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Laboratório em fluxo: um sopro de ar fresco

Quando fiquei sabendo do título da seção para a qual fui convidada a contribuir, perguntei-me sobre o significado da palavra fluxo. Pensamos no termo Flux [Fluxo] como tema para a 13ª sessão da ISTA (International School of Theatre Anthropology [Escola Internacional de Antropologia Teatral]) em Sevilha em 2004. No entanto, era uma palavra difícil, pois no sentido médico significa uma liberação anormal de sangue ou outro material a partir do corpo ou dentro dele - não é uma associação particularmente poética! Então, para a sessão da ISTA usamos a palavra Flow [Fluxo]1 1 See Barba and Savarese (2019). acompanhada por Rhythm, Organicity, Discontinuity [Ritmo, Organicidade, Descontinuidade]. Eugenio Barba escreveu para o programa:

Sei o que quero dizer com ‘fluxo’. É a experiência particular quando eu, como espectador, sinto que me tranquilizo com um espetáculo ou fragmento dele e sou levado, como por uma correnteza, para longe de meus hábitos mentais e categorias usuais de julgamento. Nestes casos, diferencio ‘fluxo’ de outras palavras pertencentes à mesma família teatral, como ‘ritmo’, ‘coerência’, ‘forma’, ‘energia’, rasa, ‘organicidade’ ou ‘efeito orgânico’. Quando falo com os outros em um ambiente de trabalho em comum, a palavra ‘fluxo’ indica algo que desejamos diferenciar de ‘ritmo’ (Barba, 2004BARBA, Eugenio. Flow: Rhythm, Organicity, Energy. In: INTERNATIONAL SCHOOL OF THEATRE ANTHROPOLOGY (ISTA). 13., Sevilla, 2004. Anais... Sevilla: Teatro Atalaya, 15-25 Oct. 2004. Available at: http://old.odinteatret.dk/research/ista/international-sessions/2004-sevilla,-spain.aspx. Accessed on: 8 April, 2021.
http://old.odinteatret.dk/research/ista/...
, p. 1).

Quando trabalho como diretora, sei que é o ritmo das ações representadas que me revelam a verdade do que que está acontecendo no palco. A qualidade particular que me permite acreditar naquilo que enxergo é dada pelo sincronismo exato e necessário ao qual chamo de ritmo, às vezes mais lento e às vezes mais rápido do que aquilo que comumente percebemos na realidade. Como atriz, sei da importância do ritmo que se materializa na intensidade de cada mudança de tensão em meu tronco quando as células do meu corpo respiram e a energia é direcionada no espaço. O fluxo ocorre quando as ações foram suficientemente repetidas para serem esquecidas, quando sou transportada pelo que estou fazendo, sem comandos ou pensamento. O fluxo é a liberdade de levar em conta o contexto cênico em que me movimento, transformando ação em reação. Consigo obter um efeito orgânico para o espectador quando presença, ritmo e fluxo são combinados na complexidade do espetáculo em todos os seus detalhes. Posso usar essas palavras para escrever sobre o teatro laboratório?

Ainda sobre o programa da ISTA, Eugenio Barba acrescenta:

Entretanto, a eficácia da linguagem pessoal e de trabalho se perde quando tento extrair uma abstração proveitosa a partir da situação subjetiva, isto é, quando tento alcançar uma compreensão objetiva de determinados aspectos do ofício. A ciência empírica do teatro, conforme a praticamos na ISTA, muitas vezes é baseada em uma análise impiedosa do limiar de palavras, buscando experiências concretas que correspondem a elas, a partir dos pontos de vista do ator e do espectador. [...] (Barba, 2004BARBA, Eugenio. Flow: Rhythm, Organicity, Energy. In: INTERNATIONAL SCHOOL OF THEATRE ANTHROPOLOGY (ISTA). 13., Sevilla, 2004. Anais... Sevilla: Teatro Atalaya, 15-25 Oct. 2004. Available at: http://old.odinteatret.dk/research/ista/international-sessions/2004-sevilla,-spain.aspx. Accessed on: 8 April, 2021.
http://old.odinteatret.dk/research/ista/...
, p. 1).

Quando trabalhamos juntos, Eugenio Barba e eu usamos muito poucas palavras para nos comunicarmos na prática de nosso teatro. No Odin Teatret usamos apenas kraft (poder) e sats (impulso), em dinamarquês, juntamente com rytme (ritmo), quando esse último faz falta. Se eu tentar explicar aos outros como trabalho como atriz e diretora, luto para manter a abertura de compreender as palavras em relação à experiência na qual a oposição sempre está presente. Eu gostaria que meu pensamento fosse ditado por um conhecimento tácito incorporado obtido durante os muitos anos de trabalho como atriz. Esse é o ponto de vista do qual parti quando comecei a escrever sobre laboratório em fluxo.

Permanece a Pergunta: o que é um laboratório em fluxo?

Se não estou pensando em teatro, a primeira associação que faço com a palavra laboratório é pesquisa científica em uma sala fechada, com microscópios e tubos de ensaio, vapores e finas luvas de borracha e algumas pessoas em aventais brancos conversando às escondidas. A energia é voltada para dentro. A palavra oficina me faz pensar em carpintaria: madeira, martelos e pregos, mãos hábeis e nenhuma conversa. O objetivo do artesão que trabalha na oficina é produzir objetos bonitos, não necessariamente comunicação.

É diferente no teatro, pois o efeito de um laboratório e de uma oficina é disseminar informação, significado e conhecimento. A energia se movimenta simultaneamente em sentidos e níveis diferentes. No teatro, a identidade dá vida a oposições criativas: arte e ofício, disciplina e liberdade, pesquisa e repetição, relações e isolamento, know-how e aprendizagem, espetáculo e ensaio, treinamento e improvisação, absorção e ensino, comunidade e isolamento, inspiração e perspiração, palavra e silêncio, dança e imobilidade, coletivos e isolamento, atores e espectadores, documentação e experiência, diretores e incerteza, canção e fala, música e ruído, luz e escuridão, espaço externo e interno, assentos e ruas, ingressos e subvenções, individualidade e sociedade [...].

