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Artes da Cena e Teorias de Conhecimento: pesquisas poéticas em cena à luz do pensamento de Thomas Kuhn

Arts de la Scène et Théories de la Connaissance: recherche poétique sur scène à la lumière de la pensée de Thomas Kuhn

RESUMO

Artes da Cena e Teorias de Conhecimento: pesquisas poéticas em cena à luz do pensamento de Thomas Kuhn – Este artigo problematiza a produção de conhecimento em dança, bem como sua difusão. Perscrutam-se as distinções entre teorias do conhecimento e produção de conhecimento, buscando um compromisso com o estudo de saberes já produzidos no campo da dança e o envolvimento com a produção de conhecimento a partir da prática artística.

Palavras-chave:
Artes da cena; Epistemologia; Thomas Kuhn; Teorias de Conhecimento

RÉSUMÉ

Arts de la Scène et Théories de la Connaissance: recherche poétique sur scène à la lumière de la pensée de Thomas Kuhn – Cet article problématise la production des savoirs en danse, ainsi que leur diffusion. Les distinctions entre théories de la connaissance et production de connaissances sont examinées, cherchant un engagement dans l'étude des connaissances déjà produites dans le domaine de la danse et l'implication dans la production de connaissances à partir de la pratique artistique.

Mots-clés:
Arts du Spectacle; Epistémologie; Thomas Kuhn; Théories de la Connaissance

ABSTRACT

Performing Arts and Theories of Knowledge: poetic research on the scene in the light of Thomas Kuhn’s ideas – This paper discusses the knowledge production in dance, as well as its dissemination. The distinctions between theories of knowledge and knowledge production are examined, seeking a commitment to the study of knowledge already produced in the field of dance and the involvement with the production of knowledge from the artistic practice.

Keywords:
Performing Arts; Epistemology; Thomas Kuhn; Theories of Knowledge

Como surgem as emoções? A que propósitos servem? O que explica os sentimentos distintos que experimentamos? Essas questões têm estimulado os filósofos por séculos. Mais recentemente, essas questões têm inspirado a curiosidade de psicólogos e cientistas cognitivos. Mas também são questões que atraem a atenção dos ‘praticantes’ da emoção. Dramaturgos, romancistas, poetas, diretores de cinema, músicos, coreógrafos, comediantes e mágicos teatrais, todos têm um interesse profissional no que distingue o prazer do tédio (Huron, 2007, p. 1HURON, David. Sweet anticipation: music and psychology of expectation. London: MIT Press, 2007., tradução minha)1 1 No original em inglês: How do emotions arise? What purposes do they serve? What accounts for the distinctive feelings we experience? These questions have stimulated philosophers for centuries. More recently, these questions have inspired the curiosity of psychologists and cognitive scientists. But they are also questions that attract the attention of the ‘practitioners’ of emotion. Playwrights, novelists, poets, film directors, musicians, choreographers, comedians, and theatrical magicians all have a professional interest in what distinguishes delight from boredom (Huron, 2007, p. 1). .

Caminho por entre campinas douradas procurando por explicações para minhas indeléveis aventuras na arte de me interessar pelo conhecimento. Conhecer, de cognoscĕre – aprender a conhecer, procurar saber, reconhecer –, o mundo, o humano, o próprio conhecimento. Rebecca Solnit (2016)SOLNIT, Rebecca. A história do caminhar. Tradução de Maria do Carmo Zanini. São Paulo: Martins Fontes, 2016. contou, certa vez, que os sofistas eram já famosos andarilhos que, não raro, ensinavam no bosque onde a escola de Aristóteles veio a ser instalada, e escreveu quinhentas páginas argumentando sobre o quão antiga é a história do caminhar, sobre a associação notada entre o caminhar e o pensar na história de vários pensadores, ou sobre como Rousseau confessou: “Só consigo meditar quando caminho. Parado, deixo de pensar; minha mente só funciona acompanhando minhas pernas” (1953, apud Solnit, 2016SOLNIT, Rebecca. A história do caminhar. Tradução de Maria do Carmo Zanini. São Paulo: Martins Fontes, 2016.).

Não carecia de muito esforço para convencer a mim, andarilha amadora que pensa ao caminhar e ao se mover, que o caminhar desperta a imaginação e que “[...] essa imaginação é criadora e criatura dos espaços que ela mesma atravessa a pé” (Solnit, 2016, p. 20SOLNIT, Rebecca. A história do caminhar. Tradução de Maria do Carmo Zanini. São Paulo: Martins Fontes, 2016.). Meditando sobre minhas – ainda poucas – realizações como artista-pesquisadora, rapidamente observo que o que dá unidade a todas elas é o impulso de criar artisticamente e, após levada a público a obra, seguir caminhando com meus pensamentos sobre ela. Não me contento em estar em cena ou dirigir espetáculos: saboreio com maior sagacidade os conceitos que consigo desdobrar a partir de (e movida por) essas criações. Encantada pela capacidade de gerar surpresas e emoções a partir da prática de criar, identifico-me com o pensamento de David Huron (2007)HURON, David. Sweet anticipation: music and psychology of expectation. London: MIT Press, 2007., quando observa que a capacidade de alavancar uma criação, tirando-a do status de “desinteressante” para o status de “saboreável”, pode estar despertando somente agora o interesse de psicólogos e neurocientistas, mas desperta há séculos o interesse de filósofos e, no caso dos artistas, praticamente coincide com a sua prática. Bhavas, rasas2 2 Albergaria (2017, p. 14) conceitua Bhava e Rasa, terminologias presentes na dança indiana, como “Sentimento, emoção” e “Sabor estético, sumo, líquido”, respectivamente. . Emoções e sabores que artistas são hábeis em acrescentar às suas criações.

Escrevi o artigo Ator, dobrador de tempo (Andraus, 2018aANDRAUS, Mariana Baruco Machado. Ator, dobrador de tempo. Sala Preta, São Paulo, USP, v. 18, p. 273-284, 2018a. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/119405. Acesso em: 02 ago. 2021.
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) estimulada por uma reflexão sobre tempo e cronologia de espetáculos que se desdobrou da experiência de dirigir um trabalho, Se você se perdesse de si, com sua cronologia embaralhada pelas condições impostas pelo mal de Alzheimer a quem desenvolve a doença e também a quem convive com essa pessoa. Reflexão sobre tempo também estimulada pelas minhas incursões como estudante da dança indiana odissi, desde 2012, e pela percepção de que o que difere um dançarino de outro é sua capacidade de sustentar um gesto por um microssegundo a mais (ou a menos) do que outro dançarino (Bonfitto; Andraus, 2014BONFITTO, Matteo; ANDRAUS, Mariana Baruco Machado. A pregnância do vazio: a simbolização do gesto como espaço para a criação. In: SOARES, Marília Vieira; ANDRAUS, Mariana Baruco Machado; WILDHAGEN, Joana P. (Org.). Mitos e símbolos na cena contemporânea: interlocuções oriente-ocidente. Jundiaí: Paco Editorial, 2014. P. 53-84.), decisão esta que só se pode tomar durante o próprio ato de dançar. Reflexão sobre tempo derivada também – e ainda – de 15 anos de prática incessante no sistema de gongfu louva-a-deus, que me ensinou que uma fração de segundo é decisiva quando se trata de voltar para casa machucada ou não.

Pergunto-me se todas as produções artísticas derivadas de diferentes pesquisas que venho desenvolvendo desde 2001 no campo dos estudos interculturais em artes da cena3 3 Coordeno, na Universidade Estadual de Campinas, o grupo de pesquisa Estudos Inter-culturais em Artes Presenciais, que vem se dedicando atualmente a uma parceria de pesquisas artísticas e artístico-acadêmicas com pesquisadores da Universidade de Pondi-cherry, Índia. Página do grupo no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/659234. Canal do grupo na plataforma YouTube: https://www.youtube.com/channel/UC1OrZwmPxdemWJPDcfqxitw/videos. fariam algum sentido se eu não tivesse a oportunidade de ter escrito aquele artigo, tantos anos depois. Meu palpite é de que não.

