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Música e Mímesis Corpórea: fricções criativas para a dramaturgia do músico-atuador

RESUMO

Construído como um relato cartográfico, este artigo tem como objetivo dar destaque aos procedimentos práticos e conceituais realizados durante o processo de pesquisa que culminou na criação cênica e musical do espetáculo Uji - O Bom da Roda. Tendo como base o método cartográfico, o texto traz como recorte encontros e contaminações produzidas entre os universos cênico e da roda de samba, em suas múltiplas dimensões expressivas. Dentro de um território de fricções criativas, a Mímesis Corpórea se apresentou como elemento fundamental de articulação entre música, corpo, cena e dramaturgia.

Palavras-chave:
Mímesis Corpórea; Música; Presença; Cartografia; Dramaturgia de Ator

ABSTRACT

Built as a cartographic report, this article aims to give insight to the practical and conceptual procedures carried out during the research process that culminated in the scenic and musical creation of the show Uji - O Bom da Roda. Based on the cartographic method, we focus on encounters and contaminations produced between the theatrical universe and the roda de samba (samba circle) in its multiple expressive dimensions. Within a territory of creative frictions, Corporeal Mimesis presented itself as a fundamental element of articulation between music, body, scene and dramaturgy.

Keywords:
Corporeal Mimesis; Music; Presence; Cartography; Actor Dramaturgy

RÉSUMÉ

Construit comme un rapport cartographique, cet article vise a donner un aperçu des procédures pratiques et conceptuelles menées au cours du processus de recherche qui a abouti à la création scénique et musicale du spectacle Uji - O Bom da Roda. Baseé sur la méthode cartographique, ce texte apporte comme un découpage des rencontres et des contaminations produites entre les univers scéniques et le cercle de la samba dans ses multiples dimensions expressives. Dans un territoire de frictions créatives, la Mimesis Corpórea se présente comme un élément fondamental d’articulation entre la musique, le corps, la scène et la dramaturgie.

Mots-clés:
Mimesis du Corps; Musique; Présence; Cartographie; Dramaturgie de L’acteur

Uji - o Bom da Roda é um espetáculo cênico e musical resultante de um processo de pesquisa desenvolvido dentro do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Como doutorado integrado ao LUME Teatro1 1 Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP, criado por Luís Otávio Burnier em 1985. , esse percurso de pesquisa e criação teve orientação do ator e pesquisador Renato Ferracini e direção cênica da, também, atriz e pesquisadora Ana Cristina Colla.

Embora o processo criativo realizado ao longo dessa pesquisa tenha se configurado como o próprio campo de onde puderam emergir os procedimentos práticos e seus desdobramentos teóricos e metodológicos, mais do que apresentar o espetáculo em sua estruturação cênica e dramaturgia, este artigo tem como foco desvendar, em primeiro lugar, as bases conceituais e metodológicas a partir das quais a pesquisa foi produzida enquanto processo de acompanhamento cartográfico no interior de um território artístico e cultural específico; em seguida, ganha centralidade o olhar para os procedimentos práticos e conceituais que possibilitaram a criação de fricções, entrecruzamentos e contaminações entre música, memória histórica/cultural, corpo e cena. Desse modo, no decorrer desta narrativa, procurarei enfatizar as aproximações produzidas entre o universo expressivo híbrido da roda de samba2 2 Roda de Samba é uma manifestação cultural coletiva de origens afro-brasileiras que tem no samba - gênero musical - o elemento expressivo, a partir do qual a manifestação é estruturada; entretanto, a dança e a poesia são indissociáveis da música pulsante cujos versos são entrecortados por refrões cantados coletivamente. Em momentos específicos deste artigo, tratarei da roda para além do samba, ou seja, a roda em si configura uma forma de organização espacial com importantes repercussões socioculturais. Sob essa perspectiva, marca a trajetória humana e vem se configurando historicamente como espaço-tempo da sociabilidade, do encontro comunitário para múltiplas relações de trocas culturais e expressivas. O Samba de Roda, que terá destaque ao longo deste artigo, é uma das modalidades de manifestações em roda que a historiografia aponta como uma das matrizes do gênero samba. Tradicionalmente realizado no Recôncavo Baiano, tem suas origens relacionadas ao período colonial e apresenta estreitas ligações com a religiosidade afro-brasileira. Apresento um maior aprofundamento bibliográfico a respeito dessas dimensões, históricas e sociais associadas à roda de samba em minha dissertação de mestrado e tese de doutorado. Ver: Souza (2007; 2018). e da Mímesis Corpórea.

Entendida como procedimento de tecnificação de ações físicas e criação dramatúrgica possível de ser estruturada a partir do corpo que atua tendo como fio condutor o encadeamento de suas ações, a Mímesis Corpórea foi criada pelo fundador do LUME Teatro e desenvolvida ao longo da trajetória desse núcleo de pesquisas teatrais. A Mímesis3 3 Sempre que grafar a palavra Mímesis iniciando com letra maiúscula (M) estarei me referindo à Mímesis Corpórea. será mais bem definida e contextualizada ao longo da apresentação dos procedimentos práticos e criativos. Em alguns momentos, os encontros com integrantes do LUME ganham destaque por terem contribuído decisivamente para a potencialização dos processos compositivos realizados no decurso de toda a pesquisa e criação.

O percurso que passo a delinear como um relato de experiência se desenvolveu como parte do que considero um processo de pesquisa em vida. Esse movimento carrega marcas definidas pela formação do músico e pesquisador cujo foco de interesse está na roda de samba e que, por força dos encontros produzidos ao longo desse trajeto, passa a observar e produzir fricções entre as múltiplas matérias expressivas que compõem esse universo cultural, afetivo e estético.

