; produced because of anxiety that performance did indeed 'remain'; and pursued to such lengths because of fear of a contagious, corrupting - almost viral - spread of repeated acts" (Freshwater, 2002, p. 51). (Freshwater, 2002FRESHWATER, Helen. Anti-Theatrical Prejudice and the Persistence of Performance: the Lord Chamberlain's plays and correspondence archive. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 50-58, 2002., p. 51).

É importante ter em mente que o que a autora defende relativamente ao arquivo de teatro de Lord Chamberlain em pleno século XX aplica-se igualmente às circunstâncias que envolvem a coleção manuscrita de teatro da Biblioteca Nacional: uma sociedade em que a produção artística, mormente a teatral, era vista como potencialmente perigosa para os costumes e identidade da nação; também em Portugal do século XVIII, o teatro era visto pela censura como algo que comporta essa carga emocional extra de visualização dos vícios e de transmissão de sentidos corpo a corpo. De fato, Freshwater chega mesmo a propor: "Ao invés de um conceito marginal ou secundário, gostaria de sugerir que a convicção de que a performance circula e permanece muito após seu momento de realização é axial para qualquer projeto de censura centrado nas artes performativas4 4 No original em inglês: "Far from being a marginal, or a neglected concept, I would suggest that the conviction that performance circulates long after its initial realization is foundational to all projects of censorship which concentrate upon the performing arts" (Freshwater, 2002, p. 53). " (2002, p. 53).

O artigo de Freshwater deve ser lido em resposta ao trabalho pioneiro de Schneider (2001 SCHNEIDER, Rebecca. Performance Remains. Performance Research, Oxford, v. 6, n. 2, p. 100-108, 2001.), segundo o qual a supremacia de uma lógica do arquivo desacredita parte do poder e realidade da performance enquanto expressão artística ao assumir, como pressuposto fundador, que esta não perdura para além do momento de sua realização, ou seja, ao dar por mais do que garantida a sua natureza efêmera. A mesma lógica priva a performance de qualquer valor documental, sendo que, por oposição, este radica, por inteiro, no arquivo. Schneider defende, ao contrário, que a performance comporta em si a força ritual, que adestra a transmissão de conhecimento através dos tempos e ao longo de gerações, dando, como exemplo, a importância das narrativas orais, da dança e do gesto em determinadas comunidades. A autora sugere, então, que a performance seja revista enquanto espécie diferente de arquivo, que, através da mimese, consegue ser alvo de análises psicanalíticas, ideológicas e discursivas.

Essa última proposta me parece, todavia, problemática, porque, antes de mais nada, parece-me que Schneider está confundindo e nivelando o tipo de análise que pode incidir sobre a performance com a performance em si. Também não é menos verdade que, ainda que a origem da performance seja ritualística, numa parte do mundo ela deixou de tomar para si essa função social e religiosa.

Do meu ponto de vista, o que torna a interação entre arquivo e performance tão fértil e desafiadora é, ao mesmo tempo, o conflito e a complementaridade que os anima. O conflito resulta, em primeira instância, da antítese entre corporalização e arquivo; o arquivo é o contido, aquilo que se pode referenciar, exorta determinadas funções linguísticas e perpetua a reconstrução da lacuna que se interpõe entre as suas partes. A performance é transmissão de memória por intermédio de uma composição visual, que instiga - mais do que a ser reconstruída - a ser imaginada e interpretada; é a transmissão de memória que, simultaneamente, percorre os espaços individual e coletivo. O arquivo impõe-nos, a priori, que a esfera pública é de todos e para todos; a performance é para todos e cada um de nós.

O corpo é uma categoria além do arquivo, é uma força natural e artificial que comporta uma memória individual, muitas vezes indizível; o corpo no qual assenta a performance é uma categoria ontológica; o arquivo é um vestígio complexo do corpo. É ainda nessa complementaridade que a relação densa entre performance e arquivo pode ser equacionada: o confronto do corpo vivo e animado contra os restos falhos do arquivo, embora ele mesmo seja evidência da perseverança do corpo. O corpo antecede o arquivo; logo, a performance é anterior ao arquivo, uma condição necessária para a sua existência e dúbia conformidade. Em certo sentido, pode-se pensar numa incessante tensão entre performance e arquivo: a performance é a produção, a invenção, o espaço em que a memória se confronta e reinventa; o arquivo é o utensílio, o vestígio, uma parte que instiga sua própria presentificação.

Elaine Aston, recuperando igualmente a temática da efemeridade da performance, sugere: "A performance pode 'alojar' uma cultura resistente e diferente da ordem cultural dominante, a qual preferia dá-la como ausente ao invés de presente5 5 No original em inglês: "It is possible for performance to 'house' a culture resistant to and different from the dominant cultural order that would prefer to mark it absent rather than present" (Aston, 2002, p. 78). " (2002ASTON, Elaine. Feminist Performance as Archive: Bobby Baker's 'Daily Life' and Box Story. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 78-85, 2002., p. 78). A própria natureza efêmera da performance tece sua resistência à crescente normalização cultural; a performance resiste a tornar-se mais um objeto de consumo, forjando a sua não durabilidade; a performance não dura o tempo suficiente, no seu esplendor material, para reduzir-se a mais um bem de consumo. Assim, atualmente, a efemeridade da performance pode ser vista como álibi de sua resistência: "[...] é na incapacidade para a reprodução e repetição que reside a força da performance, dado que é por essa via que resiste à ordem econômica da reprodução e se mantém indetectável para as ideologias do capital6 6 No original em inglês: "[...] the inability to be reproduced and repeated is the strength of performance because it resists the economics of reproduction and remains traceless within the ideologies of capital" (Borggreen; Gade, 2013, p. 13). " (Borggreen; Gade, 2013BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune. Introduction: the archive in performance studies. In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhague: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 9-34. , p. 13).

Jackson e Kidd (2011) trazem-nos um volume que resulta de uma conferência internacional vinculada a um projeto Performance, Learning and Heritage (2005-2008), desenvolvido pela Universidade de Manchester, descrevendo e problematizando várias experiências que combinaram a prática performativa com o legado museológico; um conjunto de iniciativas que decorreu em museus com a participação de atores, que propuseram uma outra abordagem dos objetos expostos através da performance. Contudo, essa dinamização do espaço museológico pressupunha claros e delineados objetivos educativos. Através da performance, pretendia-se apresentar, com eficácia, informação sobre o legado do museu, de modo que os visitantes dali saíssem com um conhecimento mais aprofundado e integrado sobre ele.

