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Eu tenho um Corpo, eu sou um Corpo: abordagens somáticas do movimento na graduação em dança

J'ai un Corps, je suis un Corps: approches somatiques du mouvement dans les études universitaires en danse

Resumo:

Neste artigo, parto da experiência com abordagens somáticas do movimento no Bacharelado em Dança da Universidade Federal de Santa Maria para propor uma discussão acerca das implicações pedagógicas e artísticas dessa escolha. Explicito meu ponto de vista enquanto professora e artista, bem como minha compreensão do uso das abordagens somáticas na dança, e convido a uma incursão na experiência dos alunos. Sob o enquadramento da performance como paradigma analítico, articulado à perspectiva da Soma-Estética, aponto alguns caminhos proporcionados por tal escolha na promoção de práticas pedagógicas emancipatórias e na ampliação das possibilidades artísticas dos bailarinos.

Palavras-chave:
Dança; Educação Somática; Performance; Práticas Pedagógicas; Soma-Estética

Résumé:

Dans cet article, je présente mon expérience des approches somatiques du mouvement dans le cours de danse de l'Université Fédérale de Santa Maria et je propose une discussion sur les implications pédagogiques et artistiques de ce choix. J'explique mon point de vue de professeur et artiste, ainsi que la façon dont je conçois l'utilisation des approches somatiques en danse, et je propose une incursion dans l'expérience des étudiants. A partir du paradigme analytique de la performance, en relation avec l'approche de la Soma-Esthétique, je présente quelques pistes ouvertes par ce choix pour proposer des pratiques pédagogiques émancipatrices et élargir les possibilités artistiques des danseurs.

Mots-clés:
Danse; Éducation Somatique; Performance; Pratiques Pédagogiques; Soma-Esthétique

Abstract:

In this article, I started from the experience of somatic approaches to movement at the undergraduate dance course of the Universidade Federal de Santa Maria to propose a discussion about the pedagogical and artistic implications of this choice. I explain my point of view as a teacher and artist, as well as my understanding of the use of somatic approaches to dance, and explore the students' experiences. Within the framework of performance as an analytical paradigm, articulated from the viewpoint of Somaesthetics, I point out some ways provided by such a choice in promoting emancipatory pedagogical practices and expanding the artistic possibilities of dancers.

Keywords:
Dance; Somatic Education; Performance; Pedagogical Practices; Somaesthetics

Ontem mapear o esqueleto. Difícil manter o foco. Sensação de repetição. Dificuldade de acessar a experiência, de estar na experiência. Expectativa. O que estão achando? O que vão achar? Aliás, coisas difíceis de lidar até agora. Muita sensação de ser responsável por... Pelo que mesmo? Pela experiência dos alunos? Pelo 'sucesso' do Michel? Querer ser aceita e respeitada e levada a sério como professora? Como artista? Não encontrar os ossos com facilidade.

Depois parar. Vertical. Observar. Ainda fora de mim. Perceber a nuca fechada depois de ter me sentido muito 'conectada'. O que fazer com isso? 'Não interfere', diz o Michel (tão bom ter a voz do Michel aqui). Mas como aceitar a possibilidade de não interferir nessa cabeça caída para trás? Aceito. Tento não interferir. Foco nos pés. O peso que fica passando incessantemente de um ponto a outro nos pés. Passar para a meia ponta. Descoberta: minha canela relaxa. Não tinha consciência de a musculatura da frente da tíbia estar tensa. A perna esquerda muito mais tensa do que a direita. Pressiona mais o chão. Exagero essa pressão. Gosto de perceber o resto do corpo se reorganizar a partir disso.

Consigo abrir mão da 'professora' no chão, depois da semissupina. Quase durmo. Aceito a dificuldade em manter os olhos abertos. Aceito e dialogo com a dificuldade. Deixo os olhos piscarem longamente para depois convidá-los a abrir novamente e repousar no espaço do teto, mas também nas órbitas do crânio.

24 de julho de 2013.

O trecho acima é uma transcrição literal do que escrevi ao final do I Seminário/Laboratório de Criação: uma abordagem somática para a dança. Foi o primeiro evento que coordenei como professora do Bacharelado em Dança da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)1 1 A escrita deste artigo não seria possível sem a colaboração dos alunos da disciplina de Consciência Corporal do Bacharelado em Dança da UFSM. Agradeço a todos pela disponibilidade e confiança e especialmente a Danieli, Crystian, Amanda e Felipe, por permitirem-me generosamente utilizar seus depoimentos e performances como material para reflexão. Agradeço ainda a Letícia Nascimento Gomes e Caroline Turchiello pela leitura e comentários deste texto e as trocas que extravasam seus limites. A meus colegas e parceiros docentes, essas experimentações devem muito ao suporte de vocês: Gisela Biancalana, Sílvia Wolff, Marcelo de Andrade Pereira, Márcia Feijó e Tatiana Wonsik Recompenza Joseph (que, além das infinitas trocas que temos descoberto juntas, teve a generosidade de reler e propor revisões a este material). e consistia, basicamente, num espaço de criação e investigação artística a partir do diálogo com a proposta do bailarino e então estudante de Técnica Alexander, Michel Capeletti2 2 Atualmente Michel é professor formado pela Escuela de Técnica Alexander de Buenos Aires e coordena o Espaço Thames - Arte y Técnica Alexander naquela cidade. . Naquela época, ele estava finalizando uma residência na Fundação Oswald de Andrade, em São Paulo, junto à Escola Nômade de Filosofia. Acabara, portanto, de passar um semestre pesquisando caminhos de criação em dança através da Técnica Alexander.

A ideia deste texto é partir da experiência de trabalhar com abordagens somáticas do movimento nos dois semestres de Consciência Corporal (um componente curricular do Bacharelado em Dança) para propor uma discussão acerca das implicações pedagógicas e artísticas dessa escolha, bem como os caminhos que ela pode apontar, tanto para o universo das graduações universitárias em dança quanto para processos de criação artística (considerando sua dimensão pedagógica). Antes de embarcar definitivamente nessa discussão, enveredando quase imperceptivelmente pelos já conhecidos caminhos do dizer-escrever acadêmico, uma pequena pausa. Respirar. Conectar com o corpo e buscar um lugar de escrita que habita esse corpo (meu) e que é o lugar desde onde desejo falar aqui. Trata-se de formular não apenas um discurso sobre o corpo, mas um discurso desde o corpo3 3 Venho trabalhando com essa ideia de pesquisa e escrita desde o doutorado na Antropologia Social, concluído em 2010. Naquele momento, ao pesquisar as políticas da capoeira Angola na circulação Brasil-França, incluí meu aprendizado dessa prática corporal como parte do método etnográfico. Essa experimentação se estendeu do trabalho de campo ao processo de escritura da etnografia, constituindo o que chamei então de uma antropologia desde o corpo. Ver Gravina (2010). . Esse movimento corresponde, igualmente, ao desejo de que o leitor busque, em seu corpo, um lugar semelhante de leitura.

O trecho acima ganhou existência através de um procedimento chamado de escrita automática e que consiste em recortar um tempo arbitrário durante o qual se escreve sem pensar, sem filtrar ou sem tentar alguma forma de selecionar as palavras. No caso, a ideia era acessar o que ficou de residual da experiência de três dias de investigações em torno das relações entre Técnica Alexander e criação em dança. Por outro lado, essa via de acesso tem o potencial de fazer emergir à consciência observações que, até então, existiam apenas no campo da percepção (e talvez essas categorias não sejam as mais adequadas, mas guardo a discussão para mais adiante).

A primeira vez que tive contato com esse procedimento relacionado à dança foi com a bailarina, coreógrafa e professora Tatiana da Rosa no processo de criação do espetáculo FATO., estreado em 2002, em Porto Alegre. Ao longo dos últimos doze anos, lançamos mão desse recurso em diversos momentos nos nossos trabalhos artísticos, em muitos dos quais tínhamos também a participação de Michel Capeletti, Dani Boff, Alexandra Dias, André Mubarack e Cibele Sastre. Importa aqui dizer que ele faz parte de uma série de procedimentos que foram sendo compartilhados e aprofundados como investigação artística por esse grupo na realização de diversas obras, às vezes conjuntamente, outras em separado.