Conceber a pesquisa como sendo um todo indissociável do fluxo das experiências e encontros afetivos foi definidor para as escolhas metodológicas que deram forma aos procedimentos produzidos ao longo de cada passo do processo prático e conceitual, incluindo o percurso compositivo de Uji - O Bom da Roda. Por isso, destaco que o caminho das ações e reflexões foi definindo o próprio campo de pesquisa entendido como território existencial e expressivo possível de ser cartografado.

A partir daqui, passo a me remeter à cartografia enquanto ato de experienciar a cultura e, assim, estudar as “[...] relações de forças que compõem um campo específico de experiências” (Farina, 2008FARINA, Cynthia. Arte e formação: uma cartografia da experiência estética atual. Rio de Janeiro: ANPEd, 2008., p. 9). Desse olhar cartográfico para o campo da pesquisa, passo a entendê-lo enquanto território de relações intrinsecamente associado ao movimento da vida e da cultura em seu processo dinâmico. Sob essa perspectiva, as experiências com a roda de samba na relação com a Mímesis Corpórea formam a base a partir da qual os elementos expressivos da roda passaram a constituir o próprio território de criação cênica e musical.

Nesse contexto, o ato de cartografar nos remete à possibilidade de observar a produção dos afetos - affectus, entendidos, a partir de Spinoza (2009)SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomas Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. , filósofo holandês (séc. XVII) -, como forças compositivas, enquanto processo de variação da potência de agir e de existir que ocorre invariavelmente nas relações estabelecidas no interior do território experienciado em suas dimensões objetivas e subjetivas. Com esse entendimento, a pesquisa passou a ser conduzida pelo interesse em produzir, experienciar e compreender de que modo cada encontro se apresenta como gerador de algum aumento da potência de agir e de existir no curso dos processos relacionais regidos pela presença.

A partir de Gumbrecht (2010)GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2010., a presença está associada à produção de sentidos dados pelo modo como a materialidade dos fenômenos afeta nossa percepção. Para o autor, esse afetar da percepção pelos corpos em relação não passa pela mediação do pensamento conceitual. A produção de presença, por sua vez, dá-se a partir das implicações relacionais entre os corpos e o mundo circundante, podendo ser concebida como abertura dos corpos à relação espacial, bem como para a experiência estética. Dessa primeira noção de presença articulada à ideia spinozista de affectus, passo a compreender o pesquisador-músico-atuador como sujeito que tem, na relação compositiva entre corpos e matérias expressivas, a possibilidade de suscitar sentidos capazes de serem desvelados para além daqueles culturalmente estabelecidos.

Esse olhar atento e questionador para a correlação de forças produzidas pelos encontros entre corpos, matérias expressivas e conceitos colocados em fricção foi chave fundamental para a realização de um percurso de entendimento das ações artísticas, consideradas em suas dimensões estéticas, sociais e políticas. Esse modo de escuta, que necessariamente se abre ao processo, introduz o estabelecimento do que podemos compreender como um critério ético-compositivo condutor das ações e observações cartográficas. A partir de tal critério, pode-se optar por alimentar e cartografar aquelas forças produtoras da alegria spinozista.

Na concepção formada pela relação com a Ética de Spinoza (2009)SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomas Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. , em síntese, a alegria é o resultado dos encontros capazes de gerar a potencialização da vida de todas as partes envolvidas para a formação do corpo coletivo a que estamos chamando de território. Diferentemente do olhar que compartimenta o corpo em partes separadas, Spinoza propõe um deslocamento de percepção sobre o próprio paradigma racionalista e separativo, o que possibilita compreender o território como um todo irredutível, como um corpo em constante processo de inter-relações, de expansão e retração de forças, numa dinâmica constante de afetar e ser afetado como modo de produção de si mesmo. Com isso, não nos interessa dissecar o corpo, separar as partes, mas compreender quais forças estão relacionadas para a concatenação do todo.

Para a pesquisa artística aqui apresentada, esse entendimento possibilitou considerar o espetáculo resultante como uma das culminâncias de um processo realizado em suas dimensões práticas, conceituais e espaço-temporais, ou seja, o espetáculo passa a ser visto como um acontecimento estético culminante de uma cartografia do vivido. Em síntese, essa cartografia se formula a partir de uma perspectiva específica e possível de ser adotada pelo pesquisador na duração daquele percurso singular em que esteve acompanhado por um conjunto de referenciais trazidos para compor com ele o território.

Ao trazer o termo acontecimento estético, busco estabelecer um diálogo com a fenomenologia do ato perceptivo de modo a aguçar o entendimento da presença e de suas implicações relacionais para os processos artísticos empreendidos. Nesse sentido, Bergson (2006)BERGSON, Henri. Memória e Vida / Henri Bérgson: textos escolhidos por Gilles Deleuze. São Paulo: Martins Fontes, 2006. nos propõe pensar no tempo da experiência como tempo absoluto, como duração indivisível. Podemos pensar nas artes da presença, nas manifestações da cultura popular, na música, na performance teatral como formas de manifestações expressivas que acontecem no fluxo indivisível do tempo. Nesse contexto, a presença se torna indissociável da duração; torna-se a abertura perceptiva para o acompanhamento das relações dadas no interior do próprio fluxo experiencial. Embora a decorrência do tempo da experiência possa ser pensada a partir de uma estruturação cronológica, a percepção do fluxo é a conexão com a própria duração do acontecimento em sua continuidade.