No mesmo volume, Johnson chama a atenção para o fato de o termo performing heritage, ou seja, performance do patrimônio, ser suficientemente abrangente para abarcar muitos tipos de patrimônio e muitas modalidades de performance, que não se limitam à vertente pedagógica e educativa:

O termo 'performing heritage' pode incluir diferentes tipos de patrimônio e um grande número de performances. Pode ocorrer em locais históricos, em edifícios qualificados, como galerias ou museus, em arquivos ou bibliotecas, ou pode assumir uma vertente mais dissimulada e escondida entre comunidades, reais ou virtuais. O componente patrimonial pode ser social, cultural, político, artístico, arquitetônico, industrial, científico, botânico, ou alguma combinação desses. Sua interpretação via performance pode ser radical ou reacionária, aberta ou fechada, educativa ou artística, participativa ou pedagógica. As performances podem ser na primeira ou terceira pessoa, com roteiro ou improvisadas, num palco ou adaptadas ao espaço ao redor, espacialmente delimitadas ou espalhadas, abertas ou fechadas, em solo ou em grupo, momentos únicos ou repetidos, denunciadas ou discretas, escritas ou não escritas, centrais ou periféricas em termos de estratégias interpretativas7 7 No original em inglês: "The term 'performing heritage' can include an array of different types of heritage and a multiplicity of performances. It can take place in historic sites, appropriated or purpose built buildings such as galleries or museums, in archives or libraries, or it can be more elusive and hidden amongst communities, either real or virtual. The heritage component can be social, cultural, political, artistic, architectural, industrial, scientific, botanic or some combination of these. The interpretation of it through performance can be radical or reactionary, open or closed, educational or artistic, participatory or pedagogic. The performances can be first or third person, scripted or improvised, on a stage or site-specific, fixed or promenade, open or closed, solo or ensemble, unique or recurring, flamboyant or subdued, devised or written, central to the interpretative strategies or peripheral to them" (Johnson, 2011, p. 53). (Johnson, 2011JOHNSON, Paul. The Space of Museum Theatre: a framework for performing heritage. In: JACKSON, Anthony; KIDD, Jenny (Org.). Performing Heritage: research, practice and innovation in museum theatre and live interpretation. Manchester/New York: Manchester University Press, 2011. P. 53-66., p. 53).

O mesmo autor também preconiza que, se os espaços consagrados especificamente à conservação e apresentação do patrimônio conseguem modificar os objetos por sua integração nesses mesmos espaços, o mesmo se aplica ao uso desses objetos numa performance, pois a performance busca recontextualizá-los, alterando sua semântica. Essa ideia está subjacente a qualquer interação que proponhamos entre arquivo e performance, dado que a recontextualização de acontecimentos passados à luz do presente pode certamente admitir um esboço de futuro, numa dinâmica que confunde um entendimento linear do tempo e da história.Smith (2011SMITH, Laurajane. The 'Doing' of Heritage: heritage as performance. In: JACKSON, Anthony; KIDD, Jenny (Org.). Performing Heritage: research, practice and innovation in museum theatre and live interpretation. Manchester/New York: Manchester University Press, 2011. P. 69-81.) apresenta e discute uma noção radical de patrimônio, segundo a qual o que comumente responde por essa designação só adquire realidade na medida em que é entendido enquanto performance cultural, no sentido de que são os usos próprios e distintos que nós conferimos a certos objetos que os fazem prevalecer enquanto patrimônio. Logo, o patrimônio não existe per se, mas apenas enquanto instância de um determinado tipo de processo e ação cultural.

Em Borggreen e Gade (2013BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune. Introduction: the archive in performance studies. In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhague: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 9-34. ), a crescente proximidade entre performance, arquivo e investigação é reconhecida e problematizada. Essa tendência resulta do fato de as categorias que os compõem não serem isoladas e absolutas, mas sim interdisciplinares e sob múltiplas influências: "Literalmente, performing the archive é aqui associado não só a uma vontade de ultrapassar limites, mas também a um entendimento, ainda mais fundamental, do arquivo enquanto mídia e organismo ao invés de repositório estável8 8 No original em inglês: "Literally performing the archive here attests not only to a will to push the boundaries, but to a more fundamental understanding of the archive as a medium and an organism rather than a stable repository" (Borggreen; Gade, 2013, p. 22). " (Borggreen; Gade, 2013BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune. Introduction: the archive in performance studies. In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhague: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 9-34. , p. 22). O arquivo perspectivado enquanto meio impulsionador da ação artística e cultural suscita uma reavaliação do próprio arquivo e dos objetos e singularidades que o constituem.

Segundo Roms (2013ROMS, Heike. Archiving Legacies: who cares for performance remains? In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhague: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 35-52.), é fácil reconhecer que os objetos que compõem o arquivo surgem dotados de um significado intelectual e afetivo, que emana diretamente do saber que, enquanto promessa, esses documentos oferecem. Essa concepção me permite defender que o uso de objetos do arquivo numa performance é um ato com dimensão política, pois anula a fronteira entre o institucional e o pessoal, dissecando as possibilidades de interação do legado institucional com o universo pessoal da recriação artística. Assim, o que supostamente é de todos e delimita uma suposta identidade nacional pode ser apropriado pelo indivíduo e redimensionado à imagem de sua idiossincrasia, ou seja, o objeto do arquivo não está em uso para reescrever uma história mais ou menos exemplar da identidade portuguesa, mas sim para participar numa ação com base num eu que expande a relação entre esfera pública e arquivo. Essa troca entre níveis de identidade retira unidade e homogeneidade do arquivo e, ao invés disso, atribui-lhe um registro pessoal, próximo, tangível.

O projeto Undercover (2010-2013), de autoria do grupo dinamarquês Hotel Pro Forma, assumiu-se como instalação que ocupava o térreo da Royal Library, em Copenhague, em estreita ligação com o arquivo nacional dinamarquês (Kuhlmann, 2013KUHLMANN, Annelis. Undercover by Hotel Pro Forma, Performing the National Archive: staging cultural heritage at the Royal Library in Copenhagen. In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhague: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 292-309.). Essa instalação atuou como mediador entre o visitante e o arquivo, por exemplo, ao tornar visíveis espaços habitualmente ocultos do arquivo, conferindo-lhes, por extensão, o valor de patrimônio. Além disso, o visitante era convocado a agir e interagir, em determinados momentos, com elementos expostos. Dessa maneira, o visitante se converte em performer, sendo que a própria sobrevivência e funcionalidade do arquivo e da própria instalação recaem sobre essa dimensão atuante.

Em síntese, gostaria de recuperar uma questão axial, colocada em Clarke:

Por que não corporalizar a história de arte juntamente com sua rescrita? Que tal uma abordagem corporalizada da historiografia, envolvendo formas experimentais de compreensão e recordação da performance? Como se pode compreender, intervir e absorver-se na história de arte realizando-a fisicamente, em paralelo com a pesquisa documental propriamente dita?9 9 No original em inglês: "Why not re-perform art history, as well as rewriting it through art history? What about an embodied approach to historiography, experiential ways of understanding and remembering performance? How can we understand, intervene and get mixed up in art history by doing it physically, as well as researching and writing about it?" (Clarke, 2013, p. 370). (Clarke, 2013CLARKE, Paul. Performing the Archive: the future of the past. In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhaguee: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 363-385., p. 370).