Neste preciso momento em que busco tornar experiência em texto, menciono os nomes desses artistas com a intenção clara e forte de evocá-los e convidá-los a estarem aqui comigo como intensidades que me constituem e o lugar de onde falo enquanto artista. E que é, também, e sempre, o lugar de onde falo enquanto professora. O enquanto aqui colocado tem a intenção de indicar transitoriedade e deslizamentos, mais do que temporalidades ou contextos distintos de fala ou de prática. Entendo-me como artista enquanto professora, como professora enquanto artista4 4 Filio-me aqui a um movimento dentro da docência em dança que propõe a noção de um professor-artista, tanto nos contextos universitários quanto na educação básica. Esse debate já está bastante adiantado e pode ser acompanhado através de Marques (2001), Sastre (2009) e Gonçalves, Briones, Parra e Vieira (2012). .

É importante ainda precisar uma peculiaridade de minha relação com a educação somática como campo de conhecimento. Não tenho formação específica em nenhuma técnica ou método que compõe esse campo. Antes, esse modo de fazer, compreender e pensar o movimento veio através de minha trajetória artística, ao longo de diferentes processos criativos que tiveram o referido espetáculo FATO. como marco inicial. A bem da verdade, não é demais dizer que o processo de criação daquele espetáculo, juntamente com a configuração do Arteria - artistas de dança em colaboração (fundado por Tatiana da Rosa, Cibele Sastre e Suzi Weber em 2001 e que depois aglutinou diversos artistas da região Sul), é um marco na criação de um ambiente de dança na cidade de Porto Alegre permeado pelas referências estéticas, éticas e políticas oriundas da chamada geração da dança pós-moderna norte-americana. Naquele momento, Tatiana5 5 Faço referência a uma pessoa já apresentada utilizando apenas o primeiro nome quando minha proximidade com ela tornaria desnecessário o uso do nome completo e artificial o uso apenas do sobrenome. Quando é uma referência bibliográfica a texto da mesma pessoa, sigo as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). retornava de dois anos de estudos junto à Trisha Brown Dance Company, e Cibele concluíra recentemente formação no Laban Institute of Movement Studies, ambos em Nova Iorque.

Esses dados são relevantes aqui porque contextualizam um pensamento de dança atravessado por uma compreensão somática do corpo e do movimento. Hoje são amplamente reconhecidas, no campo da dança, a influência e as transformações provocadas pelo movimento formado por Steve Paxton, Trisha Brown, Yvonne Rainer, Lucinda Childs, Simone Forti, Debora Hay, Robert Raushenberg, Rober Morris, entre outros6 6 Essa influência não é objeto deste artigo. Limito-me a destacar os aspectos que interferem diretamente na reflexão que busco construir aqui. Para uma contextualização detalhada desse modo de pensar-fazer dança oriundo da chamada geração pós-moderna da dança norte-americana, consultar especialmente Banes (1987), Novack (1990), Lepecki (2006), Rosa (2010) e Icle e Rosa (2013). . Em recente artigo escrito em parceria com Gilberto Icle, Tatiana da Rosa afirma:

Pondo em cheque as marcas e limites tradicionais do que era o corpo e o movimento na dança e, assim, de quem pode ser um bailarino, esses artistas foram fundamentais na construção de poéticas e práticas articuladas em torno de questionamentos da política do espetáculo (Icle; Rosa, 2012ICLE, Gilberto; ROSA, Tatiana Nunes da. Sobre os Limites do Corpo. Conceição, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, v. 1, n. 1, p. 14-29, dez. 2012., p. 17).

Para efeitos da presente reflexão, acrescentaria que tais investigações questionavam também as políticas do corpo. Justamente, distanciando-se da estética da dança moderna, ainda pautada pela sistematização de técnicas codificadas, aqueles artistas investigavam a materialidade do corpo em movimento. Buscaram, para isso, referências em diversos métodos, sistemas e técnicas de trabalho corporal, entre eles a yoga, o aikido e alguns hoje abarcados pelo nome de Educação Somática, como a Técnica Alexander.

Esse modo de fazer-pensar dança funda-se na ideia de um continuum entre o corpo cotidiano e o corpo cênico, entre arte e vida. Através de proposições estéticas alicerçadas na ideia do "[...] corpo como passível de infinitos diálogos", buscavam "[...] destrinchar e expor as relações de poder, os acordos tácitos inscritos inclusive nos hábitos corporais que estabeleciam os valores em dança, o corpo e o movimento de um bailarino segundo parâmetros hegemônicos" (Icle; Rosa, 2012ICLE, Gilberto; ROSA, Tatiana Nunes da. Sobre os Limites do Corpo. Conceição, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, v. 1, n. 1, p. 14-29, dez. 2012., p. 18). É a principal referência de pensamento artístico que trago para as aulas de Consciência Corporal do Bacharelado em Dança da UFSM.

Através do texto que iniciou este artigo, convido o leitor a acompanhar-me num retorno à dimensão da experiência para falar dessa abordagem somática incorporada à prática de dança.

Ontem mapear o esqueleto. Difícil manter o foco. Sensação de repetição. Dificuldade de acessar a experiência, de estar na experiência. Expectativa. O que estão achando? O que vão achar? Aliás, coisas difíceis de lidar até agora. Muita sensação de ser responsável por... pelo quê, mesmo? Pela experiência dos alunos? Pelo "sucesso" do Michel? Querer ser aceita e respeitada e levada a sério como professora? Como artista? Não encontrar os ossos com facilidade.

A primeira frase refere-se à realização, na véspera, de um procedimento chamado de mapeamento dos ossos, proposto por Michel na oficina de improvisação e Técnica Alexander7 7 No projeto de restaurar tradições e explicitar redes colaborativas em dança às quais me filio, é interessante relatar que Michel tomara conhecimento desse procedimento através de mim e de Dani Boff, quando ministramos a oficina Treinamento para um Abraço dentro de seu projeto Corpo como Cruzamento de Intensidades. O procedimento nos fora transmitido por Lisa Nelson, uma das representantes da dança pós-moderna norte-americana, durante um workshop de uma semana promovido pela Sala Crisantempo, em São Paulo. . O procedimento consiste, basicamente, em identificar os ossos através de seu contato com o chão, como se fôssemos imprimindo, nesse chão, um mapa tridimensional de nosso esqueleto. Isso faz sentido dentro dessa compreensão da dança que parte da investigação da materialidade do corpo como recurso para o reconhecimento e a ampliação de suas possibilidades de criação e expressividade.

O texto inicia no mapeamento dos ossos para, em seguida, deslizar para as expectativas afetivas que emergem desse mapeamento através do reconhecimento das dificuldades em manter o foco de atenção na experiência concreta dos ossos no chão. Esse deslizamento não é desconexo e muito menos gratuito. Antes, indica, através das conexões que propõe, a compreensão somática do corpo (em movimento) que é nossa matéria de reflexão aqui.

Essa compreensão já foi enunciada de diferentes maneiras, por diferentes artistas, pesquisadores do movimento, teóricos, terapeutas etc., e perpassa, portanto, diversos campos do conhecimento8 8 Para um apanhado geral da conformação da Educação Somática como campo de conhecimento, ver Fortin (1999). . Coerentemente com a proposta desta escrita, escolho recortar, dentre essas concepções, aquelas que foram constituindo minha experiência de artista-professora-pesquisadora.

Thomas Hanna, considerado um dos fundadores da Educação Somática como campo de conhecimento autônomo, definia-a como "[...] a arte e a ciência de um processo relacional interno entre a consciência, o biológico e o meio ambiente, estes três fatores sendo vistos como um todo agindo em sinergia9 9 Vale a pena pontuar a natureza interdisciplinar da Educação Somática como campo de conhecimento. Thomas Hanna, por exemplo, era filósofo e educador somático e desenvolveu uma perspectiva fundamentada no cruzamento entre o aparato teórico da filosofia e a prática da educação somática para construir uma reflexão sobre corpo e mundo através de uma fenomenologia existencialista. " (Hanna, 1983, p. 1 apud Fernandes, 2012FERNANDES, Ciane. Movimento e Memória: Manifesto da Pesquisa Somático-Performativa.2012. VII Congresso da ABRACE. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012., p. 3). Sob essa perspectiva, então, ele propõe que se pense o corpo como soma, ou seja, como sendo percebido a partir de um ponto de vista interno, através do sistema proprioceptivo. Essa mudança no ponto de vista, de acordo com o autor, transforma o que é observado:

O soma, sendo percebido internamente, é categoricamente distinto de um corpo, não porque o assunto [subject] é diferente, mas porque o ponto de vista é diferente: é propriocepção imediata - um modo sensório que produz dados únicos10 10 No original em inglês: "The soma, being internally perceived, is categorally distinct from a body, not because the subject is different but because the mode of viewpoint is different: It is immediate proprioception - a sensory mode that provides unique data" (Hanna, 1979, p. 4). (Hanna, 1979HANNA, Thomas. The Body of Life. New York: Alfred A. Knopf, 1979., p. 4, tradução nossa).