Operando como uma das importantes chaves conceituais para o processo de pesquisa e criação empreendidos, a ideia de duração, ao ser abordada numa relação direta com a presença no interior do campo artístico, trouxe contribuições substanciais para o reconhecimento da própria roda de samba como acontecimento estético. Por isso, trago um pequeno sobrevoo a respeito do modo como a pesquisadora alemã e professora de estudos teatrais Érika Fischer-Lichte (2012)FISCHER-LICHTE, Erika. Appering as embodied mind - defining a weak, strong and a radical concept of presence. In: GIANNACHI, Gabriella; KAYE, Nick; SHANKS, Michael. Archeologies of Presence: art, performance and the persistence of being. London; New York: Routledge, 2012. aborda a presença. Inicialmente, a pesquisadora nos propõe pensar em uma escala de intensidades de presença. Um primeiro nível, definido como fraco pela autora, relaciona-se ao uso cotidiano da palavra, ou seja, presença primeiramente associada à concretude física do corpo que ocupa um lugar no espaço-tempo. Nessa camada de presença, nenhuma dimensão qualitativa precisa ser apontada. Este é o nível a partir do qual, num primeiro momento, reconhece-se a presença ao se perceber algo ou alguém diante de si. Porém, no fluxo experiencial, é possível verificar que desse nível perceptivo outras relações se estabelecem. O segundo nível se constrói e passa a qualificar a presença do corpo, considerando-se, agora, um aprofundamento de sua dimensão relacional e afetiva.

Quando uma determinada qualidade de presença surge ou é intencionalmente gerada, ela pode fazer emergir outras relações ligadas às dimensões históricas, culturais ou estéticas que se colem à qualidade criada. Portanto, essa presença categorizada como forte por Fischer-Lichte (2012)FISCHER-LICHTE, Erika. Appering as embodied mind - defining a weak, strong and a radical concept of presence. In: GIANNACHI, Gabriella; KAYE, Nick; SHANKS, Michael. Archeologies of Presence: art, performance and the persistence of being. London; New York: Routledge, 2012. é geradora de experiências e signos carregados de múltiplos sentidos. Se para a arte presencial, a produção de sentidos, mesmo que não siga uma lógica racional, apresenta-se como fator intrínseco ao processo comunicativo dado pela própria relação com o acontecimento (obra), passo a considerar a questão qualitativa como fundamental.

Sob essa perspectiva, a qualificação da presença suscitou reflexões importantes à efetivação dos procedimentos de fricção e contaminação gerados ao longo da pesquisa. Quais qualidades podemos buscar num processo de composição artística de modo a produzir a potencialização de nossa ação comunicativa e poética enquanto artistas presenciais? Assim enunciada, essa questão apontou para o caminho de intensificação dos procedimentos que colocaram a Mímesis na relação com a roda de samba. Do mesmo modo, ela nos encaminha à reflexão sobre o terceiro nível, o de uma presença radical. Conforme Fischer-Lichte (2012)FISCHER-LICHTE, Erika. Appering as embodied mind - defining a weak, strong and a radical concept of presence. In: GIANNACHI, Gabriella; KAYE, Nick; SHANKS, Michael. Archeologies of Presence: art, performance and the persistence of being. London; New York: Routledge, 2012. , esse nível se dá pela geração de afecções que se autoproduzem quando a percepção da presença se torna coletiva. São atravessamentos diversos, gerados enquanto ressonâncias criadas no espaço-tempo da performance, do que estamos entendendo como acontecimento intra-entre-corpos. Essa presença, para a autora, pode colapsar a dicotomia entre corpo e mente. De modo complementar, para Gumbrecht (2010)GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2010., a experiência de presença se constitui enquanto processo de inter-relação material entre corpos e como processo afetivo dentro do qual os corpos, em relação, afetam e são afetados de modos variados e específicos, ficando sujeitos a efeitos de maior ou menor intensidade no fluxo das relações.

A partir desse olhar para os efeitos e níveis de presença possíveis de serem alcançados no fluxo experiencial, passo a considerar a roda de samba como acontecimento vivido em sua duração indivisível, enquanto acontecimento estético, presencial, dotado de uma abertura para a produção de sentidos múltiplos. Por isso, tendo a roda de samba como catalisadora de matérias expressivas diversas e formadora do território onde encontros e contaminações entre música, cena e corporeidades foram observadas e produzidas com a pesquisa, proponho pensarmos essa roda, como criadora de um fluxo e de uma fluência fundamentalmente ligados à presença, ao corpo vivo, existência tempo (Uji) que se manifesta e que ao estabelecer relações potentes com outros corpos, produz os efeitos de sua presença, constituindo a manifestação expressiva e o acontecimento em si. Ao trazer o termo Uji, faço uma referência à filosofia japonesa, mais especificamente, traço um paralelo com o olhar do fundador do Budismo Soto Zen, mestre Dogen Zenji - 1200 a 1253. Nessa visão ligada às práticas contemplativas, encontro a possibilidade de ver o acontecimento da roda de samba numa aproximação com aquilo que Zenji (1988)ZENJI, Eihei Dogen. UJI (ser-tempo) (1200-1253). Tradução de Gehrard Kahner e Alfredo Aveline. Arando a mente fértil, Porto Alegre, maio 1988. Disponível em: <http://arandoamentefertil.blogspot.com.br/2011/05/uji-ser-tempo.html>. Acesso em: 05 mar. 2020.
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apresenta como a síntese da indissociabilidade e união entre existência e tempo. “Uji - o tempo (ji) já é existência (u) e toda a existência (u) é tempo (ji)” (Zenji, 1988ZENJI, Eihei Dogen. UJI (ser-tempo) (1200-1253). Tradução de Gehrard Kahner e Alfredo Aveline. Arando a mente fértil, Porto Alegre, maio 1988. Disponível em: <http://arandoamentefertil.blogspot.com.br/2011/05/uji-ser-tempo.html>. Acesso em: 05 mar. 2020.
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, documento eletrônico).