O autor reconhece a existência de novos horizontes para o conhecimento histórico, que pode não se restringir à investigação formal e documental e consequente urdimento de uma narrativa escrita. Ao fazer isso, chama a atenção para formas de interação artística, que, simultaneamente, expandem a funcionalidade e a semântica do arquivo e nos possibilitam outro tipo de perspectiva sobre os objetos históricos.

O Vínculo Histórico de Três Performances

Em seguida, reconsidero a informação histórica que, em essência, serviu de moldura para as três iniciativas que descreverei na seção seguinte, no âmbito da performance do arquivo. Trata-se de especificar os acontecimentos passados, parte do arquivo, nos quais as performances realizadas queriam interferir, convocando-os para a problematização do presente e do futuro. Assim, esta seção ilustra, em síntese, a pesquisa em torno de manuscritos de teatro, apresentando o tipo de informação histórica em questão quando de sua contextualização numa dada época, principalmente as circunstâncias e os agentes de produção e disseminação da indústria teatral do século XVIII, com destaque para o escriba, autores/tradutores, gêneros teatrais, atores, espetáculos, espaços etc.

A Tradição do Escriba: técnica e métodos

Love (1998LOVE, Harold. The Culture and Commerce of Texts: scribal publication in seventeenth-century England. Amherst: University of Massachusetts Press, 1998.) descreve, com minúcia, a tradição do escriba ou copista, centrando-se, todavia, no século XVII, e confinando-se geograficamente à Inglaterra. No entanto, o perfil, as técnicas e métodos descritos podem aplicar-se a uma visão mais geral sobre esse grupo profissional.

Juntamente com a crescente circulação de impressos durante os séculos XVII e XVIII, a circulação de manuscritos foi sempre cultivada enquanto possível alternativa de publicação, ou seja, a existência de uma classe profissional especializada que se encarregava de fazer cópias assegurava que também era possível publicar por via manuscrita, ideia igualmente defendida em Lisboa (2005LISBOA, João Luís. Tanta Virtude... em Papéis Correndo: persistência e poder do manuscrito no Antigo Regime. In: ABREU, Márcia; SCHAPOCHNIK, Nelson (Org.). Cultura Letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas: Mercado das Letras, 2005. P. 246-258.). Nesse contexto, os manuscritos obedeciam a normas e preceitos estabelecidos de apresentação e disposição do texto pela página, e nada era deixado ao acaso. A dimensão da página e sua respectiva regularidade eram meticulosamente pensadas em função da cópia encomendada.

Os textos copiados eram, inicialmente, aqueles cuja demanda era alta e que, simultaneamente, não pressupunham forte concorrência da imprensa. É claro que o contínuo contexto de censura que vigorou em Portugal desde a chegada da Inquisição, em 1536, até a primeira parte do século XIX - mais concretamente, até à Constituição de 1822 -, introduz modificações nesses pressupostos. Para nos situarmos melhor, se pensarmos que, a partir de 1768, com a instituição da Real Mesa Censória, todas as peças, assim como toda a literatura, para serem representadas ou impressas, tinham de ser apresentadas em versão manuscrita à censura para obter a indispensável licença, então é fácil abarcar o vasto campo de ação e progressão que existiria para a profissão de copista a essa altura. A atividade de António José de Oliveira, copista de cerca de duzentos textos de teatro, ao longo dos dezessete anos que decorrem entre 1780 e 1797, deve certamente ser vista à luz desse sistema (Pinto, 2013PINTO, Isabel. (Un)certain Editing. Cibertextualidades, Porto, n. 5, p. 203-214, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/3874/1/cibertextualidades_05_pinto.pdf >. Acesso em: 29 mar. 2015.
http://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/3...
).

A circulação de manuscritos era justificada e perpetuada por muitas práticas de leitura. Era habitual - e agora me refiro, em particular, ao século XVIII - que, antes de imprimirem suas obras, os autores as disponibilizassem a pessoas de seu círculo intelectual ou de sua confiança para obterem uma opinião crítica, uma simulação de recepção pública. A título de exemplo, Manuel de Figueiredo, prolífico dramaturgo, em 1775, confiou sua tradução da tragédia de Corneille, Le Cid, a Isidoro Soares de Ataíde, solicitando-lhe o favor de adotar postura crítica e juízo literário em relação a ela.

Já Alexandre António de Lima, dramaturgo e poeta, enviou a Pedro José da Silva Botelho, criado de D. José I, uma carta e um livreto para dar-lhe novidades do reino, especificamente sobre a ópera dos bonecos, no Bairro Alto, uma vez que o destinatário se encontrava ausente da corte em janeiro de 1755. A carta do autor para o mesmo Pedro José foi reproduzida numa coletânea manuscrita das obras de Alexandre António de Lima pelo copista António Correia Viana, com data de 178010 10 Biblioteca da Ajuda, pasta 50, I-13, nº 12, ff.171-194. .

Juntamente com esses exemplos, é de conhecimento geral sobre essa época que, um número significativo de obras, para ser impresso, tinha de receber a aprovação - inclusive monetária - de um patrono, alguém a quem socialmente fossem reconhecidos a relevância e o poder para justificar uma dedicatória. Ora, na busca de um patrono, o autor via-se na necessidade de enviar uma cópia de sua obra para apreciação do até então candidato a patrono. Esperando agradar, o autor subscrevia-se atenciosamente e colocava-se sob os auspícios da magnanimidade.

A própria proliferação de academias literárias, como a Academia dos Aplicados (1722), a Academia dos Ocultos (1745) - às quais Alexandre António de Lima, supostamente pertenceu (Barbosa Machado, 1741MACHADO, Diogo Barbosa. Biblioteca Lusitana, Histórica, Crítica e Cronológica. v. I. Lisboa: Oficina de António Isidoro da Fonseca, 1741. P. 93.) - e a Arcádia Lusitana (1757-1774) etc., teria dependido, em grande escala, da troca de cópias manuscritas entre autores, como condição sine qua non, para perseguir a desejada discussão literária e estética. Necessariamente, esse forte clima de circulação de ideias também correspondia a uma intensa troca de manuscritos de natureza diversa, os quais eram alvo de tantas outras leituras. É importante, ainda, mencionar que regularmente os teatros também encomendavam cópias das peças na íntegra ou apenas de partes destas, que continham, em separado, o conjunto de falas relativo a cada personagem integrante do espetáculo. Daqui se infere que a indústria teatral do século XVIII também se apoiava nessa prática de circulação de manuscritos.