Alguns teatros laboratório do passado e do presente influenciaram a maneira como fazemos teatro hoje, mas não apenas no campo da ação confinada ao estúdio ou ao espaço de ensaios. No começo do século XX, estúdios e coletivos buscavam um resultado profissional, espiritual ou político para o teatro, mas desde então esses exemplos originaram sentidos diferentes2 2 See Gordon (2009, p. 16-40). . Acredito que atualmente o maior efeito dos teatros laboratório é seu papel social, como interagem com a comunidade, dando e recebendo, criando comunicação e fusão.

Na primeira metade do século XX, alguns estúdios, que agora consideramos como exemplos de teatros laboratório, eram formas diferentes de escolas de teatro. Os primeiros profissionais de teatro a empregarem a palavra laboratório foram Richard Boleslavsky e Maria Ouspenskaya nos Estados Unidos quando, em 1923, abriram uma escola para ensinar o método de trabalho de Stanislavski3 3 See Schechner (2001, p. 207-215). . Livros nos dizem que, em 1962, Jerzy Grotowski não tinha espectadores suficientes para seus espetáculos a cada noite, como era esperado de cada teatro normal, então usou a expressão teatro laboratório para explicar o fato de que realizava pesquisa. Mais tarde, Jerzy Grotowski passou a praticar o parateatro, distanciando-se do ofício da arte do ator, objetivando estabelecer um relacionamento com participantes em partilha4 4 The Bread and Puppet Theater was founded in 1963 by Peter Schumann on New York City’s Lower East Side. It is one of the oldest, non-profit, political theatre companies in the USA, specialising in street and puppet theatre. . Em 1966, quando o prefeito de Holstebro, Kai K. Nielsen, que tinha convidado o Odin Teatret a se estabelecer na Dinamarca, perguntou o que era um teatro laboratório, Eugenio Barba respondeu: Um teatro que não se apresenta todas as noites. Mas se um teatro não se apresenta, faz o quê?

Como o grupo não tinha nenhum espetáculo a apresentar para justificar sua existência para os políticos que financiavam, o Odin Teatret foi forçado a diversificar sua atividade, aprendendo e se desenvolvendo, ao mesmo tempo em que trabalhando para se manter. Assim, o Odin Teatret começou a organizar oficinas e seminários; convidou espetáculos visitantes de artistas como Dario Fo e Étienne Decroux, que foram à Dinamarca pela primeira vez; criou um clube de cinema, editou uma revista de teatro, publicou livros e filmes didáticos, organizou documentos, reuniu crianças, criou encontros com pessoas da cidade e construiu novas salas para aumentar o espaço do prédio de seu teatro.

Tudo isso inspirou outros grupos teatrais que nasceram naqueles anos. Alguns dos grupos chamavam a si mesmos de teatros laboratório, outros não usavam o nome, mas ainda se reconheciam na prática de uma forma de produção diferente, de um ambiente capaz de operar individual e coletivamente. Aqui se encontra a fonte da tradição dos teatros laboratório a partir do fim da década de 1960. O Odin Teatret tornou-se uma referência não apenas por seu treinamento e espetáculos, mas também por sua logística, gestão e implementação operativa.

Nos últimos anos, continuo a testemunhar teatros laboratórios e grupos teatrais que descobrem seu sentido ao irem além da caixa preta para inventarem novas relações. O Odin Teatret e outros teatros laboratório, como parte dos movimentos pioneiros das décadas de 1960 e 1970, começaram a reinventar o valor do teatro. Em busca de estratégias de sobrevivência, quando a bilheteria e as subvenções estatais não eram suficientes, os profissionais de teatro começaram a lecionar, fazer espetáculos de rua, intervir em contextos periféricas. O laboratório era fora, a céu aberto, a energia se movimentava para fora.

Referindo-me ao Odin Teatret e ao Nordisk Teaterlaboratorium como exemplos de teatros laboratório, suas características me revelam a importância de serem ambientes com um núcleo de colaboradores permanentes capazes de trabalhar tanto em espaços fechados como abertos, criando o que é considerado ao mesmo tempo arte e cultura, produzindo espetáculos em uma sala separada - ou sagrada - e, simultaneamente, desenvolvendo-se como uma interferência estimulante em suas comunidades. O valor não se dá por se concentrar em apenas um campo, mas por conseguir saltar de uma realidade para outra, usando uma técnica adquirida pelo treinamento físico e vocal para gerar presença em todos os níveis na sociedade. O fluxo também está dentro do próprio teatro laboratório: conseguir se deslocar.

Escrevi em um artigo sobre o Holstebro Festuge (Semana Festiva) - um evento de nove dias e noites da cidade inteira onde o Odin Teatret tem sua sede:

Atualmente, as visões artísticas e as justificativas culturais não são suficientes para comprovar a importância do teatro em nossa sociedade. A credibilidade do teatro encontra-se em sua capacidade de alcançar as diferentes camadas da população que são indiferentes a suas expressões e ao ofício artístico. Isto pode ser alcançado apenas por um repensar do know-how e dos objetivos do ator com relação a uma pergunta simples: como nosso ofício pode ajudar na geração de relações entre indivíduos que são ou se tornaram estranhos entre si? Os ministros da cultura e os políticos consideram a expressão teatral como arte. Eles estão certos: todos nós temos que dar nosso máximo para manter a excelência artística de nosso ofício. Ao mesmo tempo, é inegável que hoje em dia o valor do teatro também está em sua habilidade de lançar raízes e encontrar novas finalidades tanto no lado claro como escuro de nossa sociedade: nos jardins de infância e prisões, nos bairros, hospitais psiquiátricos e casas geriátricas, entre jovens desempregados e cercamentos étnicos, em torno de igrejas semivazias e discotecas superlotadas, em fazendas isoladas, fábricas abandonadas e estaleiros desmantelados, bem como em shoppings lotados, cidades-fantasma periféricas e centros de cidade frenéticos. Nestes lugares, o teatro nunca foi uma necessidade urgente ou uma demanda imperativa. Repensar significa encontrar um modo de despertar esta necessidade ou demanda. O ofício teatral já elaborou muitos procedimentos, dispositivos e processos que assumiram muitos rótulos: teatro social ou aplicado, teatro comunitário, teatro da reciprocidade. O que mais podemos fazer? (Varley, 2014VARLEY, Julia. La Festuge de Holstebro: re-pensando el teatro. Primer Acto, Madrid, n. 346, Ene./Jun. 2014., p. 57).