[...] forças mais insidiosas se dispõem contra o tempo, o espaço e a vontade de caminhar, contra a versão de humanidade que o ato personifica. Uma dessas forças é a ocupação do que imagino como ‘o entretempo’, o tempo de caminhar entre um lugar e outro, de vaguear e bater pernas. As pessoas se queixam de que esse tempo é um desperdício e o reduzem, e o que resta dele é preenchido com a música dos fones de ouvido e as conversas transmitidas pelos telefones celulares. A própria capacidade de apreciar esse tempo livre, a serventia daquilo que não tem serventia, parece estar desaparecendo, assim como a valorização da exterioridade, o ato de sair até mesmo daquilo que é familiar: as conversas ao celular parecem servir de anteparo contra a solidão, o silêncio e os encontros com o desconhecido (Solnit, 2016, p. 12SOLNIT, Rebecca. A história do caminhar. Tradução de Maria do Carmo Zanini. São Paulo: Martins Fontes, 2016.).

Num mundo que evita o encontro com o desconhecido, como gerar e promover novas formas de conhecer? Que a maioria das pessoas que estão fora da academia não é muito afeita ao hábito da leitura – particularmente, de grandes livros – não é segredo, assim como não é segredo que a arte seja uma forma poderosa de conhecer. A arte, no entanto, revela seus conteúdos por meio de símbolos e exige do fruidor capacidade de recepção, o que pressupõe sensibilidade e também a formação desse público “sensível”, como já observavam Barbosa e Cunha (2010)BARBOSA, Ana Mae; CUNHA, Fernanda Pereira da (Org.). A abordagem triangular no ensino das artes e culturas visuais. São Paulo: Cortez, 2010..

O artista da cena reluta um pouco em analisar obras – inclusive, as próprias obras –, engalfinhando-se no porto seguro do seu lugar “de ser artista”. No entanto, e se ele entrelaçar o seu fazer artístico à elaboração de conceitos dele derivados, não teria seu papel como produtor de conhecimento ressignificado em um mundo contemporâneo tão sedento de profundidade e interconexões? Este artigo, com base na tese de livre-docência que defendi na Universidade Estadual de Campinas em 20214 4 A tese foi adaptada para ser publicada como livro e se encontra no prelo, com previsão de publicação em 2022. , procura responder a essa questão. Na tese, ao analisar o posfácio de Umberto Eco ao livro O nome da Rosa, elaborei a hipótese de que desenvolver a habilidade de criar danças ajuda a desenvolver a habilidade de criar textos e vice-versa. Do artista com formação universitária, em especial, é esperado que desenvolva não apenas a capacidade de criar arte, mas de ter consciência do processo, do conjunto de escolhas que faz, a despeito das valorações possíveis que ele próprio, ou outros, venham a fazer da obra:

Relatar como se escreveu não significa provar que se escreveu ‘bem’. Poe dizia que ‘uma coisa é o efeito da obra e outra é o conhecimento do processo’. Kandinski ou Klee, quando nos contam como pintam, não nos dizem se um é melhor que o outro. Michelangelo, quando nos diz que esculpir significa libertar do excedente a figura já inscrita na pedra, não está dizendo que a Pietà vaticana é melhor que a Rondanini. Às vezes, as páginas mais luminosas sobre os processos artísticos foram escritas por artistas menores que produziam efeitos modestos, mas sabiam refletir bem sobre seus próprios processos (Eco, 2019, p. 548ECO, Umberto. O nome da rosa. 14. ed. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini, Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 2019.).

As pessoas hoje recebem doses particionadas de autoajuda e estímulos motivacionais que lhes chegam por meio de postagens em redes sociais, que podem até ajudar a refletir por alguns minutos, mas jamais corresponderiam ao aprofundamento que uma longa caminhada meditativa ou a apreciação de uma obra artística possibilitariam. Se a arte retorna, pouco a pouco, aos mais reclusos recônditos, acessíveis apenas a quem sabe e sempre soube onde encontrá-la; se é cada vez mais subtraída por ação de movimentos obscurantistas que atuam no cenário político mundial e, em especial, no brasileiro, como podemos, enquanto artistas, tomar partido dos conhecimentos que abundamos em nossas próprias criações artísticas e torná-los acessíveis por meio da escrita? Como descriptografar a arte sem nos reduzir a meros tradutores ou analisadores de obras? Como brincar com conceitos pintando-os na cena e também romanizando seus caracteres em palavra escrita?

Este artigo problematiza a questão da produção de conhecimento em dança, bem como sua difusão. Perscrutam-se as distinções entre teorias do conhecimento e produção de conhecimento, buscando um compromisso com o estudo de saberes já produzidos no campo da dança e o envolvimento com a produção de conhecimento a partir da própria prática artística, que demanda tempo em laboratório de práticas de criação. Parto do pressuposto de que a obra artística é, em si, conhecimento, e que livros e artigos publicados por artistas-pesquisadores problematizam sempre, de alguma forma, a questão do conhecimento.

Escrita obra, obra escrita

A produção de conhecimento em artes da cena vem ganhando corpo com intensidade cada vez maior com a abertura de cursos de graduação e de pós-graduação na área. Um debate recorrente diz respeito ao entendimento da própria obra de arte como conhecimento versus a produção textual que se pode construir a respeito de arte, que não consiste – e nem se deve esperar que consista – em uma tradução da obra, mas, talvez, em uma metaprodução que pode, inclusive, ser ela própria também de natureza criativa/artística.

Para que a arte ganhe estatuto de ciência, e seja assimilada no universo acadêmico, não raras vezes artistas pesquisadores se debruçam sobre autores das áreas de teoria do conhecimento e epistemologia, sem domínio ou até mesmo sem o desejo de explorar em profundidade esses campos. E, de fato, nem todos têm a necessidade de fazê-lo. Hoje, a pesquisa em artes tem maior autonomia para se firmar como área de pesquisa e conhecimento independente e não ficar restrita a métodos científicos quantitativos, tampouco aos métodos analíticos ou à imposição de conhecer e dominar autores da área da filosofia para poder compreender e situar a arte enquanto conhecimento produzido pelo homem e enquanto reflexo de sua historicidade – até porque isso significaria retornar sempre aos primórdios da construção do pensamento ocidental e, para dar conta disso, o artista-pesquisador teria que se dedicar somente ao estudo teórico. Diz Hessen (1987, p. 21)HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. 8. ed. Tradução de António Correia. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1987.:

Não se pode falar de uma teoria do conhecimento, no sentido de uma disciplina filosófica independente, nem na Antiguidade nem na Idade Média. Na filosofia antiga encontramos numerosas reflexões epistemológicas, especialmente em Platão e Aristóteles. Mas as investigações epistemológicas estão ainda englobadas nos textos metafísicos e psicológicos. A teoria do conhecimento, como disciplina autônoma, aparece pela primeira vez na Idade Moderna. Deve considerar-se como seu fundador o filósofo John Locke. A sua obra fundamental, An essay concerning human understanding, de 1690, trata de forma sistemática as questões da origem, essência e certeza do conhecimento humano.

A passagem mostra que situar a teoria do conhecimento no contexto histórico já constitui, em si, um problema de pesquisa para epistemólogos. Retomar autores da Antiguidade e Idades Média e Moderna para compreender e contextualizar a partir de que momento histórico se pode pensar em teoria do conhecimento, para então conceituar arte como conhecimento, constitui trabalho relevante nos campos da epistemologia e filosofia da arte e da ciência, mas não necessariamente para o artista-pesquisador. No entanto, a obra de arte carrega em si uma bagagem cultural e é, por tal razão, portadora e transmissora de conhecimento, merecendo destaque nas pesquisas desenvolvidas contemporaneamente nesse campo, o que leva a pensar em uma epistemologia da dança construída a partir da própria pesquisa artística – aquela realizada por artistas-pesquisadores.