É da natureza desse corpo-soma a capacidade de oscilar entre os dois modos de percepção. Ele tanto pode perceber-se a partir das informações internas, como um observador de si mesmo, quanto a partir do que Hanna chama de "[...] ponto de vista da terceira pessoa" (1979HANNA, Thomas. The Body of Life. New York: Alfred A. Knopf, 1979., p. 4), ou seja, como um objeto entre outros objetos no mundo. Por isso, posso dizer que tenho um corpo ou que sou um corpo. O que muda é o modo de percepção acionado. Pode acontecer, ainda, que ambos operem simultaneamente e, nesse caso, a diferença entre ter e ser um corpo é simplesmente uma questão de ênfase.

Ao mesmo tempo, essa autopercepção a partir da primeira pessoa é sempre um processo de observação e de autorregulação. O ato de observar interfere no que é observado. Tal processo de autorregulação nem sempre é (e normalmente não é) completamente assimilado pela chamada consciência racional (consciousness), correspondente à gama de ações sensório-motoras voluntárias, as quais conseguimos nomear através da linguagem. Entretanto, através de um outro modo de consciência (awareness), associada a uma capacidade de inibir e isolar fenômenos que ocorrem no organismo para que sejam passíveis de ser reconhecidos pelo sistema proprioceptivo, é possível que esses processos tornem-se progressivamente conhecidos (ou, dito de outro modo, passem a integrar o repertório da consciência racional).

Assim, na medida em que o corpo-soma percebe-se enquanto agente regulador de si mesmo, o sujeito deixa de ser alguém que reage inconscientemente ao meio, passando a entender-se como ativo na relação com esse meio. Sob esse ponto de vista, podemos inferir que, ao trabalhar através de uma abordagem somática em aula, estamos propiciando ao estudante uma possibilidade de perceber-se como agente de seu processo de aprendizado e, por conseguinte, sujeito que interfere ativamente em seu meio a partir de ações conscientes.

O segundo parágrafo de nosso texto de abertura refere-se a alguns meios pelos quais (Alexander, 1992ALEXANDER, Frederick Matthias. O Uso de si Mesmo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.) a Técnica Alexander, entendida aqui como constitutiva do contexto das abordagens somáticas do movimento, trabalha esse processo que, segundo Hanna, conecta awareness e consciousness.

Depois parar. Vertical. Observar. Ainda fora de mim. Perceber a nuca fechada depois de ter me sentido muito 'conectada'. O que fazer com isso? 'Não interfere', diz o Michel (tão bom ter a voz do Michel aqui). Mas como aceitar a possibilidade de não interferir nessa cabeça caída para trás? Aceito. Tento não interferir. Foco nos pés. O peso que fica passando incessantemente de um ponto a outro nos pés. Passar para a meia ponta. Descoberta: minha canela relaxa. Não tinha consciência de a musculatura da frente da tíbia estar tensa. A perna esquerda muito mais tensa do que a direita. Pressiona mais o chão. Exagero essa pressão. Gosto de perceber o resto do corpo se reorganizar a partir disso.

A observação é um procedimento básico de várias técnicas e métodos de educação somática. Como falei antes, esse observar pode ser tanto do ponto de vista da primeira pessoa, uma observação interna, quanto uma atenção direcionada aos objetos em torno e a si mesmo como mais um dentre esses objetos. No caso relatado acima, a indicação inicial era para observar-se internamente, mesmo que seja sempre assumido que qualquer indicação é passível de ser seguida ou não por aquele que a recebe. É interessante notar que, mesmo consciente e bastante à vontade com essa premissa, ao enunciar que ainda me sentia fora de mim ao observar, acabo evidenciando um julgamento implícito, como se o ideal fosse ter priorizado a observação interna. Um julgamento que se estende ainda por algumas frases, num diálogo interno oscilando entre a percepção da nuca fechada e as perguntas sobre o que fazer com isso.

É então que Michel propõe uma não interferência. Meu diálogo interno ruma no sentido de investigar como não interferir, como não fazer algo com aquilo que observo e, principalmente, aquilo que não me satisfaz ao ser percebido. Quase imperceptivelmente, meu modo de observação passa a priorizar o foco interno numa relação constante entre propriocepção e reflexão.

Um recurso encontrado é deslizar a atenção do que se estava apresentando como um problema de difícil aceitação - a nuca fechada - para outra parte do corpo, considerada, naquele momento, menos problemática: os pés. A descrição desse processo de observação indica o constante ir-e-vir entre propriocepção e consciência racional (ou, pensando nos termos propostos por Hanna, entre awereness e consciousness).

Alguns princípios fundamentais da Técnica Alexander aparecem no processo descrito: controle primordial, controle primário, direção e inibição. O controle primordial diz respeito às escolhas que somos capazes de fazer voluntariamente. No caso, num primeiro momento, pode ser a decisão de não interferir no que observo.

O controle primário fala da organização relacional entre a cabeça, o pescoço e as costas e que, segundo esse pesquisador, repercute em toda nossa organização postural. Grosso modo, trata-se de encontrar um equilíbrio nessa relação em que não se esteja aplicando tensões desnecessárias para sustentar a cabeça (no caso, na posição vertical, mas isso se aplica a qualquer posição) e que acabam por gerar outras tensões e bloqueios ao longo de todo o corpo.

A estratégia encontrada naquele momento foi dirigir o pensamento para outra parte do corpo, abrindo mão do impulso de corrigir a posição da cabeça. O foco no peso, que era percebido como estando em constante movimento através da pressão da sola dos pés no chão, transformava-se numa investigação pessoal dos meios pelos quais eu me estava mantendo na posição vertical.

De acordo com Alexander, os meios pelos quais compreendem "[...] a inibição do uso habitual dos mecanismos do organismo e a projeção consciente das novas orientações necessárias à realização dos diferentes atos envolvidos num uso novo e mais satisfatório desses mecanismos" (Alexander, 1992, p. 33).

O emprego desses meios está vinculado a uma mudança de foco. Através do controle primordial, decidimos tirar foco do objetivo final a ser alcançado e direcioná-lo ao processo em curso para alcançá-lo. Na situação descrita, portanto, podemos entender que o controle primordial era, mais do que apenas decidir não interferir, optar conscientemente por abandonar o desejo de acertar - no caso, ficar em pé com um pescoço solto, que seria meu ideal implícito de boa postura - em nome de uma entrega ao processo que poderia (ou não) levar ao objetivo desejado.O que é interessante aqui é o reconhecimento de que, mesmo praticando, há vários anos, uma abordagem somática do movimento, de repente, percebo-me construindo novos ideais de postura, organização corporal e movimento que podem ser tão aprisionantes quanto outros, notadamente pautados pela imitação de um modelo externo ou por uma forma ideal a ser atingida, como é o caso de várias técnicas e pedagogias mais convencionais de dança. De fato, é novamente um aprisionamento no que Alexander (1992ALEXANDER, Frederick Matthias. O Uso de si Mesmo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.) chamou de hábito de conquistar objetivos e que podemos relacionar a ideias simples como desejos de acertar, de agradar, de corresponder às expectativas, de ser aceitos, de ser amados etc. Como as inquietações que já haviam aparecido no momento de mapear o esqueleto, apresentando-se como fatores de distanciamento da experiência concreta do corpo.