Quanto à mão profissional que o copista deveria idealmente ostentar, Love (1998LOVE, Harold. The Culture and Commerce of Texts: scribal publication in seventeenth-century England. Amherst: University of Massachusetts Press, 1998.) especifica que nessa não participa propriamente o virtuosismo - que hoje, por exemplo, associamos a uma caligrafia exemplar -, mas antes uma letra ao mesmo tempo, legível e regular. Além disso, o copista deveria, por obrigação, considerar os fins a que a cópia se destinava e a tipologia de texto em questão; ou seja, em termos de distribuição do texto pela página, copiar um discurso sobre um tema específico não era o mesmo que copiar um texto de teatro, com a sua divisão em atos e cenas e as correspondentes indicações cênicas de diferentes tipos. Como máxima geral, independentemente do grau de competência e virtuosismo do copista, ele deveria ser mero facilitador, o mais imperceptível e discreto possível, entre leitor e obra, cultivando um registro intencionalmente impessoal.

As cópias de António José de Oliveira filiam-se a essa tradição (Imagem 1). Elas revelam uma caligrafia legível e regular, com a folha de rosto mostrando uma regularidade marcante, uma distribuição uniforme do texto pela página ao longo de todo o manuscrito e, no geral, com poucas ou nenhumas emendas - sendo que, por regra, o copista rubricava o manuscrito no final.

Imagem 1
Manuscrito do drama intitulado A Noiva Fingida. Cópia de António José de Oliveira, 1793, BNP COD. 1396//6.

Os conhecimentos técnicos a que o copista estava sujeito eram inúmeros e compreendiam desde a preparação da tinta até a confecção dos cadernos que comporiam o manuscrito:

A 'Escola da Escrita' ministrava ortografia, aritmética, elementos de contabilidade e, em alguns casos, escrita por abreviaturas; contudo, a ênfase recaía sobre o ensino da técnica da cópia, supervisionado por um reconhecido mestre de escrita. Em todos os níveis, muito para além do elementar, o curso compreendia o corte dos aparos, a mistura da tinta, a produção de cadernos, a regularidade das margens, a homogeneidade das linhas, o cálculo do espaço da cópia e a disposição correta de palavras de transição e números de página11 11 No original em inglês: "The 'Writing School' taught spelling, arithmetic, the elements of accounting and in some cases shorthand; however, the main emphasis was on training in the costumary business hands, and its head was normally an acknowledged writing master. At all levels beyond the elementary, instruction would also cover such matters as the cutting of pens, the mixing of ink, the folding of paper into quires, the ruling of margins, the ensuring of equal lineation, the casting-off of copy, and the correct placing of catchwords and page numbers" (Love, 1998, p. 93-94). (Love, 1998LOVE, Harold. The Culture and Commerce of Texts: scribal publication in seventeenth-century England. Amherst: University of Massachusetts Press, 1998., p. 93-94).

Essa excelência técnica era a base da perseverança de um copista em sua profissão, que inclusive implicava a escolha da luz certa sob a qual proceder à cópia. Era um mundo com regras e ditames próprios, mas que obedecia, como hoje, à implacável lei de oferta e procura. Sabe-se, ainda, que as cópias manuscritas não eram produtos baratos, com o preço médio da cópia por volta de dois mil réis (Contas...,1761-1766CONTAS do princípio do Teatro da Casa da Ópera do Bairro Alto. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 1761-1766. Manuscrito, COD. 7178, f. 140v.).

Dessa resenha histórica, infere-se que o manuscrito preserva códigos de representação do corpo: em primeira instância, o corpo do próprio copista, ajustado à necessidade da produção técnica da cópia; em segunda instância, o corpo social que reclamava a vasta disseminação de manuscritos para inscrever diferentes práticas culturais e econômicas. No caso particular dos manuscritos de teatro, há ainda que se considerar o corpo das personagens que articula a cena teatral.

A Coleção Teatral de António José de Oliveira (1780-1797)

Do vasto panorama teatral do século XVIII, emerge a figura de António José de Oliveira. Entre 1780 e 1797, foi copista de aproximadamente duzentos textos de teatro - considerando apenas os textos datados -, conservados em trinta e quatro volumes, com cerca de cinco a seis textos cada um, na Biblioteca Nacional de Portugal.

A maioria dos textos dessa coleção, que terá dado entrada na Biblioteca Nacional entre 1836 e 1910, considerando o selo posto nos códices, são traduções/adaptações, às quais se associam autores espanhóis, franceses e italianos, com exceção de um inglês e um suíço: Alvaro Cubillo de Aragón, Apostolo Zeno, Carlo Goldoni, Diderot, Edward Young, Filippo Livigni, Giovanni Guarini, Jean-Baptiste Rousseau, Jean Racine, Molière, Pedro Calderón de la Barca, Pietro Metastasio, Salomon Gessner, Voltaire, entre outros. Quanto a autores/tradutores portugueses, a resenha é mais breve e compreende nomes como Alexandre António de Lima, António Ferreira, António José de Paula - também ator e empresário teatral -, António José da Silva - o Judeu, figura proeminente da ópera de bonecos, cuja popularidade perdurou por todo o século XVIII -, Domingos dos Reis Quita, Francisco José Freire, Jerónima Luísa da Silveira e Teresa de Mello Breyner.

Os gêneros que a compõem são igualmente numerosos e formam um conjunto eclético. Abrangem desde o pastoral e o histórico, passando pela ópera, comédia, drama, burleta e tragédia até a farsa e tragicomédia. A esses gêneros associam-se, como espaços de espetáculo, o Teatro do Salitre, o Teatro do Bairro Alto, o Teatro da Rua dos Condes, o Teatro de S. Carlos - inaugurado em 1793 -, entre outros, os quais apresentavam programação regular, diversificada e complementar entre si.

Performance Manuscrita

Em seguida, como contribuição para a dinamização do arquivo, documento três performances, duas ao vivo e uma em vídeo, ocorridas em espaços bastante diferentes entre si. Nelas, queria expor o vínculo histórico que norteia minha investigação de pós-doutorado, ecoando a relevância, em termos cotidianos, dos manuscritos de teatro em minha vida e testemunhando como, para mim, os manuscritos já não circunscrevem apenas um saber específico, mas antes se instituem como modo de vida, em analogia ao que prevalecia no século XVIII. A problemática do tempo - do significado alargado que determinados objetos podem alcançar na vida individual, mas, por contraste, não na sociedade em geral - e a vontade de reconfigurar culturalmente os manuscritos do meu estudo instigaram-me a atuar para além da pesquisa documental. Nesse sentido, as performances promovidas, além de constituírem um meio privilegiado de divulgação de meu projeto de história do teatro, reconfiguram minha pesquisa documental em torno do teatro do século XVIII. Logo, esta seção assinala a transição da pesquisa individual em artes cênicas para o domínio público e atuante da performance.