Recentemente, fui convidada a escrever sobre o Terceiro Teatro, conforme foi definido por Eugenio Barba em 1976, após a primeira reunião de teatros de grupo durante o Festival BITEF em Belgrado no mesmo ano. Muitas vezes acho que as discussões que derivam dessa definição dividem o teatro em grupos comunitários ou companhias criativas - com impacto social ou artístico - grupos amadores ou profissionais, em espetáculos baseados em textos ou valores comerciais ou vanguardistas ou pós-modernos, em grupos a favor ou contra o Odin Teatret, aqueles que praticam treinamento ou aqueles que não o fazem. Ao usar repensar no artigo sobre o Holstebro Festuge, eu estava tentando superar as divisões impostas pela análise para indicar que o poder do teatro se encontra em sua capacidade de favorecer a comunicação lá onde normalmente está interrompida. Esse poder é baseado em um know-how oriundo do ofício. Continuo no artigo:

Atores/atrizes são especialistas em construir relações: com o passado e o presente, com um texto, consigo, com espectadores, com diferentes tipos de espaço - espaço pessoal interno, físico, cultural e social. Os atores do Odin Teatret usam esta especialidade também em situações fora da estrutura artística de um espetáculo, aplicando seu know-how como catalizador para outros tipos de interações. O objetivo não é a criação de um espetáculo para ser julgado como uma obra artística, mas como ato transformador da participação e do intercâmbio mútuo entre distintos setores de uma comunidade. Essas interações permitem que os participantes expressem sua própria diversidade, que é tanto sua maior força como o principal fator que os mantém distantes. Durante um Festuge, os moradores de nossa cidade não são apenas uma plateia em potencial ou uma entidade sociológica. São indivíduos com biografias, expectativas e interesses específicos. Somente apelando ao orgulho que sentem por seus antecedentes pessoais e conscientizando-os do que é vantajoso para eles é possível desencadear uma situação de troca coletiva: uma troca orientada por processos de manifestações culturais por meio de canções, danças, contação de histórias e relatos biográficos, exemplos de sua própria tradição culinária e brincadeiras, até mesmo representação de cerimônias como casamentos (Varley, 2014VARLEY, Julia. La Festuge de Holstebro: re-pensando el teatro. Primer Acto, Madrid, n. 346, Ene./Jun. 2014., p. 57).

Lições de um Teatro Laboratório

Teatro é relação. Ele não existe sem pelo menos duas pessoas vivas compartilhando espaço e tempo. Nunca esquecemos da importância dos espectadores, mesmo quando falamos de teatros laboratório. O teatro faz as pessoas se encontrarem. A comunicação que se estabelece é majoritariamente baseada na linguagem do corpo, na expressão do rosto, na entonação da voz, na densidade de suas imagens vivas, e apenas em parte nas palavras que são ditas. A presença e a troca de energia são fundamentais. O teatro é real e é ficção. No palco somos e representamos. Os níveis de ser e de representação podem ser separados em uma análise abstrata, mas não naquilo que está realmente acontecendo. Posso falar sobre a diferença entre ser Julia, a atriz, e uma personagem, mas no palco essas realidades coexistem e dialogam com a percepção do espectador. A natureza do teatro não é uma dicotomia, mas sim pluralidade e simultaneidade orgânicas. Isso é o que permite que enxerguemos, compreendamos e apresentemos o mundo em torno de nós de maneira diferente. O teatro torna-se a ocasião para virar a realidade de cabeça para baixo.

Como atriz que foi treinada em teatro laboratório, aprendi a criar um diálogo entre texto e ação, significado e cenas, uma parte do corpo e outra, outro ator e eu, personagens e espectadores. Quando treinados em teatros laboratório, atores e diretores se tornam especialistas em montagem, bricolagem, reunião de elementos diferentes, contiguidade e acaso confiante à criação. Nossa prática teatral é baseada na colaboração em que a combinação de diversidades é interessante. Aceitamos e valorizamos as diferenças de um modo que Jane Turner e Patrick Campbell chamam de hospitalidade incondicional, pois contribui para a riqueza de nosso ambiente. Nosso know-how em construir relações como profissionais do teatro pode ser particularmente eficaz em reunir expressões das diferentes camadas de uma comunidade que comumente não são vivenciadas em conjunto.

A partir de março de 2020 e do começo da pandemia por Covid-19, todos nós tivemos que repensar nosso papel como pessoal do teatro. Como dito anteriormente, o teatro mostra sua força quando pelo menos duas pessoas vivas compartilham do mesmo tempo e espaço, o que não tem sido possível durante o último ano. Estar on-line não permite que usemos nossa experiência em como moldar a presença no palco e um fluxo de energia com o espectador. Em vez disso, muitas vezes fizemos filmes medíocres, sem considerar a técnica específica de cinema que necessita de um ritmo diferente da montagem. No entanto, nossa principal responsabilidade durante a pandemia tem sido prover energia: esperança na ação para o futuro. Os encontros e os festivais que acontecem on-line são necessários para manter um sentimento de conexão apesar do isolamento e para contar outras histórias em uma época de inundação de fake news. Precisamos aprender a falar através de uma imagem digital parcial na tela, a criar energia também com este meio: olhar direto para a câmera, fazendo breves intervenções concretas nas quais cada palavra conta, lembrar de dar espaço aos outros, preparar, oferecer alternativas, ensinar e compartilhar. A pandemia permitiu que reuníssemos mais países e cidades pela Internet do que o que poderíamos ter realizado antes devido às limitações econômicas e logísticas.