Como não poderíamos deixar de considerar, na cosmovisão Iorubana e Bantu de onde o samba se origina, a roda se forma como ponto de conexão entre a base ampla e aberta, entre o espaço criador do Orum (mundo espiritual) e as manifestações do Aiyê (mundo físico). Sob esse ponto de vista, a roda, por meio do compartilhamento da memória, além de integrar os tempos presente e passado, promove o encontro entre as dimensões do sagrado e do profano. Ou ainda, promove o reconhecimento da inseparatividade dessas dimensões cindidas ao longo da consolidação do pensamento cartesiano, arraigado e expresso pela forma como vêm se constituindo as civilizações ocidentais pós-coloniais. Nesse campo de forças, dentro do qual a roda se forma, e no território expressivo em que ela se constitui, a sua dimensão material, a camada da realidade observável por meio dos sentidos, realiza-se de maneira indissociável das dimensões sutis, a partir das quais o movimento expressivo nasce, apresenta-se e ganha sentidos.

Mímesis Corpórea e o Percurso das Contaminações Músico-Atorais

Embora como músico, compositor e membro fundador do Núcleo Cultural Cupinzeiro4 4 Núcleo cultural de pesquisa e criação musical com sede em Campinas fundado em 2001. , a roda de samba fosse um território há muito habitado, novos olhares passaram a ser lançados sobre esse campo a partir de encontros definidores dos contornos dados à pesquisa que culminou na realização de Uji - O Bom da Roda. O contato e aproximação com o trabalho artístico, técnico-poético e de formação realizados pelos atores do LUME, em especial as primeiras experiências relacionadas ao treinamento físico de ator, sob a orientação de Carlos Simioni, foram definidoras de uma série de procedimentos e experimentos que deram origem ao processo criativo e de pesquisa formalizado ao longo do doutorado.

Por vir de uma trajetória de prática e formação musical diretamente ligadas ao samba como música afeita ao canto (canção), a aproximação, ainda em 2006, com o trabalho vocal de Carlos Simioni, justificava-se pelo desejo de encontrar novas abordagens técnicas para o aprimoramento do canto. No entanto, abria-se um amplo campo de possibilidades, trazendo consigo questões mobilizadoras a respeito do corpo-voz como unidade expressiva. Os procedimentos associados a abertura desse universo passaram a ganhar contornos ainda mais claros a partir do aprofundamento com a Mímesis Corpórea.

Inicialmente, a Mímesis Corpórea foi definida por seu criador, Luís Otávio Burnier, como sendo “[...] um processo de tecnificação de ações do cotidiano a partir da observação, imitação e codificação de um conjunto de ações físicas e vocais retiradas de contextos pré-determinados” (Burnier, 2009BURNIER, Luis Otávio. A Arte do Ator: da técnica à representação. Campinas: Editora Unicamp, 2009. , p. 62). Ao longo das pesquisas desenvolvidas pelo LUME, podemos ainda encontrar a Mímesis definida como “[...] processo de trabalho que se baseia na observação, codificação e posterior teatralização de ações físicas e vocais observadas no cotidiano, sejam elas oriundas de pessoas, animais, fotos ou imagens pictóricas” (Colla, 2010COLLA, Ana Cristina. Caminhante não há caminho: só rastros. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010. , p. 20). De modo dinâmico, essa definição vai se expandindo, criando relações e contornos específicos. No trabalho da atriz Raquel Scotti Hirson, a Mímesis passa a ser mobilizada pela memória ligada à palavra, bem como pela observação de lugares e monumentos5 5 Ver: Hirson (2012). . No contato com os escritos e algumas das práticas e processos pedagógicos realizados pelos integrantes do LUME, passo a visualizar a Mímesis como um processo vivo, como uma metodologia de trabalho técnico e poético que continua em pleno processo de desenvolvimento na relação com cada contexto dentro do qual é articulada.

Portanto, a Mímesis perpassa a presente pesquisa como um meio de articulação entre vivências na(com) a roda de samba em suas diversas dimensões expressivas e técnicas - corporais, musicais e dramatúrgicas. Essas dimensões, embora possam ser consideradas como preexistentes no contexto da roda, entendida enquanto manifestação artística e cultural híbrida, passaram a ser efetivamente acolhidas, observadas, tecnificadas e reelaboradas dentro do caminho gerado pelo encontro da roda com a Mímesis.

No curso dos encontros e reelaborações técnicas exigidas para a efetivação do processo criativo, é importante salientar o estabelecimento de um percurso de desterritorialização do músico de seu campo de domínio estrito, para uma reterritorialização dada pela abertura, pelo encontro afetivo, técnico e poético, criado pela intersecção entre música, corpo, cena, Mímesis Corpórea, samba, memória e presença.

A partir das pistas encontradas com o processo de apropriação e construção técnica, com o trabalho de desenvolvimento das energias potenciais do atuador, de seu próprio corpo na relação com o espaço, com objetos, palavras, sons, ritmos e melodias, abriram-se as trilhas para atuação que tenho entendido como músico-atoral. Essa atuação compositiva fundamentou o trabalho laboratorial dentro do qual as ações físicas, as memórias vividas, os depoimentos coletados, os aspectos históricos e sociais relacionados ao samba e seu processo de formação, além dos aspectos poéticos e musicais (texto, melodia e performance) - formadores do que Claudia Neiva Matos chama de “[...] triângulo estético e semiótico [...]” (Matos, 2012, p. 01)MATOS, Claudia Neiva. Canção popular e performance vocal. In: CONGRESSO LATINOAMERICANO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA O ESTUDO DA MÚSICA POPULAR, 5., Rio de Janeiro, 2012. Anais... Rio de Janeiro, 2012. P. 01-06 - passaram efetivamente a constituir o território habitado.