Essa direção do pensamento está intimamente ligada à inibição - a decisão consciente de não fazer aquilo que comumente fazemos em determinada situação. A aceitação da possibilidade de não atingir os objetivos é, de certa forma, uma condição para essa inibição dos impulsos habituais que se manifestam como tensões não apenas desnecessárias, mas prejudiciais ao funcionamento do organismo. Ao longo de sua pesquisa, Alexander foi identificando uma relação fundamental entre o que chamou de uso e funcionamento do corpo. O uso estaria relacionado às ações voluntárias, e o funcionamento, às involuntárias. Embora no âmbito conceitual pareça evidente diferenciar umas das outras, na prática, essas categorias foram-se demonstrando muito mais indeterminadas e de tal forma interconectadas que sua distinção não é tão evidente assim.

Nessa relação, estão envolvidas várias dimensões interconectadas - desejo, pensamento, postura, movimento etc. - apontando para uma unidade dos processos físicos e mentais. Segundo Alexander, "[...] uma vez admitido que cada ato é uma reação a um estímulo recebido através de mecanismos sensoriais, nenhum ato poderá ser definido como inteiramente 'mental' ou inteiramente 'físico'" (Alexander, 1992, p. 47). Nessa perspectiva, podemos dizer que o pensamento não apenas interfere no movimento, mas já nasce como movimento no corpo.

Num outro sentido, não julgar e não interferir naquilo que se observa é uma premissa necessária para que se possa dar tempo para a emergência de outras maneiras, até então desconhecidas, de reagir aos estímulos do mundo. Walter Carrington, uma das principais referências no ensino da Técnica Alexander, num livro compilado a partir de aulas ministradas por ele a outros professores, afirma: "[...] quero dizer que, com tempo, o aluno aprenderá a dizer não. É definitivamente questão de tempo; questão de tempo dado por parte do professor, questão de tempo a que se permite o aluno. Tempo e nada mais que tempo" (Carrington, 2009CARRINGTON, Walter. Pensando en Voz Alta: charlas sobre la enseñanza de la Técnica Alexander. Berkeley: Mornum Time Press, 2009., p. 57).

Essa perspectiva dialoga diretamente com a compreensão de um corpo-soma proposta por Hanna. De acordo com esse autor, a percepção sensorial é sempre uma resposta motora a um estímulo recebido. É, portanto, sempre sensório-motora. Na Técnica Alexander, a ação dá-se numa íntima conexão entre essas duas dimensões da percepção, de modo que a alteração em um dos polos é sempre uma alteração também no outro. Qualquer mudança na minha sensação do movimento interfere no movimento, assim como qualquer alteração na maneira como me movo altera a sensação que tenho desse mover. De certa forma, o trabalho enfatiza a articulação hifenizada (um recurso que une as duas palavras sem promover uma síntese, mas mantendo o espaço indicativo de autonomia de cada uma delas) entre duas dimensões interligadas da percepção. Como se, através da inibição, pudéssemos dilatar esse hífen a ponto de dar-nos tempo para perceber outras possibilidades de resposta motora e que são, afinal, novas sensações. Esse processo pode levar ao que Alexander chama de reeducação, através da qual podemos criar novos hábitos sensório-motores, ampliando nossa gama de escolha para reagir aos estímulos.

Consigo abrir mão da 'professora' no chão, depois da semissupina. Quase durmo. Aceito a dificuldade em manter os olhos abertos. Aceito e dialogo com a dificuldade. Deixo os olhos piscarem longamente para depois convidá-los a abrir novamente e repousar no espaço do teto, mas também nas órbitas do crânio.

Aqui retornamos à perspectiva de uma unidade entre processos biológicos, sensório-motores, cognitivos, afetivos, sociais e políticos. É através do relaxamento e da aceitação de não interferir, da decisão consciente de abrir mão de minhas reações habituais (descansando na posição considerada como ótima por Alexander, a semissupina11 11 Posição deitada no chão, com as plantas dos pés apoiadas, joelhos dobrados, cotovelos no chão e mãos depositadas sobre as costelas. Essa posição era considerada ótima por Alexander por permitir um engajamento mínimo de tensão e uma consequente economia de energia. ), que consigo também abrir mão de um papel social, o de professora.

O destaque conferido à palavra sinaliza um papel e uma posição de professora que não necessariamente correspondem à concepção que tenho dessa posição. A professora que é abandonada junto com as tensões desnecessárias do corpo é a que ocupa um lugar de poder excessivo (ou, para ser mais explícita, uma posição autoritária). Aquela mesma que, no início deste texto, sofria de ansiedade quanto ao sucesso do evento. Essa ansiedade era motivada pelo desejo de acertar e ser aceita e, em última instância, fundada numa ilusão de poder. A dificuldade em habitar a experiência era, em parte, uma resistência em abrir mão desse pretenso controle sobre a experiência dos estudantes.

Nesse sentido, a noção de trabalhar sobre o ponto de vista da primeira pessoa vale tanto para os alunos quanto para mim como professora. Para propor que aqueles se entreguem a um exame minucioso e corajoso de si mesmos, é fundamental que eu também esteja totalmente implicada nesse processo. É imprescindível que eu mergulhe num processo simultâneo de identificação dos mecanismos de controle, submissão e emancipação continuamente acionados em minha experiência do mundo. Melhor ainda se puder desistir deles (ou, nas palavras do Michel, dizer-lhes um não gentil).

Tendo situado meu lugar de fala e meu entendimento das abordagens somáticas do movimento, é importante agora permitir a emergência de algumas vozes dos estudantes-artistas que se entregaram a essa aventura comigo, identificando novas questões que se abrem para a continuidade dessa experimentação reflexiva. Começo com um trecho de meu diário das aulas:

Estamos nas apresentações de final do primeiro semestre. A tarefa é apresentar uma pequena célula de movimento que sintetize a experiência de cada um ao longo das aulas. Última a se apresentar, Danieli caminha lentamente até o centro do palco do Teatro Caixa Preta (onde aconteciam nossas aulas). Está bem próxima da plateia. Senta no chão, cruza as pernas e desce a cabeça à frente, até ter o tronco depositado sobre as pernas e a cabeça no chão. O resto da turma, na plateia. Alguém pede silêncio - shhhh. O foco geral se concentra em Danieli. Cinco segundos de quase imobilidade e silêncio (que parecem muito mais, em contraponto à agitação anterior do ambiente). Tempo suficiente para que se possa instaurar um outro regime de percepção, pautado por uma dilatação do tempo e da atenção ao detalhe. Para que possamos, enfim, perceber a respiração daquele corpo envolto em si mesmo.

Demoro a me dar conta de que as mãos que se estendiam à frente da cabeça há algum tempo começaram a deslizar pelo chão. Seguindo com o olhar ao longo dos braços, entendo que é a coluna que lentamente se desenrola, levando o tronco a se verticalizar sobre o apoio dos ísquios. As mãos seguem deslizando do chão pelas pernas, ventre, peito, até chegarem no rosto, afastando suavemente o cabelo, enquanto as pernas se descruzam e se estendem, a parte posterior tocando o chão. Mãos e olhos acompanham o movimento das pernas, e então o corpo inteiro suspira. O olhar de Danieli encontra a plateia, ao mesmo tempo em que o som da sua voz, lenta, baixa, um pouco mais grave do que o habitual, como um sopro apenas delicadamente articulado, como saindo de um lugar muito íntimo naquele corpo. Essa voz nos diz:

'Quando eu cheguei aqui, nem esse movimento eu conseguia fazer. Quando eu cheguei aqui, eu tinha uma sacolinha vazia. Quando eu cheguei aqui, conheci cada um de vocês. Me apaixonei. No dia da apresentação, eu só ouvi. Lembro da Cinara... Mas era tanta coisa, tanto conteúdo, tanta riqueza, que eu me intimidei. [suspira] Iniciei esse curso só com algumas aulas de jazz, na minha infância. Mas a minha vontade... E por vocês muito mais vontade de tá aqui... Não tinha como não mencionar esta turma, essas pessoas, cada um uma história, cada um uma bagagem, cada um com sua riqueza, que foi preenchendo, acrescentando, foi somando... E hoje eu tô aqui. Cada vez com mais vontade de tá com vocês [a voz torna-se úmida, molhada de uma emoção que sobe e transborda pelos olhos. Olho em torno e vejo vários olhos molhados por essas lágrimas. Percebo-me parte dessa emoção coletiva]. Uma ajudinha daqui, dali, uma corrida do outro lado da sala pra me corrigir de lá... Bibi, como é que é, Bibi? Cinara, passa comigo de novo? Vocês fazem eu querer tá aqui. E um dia, quem sabe, ser uma bailarina tão grandiosa como vocês'.