Não poder se encontrar com os espectadores porque os teatros estão fechados e as reuniões estão proibidas é frustrante. O sentido do teatro parece desaparecer. No começo, reagi dizendo que deveríamos usar nosso tempo para nos prepararmos para quando os teatros pudessem abrir de novo. Treinar, ensaiar, trabalhar em novas cenas ou em textos foi uma maneira de nos prepararmos ativamente para o futuro. Transformei minha sala de estar em um espaço de treinamento ao enrolar os tapetes e empurrar os móveis para o lado. Então os meses de lockdown continuaram e foi difícil manter o espírito de luta. Dançar foi uma solução: a música me forçou a reagir sem pensar, deu-me energia e precisão, necessidade e forma imediata. Em vez de me basear em histórias e sentimentos internos, sempre insisti em explorar a motivação e a inspiração que vem de fora: música, natureza, presentes, amigos, alunos, pinturas, figurinos, sapatos, objetos, espaço, poesia etc. Todos esses elementos renovam minha vontade de continuar trabalhando e me dão tarefas para desenvolver. Outras pessoas me pedem para escrever, falar, representar, explicar e, ao atender ou reagir, sigo em frente. Extraio minha energia de fora, deixo-a passar através de mim e sair outra vez. É como respirar, inalar e exalar; outro tipo de fluxo.

Então me lembro e encontro a confirmação de que o teatro pode ser uma pessoa contando uma história na esquina de um supermercado, um fantoche se movimentando atrás das barras de um caixilho de janela, palhaços representando para crianças em uma fila enquanto suas famílias esperam por cestas básicas, concertos no pátio de condomínios onde os espectadores escutam da segurança de suas casas, músicas cantadas das sacadas e das janelas, desfile sem parar em um bairro. Os teatros italianos clássicos conseguiam remover suas poltronas conforme propôs o diretor italiano Gabriele Vacis para permitir que as pessoas entrassem das ruas, encontrassem abrigo e tivessem um insight do trabalho cotidiano dos teatros. Gabriele Vacis começou a fazer teatro seguindo Jerzy Grotowski e Eugenio Barba, fundando seu próprio grupo. Agora é um dos diretores teatrais italianos mais conhecidos, então, sua sugestão foi bastante provocadora quando muitos outros profissionais do teatro se concentravam em queixas. Todas essas alternativas provêm de uma maneira diferente de pensar o ofício que também aprendemos na prática de teatros laboratório.

Teatro como Dissidência

Durante uma sessão da Universidade do Teatro Eurasiano na Sicília, na Itália em 2003, uma vez expliquei por que o Odin Teatret era um teatro laboratório ao narrar um episódio de nossa história. Durante os ensaios de Cinzas de Brecht em 1979, nosso diretor, Eugenio Barba, ficou muito irritado com uma das atrizes do grupo. Saiu batendo a porta, com o andar decidido de alguém que não tem nenhuma intenção de jamais voltar. No dia seguinte, todos os atores foram ao teatro como era usual para realizar seu treinamento. Tínhamos disciplina e uma agenda diária de atividades que eram independentes do trabalho no espetáculo e das reações do diretor. Realizamos nosso trabalho como sempre. Eugenio retornou: nossa perseverança fê-lo reconsiderar sua decisão. Para mim, a lição foi a centralidade dos encontros e atividades diárias do grupo, não obstante a presença de espectadores; compartilhar tempo e espaço, trocar ideias através de ações concretas. A existência de um teatro laboratório é baseada na continuidade da experiência e nas necessidades das diferentes pessoas envolvidas. O que nos mantinha juntos era a demanda de dar o máximo em todas as situações e ter tempo para que os resultados surgissem. É claro que os conflitos fazem parte do processo do trabalho de um teatro laboratório, mas aprendemos que a dissidência e a diversidade são fonte de criatividade. A definição acontece no trabalho concreto por um resultado que supere discordâncias e nos surpreenda. É preciso resistência para descobrir algo novo. Somos treinados para enfrentar dificuldades, constrições, desafios, oposição e recusas para que contribuam para criar um resultado inesperado.

Acima de tudo, um teatro laboratório ensina dissidência e resiliência. Descobrimos que as dificuldades são oportunidades de aprendizagem, desenvolvimento e mudança. Não é que tenhamos uma ideia e decidimos como a realizamos. No Odin Teatret, os problemas que precisamos resolver nos levam a descobrir novos caminhos para andar. Quando o grupo saiu da Noruega e se mudou para a Dinamarca, os espetáculos tiveram que encontrar outros canais de comunicação além da língua falada, pois os atores não falavam dinamarquês. O treinamento introduziu uma expressão mais física, vocal e musical. Ao ensaiar em uma pequena vila no sul da Itália, onde os moradores locais pediram que os atores apresentassem uma peça, os exercícios diários se transformaram em um espetáculo de dança e, consequentemente, foi estabelecida a prática da troca. Quando atores de nacionalidades diferentes se juntaram ao grupo, cada espetáculo precisou encontrar uma solução para a compreensão do texto. Representamos em um russo inventado para Min fars hus, em copta para O evangelho segundo Oxyrhincus, em muitas línguas diferentes para Kaosmos e A árvore, traduzindo e comentando os versos originais para Cinzas de Brecht. As escolhas não seguiram o conceito de texto como uma sequência das palavras com um significado, mas descobriram a importância dos diferentes sons da língua; como se comunicar através do que não poderia ser compreendido pelos espectadores, e dando uma imagem concreta da realidade incompreensível e intercultural na qual vivemos. Encontrar alternativas que respondessem à nossa condição como grupo de estrangeiros parecia ir contra os procedimentos teatrais usuais, mas para nós era apenas uma estratégia de sobrevivência.

Depois de décadas trabalhando juntos, a renovação de desafios oferecidos por cenários, atores jovens e fuga da repetição impõe novas soluções. Para Mythos, começamos com um jardim zen que apresentava dificuldades para os atores caminharem; para O sonho de Andersen, o dançarino afro brasileiro Augusto Omolú instituiu um diálogo entre os atores que incluía a dança dos Orixás; para A vida crônica, os atores antigos e experientes encontraram novas maneiras de se relacionarem com Sofia Monsalve, nova atriz e muito jovem; para Ave Maria, precisei aprender a fazer o personagem Mr. Peanut parecer exausto, lutando contra seu desejo de continuar dançando feliz pelas ruas. Eu poderia dar muitos exemplos de como cada espetáculo exige mudanças durante o processo de criação. Somos dissidentes também para nós mesmos, indo contra os hábitos do passado e os clichés que elaboramos.