Manuscritos ou A Exaltação do Corpo

Em 20 de dezembro de 2013, na Galeria da Boavista, em Lisboa, no âmbito da iniciativa Demimonde, juntamente com outra performer, Eunice da Silva, do grupo cultural Freya, apresentei uma performance que consistia na tentativa de questionar a funcionalidade de minha ligação a manuscritos de teatro do século XVIII para comunicar com o Outro. Eu e os vários manuscritos, presos e unidos por fio de pesca, constituíamos, por assim dizer, uma identidade, e, depois, para além de nós e da nossa relação diária, existia o Outro.

Eu queria dar a conhecer, revelar, fazer perceptível uma parte significativa do meu dia a dia: eu, que passava horas cotidianamente lendo manuscritos, procurando decifrar, com a maior minúcia possível, a letra do copista, tentando articular com eficácia a disposição dos comentários, cotejando os manuscritos juntamente com fontes impressas, sentada, debruçada, a uma distância conveniente, as pernas mais distendidas ou mais encolhidas, a cabeça ligeiramente inclinada ora para um lado, ora para o outro... Como converter essa experiência numa fonte de comunicação e entendimento com o Outro? Como fazer uso da vivência acumulada para falar de mim a alguém que não está perto, mas de quem me quero aproximar? Talvez ler os manuscritos, na melhor e mais clara voz possível, não fosse o suficiente; começar uma narrativa biográfica com eu, ontem, e depois eu, hoje, e mais adiante eu, amanhã talvez também não soasse como nada que merecesse ser conhecido... O que fiz foi propor/sugerir/sugestionar o contato direto do Outro com os manuscritos de meu trabalho e minúcia; criar contextos de interação, através do corpo, entre o Outro e os manuscritos. Eu assegurava a mediação, cobrindo parte dos manuscritos com o meu tronco, como se houvesse, simultaneamente, qualquer coisa a esconder e a revelar. Escondia-me entre os manuscritos e a parede (Imagem 2) e puxava o fio dos manuscritos e esperava o contrapeso que talvez viesse do lado oposto. Tinha a iniciativa de fazer uma construção com cadeiras e manuscritos e transformá-los, no fim, em último reduto, entre o domínio da ação com/pelos manuscritos, a narrativa de um encontro mediado por esses objetos históricos e a reclusão a que nos conduzem enquanto modo de vida. A outra performer seguia-me de perto, tentava interpretar o sentido de cada uma das minhas ações para reagir, mostrando estar em sincronia, atenta e imersa naquela relação com/pelos manuscritos. De um lado, o vislumbre da possibilidade de conformar os manuscritos a práticas comunicativas do século XXI e, do outro, uma esfera de silêncio e penumbra.

Imagem 2
Isabel Pinto em Demimonde, na Galeria da Boavista, em 20 de dezembro de 2013PINTO, Isabel. (Un)certain Editing. Cibertextualidades, Porto, n. 5, p. 203-214, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/3874/1/cibertextualidades_05_pinto.pdf >. Acesso em: 29 mar. 2015.
http://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/3...
. Foto: Grupo Freya.

O que Fazer quando Tudo É Manuscrito e Digital?

Manuscritos digitais? Como o corpo reage ao estímulo digital, especificamente a manuscritos de teatro do século XVIII, manipulados digitalmente, adquirindo formas e disposições variáveis? O arquivo é, dessa forma, reconfigurado tecnologicamente, integrando-se no registro em vídeo de uma performance, que foi concebida precisamente para esse contexto de mídia-arte (Osthoff, 2009OSTHOFF, Simone. Performing the Archive: the transformation of the archive in contemporary art from repository of documents to art medium. New York/Dresden: Atropos Press, 2009.), realizada no estúdio da Fundação para a Computação Científica Nacional, em 18 de abril de 2014.

Permitia-me, então, questionar a premissa de que a digitalização, o universo complexo de objetos digitais, propicia a descorporalização, a regressão do corpo a um estado de anulação. Foi como reação a essa quase evidência que procurei diferentes respostas no/pelo corpo para expandir e prolongar os estímulos digitais - nesse caso, os manuscritos - para além de sua imaterialidade. Procurei trazê-los à superfície de uma outra sensibilidade, baseada na forma, no tato, na expansão do corpo, na interposição de seus limites e na dinâmica de chegada de novos estímulos em ritmo regular.

A sucessão de formas digitais manuscritas (Imagem 3), estelares, invertidas, em profusa contiguidade etc. deu origem a uma coreografia em cadência, no âmbito da qual o movimento se processava em resposta à chegada de um novo estímulo digital, o que originou pequenos momentos de ruptura na transição entre estímulos. Os movimentos iniciados procuravam sublinhar as diferentes realidades manuscritas que se iam interpondo, espelhando e nunca atenuando a dificuldade que estimula a interação com o digital através do corpo: esta última se persevera pelo corpo e na aceitação do desafio de um mundo visual e iconográfico, a qual nos incita a outra maneira de perceber, de percebermo-nos.

Para esse solo, escolhi uma roupa preta de corpo inteiro, mas com mangas desproporcionalmente compridas e vermelhas na extremidade. Queria assemelhar-me a uma silhueta negra - ainda que vestindo a possibilidade de cor contra a paisagem cinzenta, embora vivaz, dos manuscritos digitais, de modo que o movimento fosse destacado e enfatizado. O meu aspecto predizia uma origem indeterminada entre o mundo dos jogos-vídeo ou da arte circense e o da excentricidade contida pós-moderna.

Imagem 3
Uma das formas manuscritas que integram a performance-vídeo, gravada no estúdio da Fundação para a Computação Científica Nacional, a 18 de abril de 2014. Foto: Isabel Pinto.

A Ninfa Siringa ou Os Amores de Pan e Siringa (1741)

A última performance ocorreu em 8 de outubro de 2014, na Biblioteca Nacional de Portugal, incluída na mostra Do Manuscrito ao Espetáculo: a coleção de António José de Oliveira, em exibição de 1º de outubro até 31 de dezembro de 2014. O que propus aos atores do Grupo Freya, Sérgio das Neves e Eunice da Silva, foi a apresentação de um fragmento de cada ato da ópera A Ninfa Siringa ou Os Amores de Pan e Siringa, um original de Alexandre António de Lima, publicada pela primeira vez em 1760LIMA, Alexandre António de. A Ninfa Siringa ou Os Amores de Pan e Siringa. In: AMENO, Francisco Luís (Org.). Teatro Cómico Português ou Colecção das Óperas Portuguesas. v. III. Lisboa: Oficina de Francisco Luís Ameno, 1760. P. 86-187., embora apresentada anteriormente, em 1741, no Teatro do Bairro Alto, no Carnaval.

Um pressuposto importante e fundamental era o de que a mostra deveria funcionar e ser articulada enquanto cenário e espaço cênico, no qual toda a ação se desenrolaria. A mostra/cenário era, então, composta por seis vitrines, nas quais estava exposta uma seleção dos manuscritos de teatro - copiados por António José de Oliveira - e um cartaz que a anunciava.