Nesse caminhar, coloquei-me em busca de ir além da ideia de um músico que usa de recursos atorais para a interpretação dos textos cancionais; ou ainda, de um ator que canta ou produz sua música em cena. Em verdade, desse campo cancional mais amplo e pensado como elemento intrínseco ao território existencial e expressivo é que foram depreendidos os elementos para a constituição dramatúrgica daquilo que se concebeu como um espetáculo-roda de samba6 6 Em um momento chave da encenação a roda é formada integrando toda a plateia. Essa mobilidade e participação do público fundamenta o caráter híbrido do espetáculo-roda de samba. Esse procedimento será mais bem detalhado adiante. . Dessa experiência, em que a dinâmica da roda unida ao conjunto de canções passou a ter um papel fundamental na constituição da dramaturgia do espetáculo, surgiu, claramente, um processo em que os elementos cancionais se tornaram impulsionadores de uma determinada costura e do encadeamento das ações; procedimento que, aos poucos, passou a desvelar os caminhos da dramaturgia. Assim, a partir da interlocução com os atores do LUME e com o ator Eduardo Okamoto, passei a refletir sobre como esse processo poderia apontar para a constituição de um teatro canção7 7 O ator e pesquisador Eduardo Okamoto, docente do curso de Artes Cênicas da UNICAMP, foi membro da banca de qualificação, momento em que a reflexão sobre o teatro-canção passa a ganhar relevância. : um tipo de construção dramatúrgica em que, da articulação entre canções e o conjunto de matérias expressivas a elas relacionadas são depreendidas ações e qualidades físicas referentes às dimensões sonoras, musicais, textuais e contextuais. Nessa perspectiva, o campo cancional possibilita a produção de um discurso poético dentro do qual as ações físicas se produzem para além da ideia de interpretação da canção.

Luís Otávio Burnier, diretor e fundador do LUME, apresenta-nos a possibilidade de irmos além da interpretação como mera tradução ou comunicação de elementos informativos provindos de um texto dado a priori - acepção mais comum do termo interpretação, quando referido ao trabalho do intérprete da canção. Guiado por suas experiências com o LUME e pelas diversas referencias ligadas à história e antropologia teatral, Burnier (2009)BURNIER, Luis Otávio. A Arte do Ator: da técnica à representação. Campinas: Editora Unicamp, 2009. sistematizou as bases para que o ator buscasse um trabalho a partir de si mesmo, um trabalho que dá centralidade às ações físicas e vocais tanto para o desenvolvimento técnico, quanto criativo e dramatúrgico. Contribuindo para o entendimento e desenvolvimento das energias potenciais do ator, bem como para uma maior clareza sobre as questões referentes à não interpretação, inicialmente acessadas no contato com Carlos Simioni, Ferracini (2003, p. 34)FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. Campinas: Ed. Da Unicamp, 2003. destaca:

O ator cria a partir de si mesmo. Assim, sem informações preliminares ou dados para a construção de sua personagem, ele necessita operacionalizar uma maneira nova de construção de sua arte. Ele necessita, então, de parâmetros objetivos que permitam a construção de uma cena independente de informações literárias, analíticas ou psíquicas. Esses parâmetros objetivos serão as ações físicas e vocais orgânicas.

Todo o trabalho sobre as ações físicas e vocais se torna o ponto dinamizador dos procedimentos práticos da pesquisa. Há aqui um trabalho do músico-atuador sobre si mesmo, a partir dele procurei chegar à ampliação dos limites expressivos para o encontro de novos modos de relação entre os universos: cênico e cancional. O músico e compositor Italiano Luigi Nono, em uma série de escritos sobre teatro e música, aborda o teatro musical como a possibilidade de produção de uma ruptura com os padrões operísticos no início do século XX, o compositor entende que o “[...] canto, acção e mímica alternam-se e desenvolvem-se também simultaneamente, e um não é a ilustração do outro, mas cada qual caracteriza independentemente várias situações” (Nono, 2016. p. 20). Embora o presente artigo não tenha como foco aprofundar sobre o estudo do teatro musical, é importante salientar que diversos compositores e dramaturgos do início do século XX produziram experiências particulares de contaminação entre a música e o teatro. Nono (2016), frisa essa como uma necessidade decisiva de comunicar, ímpeto que passa a se expressar pela modernidade de ideias e de luta política, dentro da qual Bertolt Brecht pode ser considerado um importante pilar.

Ainda sobre as possibilidades de produzir fricções e contaminações entre o musical e o atoral, o filósofo luso moçambicano, José Gil (1994)GIL, José. O Espaço Interior. Lisboa: Ed. Presença, 1994. no livro O Espaço Interior, recorre a uma teoria do poeta Fernando Pessoa, por meio dela o escritor via a possibilidade de transformação das imagens sensoriais: visuais, em auditivas; táteis e olfativas, em visuais etc. A partir disso, Gil adensa a ideia de contágio entre diferentes matérias expressivas. “Essa passagem da poesia à música, da pintura à escultura, da poesia à dança - da-se frequentemente por meio de um movimento que excede a tradução: um movimento de contágio ou contaminação” (Gil, 1994GIL, José. O Espaço Interior. Lisboa: Ed. Presença, 1994., p. 71).

Para Gil (1994, p. 71, grifos do autor)GIL, José. O Espaço Interior. Lisboa: Ed. Presença, 1994., esse movimento de contágio é o que permite o próprio surgimento da forma poética: “[...] esta surge num ‘meio’ ou numa ‘atmosfera’ de sensação”. Criar essa atmosfera de sensação, esse campo poético parece apontar para uma das finalidades do acontecimento estético. A criação desse ambiente de percepções, na perspectiva de Gil, apresenta-se como uma espécie de composição global invisível, mas sensível. Assim observado, esse me parece ser um território, uma zona de turbulência, tal como chama Ferracini (2014)FERRACINI, Renato. Vida e Presença: os corpos em arte. (Projeto Temático de Equipe proposto à FAPESP pelo LUME: Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais). Campinas: UNICAMP, 2014., onde o contágio e a produção de presença podem se efetivar.