As ações que aprendemos a moldar no palco também se tornam instrumentos para o ativismo. O treinamento em gerar ações vivas também nos ensina a assumir uma posição em sentido político. Quando, no exercício de treinamento de um ator, colocamos nosso corpo fora de equilíbrio para cair e recuperar a energia através de uma reação, aprendemos que estar em um lugar de risco devolve novos impulsos e nos mostra novas perspectivas. Foi assim que compreendi por que tantas mulheres no teatro trabalham na periferia tanto no sentido geográfico como profissional. Optam pelo risco em vez da segurança, estar nas margens em vez do centro. Preferem o desafio da mudança e adaptação contínuas às restrições em vez da fama de uma prática reconhecida presa a um método. Optam por uma memória de experiência que flui e transforma em vez de um conhecimento fixo em livros, métodos e fórmulas. Elas - e eu - escolhemos o que eu chamaria de laboratório em fluxo.

A atriz e diretora argentina Ana Woolf explicou como o ensino da presença no palco em oficinas teatrais proporcionou a mulheres na Sérvia a confiança para participar de manifestações por seus direitos, a mulheres falantes de quechua nos Andes a determinação para organizar um festival internacional de teatro, a povos indígenas de diferentes partes da América Latina a autoconfiança para defender seus valores. Quando a atriz chilena María Cánepa ensinou dicção para mulheres dos bairros pobres de Santiago durante a ditadura militar de Augusto Pinochet, forneceu a elas ferramentas para falarem nas reuniões no lugar de seus maridos presos.

Escolhi o teatro porque exigia ação de minha parte. Como ativista política no princípio da década de 1970, eu me baseava demais em palavras e ideologia. Encontrei meu ativismo de novo no teatro laboratório, mas agora sustentado na minha presença total no palco e em uma maneira de pensar que está enraizada no meu ofício como atriz. Meus pés me mostram o caminho; a oposição criativa necessária no drama transforma o conflito em uma possibilidade em curso de desenvolvimento e decisão, ao invés de um impasse em uma guerra sem nenhum desfecho possível.

Hoje em dia, em um mundo não mais rico em tempo e paciência, muitas vezes a continuidade na cultura de um grupo teatral foi repassada às redes. A reunião não é diária no espaço de trabalho, mas ainda é regular e sem interrupções. Dá forma a sua própria história. A rede Magdalena Project me ensinou como minhas raízes estão eternamente em trânsito, como sempre precisamos levar em conta o contexto e quanto a experiência é relativa. Compartilho essa consciência com meus colegas do teatro laboratório do qual faço parte, o Odin Teatret.

Dependendo de onde usamos, as palavras têm significados muito diferentes. Antes da queda do muro de Berlim, o feminismo na Europa ocidental podia significar a recusa em usar maquiagem, enquanto na Europa Oriental podia significar usá-la. Uma palavra como resistenza em italiano, designando a luta dos resistentes contra os nazistas de 1943 a 1945, tão cheia de implicações políticas e memória histórica, usada por um ator em um exercício de treinamento, fala de algo que não existe em inglês. Se dissermos resiliência ou resistência, ainda não traduz o profundo significado que a palavra italiana sugere, cultural e semanticamente, em seus diferentes contextos práticos. Ser capaz de cruzar todos os tipos de fronteiras e estar ciente do outro ponto de vista é outro aspecto do laboratório em fluxo.

Muitos imaginam que o corpo é o denominador comum de teatros laboratório a partir de 1968. Muitas vezes, porém, foi uma motivação política que ofereceu o primeiro impulso para um tipo diferente de teatro. Muitos de nós começamos a fazer teatro como uma maneira de mudar o mundo. Quando comecei, nunca imaginei que me tornaria atriz; para mim, o teatro era apenas uma maneira de estar ativa, de não falar sobre injustiça, mas sim de fazer algo. Tornei-me atriz ao longo do caminho. Mas ainda me lembro do que me trouxe à garagem em Milão onde coloquei uma máscara pela primeira vez para interpretar uma história do Bread and Puppet Theater5 5 The Ship of Fools is a critical laboratory of scholars who have collaborated in the past in a systematic way with Nordisk Teaterlaboratorium and CTLS (Centre for Theatre Laboratory Studies). Luis Alonso Aude’s comment was given during a presentation at the event ‘Ship of Fools Conversations,’ held online from the 30-31 January 2021 in collaboration with NTL. See <https://odinteatret.dk/dk/news/ship-of-fools/>. Accessed on: 8 April, 2021. . Alguns anos depois, quando nos demos conta de que o mundo não tinha nenhuma intenção de ser mudado, o grupo teatral ou teatro laboratório tornou-se a maneira de viver a transformação diretamente no corpo e na comunidade ao nosso redor.

Os grupos e laboratórios teatrais que Eugenio Barba definiu como pertencentes ao Terceiro Teatro surgiram, ao mesmo tempo, no começo da década de 1960, em diferentes partes do globo sem saberem uns dos outros. Proliferaram como cogumelos não devido a um manifesto em comum, mas a partir de uma necessidade de lutar, mudar e influenciar a história e a realidade. Desenvolveram propostas diferentes ao escolheram outros valores, encontrando maneiras de se reunirem por compartilhamento e intercâmbio. Muitos adotaram estruturas organizacionais horizontais ao invés das verticais que tínhamos herdado da tradição. Recordo-me que queríamos aprender com os livros ou professores reconhecidos em nossos próprios termos. A dissidência ainda era a coisa mais importante. O teatro era uma maneira de viver a revolução no presente.

Repassar a Experiência: não métodos, mas duração e corpo/mente como arquivo

Trabalhar na estrutura grupal de um teatro laboratório significa que as pessoas decidem qual trabalho deve acontecer e isso tem consequências em como trabalhamos. Não existe nenhum papel contratual a atender, mas sim uma dinâmica de forças centrífugas e centrípetas nas quais a concentração artística no espetáculo é muitas vezes o coração que mantém tudo fluindo, quando os pés e os braços e a cabeça fazem força para dar conta de tarefas, circunstâncias e restrições impostas por desenvolvimentos econômicos, sociais e históricos.

No Odin Teatret, os espetáculos, personagens e papéis surgem da constelação do grupo, dos atores isoladamente e de suas características de idade, gênero, interesses, língua e experiência. Em um teatro normal, os atores são escolhidos para desempenhar uma personagem específica e o elenco depende das personagens que pertencem ao texto ou ao projeto. Os pontos de partida para um processo criativo em um grupo teatral são opostos àqueles de uma instituição teatral ou de um projeto limitado em tempo. A estrutura de produção do teatro laboratório - baseado em um núcleo de membros permanentes - tem um efeito social e organizacional que vai muito além do palco.