'Tu já é', responde a Cinara da plateia. Todos aplaudem. Danieli levanta, agradecendo, e todos invadem a cena para um grande abraço coletivo, que termina em pulos e gritos ritmados. Um belo ritual de encerramento de semestre.

31 de julho de 2013.

A célula de movimento de Danieli condensa vários aspectos relativos à especificidade do trabalho com abordagens somáticas do movimento no contexto universitário que venho enunciando nesta escrita.

Uma primeira dimensão desse trabalho é bastante concreta e, digamos assim, simples. Danieli chega ao curso de Dança com pouca ou nenhuma experiência recente nessa prática. Chega, como ela mesma diz, entre fala e movimento, sem conseguir sentar no chão com a coluna alinhada e as pernas estendidas. Ora, isso certamente não foi resultado exclusivamente da aula de Consciência Corporal, mas da prática regular nas diferentes aulas de dança do curso, cinco dias por semana.

Em relação a sua apresentação, uma abordagem da performance a partir da antropologia pode potencializar a reflexão sobre alguns aspectos desse momento. Falo aqui do pensamento desenvolvido pelo antropólogo Victor Turner em interlocução com o encenador e teórico da performance Richard Schechner, fundante da antropologia da performance. De acordo com Turner:

[...] o homem é um animal autoperformatizante [self-performing] - suas performances são, de certa forma, reflexivas; na performance, ele se revela a si mesmo. Isso pode acontecer em dois sentidos: o ator que pode vir a conhecer-se melhor através da atuação ou encenação; ou um conjunto de seres humanos pode vir a conhecer-se melhor através da observação e/ou participação em performances criadas e apresentadas por outro conjunto de seres humanos (Turner, 1987TURNER, Victor. The Anthropology of Performance. London: PAJ Publications, 1987., p. 81).

Assim, um dos aspectos da ação humana é ser orientada para uma audiência. Sob esse prisma, a ação do sujeito é considerada, a um só tempo, apresentação e constituição de si. Não existe uma oposição entre esses dois termos: numa medida, a própria constituição se faz através da apresentação de si. Ao promoverem uma suspensão da relação ordinária tempo-espaço, os enquadramentos performáticos propiciam a consciência da audiência como um olhar do outro enquanto um não eu e, através dele, a consciência de si num constante jogo de espelhos. É esse mecanismo que permite pensar as situações performáticas como arenas reflexivas (Turner, 1987TURNER, Victor. The Anthropology of Performance. London: PAJ Publications, 1987.).

Desse modo, podemos pensar que a situação de performance, aliada a um exercício constante de refinar a percepção sobre si mesma através do trabalho com abordagens somáticas, propiciou a Danieli o reconhecimento do fato de conseguir fazer algo que antes não conseguia e uma relação de reflexividade com isso, compartilhada com a audiência.

É importante destacar que a performance de Danieli não se restringe à enunciação do que mudou na concretude de sua realidade muscular. Esse algo, percebido como uma conquista física, leva a uma autossatisfação, um sentir-se bem consigo mesma. Além disso, está intimamente ligado à percepção do ambiente e dos vínculos afetivos que se foram estabelecendo no decorrer do processo. Conjuga, portanto, as dimensões físicas, psicológicas e emocionais da experiência corporal.

Ao longo do semestre, propus vários procedimentos em dupla: de manipulação e reconhecimento do esqueleto e das conexões ósseas, de percepção da respiração em contato (costas com costas, barriga com barriga), de entrega mútua de peso etc. Como frequentemente acontece nesses trabalhos, várias emoções afloraram e foram acolhidas pelo grupo. Embora o enfoque primordial do trabalho não fosse terapêutico, mas criativo, foi-se criando, com o andamento da disciplina, uma relação coletiva de respeito e aceitação.

Entendo que muito dessa relação deve-se aos procedimentos em si. É importante destacar, contudo, que tais procedimentos foram instaurados através de um modo de condução específico, procurando enunciar constantemente princípios como o do não julgamento e da aceitação (de si e do outro) nas próprias indicações para a realização das tarefas. Não acho que seja gratuito o fato de algumas frases proferidas por mim em aula passarem a ser repetidas pelos alunos, geralmente num tom de deboche afetuoso, como os bordões da Helô. Em outros momentos da vida acadêmica em que nos encontramos, de repente alguém sai com um não tem certo e errado ou a gente sempre pode tirar o durex da testa (indicando a possibilidade de relaxar a musculatura dessa parte do corpo), ou mesmo finaliza qualquer afirmação dizendo, depois de um breve intervalo, ou não (que, em aula, eu repetia seguidamente após uma indicação, referindo-me ao fato de que segui-la era uma escolha e não uma obrigação).

Tal postura em aula está orientada por uma compreensão do processo pedagógico como performance no sentido de arena reflexiva (Turner, 1987TURNER, Victor. The Anthropology of Performance. London: PAJ Publications, 1987.) e enfatizando a dimensão coletiva da instauração do evento performático, de acordo com Richard Schechner, para quem, nesses eventos, as posições em relação são negociadas em ato (Schechner, 2002SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. Londres: Routledge, 2002.). Aproximando essa concepção de performance ao campo da educação, o uso de tais recursos de instauração de procedimentos está comprometido com uma pedagogia crítico-performativa, de acordo com os princípios formulados por Elyse Lamm Pineau. Busco, através da promoção de uma relação consciente e crítica com o próprio processo de aprendizado, estimular no estudante "[...] o pensamento crítico, descentralizando a autoridade do professor e facilitando o aprendizado interativo entre colegas" (Pineau, 2013PINEAU, Elyse Lamm. Pedagogia Crítico-Performativa: encarnando a política da educação libertadora. In: PEREIRA, Marcelo de Andrade (Org.). Performance e Educação: (des)territorializações pedagógicas. Santa Maria: UFSM, 2013. P. 9-22., p. 40).

Segundo essa autora ainda, a performance no contexto educativo pode ser utilizada como recurso de demonstração ou como metodologia. No presente caso, a apresentação de uma célula de movimento ao final do semestre não visa a uma demonstração de conhecimentos adquiridos (o que seria próprio de uma pedagogia convencional), mas, conforme enunciado a partir da abordagem de Turner, promove uma relação de reflexividade com seu próprio corpo em movimento e, consequentemente, um empoderamento frente à vida.

Essa dimensão do empoderamento aparece na apresentação de Danieli, quando ela enuncia a relação entre a percepção da ampliação de possibilidades físicas, a superação de bloqueios expressivos e a consequente possibilidade de ver-se pertencendo ao grupo de bailarinos grandiosos. Mais tarde, na roda de comentários sobre as apresentações, ela relataria:

A Helô disse que eu tinha que avaliar o que eu tinha vivido desde o início até agora. E talvez a minha maior dificuldade, o meu maior obstáculo, que nem eu coloquei no texto, seja superar a minha timidez, me expor, chegar ali e... E foi isso o que eu percebi das aulas... E era isso o que eu queria falar.

A ampliação das possibilidades expressivas, nesse caso, resulta também no reconhecimento de uma nova potência na vida: falar em público, expor sua individualidade num espaço coletivo.

A utilização da fala como recurso expressivo para realizar a tarefa de compor uma célula de movimento remete-nos novamente às discussões que foram materializadas através das experimentações da geração da dança pós-moderna norte-americana dos anos 1960 e que seguem reverberando nas práticas artísticas contemporâneas. Pergunto: até que ponto a prática de um não julgamento e da aceitação do que percebemos em nosso corpo, aliada ao refinamento da percepção de nossos processos corporais, pode levar a uma ampliação do que passamos a considerar movimento? Extrapolando um pouco o contexto observado, até que ponto essa abordagem somática poderia ampliar, no bailarino, a concepção do que pode ser dança?