Para a atriz e cantora Barbara Biscaro, a possibilidade de criação desse território comum de contágios e fricções se constitui como um campo de pesquisa possível e necessário de ser aprofundado.

O meu interesse está em uma pesquisa que procure territórios que não partam de uma possível subordinação de uma área à outra: sem predominância de uma sobre outra, um/a artista inserido/a nesse contexto seria aquele/a que não vê separação ou hierarquia entre fazer música e fazer teatro: são ações sobrepostas, que criam uma lógica própria, um projeto de mundo (Biscaro, 2015BISCARO, Barbara. Vozes Nômades: escutas e escritas da voz em performance. 2015. Tese (Doutorado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2015., p. 15).

Durante o processo de pesquisa, a Mímesis Corpórea possibilitou friccionar o musical com o atoral, desse modo, procurei encontrar uma forma de ação criadora capaz de constituir uma linha de fluxo, a partir da qual músicas, as ações físicas, textos e contextos, reunidos e em diálogo, pudessem compor o campo da expressão poética.

Associar deixa de significar, aqui, traduzir. Não há transposição de uma forma para outra, mas fusão ou contaminação dos dois domínios - com uma quase-dissolução das formas preexistentes e, numa atmosfera única de sensações, o esboço de uma única linha melódica, de uma única linha de fluxo que dará uma forma determinada à expressão poética. Como a integral de todas as diferenciais que a compõem (Gil, 1994GIL, José. O Espaço Interior. Lisboa: Ed. Presença, 1994., p. 77).

Como sujeito pesquisador, imbuído desse olhar, passo a criar a partir do trabalho exploratório com as matérias expressivas formadoras desse território de encontros e fricções. Daquilo que foi até aqui exposto, abrem-se as trilhas do teatro canção para podermos visualizar um pouco do processo de construção de Uji - O Bom da Roda.

O Campo das Práticas: contaminações em processo

A partir desse ponto, você leitor/a e eu faremos uma reentrada no campo das práticas feita pela via da memória. A narrativa que se segue foi tecida a partir das marcas e afetos produzidos em cada período do trabalho técnico e criativo. Trata-se, portanto, de uma recriação do processo solitário da sala de treinamento feita por fragmentos, estilhaços que não podem reconstruir o conjunto de experiências, mas podem sim desenhar um mapa daquilo que foi, passo a passo, constituindo a dramaturgia do espetáculo.

Buscando delinear um percurso lógico de realização dos procedimentos práticos, poderíamos separar, de modo didático, essa narrativa em três momentos: 1) Treinamento; 2) Criação; e 3) Montagem e estruturação dramatúrgica.

Como esses espaços e tempos foram permeados pelo trabalho com a Mímesis Corpórea, defino-os como camadas que foram se sobrepondo para a constituição do território. Essas camadas foram se associando e criando simbioses entre o desenvolvimento da técnica corpórea e a própria criação cênico musical.

O treinamento, se configura como a camada a partir da qual “[...] o ator se trabalha, independentemente de qualquer outro elemento externo, como cena, texto ou personagem” (Okamoto, 2010, p. 54)OKAMOTO, Eduardo. Anotações para uma dramaturgia de ator. Rebento - Revista de Artes do Espetáculo, n. 2, p. 52-58, jul. 2010. Disponível em: <http://www.periodicos.ia.unesp.br/index.php/ rebento/article/view/20>. Acesso em: 06 abr. 2021
http://www.periodicos.ia.unesp.br/index....
. Ou, como Constantin Stanislavski preferiu nomear, é o “[...] trabalho do ator sobre si mesmo” (apud Okamoto, 2010OKAMOTO, Eduardo. Anotações para uma dramaturgia de ator. Rebento - Revista de Artes do Espetáculo, n. 2, p. 52-58, jul. 2010. Disponível em: <http://www.periodicos.ia.unesp.br/index.php/ rebento/article/view/20>. Acesso em: 06 abr. 2021
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, p. 54). Para Ana Cristina Colla, o trabalho sobre si mesmo é uma busca que leva o atuador a um “[...] mergulho na própria corporeidade para a criação de uma dança particular” (Colla, 2010COLLA, Ana Cristina. Caminhante não há caminho: só rastros. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010. , p 21). A palavra dança, de forma metafórica, indica a possibilidade do atuador ir ao encontro de uma maneira própria de criar com o corpo. Por meio do treinamento, ampliam-se as possibilidades de articulação técnica para a entrada no campo de manipulação e percepção da própria fisicidade. Nesse campo se constroem as bases para a codificação e produção de ações físicas em sua materialidade - forças em jogo, tensões, densidades e energias que percorrem os sistemas musculares e produzem modulações das dinâmicas de movimento, ritmos, bem como a diversificação das qualidades e ações físicas. Tudo envolve o trabalho perceptivo, de atenção às sensações produzidas no fluxo dos acionamentos e condução das articulações, ossos, músculos e pele. Portanto, trata-se de uma prática que envolve o atuador em sua integralidade.

Como em um sistema de retroalimentação, a propriocepção vai gerando uma ampliação do domínio técnico e um aprofundamento no fluxo das ações. Assim, vão se ampliando e refinando as possibilidades expressivas ao mesmo tempo em que a propriocepção também vai sendo aguçada. Desse refinamento, surgem ações que apontam para a expansão dos padrões físicos cotidianos no sentido do encontro com o corpo num plano expressivo extra cotidiano. Nesse âmbito, além de operar para a produção de novas lógicas de ação, a Mímesis Corpórea contribui para a descoberta de impulsos internos capazes de dar vida às fisicidades codificadas, operando definitivamente para a entrada na dimensão criativa do trabalho físico. No interior do campo da criação, a produção de ações têm aquele mesmo conjunto de articulações, tensões e movimentos codificados como parâmetros; porém, o corpo do atuador agora se deixa permear por memórias, imagens, textos e sonoridades. Esse encontro do corpo material com as componentes imateriais que o afetam produz uma nova camada para o trabalho do atuador. Essa camada se constitui como a dimensão expressiva surgida no encontro entre o corpo vivo e aquilo que foi tecnificado.