Os fragmentos da peça foram escolhidos por mim, mas foram aprovados com o entusiasmo dos performers, que os descreveram como cômicos e engraçados. A apresentação durou aproximadamente dez minutos, e nela intervinham as personagens principais da peça de Alexandre António de Lima, a saber: Pan, Siringa, Coscorão e Gulosina. O Sérgio desempenhou os papéis de Pan e Gulosina, e a Eunice, os de Siringa e Coscorão. Os primeiros, Siringa e Pan, são os amos, os senhores, enquanto os segundos, Coscorão e Gulosina, são os criados, que prestam serviço doméstico e qualquer espécie de assistência.

A mitologia desempenha o seu papel na intriga, uma vez que o episódio dos amores de Pan e Siringa surge daí. Pan está apaixonado por Siringa, que insiste em desprezá-lo, não lhe restando, então, outro remédio senão discorrer, de maneira demorada, sobre sua infelicidade, com Coscorão, que, por sua vez, faz pouco de Pan e de sua leviandade, assumindo uma atitude temerária de contraposição de tom e vontade face ao senhor. Já Gulosina espelha o comportamento de sua senhora, Siringa, ignorando também Coscorão, que igualmente protagoniza intenções e iniciativas amorosas, toscas, atrapalhadas e nada sérias em relação a ela. A linguagem da peça é repleta de fortes ambiguidades, concentradas, sobretudo, no desempenho dos servidores, Coscorão e Gulosina, confrontando a divisão de classes e introduzindo uma dimensão sexual e erótica.

A apresentação levada a cabo foi, simultaneamente, provocadora e histórica, porque se apropriou dessa ambiguidade, acrescentando-lhe um vigor físico que esse teatro não teria na origem, por se tratar de teatro de sombras com marionetes (Ameno, 1759AMENO, Francisco Luís (Org.). Teatro Cómico Português ou Colecção das Óperas Portuguesas. v. I. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luís Ameno, 1759.). Penso, contudo, que a mesma ambiguidade poderia ter sido alvo de uma interpretação ainda mais eficaz e intencional, e isso constitui uma fonte de trabalho futuro. Quanto à vertente física da performance, esta estabeleceu um contraste interessante com o espaço confinado da mostra, com as vitrines relativamente próximas umas das outras, pressupondo caminhos, veredas, que podiam ser explorados tanto para o encontro quanto para o desencontro das personagens (Imagem 4): Pan procurou Siringa, Coscorão encontrou-o, mas depois Coscorão fugiu; Siringa chegou a ser encontrada, mas depois, para evitar o reencontro, transformou-se em junco e nunca mais foi vista, apenas ouvida; mas, afinal, era só Coscorão escondendo-se de Pan mais uma vez...

A artificialidade de meios da ópera cômica da primeira metade do século XVIII ficou igualmente expressa na caracterização dos performers, cuja maquiagem exagerada fazia lembrar bonecos, embora não fossem de cortiça nem movimentados por arame, como os originais, e apesar da indumentária negra, também em alusão às sombras do teatro do Bairro Alto e da Mouraria nas décadas de 1730 e 1740. Inclusive, houve momentos cantados, numa referência clara às árias que alternavam com a contracena falada nesse gênero teatral.

Imagem 4
Sérgio das Neves e Eunice da Silva em A Ninfa Siringa ou Os Amores de Pan e Siringa, na Biblioteca Nacional de Portugal, em 8 de outubro de 2014. Foto: Isabel Pinto.

Esses três momentos, no todo, pretendem refletir uma forma experimental de reescrever a história do teatro, como Kobialka (2002KOBIALKA, Michal. Historical Archives, Events and Facts: history writing as fragmentary performance. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 3-11, 2002.) e Clarke (2013CLARKE, Paul. Performing the Archive: the future of the past. In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhaguee: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 363-385.) propuseram, ao tentar atenuar as lacunas silenciosas dos documentos convertendo-os em objetos artísticos atuais, participantes em composições visuais, que embasam a mobilidade e dinamismo do arquivo. Também testamos a perdurabilidade da influência da performance para além de sua realização material (Schneider, 2001 SCHNEIDER, Rebecca. Performance Remains. Performance Research, Oxford, v. 6, n. 2, p. 100-108, 2001.; Freshwater, 2002FRESHWATER, Helen. Anti-Theatrical Prejudice and the Persistence of Performance: the Lord Chamberlain's plays and correspondence archive. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 50-58, 2002.), recorrendo a objetos históricos, dos quais se exige que, desejavelmente, se sobreponham aos limites temporais. São dois níveis de memória que, assim, estão em jogo: o da memória da performance e sua transmissão e o que provém dos objetos por ela apropriados.

No impulso de verificar as implicações práticas da concepção da performance enquanto arquivo de tipo diferente, conforme sugerido por Schneider (2001 SCHNEIDER, Rebecca. Performance Remains. Performance Research, Oxford, v. 6, n. 2, p. 100-108, 2001.), apenas posso atestar que os movimentos repetidos nas primeiras duas performances fazem parte do meu repertório coreográfico, sendo que não os consigo separar do mundo ocidental em que me encontro inserida. Quanto à última performance, a recuperação atual de práticas do teatro do século XVIII nela proposta permanecerá enquanto sua memória se mantiver viva e em franca transmissão.

A carga intelectual e afetiva, própria dos objetos do arquivo, de que nos falava Roms (2013ROMS, Heike. Archiving Legacies: who cares for performance remains? In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhague: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 35-52.) foi estímulo para a ação, para o movimento, para a relação com o Outro. O arquivo adquiriu, então, uma dimensão pessoal, dinamizou-se, evadiu-se do espaço institucional para permear outro nível de realidade, em que se dá lugar à narrativa singular, embora investida de ecos de outras histórias passadas. A permeabilidade do tempo é um resultado direto da interação entre performance e arquivo. De acordo com Smith (2011SMITH, Laurajane. The 'Doing' of Heritage: heritage as performance. In: JACKSON, Anthony; KIDD, Jenny (Org.). Performing Heritage: research, practice and innovation in museum theatre and live interpretation. Manchester/New York: Manchester University Press, 2011. P. 69-81.), estamos prolongando o processo de reinvenção do patrimônio - escolhendo lembrar os manuscritos de António José de Oliveira, vestígios da arte intrépida de um tecnicista - e evocando o ecletismo insubordinado do teatro do século XVIII.