Outro relato descreve que as aulas sob o viés da abordagem somática proporcionaram uma mudança de perspectiva para Crystian, um artista da cidade, acostumado a pensar dança para apresentar em contextos como festivais, fins de ano de academias, entre outros:

Porque é muito diferente de pensar uma coreografia especialmente prum festival [...]. Ali eu só dancei. Sabe, eu não fiz nada, eu não pensei, isso tá ali no meu texto. Porque isso foi uma coisa que eu sempre senti muito nas tuas aulas: é escutar a gente e fazer aquilo que te dá vontade, que teu corpo pede, sem necessariamente precisar pensar no outro que tá ou não assistindo e no que ele vai pensar. [...] Eu cheguei uma época a pensar em desistir da dança. [...] Nas tuas aulas eu aprendi a pensar em 'não, eu não preciso fazer isso de uma forma virtuosística, de uma forma linda. Eu só preciso aprender a sentir, que vai sair, e vai sair aquilo que eu acho que é verdadeiro'.

Pode-se entrever, nas falas de Crystian, que há um duplo movimento entre pensar em coreografar um solo, o que, para ele, é, de certa forma, um hábito, e desistir desse lugar conhecido para lançar-se num espaço novo que fora vivenciado, autorizado e mesmo estimulado durante as aulas. Lançar-se no espaço imprevisível do corpo dançante em performance, ou seja, numa situação de ser observado.

O duplo movimento consiste em abrir mão de um lugar (re)conhecido e internamente institucionalizado da coreografia, com lógicas próprias e já definidas antes mesmo do processo iniciar, e, através da arena reflexiva da performance, abrir para si a possibilidade de rever o próprio julgamento e de escolher aceitar ou não a pressão que pode ser sentida a partir de uma projeção do que imaginamos ser o julgamento do outro.

Os dois estudantes citados até aqui referem sua fala a um texto. Ocorre que a tarefa era apresentar uma célula de movimento e entregar, por escrito, um relato reflexivo do processo de criação do trabalho, articulando com a experiência do semestre. Ainda no sentido de ampliação das possibilidades expressivas através das abordagens somáticas do movimento, a experiência de dois outros alunos é um material interessante a ser observado. Felipe tem por volta de dezoito anos, é bailarino e professor de danças urbanas, além de desenvolver trabalho como palhaço. Na roda de conversa ao final das apresentações, ele comenta:

É engraçado, né? Quando a profe deu essa atividade pra gente fazer, eu fiquei pensando, né... Eu não sei escrever nada, é sério, e cada vez que tem que escrever... [cabeça inclina para o lado, a boca torce, num gesto que pretende indicar dificuldade.]

Os outros riem. Comento que, no exercício anterior, ele disse a mesma coisa e entregou cinco páginas de uma escrita muito bem articulada. Ele concorda:

Era isso o que eu ia comentar. Que antes teve aquele outro exercício e eu escrevi muito! Até me surpreendi...

O relato de Amanda, vinda de práticas de street em projetos na escola, também tem essa dimensão:

Eu só queria falar duas coisas. A primeira é que eu nunca tinha dançado sozinha. [...] Pensei umas coisas que eu ia fazer coreograficamente, né? Aí, eu: 'Tá, já sei o que eu vou fazer'. Daí: 'Tá, preciso de uma música, porque eu não quero fazer sem música'. E eu comecei a escrever, escrever, escrever... E daí: 'Tá, eu vou só ler. [...] Daí, eu achei uma música e achei aquilo que eu escrevi. Daí, eu olhei assim e: 'Bah, não fui eu que escrevi isso'. Porque as duas coisas: a primeira, que eu nunca tinha dançado sozinha; e a segunda é que eu não escrevo. [...] Aí, eu olhei assim: 'Gente, fui eu que escrevi!'.

Esses relatos levam a indagar sobre o potencial pedagógico desse trabalho com abordagens somáticas como caminho para a ampliação das possibilidades expressivas num sentido amplo, incluindo-se aí a escrita como recurso de expressão. Ao propor como tarefa a elaboração de um texto reflexivo escrito a partir da experiência, o quanto essa escrita passa a ser vivida como uma prática que, longe de ser uma outra linguagem completamente desconectada do ato de dançar, torna-se um desdobramento da experiência corporal?

Essa ideia alinha-se com grande parte da discussão contemporânea (especialmente no campo da dança e das artes da cena) sobre as relações entre teoria e prática. Já em 2000, em sua pesquisa sobre Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro, Ciane Fernandes propunha uma relação entre essas duas dimensões num formato que poderia ser materializado na figura geométrica da Banda de Moebius12 12 "O matemático e astrônomo A.F. Moebius (1790-1868) descobriu uma superfície, a qual descreveu como não tendo 'outro lado', por exemplo, uma superfície de um lado da qual se pode chegar a seu outro lado sem atravessar uma extremidade" (Laban, 1974, p. 98 apud Fernandes, 2000, p. 34). Essa figura se assemelha a um oito deitado feito com uma tira única, cujo lado direito se converte em avesso e vice-versa. . Sobre a metodologia de pesquisa então adotada, ela escreve:

A Banda de Moebius é a representação conceitual-espacial mais apropriada ao estudo das obras de Bausch. No método desta pesquisa, não se criou uma hipótese teórica a ser comprovada na prática. Num formato artístico-científico, a teoria e a prática se desafiaram e se recriaram continua e mutuamente num processo de escrevendançando e trabalhando através da linguagem gestual e da verbal (Fernandes, 2000FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro: repetição e transformação. São Paulo: Hucitec, 2000., p. 34, grifos do autor).

Essa pesquisadora-artista seguiu (e segue até hoje) desenvolvendo e aprofundando suas investigações nesse sentido com o grupo A-Feto, na Universidade Federal da Bahia, e, em 2012, formulou o Manifesto da pesquisa somático-performativa:

A pesquisa somático-performativa aplica procedimentos e princípios da Educação Somática e da Performance para fluidificar fronteiras, sintetizar informações multi-referenciais de forma integrada e sensível, e fazer conexões criativas imprevisíveis, com resultados processuais em termos de performance/escrita dinâmicas e intercambiáveis (Fernandes, 2012FERNANDES, Ciane. Movimento e Memória: Manifesto da Pesquisa Somático-Performativa.2012. VII Congresso da ABRACE. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012., p. 2).

Essa perspectiva ajuda a formular a ideia esboçada nas falas dos alunos, e orientadora da escrita proposta neste artigo, de um trânsito peculiar entre teoria e prática na educação somática. A partir dessa peculiaridade, a escrita passa a ser vivenciada como uma prática. Dançar e escrever tornam-se, então, diferentes instâncias interconectadas de produção do conhecimento em dança, sem que haja uma hierarquização entre essas instâncias.

A proposta de uma pesquisa somático-performativa dialoga com diversos aspectos da experiência descrita de meu primeiro semestre como professora de Consciência Corporal no Bacharelado em Dança da UFSM. Ao trabalhar com abordagens somáticas do movimento articuladas à criação em dança, novos modos de fazer vão-se criando e emergindo do próprio processo. Os momentos de apresentar trabalhos (dois ao longo do semestre, sendo o primeiro em grupo13 13 Esse primeiro trabalho consistia em apresentar performaticamente a compreensão do grupo de trechos selecionados do livro A Dança, de Klauss Vianna. Segundo o retorno dos alunos, essa dinâmica de leitura-performance-debate propiciou tanto o entendimento da teoria quanto potencializou a articulação entre a leitura e a prática que vinha sendo experienciada em aula. e o segundo, aqui descrito, individual) podem ser entendidos como performance tanto no sentido de apresentação pública de algo quanto em sua dimensão de arenas reflexivas (Turner, 1987TURNER, Victor. The Anthropology of Performance. London: PAJ Publications, 1987.), ou seja, enquadramentos capazes de colocar uma lente sobre o que estava opaco à percepção ordinária, como aparece nas falas/performances dos alunos.