Aproximações entre performance e filosofia vêm sendo buscadas por autores deste campo, como faz, por exemplo, Feitosa (2020, p. 2)FEITOSA, Charles. Fronteiras entre as Artes da Performance e a Filosofia. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 10, n. 1, e92410, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbep/a/LYGSWgwhZ3bRZtfMXppzrbq/?lang=pt. Acesso em: 02 ago. 2021.
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: “A filosofia parece não ter nada a ver com a performance, pois se trata de um fazer supostamente abstrato e teórico. Entretanto existe uma dimensão performativa da filosofia, um modus operandi no seu pensar, um certo jeito de atuar que a distingue das outras teorias existentes do mundo”.

Ao desenvolver os argumentos para se pensar na filosofia como performance, o autor elabora uma distinção entre os termos fronteiras e limites, salientando que, enquanto os limites “impedem as passagens”, as fronteiras “as agenciam”, atribuindo às últimas, portanto, um caráter mais vocacionado à expansão:

A fronteira, ao contrário do limite, carrega essa estranha ambiguidade, de nos restringir, mas também de nos constituir; de nos distinguir, mas também de nos abrir para o mundo. Defender as fronteiras não é impedir a invasão do estrangeiro, mas garantir as condições de possibilidade para que ele, o estrangeiro, possa chegar na estrangeiridade que lhe é própria (Feitosa, 2020, p. 4FEITOSA, Charles. Fronteiras entre as Artes da Performance e a Filosofia. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 10, n. 1, e92410, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbep/a/LYGSWgwhZ3bRZtfMXppzrbq/?lang=pt. Acesso em: 02 ago. 2021.
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).

A discussão levantada por Feitosa é pertinente a este artigo porque o autor trata ambos os termos como indicadores de demarcação, e este é, justamente, um dos principais pontos debatidos por Thomas Kuhn, autor sobre cujo pensamento este artigo se debruça. Sem a intenção de ignorar autores mais próximos à arte, como Theodor Adorno, Walter Benjamim ou Umberto Eco – este último cuidadosamente analisado na tese de livredocência (Andraus, no preloANDRAUS, Mariana Baruco Machado. Cursos d’água, esteiras de vento: criações de textos e de danças. Curitiba: Editora CRV. No prelo.) –, escolho demorar-me em Thomas Kuhn justamente por suas ideias centradas no problema da demarcação, e o motivo para essa escolha é que toda a política de fomento à pesquisa no Brasil é, na prática – infelizmente para a arte e para artistas –, baseada em territorialidades epistêmicas.

Em 2002, durante meus estudos de mestrado, tive oportunidade de tomar meu primeiro contato com o obra A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn (1962/2013)KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 13. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013., no contexto de uma disciplina de metodologia de pesquisa em artes na qual foram apresentados aos alunos autores diversos: Stanislav Grof, com o livro Além do cérebro (1987); Júlio Plaza, com o artigo Arte, ciência, Pesquisa: Relações (1997); Hilton Japiassu, com o livro Nascimento e Morte das Ciências Humanas (1978); Abraham Moles, com o livro A criação científica (1971); Bruyne, Herman e Schoutheete, com o livro Dinâmica da pesquisa em ciências sociais (1977); Bryan Magee, com o livro As ideias de Popper (1978); Jean Piaget, com o livro A situação das ciências do homem no sistema das ciências (1970); Pierre Weil, com o livro Holística: uma nova visão e abordagem do real (1990); Bertrand Russell, com o livro ABC da Relatividade (1966); António Damásio, com o livro O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si (2000); Gaston Bachelard, com os livros A epistemologia (1971), A formação do espírito científico (2002) e A poética do espaço (2008); além do próprio Thomas Kuhn (1962/2013)KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 13. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.. Este último despertou-me maior interesse pela reflexão sobre como nasce um campo de conhecimento no macrocontexto de uma teoria histórica e sociológica das ciências, e constitui, agora em outro momento – já como docente de uma universidade pública –, objeto de meu interesse para aprofundamento de uma reflexão sobre o reconhecimento das artes da cena como um campo de conhecimento.

Como primeira hipótese a explorar, eu especularia que as artes da cena não têm característica de ciência normal, na terminologia kuhniana, por notarem-se diversas incomensurabilidades semânticas, que nos dão indícios de que não existe um paradigma estabelecido, de fato, por detrás das pesquisas desenvolvidas, mas apenas tensões – características de uma fase préparadigmática. Traduzindo, se cada pesquisador precisa definir a partir de quais conceitos ou autores usará termos como dramaturgia, dramaturgia da dança, presença ou mesmo epistemologia (da dança, do teatro, das artes da cena...), então, aparentemente, não há paradigma, mas apenas exemplares5 5 Augusto Andraus (2018, p. 106), em seu estudo sobre Thomas Kuhn, conceitua exemplares como “soluções concretas dos puzzles derivados e deixados em aberto pelo paradigma”. Puzzles (quebra-cabeças) é o termo utilizado por Kuhn para se referir ao que os cientistas fazem a maior parte do tempo na “ciência normal”. Esses conceitos serão retomados adiante, no projeto. parciais, que denotam grupos teóricos fragmentados, que não participam de um paradigma único e coeso, conforme Kuhn prescreve ao conceituar uma área de conhecimento em estágio de ciência normal.

Comecei a investigar as relações entre o estudo de teoria do conhecimento e a produção de conhecimento em artes da cena, um campo dotado de suas próprias epistemes e metodologias originárias da prática artística. Os livros e artigos publicados por artistas pesquisadores problematizam sempre, de alguma forma, a questão do conhecimento. Particularmente, gosto de pensar que é possível e prazeroso conciliar a criação artística com a escrita a respeito dela, mesmo que a sistematização venha a posteriori. Mas de que escrita, no entanto, é possível falar, quando o campo de conhecimento em questão é artes da cena? Considero a possibilidade de percorrer uma trajetória de natureza essencialmente intuitiva, porém, ao invés de interromper o processo ao chegar a um resultado artístico, optar por dar continuidade a este, tornando-o público posteriormente por meio da escrita – pois é isso que conduz, afinal, o artista-pesquisador ao âmbito da produção de conhecimento em dança. Ainda que um texto jamais vá refletir com precisão os significados de uma obra artística – se ela significa, expressa ou apenas apresenta seria outra discussão –, ainda assim ele tem papel crucial enquanto possibilitador de construção epistêmica, à medida que difunde o conhecimento gerado pelas produções artísticas.

Cattani (2002)CATTANI, Icleia Borsa. Arte contemporânea: o lugar da pesquisa. In: BRITES, Blanca; TESSLER, Elida (Org.). O meio como ponto zero: metodologia de pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002. conceitua arte como ato e não como discurso, sugerindo uma distinção entre a obra de arte e qualquer elaboração verbal que se possa depreender dela. A autora afirma que a obra “[...] é um objeto, presente em sua fisicalidade, independente de todo e qualquer discurso, inclusive, do próprio artista” (Cattani, 2002, p. 37CATTANI, Icleia Borsa. Arte contemporânea: o lugar da pesquisa. In: BRITES, Blanca; TESSLER, Elida (Org.). O meio como ponto zero: metodologia de pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002.). Cattani entende que a obra de arte é para ser vista, não para ser lida. A produção da arte deve ser feita em paralelo à produção do discurso, sem que ambas se confundam, mas não se pode negar que é necessário ao artista-pesquisador saber se comunicar nas duas linguagens, a artística e a verbal, pois existe carência de instituições e publicações especializadas, o que aumenta a responsabilidade do artista-pesquisador no que diz respeito à documentação.

Segundo Cattani, tradicionalmente a obra de arte tem sido vista como subordinada à palavra, tendo que ser “traduzida” em linguagem verbal. Cattani (2002, p. 42)CATTANI, Icleia Borsa. Arte contemporânea: o lugar da pesquisa. In: BRITES, Blanca; TESSLER, Elida (Org.). O meio como ponto zero: metodologia de pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002. defende que essa visão precisa ser desmistificada para evitar duas situações-limite:

[...] de um lado, o artista se recusando a falar sobre sua obra, dizendo que ela fala por si mesma (o que é um equívoco no mundo contemporâneo, em que a linguagem verbal permeia e até intermedia a inserção da arte no sistema capitalista); por outro, o artista tornando-se um crítico ou teórico de arte: isso ocorre quando ele dissocia as duas formas de pensamento, tentando traduzir ou interpretar uma pela outra.