A dinâmica centrífuga e centrípeta em grupos teatrais pode criar conflito entre atores que dedicam seu tempo e energia a projetos pessoais quando o grupo precisa se reunir em torno da criação de um espetáculo conjunto ou uma turnê. Mas também pode ser a atenção diferente necessária para o trabalho artístico e outras atividades, inclusive trabalho comunitário, documentação, treinamento [...]. Uma confrontação entre as necessidades do processo e do resultado pode ser destrutiva quando não conseguimos identificar em que fase estamos. A riqueza do ambiente de um teatro laboratório como o Odin Teatret também se origina do apoio a projetos pessoais, mesmo quando parecem não ter nada a ver com o grupo. Sabemos que a motivação para colaborar também vem do respeito do espaço individual que contribui para as atividades gerais.

Uma característica dos grupos teatrais que se chamam teatros laboratório é sua duração no tempo. A combinação de muitos anos de experiência com a capacidade de sonhar com perspectivas futuras em longo prazo automaticamente resulta em uma história compartilhada e um arquivo vivo. O arquivo é vivo porque as pessoas envolvidas continuam a trabalhar e inventar projetos e porque a documentação do passado é usada para produzir mais filmes, livros, revistas e espetáculos. Este conhecimento não é fixo nem estático, mas que flui e se transforma. Pensamos em termos de pessoas em vez de métodos, e em genealogia em vez de legado.

O arquivo é vivo como as pessoas que repassam sua experiência. Os professores são a aula e seu conhecimento é incorporado. As demonstrações de trabalho, chamadas desmontaje (desmontagem) na América Latina quando explicam o processo da criação de um espetáculo, são exemplos de arquivos vivos. Quando apresento uma demonstração de trabalho, todas as fases do meu aprendizado, improvisação e ensaios estão incorporadas naquilo que mostro aos espectadores. A informação é densa e não pode ser reduzida a palavras. Na medida em que percorro as primeiras etapas de um processo até alcançar um resultado, o caminho que trilho no chão, a entonação de minha voz, a tensão particular de meus dedos - tudo contribui para repassar a experiência.

Quando trabalho com outros atores, a informação passa de corpo para corpo, sempre em movimento, nunca objetiva ou na terceira pessoa, mas sempre parte de um processo. Sei que minha experiência precisa ser traduzida em uma língua pessoal que muda dependendo da pessoa com quem trabalho. O que as pessoas precisam para se desenvolver em um momento específico é diferente no seguinte. A maneira como repassamos, ensinamos e aprendemos, compartilhamos e trocamos, é um modo de continuar e de pensar que determina a qualidade do laboratório fluxo. Repasso uma lembrança que sempre carrego comigo, não algo que posso deixar para trás, conforme explicou o cubano-brasileiro Luis Alonso Aude em uma fala durante uma reunião de estudiosos reunidos como parte do projeto The Ship of Fools em 20216 6 Comment made by Marije Nie during a presentation at the aforementioned event, Ship of Fools Conversations. .

Compartilhar a Diversidade

No fim de 2020, Eugenio Barba aposentou-se de seu cargo como diretor do Nordisk Teaterlaboratorium-Odin Teatret, transferindo a responsabilidade para Per Kap Bech Jensen. Eugenio Barba continua sendo diretor do Odin Teatret, da companhia e de seus espetáculos. Grupos e artistas mais novos têm se reunido conosco durante os últimos anos, mantendo sua autonomia artística dentro da estrutura do Nordisk Teaterlaboratorium. É uma geração que germinou a partir das sementes jogadas ao vento pelo Odin Teatret. Compreendem o teatro não apenas como espetáculo em um espaço tradicional, mas também como pesquisa, pedagogia, incentivo cultural interativo, trabalho em rede e eventos presenciais específicos, envolvendo diferentes linguagens artísticas, imagens, corpo, música e canção como meio para criar intercâmbio e ser um catalizador para contatos, relações e colaborações na colcha de retalhos social/cultural da comunidade.

Durante um encontro com políticos locais em Holstebro, em 2018, soube que a realidade da legislação, do apoio estatal e das estruturas oficiais teria uma imensa influência no futuro do Nordisk Teaterlaboratorium quando Eugenio Barba já não fosse mais diretor. Na década de 1980, quando Iben Nagel Rasmussen, atriz dinamarquesa que se juntou ao Odin Teatret em 1966, quis deixar o grupo para trabalhar permanentemente com seus alunos, Eugenio transformou nossa estrutura ao inverter o título e o subtítulo para que o Nordisk Teaterlaboratorium se transformasse no guarda-chuva sob o qual se poderia encontrar o Odin Teatret, a ISTA - International School of Theatre Anthropology, o Farfa (grupo de Iben naquela época), o Basho (dirigido por Toni Cots), o The Canada Project (dirigido por Richard Fowler), o Odin Teatret Film e a Odin Teatrets Forlag. Esta nova organização permitiu que Iben continuasse a trabalhar com seu grupo dentro da estrutura do Nordisk Teaterlaboratorium.