Conclusão

Neste artigo, problematizou-se a relação entre arquivo e estudos da performance, revendo conceitos fundadores e transdisciplinares, que, por um lado, remontam a Derrida (1995DERRIDA, Jacques. Mal d'Archive, une Impression Freudienne. Paris: Éditions Galilée, 1995.) e a sua teorização sobre a natureza do arquivo e, por outro, confirmam o vigor do novo historicismo digital (Fickers, 2012FICKERS, Andreas. Towards a New Digital Historicism?: doing history in the age of abundance. Journal of European Television History and Culture, Oxford, v. 1, n. 1, p. 19-26, 2012.). O dinamismo do arquivo e sua desejável desunião (Osthoff, 2009OSTHOFF, Simone. Performing the Archive: the transformation of the archive in contemporary art from repository of documents to art medium. New York/Dresden: Atropos Press, 2009.; Jackson; Kidd, 2011; Borggreen; Gade, 2013BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune. Introduction: the archive in performance studies. In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhague: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 9-34. ), a temporalidade da performance (Schneider, 2001 SCHNEIDER, Rebecca. Performance Remains. Performance Research, Oxford, v. 6, n. 2, p. 100-108, 2001.; Aston, 2002ASTON, Elaine. Feminist Performance as Archive: Bobby Baker's 'Daily Life' and Box Story. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 78-85, 2002.; Freshwater, 2002FRESHWATER, Helen. Anti-Theatrical Prejudice and the Persistence of Performance: the Lord Chamberlain's plays and correspondence archive. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 50-58, 2002.) e sua resistência a uma ordem dominante alimentam a tensão vital entre arquivo e performance, tendo em mente, conforme foi observado na segunda parte desse artigo, o confronto do corpo vivo e animado contra os restos falhos do arquivo, embora ele mesmo seja evidência da perseverança do corpo.

Tive, igualmente, a oportunidade de filiar-me a uma abordagem mais ampla do conhecimento histórico, a qual reitera a importância da performance tanto como método quanto como meio de disseminação (Kobialka, 2002KOBIALKA, Michal. Historical Archives, Events and Facts: history writing as fragmentary performance. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 3-11, 2002.; Clarke, 2013CLARKE, Paul. Performing the Archive: the future of the past. In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhaguee: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 363-385.). De acordo com essa perspectiva, a investigação na área da história do teatro pressupõe um novo tipo de interação com as fontes, que se firma na corporalização e vivência específicas das artes cênicas, as quais se materializam na performance do arquivo.

Como este artigo tem por base um arquivo de teatro, ou seja, uma coleção de textos de teatro do século XVIII, era fundamental tecer algum tipo de narrativa, ainda que necessariamente sintética, ao redor dele, apresentando informação histórica relevante, centrada na tradição do escriba (Love, 1998LOVE, Harold. The Culture and Commerce of Texts: scribal publication in seventeenth-century England. Amherst: University of Massachusetts Press, 1998.) e na própria coleção manuscrita que é objeto de investigação (Pinto, 2013PINTO, Isabel. (Un)certain Editing. Cibertextualidades, Porto, n. 5, p. 203-214, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/3874/1/cibertextualidades_05_pinto.pdf >. Acesso em: 29 mar. 2015.
http://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/3...
). Essa informação, reunida ao longo de anos de contato com o arquivo, foi o impulso para a performance, que a convoca, interpela e transforma. Trata-se, pois, de propor uma outra abordagem metodológica para a investigação cênica de caráter histórico.

Por fim, documentei três instâncias da relação prática, material e visual entre arquivo e performance - que refletem o uso da performance enquanto metodologia para expandir a semântica de uma coleção teatral - e do manuscrito, em particular, exemplos concretos da performance do arquivo. No todo, são três tentativas que pretendem veicular o mote de que os manuscritos e a investigação histórica podem ser integrados numa narrativa pessoal sobre um eu que ocupa seus dias lendo textos de teatro, supostamente de difícil acessibilidade e decifração. A pesquisa documental em torno das peças deu origem a realidades cênicas e visuais que exprimem, ao mesmo tempo, apropriação, questionamento e expansão do saber histórico. É, então, pela passagem da pesquisa individual ao ato público performativo que a abordagem histórica sobre as artes cênicas pode transformar-se e renovar-se.

Em suma, os três momentos performativos anteriormente descritos almejam corroborar a ideia de que, pela performance manuscrita, é possível fazer convergir a experiência individual de investigação do arquivo com o corpo social que serve de moldura para a performance. Isso oportuniza a mútua transformação e uma nova vivência, pública e disseminada, do legado cênico e teatral pelas veredas multiculturais da globalização.