Seguindo a linha de pensamento da autora, em minha trajetória de pesquisa procurei sempre trabalhar com as duas criações, artística e textual, de forma entrelaçada, mas, ao mesmo tempo, sem configurar a tentativa de interpretação de uma pela outra. Isso tem me levado a refletir sobre a questão da produção de conhecimento em dança, especificamente porque, de um lado, a área de Artes na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) reconhece a produção artística com igual valor à bibliográfica – e do artista-pesquisador é exigido que tenha equilíbrio entre ambas – e, de outro lado, nem todas as instituições de fomento à pesquisa atribuem “pontos” para a produção artística, o que torna o artista-pesquisador alguém pressionado por dois lados, duas tensões opostas. Em meio a isso, cabe questionar quais epistemes de fato fazem sentido para a própria área (a meu ver, tanto as obras artísticas quanto as escritas que se criam a partir delas).

Temos, de um lado, uma sorte de conhecimentos sobre artes da cena produzidos no âmbito das publicações em livros, artigos, trabalhos em congressos, além de dissertações e teses em diversas instituições de ensino superior que possuem cursos de dança e de teatro; de outro lado, uma gama (talvez maior) de espetáculos – que também são conhecimentos produzidos –, e tudo isso vem a compor o que se poderia entender como exemplares, em artes da cena, e talvez estejam nos levando, como área de conhecimento, à emergência de um paradigma partilhado (Kuhn, 2013KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 13. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.). No entanto, no pensamento de Kuhn, a existência de um paradigma partilhado não é suficiente para se entender uma área como ciência. O que proponho, neste artigo, é que artes da cena é uma área de conhecimento em sua caminhada rumo a se tornar área científica. Superadas as discussões entre arte e ciência que predominaram em décadas anteriores, e entendida a ideia de que uma área científica não pode impor suas metodologias a outra para reconhecê-la ou não como ciência, cabe a nós, artistas-pesquisadores, perder o medo de nos assumirmos como área científica, perder o receio de que esse reconhecimento nos engesse. Afinal, ter ciência é ter conhecimento. Temos ciência sobre artes da cena e precisamos escrever cada vez mais sobre elas.

Partindo deste raciocínio inicial, surgiu o desejo de examinar a obra de Thomas Kuhn, especificamente a Estrutura das Revoluções Científicas, para, à luz desse corpus teórico, elaborar uma reflexão sobre como se movimentam os principais referenciais da pesquisa em artes da cena no país.

A Estrutura das Revoluções Científicas: ideias principais

Kuhn (1922-1996) iniciou sua carreira como físico teórico e, posteriormente, fez a transição para a história da ciência, movido pela necessidade de entender o desenvolvimento do conhecimento científico. No prefácio à quinta edição, o filósofo da ciência Ian Hacking explica que Kuhn foi o primeiro autor a usar o termo paradigma no sentido usual, contemporâneo. Ao ler essa informação, imediatamente coloquei-me a pensar sobre o quanto a noção de ruptura paradigmática é familiar à área artística – muito usada, inclusive, à medida que artistas se identificam com a ideia de quebrar barreiras –, e por isso intuí a importância de me dedicar ao estudo do autor.

O que leva Kuhn a saltar da atividade como físico teórico para a atividade de historiador da ciência? Conhecer ciência é algo que, via de regra, dá-se dentro dos paradigmas vigentes, enquanto a história da ciência possibilita entender por que a ciência em questão é como ela é. No caso das artes da cena, igualmente, compreender quais trajetórias nos trazem para aquilo que entendemos como dança ou teatro contemporâneos é fundamental para que desenhemos o próprio sentido de contemporâneo que empregamos. Segundo Bales (2008, p. 30)BALES, Melanie. Training as the medium through which. In: BALES, Melanie; NETTL-FIOL, Rebecca. The body eclectic: evolving practices in dance training. Chicago: University of Illinois Press, 2008.,

Em Estrutura das revoluções científicas, Thomas Kuhn fez uma distinção entre ciência pré e pós-paradigmática e reconheceu que muitas vezes os desenvolvimentos na ciência não são incrementais, mas acontecem em saltos súbitos e relativamente radicais. Depois dos saltos, as coisas tomam uma nova direção; há uma enxurrada de atividade enquanto os cientistas absorvem a nova teoria e se reajustam a ela (1962, p. 12). As mudanças que levaram à mudança de Judson (pré-paradigmática) formaram o trabalho desenvolvido para a experimentação que se seguiria. Merce Cunningham fez perguntas sobre como a dança poderia ser apresentada e percebida, mas continuou uma linha iniciada pelos primeiros modernos em seus processos de elaboração de uma técnica e vocabulário coeso (enquanto reconhece fontes que vão do balé aos programas de computador). Outras figuras também contribuíram para a eventual mudança, como Anna Halprin (o vocabulário não é de todo central), Alwin Nikolais (o corpo dançante é um dos vários pontos focais) e Erick Hawkins, cuja técnica de infusão oriental rejeitou premissas anteriores sobre tom corporal e tensão (Bales, 2008, p. 30BALES, Melanie. Training as the medium through which. In: BALES, Melanie; NETTL-FIOL, Rebecca. The body eclectic: evolving practices in dance training. Chicago: University of Illinois Press, 2008., tradução minha)6 6 No original em inglês: In Structure of Scientific Revolutions, Thomas Kuhn made a distinction between pre- and post-paradigmatic science and recognized that often developments in Science are not incremental but happen in sudden, relatively radical jolts. After the jolts, things go off in a new direction, there is a flurry of activity while scientists absorb the new theory and readjust to it (1962, p. 12). The changes leading to the Judson (pre-paradigmatic) shift formed the growndwork for the experimentation that would follow. Merce Cunningham asked questions about how dance could be presented and perceived but continued a line begun by the early moderns in his processs of crafting a cohesive technique and vocabulary (while acknowledging sources ranging from ballet to computer programs). Other figures also contributed to the eventual shift, like Anna Halprin (vocabulary are not at all central), Alwin Nikolais (dancing body one of several focal points), and Erick Hawkins, whose Eastern-infused technique rejected previous premises about bodily tone and tension (Bales, 2008, p. 30). .

A citação de Melanie Bales, uma pesquisadora da dança, traz conceitos importantes de Kuhn – fase pré-paradigmática, pós-paradigmática, evolução versus revolução –, sobre os quais discorrerei a seguir. Por exemplo, ela usa o termo paradigma ao explicar que as soluções do período Judson para conectar aspectos coreográficos e performativos com a questão do treinamento são diferentes o suficiente para implicar uma mudança significativa:

Cada nova geração desde o advento da dança moderna tentou de uma forma ou de outra conectar os aspectos performativos e coreográficos da arte da dança com as práticas de treinamento, mas o período Judson produziu uma solução diferente o suficiente para significar uma mudança de paradigma. Foi essa geração em particular que, em vez de tentar estabelecer uma ligação mais ou menos do treino à coreografia, na verdade separou os dois num processo desconstrutivo que mudou essa relação para sempre. Além disso, esse processo possibilitou que os dançarinos eventualmente adotassem a visão paradoxal da técnica como uma crítica da própria técnica (Bales, 2008, p. 30BALES, Melanie. Training as the medium through which. In: BALES, Melanie; NETTL-FIOL, Rebecca. The body eclectic: evolving practices in dance training. Chicago: University of Illinois Press, 2008., tradução minha)7 7 No original em inglês: Every new generation since the advent of modern dance has tried in one way or another to connect the performative and choreographic aspects of the dance art with training practices, but the Judson period produced a solution that was different enough to signify a paradigm shift. It was that generation in particular who, rather than endeavoring to establish a more or less link from training to choreography, actually tore the two asunder in a deconstructive process that changed that relationship ever after. Further, that process made it possible for dancers to eventually embrace the paradoxical view of technique as a critique of technique itself (Bales, 2008, p. 30). .