Essa noção de performance pode ser estendida para pensar a docência num sentido amplo e, especialmente, a relação de docência em dança, pensada como prática artística. Já de antemão, distanciamo-nos de uma certa noção corrente que, ao pensar a aula como performance, refere-se mais enfaticamente à posição do professor como um performer (o que levaria a análises sobre sua competência, eficácia etc.) e os alunos como audiência (o que os colocaria numa situação de relativa passividade que não é a que buscamos aqui), conforme aponta a crítica feita pelo professor, ator e diretor teatral Gilberto Icle num capítulo do livro Performance e Educação: (des)territorializações pedagógicas, organizado pelo professor e pesquisador em filosofia e estética, Marcelo de Andrade Pereira. Nesse texto, Icle afirma:

Na Performance existe, pois um sentido político dado pela forma de organização. Uma Performance é, por sua razão de existir, uma experiência coletiva. Nessa acepção, uma dimensão política fica à mostra quando se experimenta uma ruptura com os saberes já institucionalizados e, sobretudo, com conhecimentos pensados como processos individuais (Icle, 2013ICLE, Gilberto. Da Performance na Educação: perspectivas para a pesquisa e a prática. In: PEREIRA, Marcelo de Andrade (Org.). Performance e Educação: (des)territorializações pedagógicas. Santa Maria: UFSM, 2013. P. 9-22., p. 19).

Ainda dialogando com Turner e Schechner, essa arena reflexiva da performance é um enquadramento que não apenas explicita papéis e posições sociais, mas os reitera ou atualiza através de mecanismos de repetição e improvisação instauradores de um tempo-espaço extraordinário. Dessa forma, a performance é sempre um espaço de risco e possibilidade de transformação de papéis e posições sociais. No caso, essa transformação dá-se através do corpo. Nas palavras de Pineau, "[...] uma vez que a performance aumenta a nossa atenção com relação aos nossos corpos, ela fornece um meio para pôr abaixo e romper com os hábitos que tomamos por certos" (Pineau, 2013PINEAU, Elyse Lamm. Pedagogia Crítico-Performativa: encarnando a política da educação libertadora. In: PEREIRA, Marcelo de Andrade (Org.). Performance e Educação: (des)territorializações pedagógicas. Santa Maria: UFSM, 2013. P. 9-22., p. 52).

Sob esse prisma, pensar a docência como performance implica assumir um engajamento coletivo na existência da aula como experiência, não apenas aceitando, mas explicitando a transitoriedade das posições de professor e aluno. Para que isso ocorra, entretanto, é fundamental que, como assinalei antes, o docente esteja disposto a colocar-se numa relação de interlocução com os alunos, abrindo mão do lugar de detentor do saber. Para sair do lugar-comum no qual pode cair tal afirmação, é importante voltar para o corpo e a experiência.

De acordo com Icle, "[...] a Performance é pura experiência, é ação no mundo, é intervenção na vida das pessoas. Intervir, assim, é um ato político na medida em que deixa de reproduzir comportamentos esperados para produzir e inventar o inusitado" (Icle, 2013, p. 20). Assumindo a centralidade do corpo no evento performático, pergunto: de que corpo estamos falando e como ele pode encontrar espaços para permitir a emergência desses comportamentos inusitados?

Através das experiências de Danieli, descobrindo-se capaz do que antes parecia impossível e ampliando, assim como Felipe e Amanda, suas possibilidades expressivas, ou de Crystian, autorizando-se a dançar de forma antes inconcebível (e, consequentemente, revendo seus valores e desejos em função disso), podemos pensar que essa abordagem somática do movimento possa operar como uma via propícia para criar esses espaços possíveis.

Essas observações do potencial artístico e pedagógico de tais abordagens, observadas pelo viés analítico da performance, aproximam-nos da proposição de Richard Shusterman, filósofo e professor do Método Feldenkrais, de uma Soma-Estética:

A Soma-Estética, grosseiramente definida, cuida do corpo como o lugar da apreciação estético-sensorial (aesthesis) e da autoformação criativa. Como uma disciplina de aperfeiçoamento tanto da teoria como da prática, procura enriquecer não só o nosso conhecimento abstrato e discursivo do corpo, mas também a nossa performance e experiência somática. Procura realçar o significado, o entendimento, a eficácia e a beleza dos nossos movimentos e dos ambientes para os quais aqueles contribuem e dos quais também eles extraem as suas energias e sentidos (Shusterman, 2010SHUSTERMAN, Richard. Pensar através do Corpo, educar para as Humanidades: um apelo para a Soma-Estética. In: TAVARES, Enéias; ROSENFIELD, Kathrin; ROBIN, Sinara (Org.). Mal-estar na Cultura: visões caleidoscópicas da vida contemporânea. Porto Alegre: Paiol/Departamento de Difusão Cultural, 2012. P. 128-150., p. 3).

A proposição desse autor é feita no escopo de uma educação para as Humanidades num sentido amplo. Tomando-a para o nosso caso, o do ensino da dança, permite evidenciar as dimensões políticas dessa prática, nem sempre evidentes, inclusive no discurso dos próprios profissionais que constituem o campo. Nas falas dos estudantes, sejam elas verbais ou gestuais, compostas por sons ou movimentos, observo que grande parte da surpresa com essa abordagem da dança que os coloca como agentes de seus processos deve-se a uma experiência incorporada de relações de aprendizado pautadas pela transmissão unidirecional.

Tais relações permeiam todo o processo de escolarização, especialmente o fundado numa episteme cartesiana, que parte do princípio de separação e hierarquização entre corpo e mente (o primeiro numa posição inferior à segunda e subsumido no processo de produção do conhecimento). De acordo com Pineau, na sala de aula convencional, o corpo é registrado muito mais como ausência. Retomando as análises de Bell Hooks sobre os corpos de professores e estudantes em sala de aula, ela aponta:

Esse preconceito antissomático é tão endêmico, afirma Bell Hooks (1994HOOKS, Bell. Eros, Eroticism, and the Pedagogical Process. In: GIROUX, Henry; MCLAREN, Peter (Ed.). Between Borders: pedagogy and the politics of cultural studies. New York: Routledge, 1994. P. 113-118.), que questionar seriamente como o corpo é escolarizado é, em si mesmo, um ato subversivo equivalente à heresia acadêmica. A escolarização sistematicamente domestica nossos corpos; ela os encarcera em fileiras de escrivaninhas de madeira, rouba-os de sua espontaneidade através de demarcações rígidas de tempo e espaço e, realmente, devota bastante energia em esconder o fato de que nós até mesmo possuímos corpos (Pineau, 2013PINEAU, Elyse Lamm. Pedagogia Crítico-Performativa: encarnando a política da educação libertadora. In: PEREIRA, Marcelo de Andrade (Org.). Performance e Educação: (des)territorializações pedagógicas. Santa Maria: UFSM, 2013. P. 9-22., p. 44).

Assim, não é difícil pensar que a atenção ao próprio corpo não seja um hábito adquirido dos estudantes que chegam à universidade. É talvez menos óbvio que isso não seja tampouco um hábito adquirido de praticantes de dança. É importante questionar, neste ponto, o quanto pedagogias mais convencionais do ensino da dança, estruturadas numa dinâmica de imitação de um modelo formal oferecido pelo professor, acabam-se configurando como novos aprisionamentos do corpo em ideais socialmente impostos e absorvidos de forma não reflexiva. O mesmo pode ocorrer, em determinadas situações, quando coreógrafos criam movimentos para que bailarinos os executem. Tais pedagogias não apenas pressupõem, mas instauram relações entre um polo ativo e outro passivo. São, portanto, relações assimétricas de poder.

Segundo Shusterman, o reconhecimento de nossos hábitos corporais é também o reconhecimento dos sentimentos de dominação e opressão que os geraram. Interferir nesses hábitos, portanto, é uma via para ultrapassar e ressignificar tais sentimentos, constituindo para si outras possibilidades de ação no mundo. Para esse autor, a ampliação de possibilidades corporais atua diretamente na ampliação das possibilidades de escolha na vida. Em última instância, é a condição mesma da liberdade humana.

Neste texto, parti de minha experiência corporal com uma abordagem somática para tecer as bases da compreensão de um corpo-soma, o qual transita, na percepção, entre as dimensões de sujeito e objeto, entre ser e ter um corpo. Evoquei referências artísticas para pensar essa concepção em situações de criação em dança. Através das experiências dos estudantes, busquei articular essa ideia com a noção da performance como enquadramento reflexivo coletivamente instaurado, para então propor, através do comprometimento com uma pedagogia crítico-performativa, a aula de dança através das abordagens somáticas do movimento como um espaço de emancipação e proposição de lógicas de aprendizado pautadas por um paradigma não autoritário ou totalizante.