Referências

  • AMENO, Francisco Luís (Org.). Teatro Cómico Português ou Colecção das Óperas Portuguesas. v. I. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luís Ameno, 1759.
  • ASTON, Elaine. Feminist Performance as Archive: Bobby Baker's 'Daily Life' and Box Story. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 78-85, 2002.
  • BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune. Introduction: the archive in performance studies. In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhague: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 9-34.
  • CLARKE, Paul. Performing the Archive: the future of the past. In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhaguee: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 363-385.
  • CONTAS do princípio do Teatro da Casa da Ópera do Bairro Alto. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 1761-1766. Manuscrito, COD. 7178, f. 140v.
  • DERRIDA, Jacques. Mal d'Archive, une Impression Freudienne. Paris: Éditions Galilée, 1995.
  • FICKERS, Andreas. Towards a New Digital Historicism?: doing history in the age of abundance. Journal of European Television History and Culture, Oxford, v. 1, n. 1, p. 19-26, 2012.
  • FIGUEIREDO, Manuel de. Teatro de Manuel de Figueiredo. v. XII. Lisboa: Impressão Régia, 1806.
  • FRESHWATER, Helen. Anti-Theatrical Prejudice and the Persistence of Performance: the Lord Chamberlain's plays and correspondence archive. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 50-58, 2002.
  • JOHNSON, Paul. The Space of Museum Theatre: a framework for performing heritage. In: JACKSON, Anthony; KIDD, Jenny (Org.). Performing Heritage: research, practice and innovation in museum theatre and live interpretation. Manchester/New York: Manchester University Press, 2011. P. 53-66.
  • KOBIALKA, Michal. Historical Archives, Events and Facts: history writing as fragmentary performance. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 3-11, 2002.
  • KUHLMANN, Annelis. Undercover by Hotel Pro Forma, Performing the National Archive: staging cultural heritage at the Royal Library in Copenhagen. In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhague: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 292-309.
  • LIMA, Alexandre António de. A Ninfa Siringa ou Os Amores de Pan e Siringa. In: AMENO, Francisco Luís (Org.). Teatro Cómico Português ou Colecção das Óperas Portuguesas. v. III. Lisboa: Oficina de Francisco Luís Ameno, 1760. P. 86-187.
  • LIMA, Alexandre António de. Rasgos Métricos e Prosaicos. Lisboa: Biblioteca da Ajuda, 1780. Manuscrito copiado por António Correia Viana, pasta 50, I-13, n. 12, ff. 171-194.
  • LISBOA, João Luís. Tanta Virtude... em Papéis Correndo: persistência e poder do manuscrito no Antigo Regime. In: ABREU, Márcia; SCHAPOCHNIK, Nelson (Org.). Cultura Letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas: Mercado das Letras, 2005. P. 246-258.
  • LOVE, Harold. The Culture and Commerce of Texts: scribal publication in seventeenth-century England. Amherst: University of Massachusetts Press, 1998.
  • MACHADO, Diogo Barbosa. Biblioteca Lusitana, Histórica, Crítica e Cronológica. v. I. Lisboa: Oficina de António Isidoro da Fonseca, 1741. P. 93.
  • OSTHOFF, Simone. Performing the Archive: the transformation of the archive in contemporary art from repository of documents to art medium. New York/Dresden: Atropos Press, 2009.
  • PINTO, Isabel. (Un)certain Editing. Cibertextualidades, Porto, n. 5, p. 203-214, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/3874/1/cibertextualidades_05_pinto.pdf >. Acesso em: 29 mar. 2015.
    » http://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/3874/1/cibertextualidades_05_pinto.pdf
  • ROMS, Heike. Archiving Legacies: who cares for performance remains? In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhague: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 35-52.
  • SCHNEIDER, Rebecca. Performance Remains. Performance Research, Oxford, v. 6, n. 2, p. 100-108, 2001.
  • SMITH, Laurajane. The 'Doing' of Heritage: heritage as performance. In: JACKSON, Anthony; KIDD, Jenny (Org.). Performing Heritage: research, practice and innovation in museum theatre and live interpretation. Manchester/New York: Manchester University Press, 2011. P. 69-81.
  • 15
    Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    No original em inglês: "If we are to move in that direction, future historians cannot escape the productive confrontation with the new technical, economic and social realities of the digital culture. Instead of digital escapism and methodological conventionalism the discipline of history is rather in need of a new digital historicism. This digital historicism should be characterized by collaboration between archivists, computer scientists, historians and the public, with the aim of developing tools for a new digital source criticism" (Fickers, 2012FICKERS, Andreas. Towards a New Digital Historicism?: doing history in the age of abundance. Journal of European Television History and Culture, Oxford, v. 1, n. 1, p. 19-26, 2012., p. 26). Assinale-se que as traduções são da responsabilidade do autor, exceto quando indicado em contrário.
  • 2
    No original em francês: "[...] pense-t-on l'avenir à partir d'un événement archivé" (Derrida, 1995DERRIDA, Jacques. Mal d'Archive, une Impression Freudienne. Paris: Éditions Galilée, 1995., p. 127).
  • 3
    No original em inglês: "The Lord Chamberlain and his staff were firmly convinced that theatre possessed performative influence. Their interventions were motivated by a belief in the influence of physical enactment; created by a concern over the body-to-body transmission of corrupting imagery and identities; produced because of anxiety that performance did indeed 'remain'; and pursued to such lengths because of fear of a contagious, corrupting - almost viral - spread of repeated acts" (Freshwater, 2002FRESHWATER, Helen. Anti-Theatrical Prejudice and the Persistence of Performance: the Lord Chamberlain's plays and correspondence archive. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 50-58, 2002., p. 51).
  • 4
    No original em inglês: "Far from being a marginal, or a neglected concept, I would suggest that the conviction that performance circulates long after its initial realization is foundational to all projects of censorship which concentrate upon the performing arts" (Freshwater, 2002FRESHWATER, Helen. Anti-Theatrical Prejudice and the Persistence of Performance: the Lord Chamberlain's plays and correspondence archive. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 50-58, 2002., p. 53).
  • 5
    No original em inglês: "It is possible for performance to 'house' a culture resistant to and different from the dominant cultural order that would prefer to mark it absent rather than present" (Aston, 2002ASTON, Elaine. Feminist Performance as Archive: Bobby Baker's 'Daily Life' and Box Story. Performance Research, Oxford, v. 7, n. 4, p. 78-85, 2002., p. 78).
  • 6
    No original em inglês: "[...] the inability to be reproduced and repeated is the strength of performance because it resists the economics of reproduction and remains traceless within the ideologies of capital" (Borggreen; Gade, 2013BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune. Introduction: the archive in performance studies. In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhague: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 9-34. , p. 13).
  • 7
    No original em inglês: "The term 'performing heritage' can include an array of different types of heritage and a multiplicity of performances. It can take place in historic sites, appropriated or purpose built buildings such as galleries or museums, in archives or libraries, or it can be more elusive and hidden amongst communities, either real or virtual. The heritage component can be social, cultural, political, artistic, architectural, industrial, scientific, botanic or some combination of these. The interpretation of it through performance can be radical or reactionary, open or closed, educational or artistic, participatory or pedagogic. The performances can be first or third person, scripted or improvised, on a stage or site-specific, fixed or promenade, open or closed, solo or ensemble, unique or recurring, flamboyant or subdued, devised or written, central to the interpretative strategies or peripheral to them" (Johnson, 2011JOHNSON, Paul. The Space of Museum Theatre: a framework for performing heritage. In: JACKSON, Anthony; KIDD, Jenny (Org.). Performing Heritage: research, practice and innovation in museum theatre and live interpretation. Manchester/New York: Manchester University Press, 2011. P. 53-66., p. 53).
  • 8
    No original em inglês: "Literally performing the archive here attests not only to a will to push the boundaries, but to a more fundamental understanding of the archive as a medium and an organism rather than a stable repository" (Borggreen; Gade, 2013BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune. Introduction: the archive in performance studies. In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhague: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 9-34. , p. 22).
  • 9
    No original em inglês: "Why not re-perform art history, as well as rewriting it through art history? What about an embodied approach to historiography, experiential ways of understanding and remembering performance? How can we understand, intervene and get mixed up in art history by doing it physically, as well as researching and writing about it?" (Clarke, 2013CLARKE, Paul. Performing the Archive: the future of the past. In: BORGGREEN, Gundhild; GADE, Rune (Org.). Performing Archives/Archives of Performance. Copenhaguee: Museum Tusculanum Press, 2013. P. 363-385., p. 370).
  • 10
    Biblioteca da Ajuda, pasta 50, I-13, nº 12, ff.171-194.
  • 11
    No original em inglês: "The 'Writing School' taught spelling, arithmetic, the elements of accounting and in some cases shorthand; however, the main emphasis was on training in the costumary business hands, and its head was normally an acknowledged writing master. At all levels beyond the elementary, instruction would also cover such matters as the cutting of pens, the mixing of ink, the folding of paper into quires, the ruling of margins, the ensuring of equal lineation, the casting-off of copy, and the correct placing of catchwords and page numbers" (Love, 1998LOVE, Harold. The Culture and Commerce of Texts: scribal publication in seventeenth-century England. Amherst: University of Massachusetts Press, 1998., p. 93-94).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    09 Dez 2014
  • Aceito
    30 Abr 2015
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Av. Paulo Gama s/n prédio 12201, sala 700-2, Bairro Farroupilha, Código Postal: 90046-900, Telefone: 5133084142 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: rev.presenca@gmail.com