A autora chega adiante à conclusão de que a modernidade, no caso da dança, veio a acontecer apenas no período que consideramos como pósmoderno, pois, na dança moderna, embora existam rupturas com relação à dança clássica, criam-se rapidamente novas estruturas que são, segundo a autora, paradigmáticas, evitando-se a persistência da crise. Já as rupturas do período pós-moderno ecoam ainda hoje nos diferentes lugares de produção da dança (indefinição de códigos e linguagens, produções com não dançarinos, entre outras características) e definem, até o presente, aquilo a que chamamos de contemporâneo.

Poderíamos dizer que vivemos hoje a persistência de uma crise? Se a crise ocorre, segundo Kuhn, quando anomalias se acumulam a ponto de que o próprio corpo teórico daquele campo de conhecimento seja colocado em questão, e não temos no Ocidente (até o momento) um corpo único desse tipo no campo das artes da cena (uma teoria das artes da cena), estaria correto chamar de “crise” as rupturas que os dançarinos modernos fizeram em relação à dança clássica, ou estariam mais para tensões, características da fase pré-paradigmática? Teríamos um paradigma emergindo nas artes da cena? Embora em minha tese de doutorado eu tenha assumido que as terminologias kuhnianas utilizadas por Bales serviam para explicar fenômenos da dança, ao examinar essas ideias atualmente penso que carecem de um aprofundamento no estudo de Kuhn e de sua obra8 8 Além de A Estrutura das Revoluções Científicas, atualmente venho estudando a Revolução Copernicana, primeiro livro de Kuhn, e O Caminho desde a Estrutura, que apresenta uma coletânea de artigos que discutem as repercussões da própria Estrutura. .

Para Kuhn, conhecer história da ciência ajuda a melhorar a visão que temos da própria ciência que estudamos. Além de olhar para as ciências – entendidas como tal –, ele estendeu seu olhar para as ciências humanas e para as artes, buscando identificar uma estrutura por meio da qual outras áreas de saber se constituem. Oliveira (2005)OLIVEIRA, José Carlos P. de. História da ciência e história da arte: uma introdução à teoria de Kuhn. Campinas: UNICAMP/IFCH, 2005. Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp.br/36/5/ref.html. Acesso em: 26 jul. 2018.
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analisa o pensamento que levou Kuhn a buscar entender como outras áreas de conhecimento se estabelecem – o que, inclusive, ajudou-o a desenvolver a noção de revolução científica:

[...] uma relação entre teorias científicas […] seria como aquela entre os estilos artísticos. Uma relação que sugere que a comparação entre duas teorias científicas poderia ser muito mais problemática do que se imaginava, e assim a escolha entre duas teorias científicas poderia também ser muito mais complicada; tão complicada quanto escolher entre dois estilos artísticos ou responder quem é o melhor pintor, se Velázquez ou Picasso (cubista). Como explicar essa situação? Seria o caso de Aristóteles um caso isolado na história da ciência? Seria um caso típico? E que consequências poderia trazer para a compreensão da ciência, particularmente para a explicação do progresso científico? Questões como essas estão na base da filosofia da ciência de Kuhn (Oliveira, 2005, p. 22OLIVEIRA, José Carlos P. de. História da ciência e história da arte: uma introdução à teoria de Kuhn. Campinas: UNICAMP/IFCH, 2005. Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp.br/36/5/ref.html. Acesso em: 26 jul. 2018.
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).

Nota-se que justamente o olhar interdisciplinar possibilitou a Kuhn compreender que também a ciência não se desenvolve apenas em estrutura linear e cumulativa, conforme observa Oliveira (2005, p. 23)OLIVEIRA, José Carlos P. de. História da ciência e história da arte: uma introdução à teoria de Kuhn. Campinas: UNICAMP/IFCH, 2005. Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp.br/36/5/ref.html. Acesso em: 26 jul. 2018.
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na sequência:

A solução encontrada por ele na leitura de Aristóteles foi uma experiência pessoal de algo que, como ele próprio reconhece, ‘a maioria dos historiadores aprende por meio de exemplos no curso de seu treinamento profissional’. O que Kuhn quer dizer é que os historiadores de um modo geral, incluídos aí os historiadores da arte, já são preparados para lidar com uma situação em que existem rupturas como essas em seu objeto de estudo, como no caso das diferentes escolas de filosofia e dos diferentes estilos na arte. Mas o historiador da ciência está (ou estava) despreparado. A razão disso é justamente a suposta diferença entre a ciência e as demais disciplinas. A ciência não teria esses pontos de ruptura como os dos estilos em arte, mas apresentaria um progresso, vamos dizer, linear, como se desde o início do desenvolvimento da ciência todos os cientistas tivessem contribuído para adicionar diretamente um item à mesma cesta do conhecimento científico.

Importante destacar que a arte que aparece nos escritos de Kuhn (e também de Oliveira) refere-se ao campo da história da arte e não às epistemes específicas e próprias das artes da cena enquanto saber construído na prática e que hoje, em 2022, envolvem também engajamento de seus pesquisadores no sentido de se situarem academicamente no âmbito das universidades, realizando pesquisas, publicando artigos e preocupados em se reconhecerem como partícipes de uma área de conhecimento específica.

Kuhn passou tempo estudando campos sem aparente relação com história da ciência: Piaget (mundos da criança em crescimento), Ludwick Fleck (necessidade de uma sociologia da comunidade científica), Gestalt (o todo não é o mesmo que a soma das partes), Whorf (efeitos da linguagem sobre as concepções de mundo), e defendeu a ideia de que, por vezes, outra área de conhecimento vem ajudar a solucionar a crise de uma determinada área. Em meio a seus estudos, conceituou os paradigmas9 9 O termo paradigma é problematizado na filosofia da ciência. Além de ser um assunto bastante discutido por outros autores dessa área, no posfácio de A Estrutura das Revoluções Científicas, o próprio Kuhn responde a algumas críticas referente ao uso desse termo, reconhecendo que alguns esclarecimentos eram necessários. Contudo, essa discussão é essencialmente filosófica, situando-se fora do contexto deste artigo. como realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem: [1] problemas e [2] soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência. Essas realizações são dotadas de duas características principais:

  1. são suficientemente sem precedentes para atrair um grupo de partidários;

  2. são suficientemente abertas para deixarem problemas a serem resolvidos.

Ainda, para Kuhn, a formação do pesquisador de uma ciência normal se pauta basicamente no estudo de seu campo de conhecimento sujeito ao paradigma vigente, e é isso que prepara os estudantes para serem futuros pesquisadores – mas, ao mesmo tempo que prepara, também os condiciona. Kuhn esclarece que o paradigma partilhado pressupõe um compromisso com as mesmas regras e padrões adotados por todos, sendo um pré-requisito, portanto, para o desenvolvimento da “ciência normal”.

Quando um paradigma triunfa, as divergências desaparecem momentaneamente: “[...] quando, pela primeira vez no desenvolvimento de uma ciência, um indivíduo ou grupo produz uma síntese capaz de atrair a maioria dos praticantes de ciência da geração seguinte, as escolas mais antigas começam a desaparecer gradualmente” (Kuhn, 2013, p. 82KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 13. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.).

Outro conceito importante do autor é o de ciência normal, caracterizada como pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas e que envolve um reconhecimento pela comunidade científica. Na ciência normal é presente a ideia de finalidade; isto é, ciência como forma de proporcionar fundamentos para práticas posteriores. Para o autor, livros pedagógicos apresentam teorias aceitas e relatam aplicações bemsucedidas – que são, portanto, modelares. E faz, ainda no desenho daquilo que ele denomina como ciência normal, uma analogia com a montagem de quebra-cabeças (puzzles), alegando que isso é o que os cientistas fazem a maior parte do tempo. O paradigma faz promessas que a ciência normal se dedica a atualizar. “A ciência normal não visa à novidade, mas clarear o status quo” (Kuhn, 2013, p. 32KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 13. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.). A tendência é descobrir o que se espera descobrir. As rupturas acontecem quando algo se desvia do caminho – a isso Kuhn chama de anomalia.