Em mais um movimento de deslocamento de posições, encaminho o final temporário - e arbitrário - desta reflexão trazendo o texto produzido por Amanda (aquela estudante que não escrevia) e lido por ela durante a apresentação de sua célula de movimento. Suas palavras, deslizando entre as dimensões do físico e do afetivo e marcando novas possibilidades expressivas, conectam-nos novamente com a unidade corpo-mente constitutiva da complexidade que é existir e constituir-se como sujeito no mundo:

O Nó Eu não sabia que ele existia. Não sabia quão forte ele era. Está no peito, mas não é o coração. É o nó. Cada parte dele foi tocada nas aulas. Agora eu sei que ele existe. Uma parte é uma incógnita. São escápulas, toques e espaços. Outra parte é leveza. É choro. Ísquios, cansaço, coluna, inquietação, vértebras. É desespero e alívio. É saudade. É tristeza. Por não ter conseguido dar voz a ele nesses dezenove anos de vida, agora ele virou dono. Descobriu uma porta de saída e acessa todas as quartas de manhã. Um turbilhão de sentimentos misturados, contraditórios, estranhos. Intensos. Dentro de mim há outro eu. Há o nó.

Referências

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  • ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: EDUC, 2000.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    A escrita deste artigo não seria possível sem a colaboração dos alunos da disciplina de Consciência Corporal do Bacharelado em Dança da UFSM. Agradeço a todos pela disponibilidade e confiança e especialmente a Danieli, Crystian, Amanda e Felipe, por permitirem-me generosamente utilizar seus depoimentos e performances como material para reflexão. Agradeço ainda a Letícia Nascimento Gomes e Caroline Turchiello pela leitura e comentários deste texto e as trocas que extravasam seus limites. A meus colegas e parceiros docentes, essas experimentações devem muito ao suporte de vocês: Gisela Biancalana, Sílvia Wolff, Marcelo de Andrade Pereira, Márcia Feijó e Tatiana Wonsik Recompenza Joseph (que, além das infinitas trocas que temos descoberto juntas, teve a generosidade de reler e propor revisões a este material).
  • 2
    Atualmente Michel é professor formado pela Escuela de Técnica Alexander de Buenos Aires e coordena o Espaço Thames - Arte y Técnica Alexander naquela cidade.
  • 3
    Venho trabalhando com essa ideia de pesquisa e escrita desde o doutorado na Antropologia Social, concluído em 2010. Naquele momento, ao pesquisar as políticas da capoeira Angola na circulação Brasil-França, incluí meu aprendizado dessa prática corporal como parte do método etnográfico. Essa experimentação se estendeu do trabalho de campo ao processo de escritura da etnografia, constituindo o que chamei então de uma antropologia desde o corpo. Ver Gravina (2010GRAVINA, Heloisa. Por cima do Mar eu vim, por cima do Mar eu vou Voltar: políticas angoleiras em performance na circulação Brasil-França. 2010. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183/31733>. Acesso em: data.
    http://hdl.handle.net/10183/31733...
    ).
  • 4
    Filio-me aqui a um movimento dentro da docência em dança que propõe a noção de um professor-artista, tanto nos contextos universitários quanto na educação básica. Esse debate já está bastante adiantado e pode ser acompanhado através de Marques (2001MARQUES, Isabel. Ensino de Dança Hoje: textos e contextos. São Paulo: Cortez, 2001.), Sastre (2009SASTRE, Cibele. Nada é sempre a Mesma Coisa. Um motivo em desdobramento através da Labanálise. 2009. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) - Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.) e Gonçalves, Briones, Parra e Vieira (2012GONÇALVES, Thaís; BRIONES, Hector; PARRA, Denise; VIEIRA, Carolina. Docência-Artista do Artista-Docente. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2012.).
  • 5
    Faço referência a uma pessoa já apresentada utilizando apenas o primeiro nome quando minha proximidade com ela tornaria desnecessário o uso do nome completo e artificial o uso apenas do sobrenome. Quando é uma referência bibliográfica a texto da mesma pessoa, sigo as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
  • 6
    Essa influência não é objeto deste artigo. Limito-me a destacar os aspectos que interferem diretamente na reflexão que busco construir aqui. Para uma contextualização detalhada desse modo de pensar-fazer dança oriundo da chamada geração pós-moderna da dança norte-americana, consultar especialmente Banes (1987BANES, Sally. Terpsichore in Sneakers: post-modern dance. Middletown: Wesleyan University Press, 1987.), Novack (1990NOVACK, Cynthia. Sharing the Dance: contact improvisation and American culture. Wisconsin: University of Wisconsin Press, 1990.), Lepecki (2006LEPECKI, André. Exhausting Dance: performance and the politics of movement. New York: Rotuledge, 2006.), Rosa (2010ROSA, Tatiana Nunes da. A Pergunta sobre os Limites do Corpo como Instauradora da Performance: propostas poéticas - e, portanto, pedagógicas - em dança. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183/26481>. Acesso em: 25/05/14.
    http://hdl.handle.net/10183/26481...
    ) e Icle e Rosa (2013ICLE, Gilberto; ROSA, Tatiana Nunes da. Sobre os Limites do Corpo. Conceição, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, v. 1, n. 1, p. 14-29, dez. 2012.).
  • 7
    No projeto de restaurar tradições e explicitar redes colaborativas em dança às quais me filio, é interessante relatar que Michel tomara conhecimento desse procedimento através de mim e de Dani Boff, quando ministramos a oficina Treinamento para um Abraço dentro de seu projeto Corpo como Cruzamento de Intensidades. O procedimento nos fora transmitido por Lisa Nelson, uma das representantes da dança pós-moderna norte-americana, durante um workshop de uma semana promovido pela Sala Crisantempo, em São Paulo.
  • 8
    Para um apanhado geral da conformação da Educação Somática como campo de conhecimento, ver Fortin (1999FORTIN, Sylvie. Educação Somática: novo ingrediente da formação prática em dança. Cadernos do GIPE-CIT, Salvador, Universidade Federal da Bahia, n. 2, p. 40-55, fev. 1999.).
  • 9
    Vale a pena pontuar a natureza interdisciplinar da Educação Somática como campo de conhecimento. Thomas Hanna, por exemplo, era filósofo e educador somático e desenvolveu uma perspectiva fundamentada no cruzamento entre o aparato teórico da filosofia e a prática da educação somática para construir uma reflexão sobre corpo e mundo através de uma fenomenologia existencialista.
  • 10
    No original em inglês: "The soma, being internally perceived, is categorally distinct from a body, not because the subject is different but because the mode of viewpoint is different: It is immediate proprioception - a sensory mode that provides unique data" (Hanna, 1979HANNA, Thomas. The Body of Life. New York: Alfred A. Knopf, 1979., p. 4).
  • 11
    Posição deitada no chão, com as plantas dos pés apoiadas, joelhos dobrados, cotovelos no chão e mãos depositadas sobre as costelas. Essa posição era considerada ótima por Alexander por permitir um engajamento mínimo de tensão e uma consequente economia de energia.
  • 12
    "O matemático e astrônomo A.F. Moebius (1790-1868) descobriu uma superfície, a qual descreveu como não tendo 'outro lado', por exemplo, uma superfície de um lado da qual se pode chegar a seu outro lado sem atravessar uma extremidade" (Laban, 1974, p. 98 apud Fernandes, 2000FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro: repetição e transformação. São Paulo: Hucitec, 2000., p. 34). Essa figura se assemelha a um oito deitado feito com uma tira única, cujo lado direito se converte em avesso e vice-versa.
  • 13
    Esse primeiro trabalho consistia em apresentar performaticamente a compreensão do grupo de trechos selecionados do livro A Dança, de Klauss ViannaVIANNA, Klauss; CARVALHO, Marco Antônio. A Dança. São Paulo: Summus, 2008.. Segundo o retorno dos alunos, essa dinâmica de leitura-performance-debate propiciou tanto o entendimento da teoria quanto potencializou a articulação entre a leitura e a prática que vinha sendo experienciada em aula.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2015

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2014
  • Aceito
    05 Set 2014
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