Muita água rolou sob a ponte desde então. Atualmente, depois da mudança de diretor e com as consequências da situação do coronavírus, o Nordisk Teaterlaboratorium inclui quatro grupos teatrais: Odin Teatret (dirigido por Eugenio Barba), Ikarus Stage Arts (dirigido por Carolina Pizarro e Luis Alonso), Váli Theatre Lab (dirigido por Alice Occhiali e Valerio Peroni) e Moon of Asia (dirigido por Søs Banke). Todos esses grupos estão sediados em Holstebro, Dinamarca e ensaiam, apresentam-se, excursionam e ensinam (o Váli Theatre Lab está especialmente envolvido em teatro com crianças). O Nordisk Teaterlaboratorium também inclui outros projetos que transcendem as fronteiras do teatro, como Cross Pollination/Parliament of Practices (dedicado à pesquisa e à uma conexão ecológica de diferentes práticas, dirigida por Adriana La Selva e Marije Nie), Idom Village Laboratory (com foco na manutenção de relações e atividades vivas em um vilarejo, dirigido por Kai Bredholt), Nido Lab (projeto pedagógico, dirigido por Donald Kitt), Transit Festival e The Magdalena Project (rede de mulheres no teatro, sendo Julia Varley responsável por suas atividades no NTL), Ilita (projeto multimídia, dirigido por Dina Abu Hamdan), Transformations of Traditional Chinese Technique (projeto de pesquisa conduzido por Ding Yteng), Kompany To (companhia de circo contemporâneo dirigida por Tamar Ohana Goksøyr e Mari Dahl Stoknes), Riotous Company (companhia internacional, dirigida por Mia Theil Have), Humørgruppen (teatro para idosos, dirigido por Kai Bredholt), The Ship of Fools (associação de pesquisa de estudiosos com Adam Ledger, Annelis Kuhlmann, Exe Christoffersen, Jane Turner, Patrick Campbell e Tatiana Chemi), The Bridge of Winds (projeto pedagógico internacional de trinta anos de duração, dirigido por Iben Nagel Rasmussen), Kunstteater (companhia que conecta artes visuais e teatro, dirigida por Mathias Dyhr), MA Laboratory Theatre (curso de mestrado estabelecido como colaboração entre a Universidade Metropolitana de Manchester e o NTL), CTLS - Centre for Theatre Laboratory Research (colaboração com o Departamento de Dramaturgia da Universidade de Århus, dirigida por Annelis Kuhlmann). Outros artistas passam um tempo em residência no Nordisk Teaterlaboratorium por períodos intermitentes, inclusive grupos como Palle Granhøj Dance Company (Dinamarca), AjaRiot (dirigido por Isadora Pei, Itália), Rocío del Pino Lobos (Chile) e Cinzia Cordella (Itália). Ao apresentar a amplitude das atividades do Nordisk Teaterlaboratorium, devo incluir a produção de espetáculos, dirigidos por atores do Odin Teatret com grupos do mundo inteiro (como a Cia. Pessoal de Teatro do Brasil, Teresa Ruggeri da Itália, Masakini Theatre da Malásia, Rosa Antunes do Brasil, Merida Urquía da Colômbia [...]) e espetáculos como Babel Babel Babel com Søs Banke e Martin Damgaard, produzido na estrutura do NTL. Projetos abrangentes com o Greenland National Theatre e com Dongil Lee na Coreia ocupam muito do calendário anual. Espetáculos como Flowers for Torgeir com Roberta Carreri, Tierra de fuego com Carolina Pizarro, Fool in the Full Moon com Donald Kitt e outras também estão incluídas como coproduções do NTL porque, mesmo que os atores pertençam ao Odin Teatret, esses espetáculos não foram dirigidos por Eugenio Barba. Historicamente, o Nordisk Teaterlaboratorium inclui o OTA (Odin Teatret Archives), a ISTA (International School of Theatre Anthropology), a Odin Teatrets Forlag (editora que produziu TTT - Teatrets Teori og Teknikk e The Open Page), mas com as mudanças em andamento, não tenho certeza de sua conexão com o NTL no futuro.

Está surgindo em nossa instituição geral uma divisão entre o Odin Teatret e o que chamamos abreviadamente de NTL. É difícil manter um sentimento de unidade sem compartilhar o trabalho em sala ou ser incentivado a colaborar além dos limites que conhecemos. É estranho para mim observar como a concretude da linguagem do corpo, da aprendizagem e da pesquisa e de processos criativos para um espetáculo resultam em um entendimento compartilhado que é muito diferente dos projetos nascidos a partir de conceitos ou de alianças econômicas. No passado, no Odin Teatret, todas as ocasiões seriam investidas nas pessoas do grupo; agora o NTL traz pessoas para atender a projetos programados.

Planejei o primeiro, o segundo e o terceiro Festival e Encontro do NTL em 2019, 2020 e em 2021 (esse último foi cancelado devido às restrições do coronavírus) para oportunizar um encontro em sala da constelação de grupos e artistas reunidos em torno do Odin Teatret. A proposta era trocar visões e planos artísticos, ideias para espetáculos e produções já concluídos. Eu estava em busca de uma maneira de ter um senso de pertencimento com uma história em comum e uma maneira de redescobrir a hospitalidade incondicional dentro da nova constelação do NTL, que é muito mais dispersa do que éramos como membros do Odin Teatret.

Para nós no Odin Teatret, o modo de estar junto sempre foi manifesto na atenção ao detalhe: limpar o espaço, cuidar dos figurinos e adereços, evitar discussões e contribuir com novas propostas se discordarmos, enfocando um sentimento de obrigação e gratidão: recebemos e precisamos devolver. Isso foi possível porque nos encontrávamos todos os dias no espaço de trabalho.

Eu estava interessada em manter e em promover o laboratório em fluxo, ou como chamei no programa do 2º Festival NTL, o Espírito de Laboratório. Isso é o que poderíamos compartilhar. Eu esperava por cinco dias de intensa diversidade, colorida pelo desejo de aprendizagem uns com os outros. O objetivo era descobrir e discutir estratégias para dar a inspiração e o sentido à compreensão multifacetada do que é o teatro para nós que o fazemos e para os espectadores também, sem esquecer da necessidade de assumir uma posição na sociedade da qual somos parte.

Hoje, após o isolamento causado pela pandemia de Covid-19 e o cancelamento do Festival em 2021, observo como cada grupo ou artista dentro da constelação do NTL se concentra em seus próprios programas, tentando manter-se à tona em uma época em que o sentido do próprio teatro está sendo desafiado. A energia se volta para dentro de novo quando se pensa na própria sobrevivência em vez de se sentir inspirado pela generosidade necessária para ficar ao lado dos outros.

Como repassamos o DNA de nosso teatro laboratório? Uma oficina não basta, assim como trabalhar em um espetáculo ou projeto não é suficiente. Condições de trabalho compartilhadas duradouras, desafios e obrigações conduzem a uma combinação complexa de um modo de pensar e reagir com o corpo, uma política através de outros meios. O interesse não é por experimentos em teatro como uma forma artística, mas pelas possibilidades de transformação que permite. Repasso minha experiência ao dirigir atores no outro lado do mundo. Trabalhei com alguns deles desde o começo da década de 1990. Se ofereço oficinas, sei que a única informação real é que a estrada é longa e que é importante ter perguntas. Se trabalho com algumas pessoas dos grupos de NTL, eu o faço em íntima colaboração com a pessoa que dirige o trabalho. Iben Nagel Rasmussen trabalhou por trinta anos com as pessoas do Bridge of Winds, um projeto pedagógico. Tenho trabalhado com a rede do Magdalena Project desde 1983, quando tivemos a primeira ideia. A continuidade nos faz olhar para a realidade de maneira diferente e a desafia com mais energia.