Segundo Kuhn (2013)KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 13. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013., pesquisadores que permanecem em uma das concepções pré-paradigmáticas são excluídos da profissão, ou seus trabalhos passam a ser ignorados pelo resto da comunidade. Um problema identificado por ele é que um novo paradigma traz uma definição mais nova e mais rígida do campo de estudo, o que esbarra na noção de anomalia, que ocorre quando o paradigma vigente entra em contradição com o fenômeno em estudo. Uma ou mais anomalias, graves o suficiente, podem levar a um período de crise e, posteriormente, a uma nova revolução, e assim a ciência vai se estruturando, com montagens de quebra-cabeças entremeadas por revoluções. As revoluções científicas são, portanto, disrupturas na chamada ciência normal. Elas não apenas existem, mas acontecem seguindo uma estrutura: “[A ciência normal] é verdadeiramente cumulativa, mas uma revolução destrói a continuidade. Muitas coisas que uma ciência mais antiga fazia bem podem ser esquecidas quando um novo conjunto de problemas é colocado por um novo paradigma” (Kuhn, 2013, p. 42KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 13. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.).

Essas ideias principais me levaram a pensar no quanto as artes se constituem a partir de disrupturas e não tanto de paradigmas partilhados. Artistas conhecem os trabalhos uns dos outros na medida em que o próprio contato pessoal promove encontros, e não tanto pelo hábito de estudar o que outros pesquisadores estão fazendo ou de realizar revisões de literatura que esgotem temáticas de interesse. Dessa observação surgiu-me o interesse em reestudar, de forma mais pormenorizada, a obra de Thomas Kuhn e desenvolver uma reflexão de cunho epistemológico em artes da cena, especialmente aquela oriunda do conhecimento produzido na práxis de criar obras artísticas.

Em minha caminhada, viro-me à direita e me deparo com uma colega de curso, Profa. Dra. Daniela Gatti, talentosa coreógrafa, que me convida a partilhar de seu percurso. Viramos juntas à esquerda e nos encontramos com outro colega, Prof. Dr. Jonatas Manzolli, do Departamento de Música, que nos convida a compartilhar de seu entrelaçamento interdisciplinar já de longa data entre dança, música e tecnologia, interessado particularmente na forma artesanal como fazemos esse tipo de costura na dança e, especificamente, como fiz nos dois trabalhos cênicos que ele me viu apresentar em uma viagem que fizemos juntos à Cardiff University, em junho de 2018, cujo público era predominantemente composto por estudantes de composição musical. Em meio a uma missão de estabelecimento de parcerias institucionais, conhecemo-nos melhor e entendemos – mais uma vez, na prática – o que diz Kuhn quando pondera que, não raro, em meio aos infindáveis processos demarcatórios, uma área de conhecimento vem, em visita à outra, ajudá-la a resolver suas próprias crises (com isso, intento dizer que este artigo é, também, sobre interdisciplinaridade dentro da própria arte).

A questão da produção do conhecimento em artes da cena, discutida no início deste artigo, é um problema relevante a ser investigado na medida em que contempla duas perspectivas: a primeira delas é a valorização de obras artísticas como conhecimento em si mesmas; a segunda diz respeito a estimular em alunos o desejo e a habilidade de escrever sobre artes da cena para além dos requisitos de um trabalho de disciplina, buscando abordagens que efetivamente despertem a sensibilidade e o interesse do leitor. Apesar de artistas não precisarem – e de a área de Artes evidenciadamente não querer – tornar-se parte da ciência normal, no sentido de seguir regras e resolver quebra-cabeças, proponho que a escrita do artista é fundamental no papel de descriptografar a própria área e que, na prática da criação artística, ele pode, sim, ser um resolvedor de quebra-cabeças, ainda que o faça de formas criativas. Eco (2019, p. 547)ECO, Umberto. O nome da rosa. 14. ed. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini, Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 2019. afirma:

Quem escreve (quem pinta ou esculpe ou compõe música) sabe sempre o que faz e o quanto lhe custa. Sabe que precisa resolver um problema. Pode acontecer de os dados de partida serem obscuros, pulsionais, obsessivos, nada mais do que uma vontade ou uma lembrança. Depois, porém, o problema se resolve na escrivaninha, interrogando a matéria sobre a qual ele trabalha – matéria essa que exibe suas próprias leis naturais, mas, ao mesmo tempo, traz consigo a lembrança da cultura de que está carregada (o eco da intertextualidade) (grifo meu).

Sobre essa passagem, na tese de livre-docência (Andraus, no preloANDRAUS, Mariana Baruco Machado. Cursos d’água, esteiras de vento: criações de textos e de danças. Curitiba: Editora CRV. No prelo.) escrevi:

[...] destaco ainda a conceituação do artista como resolvedor de problemas por meio da técnica e do procedimento incessante de analisar a matéria sobre a escrivaninha. Esta passagem é associável ao pensamento de Thomas Kuhn (2013)KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 13. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013. sobre ciência normal como montagem de puzzles: para Thomas Kuhn, ciência é aquilo que fazemos a maior parte do tempo, ficando as rupturas relegadas ao status de ‘acontecimento’, daquilo que apenas eventualmente e de tempos em tempos irá acontecer, quando o paradigma vigente já não mais se mostrar consistente para dar conta das anomalias, e que, em conjunto com o desenvolvimento contínuo implicado na montagem dos puzzles, dará forma à estrutura da revolução (esta, feita de evolução e rupturas). Pergunto: após o rompante criativo – momento de ruptura e de encontro com a Musa (NACHMANOVITCH, 1993NACHMANOVITCH, Stephen. Ser criativo: o poder da improvisação na vida e na arte. 4. ed. São Paulo: Summus, 1993.) – não seria o artista também, analogamente, um montador de quebra-cabeças?

Essa reflexão leva ao tema da metodologia da criação. Falar em metodologia de pesquisa e produção de conhecimento em artes implicar visitar dois termos/expressões bastante em voga no momento: um deles é a metodologia de estado da arte, que se refere ao estudo do conhecimento produzido em um determinado campo, e o outro é epistemologia, ramo da filosofia ligado à(s) teoria(s) do conhecimento, mas o elemento imprescindível à pesquisa em artes, aquele que a diferencia de outras áreas, é a metodologia do criar.

Estado da arte, expressão que vem sendo utilizada para denominar pesquisas de natureza de revisão bibliográfica, especialmente nos últimos 15 anos (Ferreira, 2002FERREIRA, Norma Sandra de Almeida. As pesquisas denominadas estado da arte. Educação & Sociedade, Campinas, ano XXIII, n. 779, ago. 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v23n79/10857.pdf. Acesso em: 19 dez. 2013.
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), qualifica estudos que buscam, na sondagem de outras investigações no mesmo campo de interesse do pesquisador, formar um mapeamento do conhecimento vigente em período delimitado pelo autor (e.g., nos últimos cinco anos, nas últimas duas décadas, desde a promulgação de determinada lei, entre outros). Segundo Ferreira (2002, p. 258)FERREIRA, Norma Sandra de Almeida. As pesquisas denominadas estado da arte. Educação & Sociedade, Campinas, ano XXIII, n. 779, ago. 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v23n79/10857.pdf. Acesso em: 19 dez. 2013.
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Definidas como de caráter bibliográfico, elas parecem trazer em comum o desafio de mapear e de discutir uma certa produção acadêmica em diferentes campos do conhecimento, tentando responder que aspectos e dimensões vêm sendo destacados e privilegiados em diferentes épocas e lugares, de que formas e em que condições têm sido produzidas certas dissertações de mestrado, teses de doutorado, publicações em periódicos e comunicações em anais de congressos e de seminários. Também são reconhecidas por realizarem uma metodologia de caráter inventariante e descritivo da produção acadêmica e científica sobre o tema que busca investigar, à luz de categorias e facetas que se caracterizam enquanto tais em cada trabalho e no conjunto deles, sob os quais o fenômeno passa a ser analisado.