Desse conjunto de operações técnicas e poéticas em constante processo de elaboração, aprofundamento e reelaboração, foi possível avistar o surgimento de uma dramaturgia do corpo, ou dramaturgia de ator tal como define Eduardo Okamoto (2010, p. 52)OKAMOTO, Eduardo. Anotações para uma dramaturgia de ator. Rebento - Revista de Artes do Espetáculo, n. 2, p. 52-58, jul. 2010. Disponível em: <http://www.periodicos.ia.unesp.br/index.php/ rebento/article/view/20>. Acesso em: 06 abr. 2021
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A dramaturgia de ator, como a vejo, é uma modalidade de criação teatral em que a narrativa do espetáculo tem seu fundamento na organização de repertórios físico-vocais do atuante. Diferentemente do trabalho que se funda na estruturação de uma narrativa literária, a dramaturgia de ator centra-se no potencial narrativo do corpo. O ator revela suas narrativas corporais e organiza-a poeticamente.

Dentro da especificidade dessa abordagem em que a pesquisa foi produtora de um território de contaminações entre a atuação cênica e musical, o potencial poético e narrativo do corpo se constituiu a partir do que passei a chamar de dramaturgia do músico-atuador. No seu fazer, o repertório físico e vocal é articulado pela relação do corpo com o universo sonoro, musical e cancional, elementos constitutivos e indissociáveis do território habitado.

Para uma aproximação com a dramaturgia de Uji - O Bom da Roda na articulação com a Mímesis Corpórea, apresento agora alguns aspectos da composição das três figuras (personagens) que são encadeadas dentro da estrutura cênica do espetáculo. São elas: Cícero - trabalhador urbano; a Sambadeira e o Sambador Violeiro, personagens trazidas do universo do Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Cada figura foi composta de forma particular e traz referências diversas, derivadas de observações em campo8 8 As observações em campo envolveram incursões realizadas em momentos específicos para alimentar o trabalho com a Mímesis por meio de vivências e coleta de registros. Para a composição das figuras do Sambador Violeiro e Sambadeira, em agosto de 2016, visitei as Cidades de Cachoeira, São Félix, Santo Amaro e São Francisco do Conde no Recôncavo Baiano, região onde pude vivenciar com mais profundidade o Samba de Roda. , memórias e encontros vividos dentro do universo do samba.

Cícero surge da observação dos lavadores de caçambas de lixo na cidade de Campinas. Esse personagem articula as relações entre o mundo do trabalho e o mundo da fantasia, dentro do qual a brincadeira com os elementos musicais extraídos de seus objetos de trabalho cria amálgamas com suas memórias.

No início do espetáculo, enquanto o público entra e se acomoda, em um canto da sala, Cícero explora sonoridades extraídas de um balde metálico com o qual enxágua as caçambas de lixo. Pelas sonoridades que aprendeu a extrair de sua lata, Cícero também revela os desencantos produzidos pela dureza do trabalho. À medida que começa a caminhar entre o público e passa a realizar suas ações, a percussão na lata, as melodias e sua dança particular produzem seu reencantamento com a vida. Eu vou trabalhar zangado? torna-se seu bordão.

Embora tenha surgido ainda num momento inicial da pesquisa com a Mímesis Corpórea, Cícero vai ganhando força dentro da dramaturgia e passa a ser a representação do homem do interior paulista que tem uma relação profunda com a cultura trazida do Nordeste por seus antepassados. Dentro do desenho que começou a ganhar forma com a presença de Cícero, sua memória e ancestralidade se relacionam com as manifestações expressivas vindas do Nordeste, com os trabalhadores que produziam, com seus braços, o ouro negro colonial. O café concentrava a mão de obra do Sudeste, antes dirigida à cana de açúcar e ao algodão nordestinos. O processo econômico com suas flutuações já demonstrava querer ser dono dos corpos. No entanto, como aponta Muniz Sodré (1998)SODRÉ, Muniz. Samba o dono do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998., o samba é verdadeiramente o dono do corpo daqueles que, no encontro para celebrar o simbólico, o sagrado, a ancestralidade, bem como, para cantar amenizando as angústias da realidade diaspórica, conseguiram se manter vivos e íntegros. Esses corpos pulsavam, vibravam com a música, com o contato rítmico dos pés no chão e com as trocas produzidas em roda.

Em uma das cenas do espetáculo, há um texto que marca o momento de transição em que abandono a figura de Cícero, numa abertura para a chegada da Sambadeira. Trata-se de um excerto do romance A ilha sob o Mar, de Izabel Allende (2010)ALLENDE, Izabel. A Ilha sob o mar. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2010. . Esse é um romance ficcional que se desenvolve no contexto de libertação e expulsão do governo colonial francês de São Domingos, período denominado como Revolução Haitiana, ocorrida em fins do século XVIII. O fragmento específico trata da relação entre a liberdade e o fazer expressivo da personagem Zarité:

Minha primeira lembrança de felicidade, quando era uma pirralha magrela e

desgrenhada, é a de me mexer ao som dos tambores...

A música é um vento levado pelos anos, pelas lembranças e pelo temor, esse animal preso

que carrego dentro de mim.