Concluo este texto exatamente quando decido abdicar de minha responsabilidade como coordenadora artística do NTL. A combinação entre troca de liderança e restrições do coronavírus criou um ambiente em que diferentes prioridades poderiam se transformar em conflitos desnecessários. Prefiro deixar que as mudanças ocorram sem que minha opinião divergente seja considerada uma obstrução, pois compreendo minha responsabilidade de outra maneira. Agora, posso me sentar para ver quais plantas crescerão das sementes espalhadas ao vento pelo Odin Teatret e se o NTL pode continuar sendo caracterizado como um laboratório em fluxo ou se irá se transformar em um dos muitos teatros que lutam para sobreviver e manter um sentido vivo da profissão. Retorno ao espaço de trabalho para encontrar o prazer de fazer perguntas que não têm resposta.

Acredito que Eugenio Barba tenha combinado duas características essenciais do que tornou os teatros laboratório e grupos do teatrais influentes: a necessidade de qualidade, isto é, fazer bem o trabalho, a atenção extrema aos detalhes e, ao mesmo tempo, a promoção de um espírito de rebeldia. Isso combina uma atenção aristocrática, aparentemente conservadora, à tradição e à história e ao desejo de mudança contínua: uma rara combinação. A atenção ao detalhe é igual à do carpinteiro, que escolhe cuidadosamente o melhor pedaço de madeira, que sabe como inserir um prego, que conhece as muitas maneiras de manejar as ferramentas com as quais está trabalhando. O espírito de rebeldia faz com que lutemos contra circunstâncias impostas de fora e encontremos soluções pessoais.

Precisamos enxergar todas as possibilidades de transformação, como quando a artista holandesa Marije Nie de Cross Pollination transforma a pergunta: Se 4 + 4 é 8, o que é 8?7 Julia Varley: actress of Odin Teatret since 1976, participated in all the groups ensemble productions, 3 solo performances and 4 work demonstrations. Conceived and organized ISTA in 1990 and, since 1986, The Magdalena Project. Artistic director (Transit International Festival), editor (The Open Page), author (Wind in the West, Notes from an Odin Actress: Stones of Water, An actress and her characters - Submerged stories of Odin Teatret). ORCID: http://orcid.org/000-0001-8730-2295 E-mail: J.varley@odinteatret.dk Uma infinita combinação de possibilidades. Talvez um laboratório em fluxo seja a capacidade de imaginar infinitas combinações de mudança, troca e interação. Mas o que mantém viva essa fluidez de energia para dentro e para fora é a vontade e a necessidade de fazer este sopro de ar fresco durar por anos e anos, recusando a normalidade do teatro: ser efêmero.

Notas

  • 1
    N.E.: a autora faz uma diferença em inglês entre Flux e Flow, cujas respectivas traduções em português são fluxo. Assim, optou-se por manter as palavras em inglês nesse caso, para que o (a) leitor (a) compreenda a diferenciação no original.
  • 2
    Ver Barba e Savarese (2019)BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. The Five Continents of Theatre: Facts and Legends about the Material Culture of the Actor. Leiden: Brill | Sense, 2019..
  • 3
    Ver Gordon (2009, p. 16-40)GORDON, Mel. Stanislavski in America: An Actor’s Handbook. London: Routledge, 2009..
  • 4
    Ver Schechner (2001, p. 207-215)SCHECHNER, Richard; WOLFORD, Lisa. The Grotowski Sourcebook. London: Routledge, 2001..
  • 5
    O The Bread and Puppet Theater foi fundado em 1963 por Peter Schumann no Lower East Side de New York. É uma das companhias teatrais políticas sem fins lucrativos mais antigas dos Estados Unidos especializada em teatro de rua e de fantoches.
  • 6
    The Ship of Fools é um laboratório crítico de estudiosos que colaboraram no passado de maneira sistemática com o Nordisk Teaterlaboratorium e o CTLS (Centre for Theatre Laboratory Studies). O comentário de Luis Alonso Aude foi feito durante uma apresentação no evento Ship of Fools Conversations, realizado on line em 30 e 31 de janeiro de 2021 em colaboração com o NTL. Ver <https://odinteatret.dk/dk/news/ship-of-fools/>. Acessado em 8 abr. 2021.
  • 7
    Comentário feito por Marije Nie durante uma apresentação do evento acima mencionado, Ship of Fools Conversations.
  • Traduzido do original em inglês, também publicado neste número da revista, por Ananyr Porto Fajardo e revisado por Patrick Campbell.

References

  • BARBA, Eugenio. Flow: Rhythm, Organicity, Energy. In: INTERNATIONAL SCHOOL OF THEATRE ANTHROPOLOGY (ISTA). 13., Sevilla, 2004. Anais... Sevilla: Teatro Atalaya, 15-25 Oct. 2004. Available at: http://old.odinteatret.dk/research/ista/international-sessions/2004-sevilla,-spain.aspx Accessed on: 8 April, 2021.
    » http://old.odinteatret.dk/research/ista/international-sessions/2004-sevilla,-spain.aspx
  • BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. The Five Continents of Theatre: Facts and Legends about the Material Culture of the Actor. Leiden: Brill | Sense, 2019.
  • GORDON, Mel. Stanislavski in America: An Actor’s Handbook. London: Routledge, 2009.
  • SCHECHNER, Richard; WOLFORD, Lisa. The Grotowski Sourcebook London: Routledge, 2001.
  • VARLEY, Julia. La Festuge de Holstebro: re-pensando el teatro. Primer Acto, Madrid, n. 346, Ene./Jun. 2014.

Editado por

Editores-responsáveis: Jane Turner and Patrick Campbell

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    21 Abr 2021
  • Aceito
    07 Jul 2021
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