No caso das artes da cena, dada a natureza criativa e embrionária das pesquisas – os programas de pós-graduação stricto sensu nessa área podem ser considerados recentes – são poucos os pesquisadores que fazem como etapa inicial de suas pesquisas um levantamento do estado da arte em seus campos de interesse específicos, ou mesmo uma revisão de literatura que pretenda esgotar os referenciais teóricos. A etapa de levantamento bibliográfico sempre existe, porém com um caráter mais estritamente ligados aos interesses conceituais daquela pesquisa específica do que no sentido de tomar ciência do estado da arte das artes da cena como área.

Pode-se dizer das pesquisas sobre estado da arte que elas são movidas pela preocupação em tomar conhecimento da totalidade dos estudos sobre um determinado campo do saber para conseguir propor algo original. De acordo com Ferreira (2002, p. 259)FERREIRA, Norma Sandra de Almeida. As pesquisas denominadas estado da arte. Educação & Sociedade, Campinas, ano XXIII, n. 779, ago. 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v23n79/10857.pdf. Acesso em: 19 dez. 2013.
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Sustentados e movidos pelo desafio de conhecer o já construído e produzido para depois buscar o que ainda não foi feito, de dedicar cada vez mais atenção a um número considerável de pesquisas realizadas de difícil acesso, de dar conta de determinado saber que se avoluma cada vez mais rapidamente e de divulgá-lo para a sociedade, todos esses pesquisadores trazem em comum a opção metodológica, por se constituírem pesquisas de levantamento e de avaliação do conhecimento sobre determinado tema.

Olhando-se do ponto de vista epistemológico, negligenciar a tomada de consciência do estado da arte no campo em que se deseja pesquisar implica uma certa forma de alienação, que precisa ser evitada pelo pesquisador das artes da cena. Por outro lado, questiono até que ponto o artista-pesquisador precisa realizar uma apuração supostamente rigorosa do estado da arte em sua área, considerando que grande parte das pesquisas em artes tratam, essencialmente, de criação. Conhecer o estado da arte em um campo do conhecimento é essencial para valorizar e fundamentar a própria pesquisa, contudo a forma como esse procedimento é realizado em outras áreas – por exemplo, pesquisando-se em bases de dados como SciELO e Pubmed, a depender da área em questão –, talvez não seja a melhor maneira de se averiguar o estado da arte nas pesquisas sobre artes da cena, visto que as produções de pesquisadores proeminentes da área quase sempre não se encontram indexadas.

A metodologia de estado da arte na pesquisa em dança: como investigar em bases de pesquisa um conhecimento que se constrói no fazer

Parece ser consenso, entre artistas-pesquisadores, que jamais se fruirá uma obra – seja ela espetáculo, tela, performance, instalação ou peça musical, entre outras – plenamente por meio da escrita. E nem é isso que pretendem muitos pesquisadores desse campo do conhecimento. Não é raro os resultados de pesquisas de mestrado e doutorado em artes consistirem em espetáculos, ou partituras, que são acompanhados de uma dissertação que adota, em muitos casos, formatos e/ou gêneros literários alternativos como narração, carta, dramaturgia e outros.

Evidentemente esses formatos alternativos não encontram espaço de repercussão em bases de pesquisa de periódicos com diretrizes específicas estabelecidas sobretudo por metodologias de outras áreas de conhecimento, visto que pesquisas artísticas quase sempre não buscam respostas absolutas, além de frequentemente tropeçarem em novas questões que redirecionam totalmente seus rumos (e não apenas pequenos desvios). Como exemplo, não é raro um estudante de mestrado ou doutorado mudar o próprio tema/assunto da pesquisa após o ingresso no curso. Não sem rigor metodológico, artistas-pesquisadores reveem seus próprios métodos sempre que a mudança se faz imperativa. Ou, ainda, como muito bem observa Lancri (2002, p. 18)LANCRI, Jean. Colóquio sobre metodologia da pesquisa em artes plásticas na universidade. In: BRITES, Blanca; TESSLER, Elida (Org.). O meio como ponto zero: metodologia de pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002., no livro O meio como ponto zero, começam pelo meio: “Eis, pois, o que digo a todo estudante que me faz esta pergunta. Por onde começar? Muito simplesmente pelo meio. É no meio que convém fazer a entrada em seu assunto. De onde partir? Do meio de uma prática, de uma vida, de um saber, de uma ignorância”.

Projetos de pesquisa em artes da cena frequentemente se materializam muito depois de ter sido iniciada a investigação. Se pesquisas, falando de forma geral e extensível a quaisquer áreas, desenvolvem-se por meio de pulsões criativas, nas artes da cena, em particular, obedecer a regras algorítmicas de racionalidade científica em detrimento da criação e da potência de mudanças é algo que raramente se verifica.

A metodologia de estado da arte, pressupondo uma averiguação das publicações produzidas sobre um determinado assunto, principalmente quando valoriza aquelas indexadas e legitimadas por entidades que não representam todo o conhecimento produzido, pode ser até mesmo tolhedora da criatividade, em certo sentido. A representação de uma verdade por meio da arte desconstrói a ideia de verdade absoluta, ao assumir a subjetividade como cerne da construção do conhecimento e a linguagem como limite para a sua expansão.

Demarcações e incentivos à pesquisa em artes da cena

Uma discussão sobre o conceito kuhniano de demarcação, para entender se artes da cena, afinal, é uma área de conhecimento que possa ser considerada científica, tem relevância por diferentes razões, sendo uma delas a questão do financiamento à pesquisa. O financiamento à pesquisa no Brasil é planejado em função de áreas de conhecimento já demarcadas (uso o termo demarcação consoante à concepção kuhniana). No Brasil existe um sistema centralizado, no âmbito federal, de financiamento à pós-graduação, gerenciado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), uma autarquia do Ministério da Educação. A destinação dos recursos é baseada em um rigoroso sistema de avaliação dos programas de pós-graduação, que até 2012 ocorreu em periodicidade trienal e, de 2013 em diante, em periodicidade quadrienal. Na CAPES, os programas de pós-graduação se vinculam a grandes áreas de conhecimento: i. Ciências Exatas e da Terra, ii. Ciências Biológicas, iii. Engenharias, iv. Ciências da Saúde, v. Ciências Agrárias, vi. Ciências Sociais Aplicadas, vii. Ciências Humanas e viii. Linguística, Letras e Artes. No eixo Artes, existem dez subáreas: i. Fundamentos e Críticas das Artes, ii. Artes Plásticas, iii. Música, iv. Dança, v. Teatro, vi. Ópera, vii. Fotografia, viii. Cinema, ix. Artes do Vídeo, x. Educação Artística. Em tempos de cortes orçamentários, a instituição pode priorizar algumas áreas de conhecimento em detrimento de outras, como ocorreu, por exemplo, entre 2015 e 2016, quando a metodologia de distribuição de recursos incluiu o conceito de prioridades (P1 e P2), conforme citado no Ofício Anped-033/2016, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, no qual se observa uma redução de recursos em Ciências Humanas: “A definição de prioridades entre as áreas para distribuição de recursos significou uma diminuição da participação dos recursos da área de ciências humanas de 15% do total em 2015, para 5% do total de 2016” (Em Ofício..., 2016EM OFÍCIO, ANPEd questiona Capes sobre metodologia de distribuição de recursos de custeio dos Programas de Pós-Graduação. ANPED. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, Rio de Janeiro, 08 jun. 2016, Disponível em: https://www.anped.org.br/news/em-oficio-anped-questiona-capes-sobre-metodologia-de-distribuicao-de-recursos-de-custeio-dos. Acesso em: 20 mar. 2022.
https://www.anped.org.br/news/em-oficio-...
). A área Linguística, Letras e Artes, igualmente, sofreu cortes rigorosos de financiamento na ocasião.

Existe uma divisão a priori entre o que é e o que não é ciência, já estabelecida há muito tempo, e estou ciente de que a discussão arte versus ciência já teve seu espaço, tendo sido exaustivamente realizada em épocas anteriores (por exemplo, nos anos 1990); a questão é que hoje vivemos outro momento, à medida que vários cursos de graduação e de pós-graduação foram criados desde então, e que há pesquisadores interessados em novas formas de escrita acadêmica que contemplem as artes sem deixar a desejar quanto ao propósito de transmitirem fidedignamente conceitos e saberes, transmitirem conhecimento.

Temos hoje uma facilidade em disponibilizar conteúdos de pesquisa na internet por meio de fotos, vídeos e textos jamais experimentada em décadas anteriores, e uma nova geração de estudantes está chegando ao ensino superior, menos temerosa em escolher a arte como profissão e como área de pesquisa digna e respeitável. Então, se antes tínhamos poucas publicações em artes da cena, hoje temos não apenas um número maior de publicações, como autores debatendo semânticas e friccionando conceitos que, embora não sejam partilhados, talvez indiquem o desejo de reconhecimento mútuo – seria isso um paradigma em construção?

Como docente em regime de dedicação integral à docência e à pesquisa no ensino superior não desenvolvo trabalhos artísticos fora da Universidade. Nesse sentido, produzo arte sempre no contexto da pesquisa universitária, muitas vezes iniciando em disciplinas de graduação ou de pós-graduação, e depois de um certo tempo esses processos passam a ser parte dos meus laboratórios de pesquisa, onde desenvolvo toda a parte de direção de cena. Dessa forma, ensino e pesquisa estão constantemente alinhados em minha atuação como docente, e essa é a realidade de muitos artistas-pesquisadores no contexto universitário. No entanto, quando se chega ao assunto do financiamento à pesquisa, parece que as artes, embora tenham seu status reconhecido enquanto área de conhecimento, seguem esbarrando em um não reconhecimento tácito de seu estatuto de ciência. Daí decorrem os inúmeros pareceres recebidos por pesquisadores da área de Artes informando que seus projetos tiveram “mérito reconhecido” pelos assessores ad hoc, especialistas da área, porém “não obtiveram prioridade” na análise comparativa com projetos de outras áreas (das Humanidades, mesmo). A arte segue não tendo estatuto de ciência mesmo quando enquadrada em Humanidades. Fato é que as artes realmente podem estar em fase pré-paradigmática – e não serem ciência de fato. Devem, no entanto, ser negligenciadas, ou ter suas pesquisas obstruídas por um sistemático não investimento que as impede de dar o salto?

Considerações Finais

Tem-se tornado cada vez mais necessário aprofundar em questões conceituais sobre a estruturação do conhecimento na área de artes da cena a partir de concepções de homem e de mundo que subjazem às produções artísticas contemporâneas e o entendimento da questão do conhecimento como um problema do homem na História. E, ao tratar da questão do conhecimento, é preciso compreender diferentes correntes do pensamento no âmbito das teorias do conhecimento não para cercear formas de fazer a arte e a pesquisa nessa área, mas, justamente, entender que conhecimento não se encerra em textos. A visão que a universidade tem sobre o conhecimento se atualiza a todo instante e, no contexto contemporâneo, há tempos não se resume ao texto como suporte e meio de transmissão de saberes. Na área de artes, especificamente, avanços no contexto nacional e internacional sinalizam para o entendimento da obra artística como, ela própria, meio de transmissão de conhecimento que perpassa gerações e que tem potencial de disparar, em momentos futuros, reflexões sobre conceitos sumariamente captados e eternizados pela obra no presente. A obra de arte precisa, em suma, ser sempre entendida e contextualizada em sentido histórico.

Notas

  • 1
    No original em inglês: How do emotions arise? What purposes do they serve? What accounts for the distinctive feelings we experience? These questions have stimulated philosophers for centuries. More recently, these questions have inspired the curiosity of psychologists and cognitive scientists. But they are also questions that attract the attention of the ‘practitioners’ of emotion. Playwrights, novelists, poets, film directors, musicians, choreographers, comedians, and theatrical magicians all have a professional interest in what distinguishes delight from boredom (Huron, 2007, p. 1HURON, David. Sweet anticipation: music and psychology of expectation. London: MIT Press, 2007.).
  • 2
    Albergaria (2017, p. 14)ALBERGARIA, Andrea Itacarambi. Mudras: o gesto da dança clássica indiana como caligrafia corporal na dança contemporânea. 2017. Dissertação (Mestrado em Artes da Cena) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017. conceitua Bhava e Rasa, terminologias presentes na dança indiana, como “Sentimento, emoção” e “Sabor estético, sumo, líquido”, respectivamente.
  • 3
    Coordeno, na Universidade Estadual de Campinas, o grupo de pesquisa Estudos Inter-culturais em Artes Presenciais, que vem se dedicando atualmente a uma parceria de pesquisas artísticas e artístico-acadêmicas com pesquisadores da Universidade de Pondi-cherry, Índia. Página do grupo no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/659234. Canal do grupo na plataforma YouTube: https://www.youtube.com/channel/UC1OrZwmPxdemWJPDcfqxitw/videos.
  • 4
    A tese foi adaptada para ser publicada como livro e se encontra no prelo, com previsão de publicação em 2022.
  • 5
    Augusto Andraus (2018, p. 106)ANDRAUS, Augusto. A ciência da computação e o problema da demarcação na filosofia da ciência: Uma investigação epistemológica. 2018. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/332917. Acesso em: 02 ago. 2021.
    http://www.repositorio.unicamp.br/handle...
    , em seu estudo sobre Thomas Kuhn, conceitua exemplares como “soluções concretas dos puzzles derivados e deixados em aberto pelo paradigma”. Puzzles (quebra-cabeças) é o termo utilizado por Kuhn para se referir ao que os cientistas fazem a maior parte do tempo na “ciência normal”. Esses conceitos serão retomados adiante, no projeto.
  • 6
    No original em inglês: In Structure of Scientific Revolutions, Thomas Kuhn made a distinction between pre- and post-paradigmatic science and recognized that often developments in Science are not incremental but happen in sudden, relatively radical jolts. After the jolts, things go off in a new direction, there is a flurry of activity while scientists absorb the new theory and readjust to it (1962, p. 12). The changes leading to the Judson (pre-paradigmatic) shift formed the growndwork for the experimentation that would follow. Merce Cunningham asked questions about how dance could be presented and perceived but continued a line begun by the early moderns in his processs of crafting a cohesive technique and vocabulary (while acknowledging sources ranging from ballet to computer programs). Other figures also contributed to the eventual shift, like Anna Halprin (vocabulary are not at all central), Alwin Nikolais (dancing body one of several focal points), and Erick Hawkins, whose Eastern-infused technique rejected previous premises about bodily tone and tension (Bales, 2008, p. 30BALES, Melanie. Training as the medium through which. In: BALES, Melanie; NETTL-FIOL, Rebecca. The body eclectic: evolving practices in dance training. Chicago: University of Illinois Press, 2008.).
  • 7
    No original em inglês: Every new generation since the advent of modern dance has tried in one way or another to connect the performative and choreographic aspects of the dance art with training practices, but the Judson period produced a solution that was different enough to signify a paradigm shift. It was that generation in particular who, rather than endeavoring to establish a more or less link from training to choreography, actually tore the two asunder in a deconstructive process that changed that relationship ever after. Further, that process made it possible for dancers to eventually embrace the paradoxical view of technique as a critique of technique itself (Bales, 2008, p. 30BALES, Melanie. Training as the medium through which. In: BALES, Melanie; NETTL-FIOL, Rebecca. The body eclectic: evolving practices in dance training. Chicago: University of Illinois Press, 2008.).
  • 8
    Além de A Estrutura das Revoluções Científicas, atualmente venho estudando a Revolução Copernicana, primeiro livro de Kuhn, e O Caminho desde a Estrutura, que apresenta uma coletânea de artigos que discutem as repercussões da própria Estrutura.
  • 9
    O termo paradigma é problematizado na filosofia da ciência. Além de ser um assunto bastante discutido por outros autores dessa área, no posfácio de A Estrutura das Revoluções Científicas, o próprio Kuhn responde a algumas críticas referente ao uso desse termo, reconhecendo que alguns esclarecimentos eram necessários. Contudo, essa discussão é essencialmente filosófica, situando-se fora do contexto deste artigo.

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Editado por

Editor responsável: Gilberto Icle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2021
  • Aceito
    18 Abr 2022
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