Com os tambores desaparece a Zarité de todos os dias e volto a ser a menina que dançava

quando mal começava a andar. Bato no chão com as solas dos pés, e a vida sobe pelas

minhas pernas, percorre meus ossos, apodera-se de mim, acaba com a minha tristeza e

adoça a minha memória.

O mundo estremece. O ritmo nasce de uma ilha sob o mar, sacode a terra, atravessa-me

como um relâmpago e segue em direção ao céu, levando as minhas aflições...

‘Dance, dance, Zarité, porque escravo que dança é livre... enquanto dança’.

Eu sempre dancei (Allende, 2010ALLENDE, Izabel. A Ilha sob o mar. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2010. , p. 07).

Como parte do trabalho com a Mímesis da Palavra9 9 Mímesis da Palavra coloca o texto como uma outra camada geradora de imagens propulsoras das ações. Como decorrência da Mímesis Corpórea, esta foi uma metodologia desenvolvida pela atriz e pesquisadora do LUME, Raquel Scotti Hirson, em sua pesquisa de doutorado. Ver: Hirson (2012). , esse texto não é apresentado ao público em sua estruturação literária. Mais do que revelar palavras com significado, o texto opera, em cena, uma maneira de produzir imagens capazes de afetar o corpo do músico-atuador para a produção de ações que passaram a caracterizar a transição de Cícero para a Sambadeira.

Antes ainda de apresentar a Sambadeira, vale destacar que a figura de Cícero traz no corpo as contradições que, ao longo do processo com a Mímesis, foram agregando outras dimensões e camadas compositivas. Chamo de corporeidade - Cícero o modo como recebo as marcas que o corpo observado passou a imprimir em meu corpo. De modo mais objetivo, trago dos registros do trabalho técnico e criativo algumas indicações daquilo que passou a constituir essa corporeidade:

O foco para a entrada na corporeidade de Cícero está numa leve inclinação do eixo vertical para a esquerda como forma de equilibrar o peso de seu balde. Há uma retração do quadril e da barriga com uma leve projeção da região púbica. O seu caminhar, em função dessa inclinação, faz a perna direita se abrir a cada passo; consequentemente, há uma maior distribuição do peso sobre o pé esquerdo. O ombro direito se retrai para traz, enquanto o esquerdo tem uma leve projeção. O olhar se abre para o espaço a partir de uma tensão na testa, o maxilar tem uma projeção para a lateral esquerda enquanto os lábios pesam. A voz tem um padrão de frequência concentrado na região média e aguda, o que gera a predominância da ressonância na cabeça e cavidades nasais; porém, essa vibração é retraída de modo a concentrar seu foco vibratório na nuca (Souza, 2018SOUZA, Eduardo Conegundes de. Samba e mímesis corpórea: encontros compositivos para a criação do corpo-espetáculo “Uji - O Bom da Roda”. 2018. Tese (Doutorado em Artes da Cena) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. , p. 198).

Quando essa estrutura de forças e tensões começa a ser permeada pelos gestos característicos de seu trabalho, inicia-se a criação de uma lógica das ações físicas como uma nova camada da corporeidade-Cícero. Começavam a surgir os traços de uma primeira partitura de ações que, inicialmente, eram focalizadas no tórax e nos braços. Os movimentos associados ao ato de esfregar, ensaboar e enxaguar, bem como à manipulação de seu balde, passam a pontuar suas ações, interferindo também na dinâmica e no ritmo de sua fala. Como resultante disso, surgia uma qualidade corpórea em que a segmentação entre os braços e cabeça dava ao tórax movimentos mais lineares. Passei a associar essa qualidade a um certo caráter robótico. Essa lógica de ação tornou-se uma referência ao mundo do trabalho e da razão, assim, em função de certa linearidade e exatidão de movimentos desenhados no espaço, passei a nomeá-la de qualidade apolínea. Ao longo do processo de treinamento, essa corporeidade apolínea pôde ser aprofundada e refinada pela relação das ações com a estruturação rítmica do RAP10 10 RAP - Música surgida na segunda metade do século XX, tem suas origens ligadas a comunidades afro-americanas e caribenhas. O RAP é composto por uma base rítmica marcada que acompanha um discurso poético cuja elocução se aproxima da fala estruturada em rimas. Essa música é considerada um dos pilares da cultura hip-hop, muito presente nas periferias de grandes centros urbanos ao redor do mundo. .

Em contraposição a isso, Cícero traz a brincadeira com a musicalidade e o ritmo sincopado característico do samba e das células rítmicas de matriz africana11 11 A síncope pode ser definida como a ocorrência de um acento rítmico que ocorre em um tempo fraco do compasso tendo a sua duração estendida até o tempo forte. Esse procedimento gera uma sensação de deslocamento do tempo forte, algo muito recorrente na música africana e afro-brasileira. . Procurei inserir esse elemento musical como gerador de uma certa malemolência para as pernas, mas, em alguns momentos, ele contamina todo o corpo. Para isso, trouxe como referência para o trabalho técnico a imagem de Delegado da Mangueira. Delegado foi um passista e mestre sala12 12 No contexto das tradições das escolas de samba, agrupamentos carnavalescos surgidos no Rio de Janeira, no início do século XX, passista define o(a) componente que domina com maestria a dança do samba e, assim, ganha lugar de destaque dentro do desfile. Nesse mesmo contexto, o mestre sala pode ser considerado um passista que desenvolve sua dança em diálogo com a porta bandeira - dama que carrega o pavilhão - símbolo maior da agremiação. da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Homem muito alto e esguio, ficou conhecido por seu modo elegante e característico de sambar com as pernas muito hábeis e soltas. Dele surge o que chamei de qualidade malemolente.

Sobre a presença da música na pesquisa com as qualidades físicas, cabe destacar que, ao longo de todo o processo, os elementos musicais foram sendo agregados ao trabalho técnico junto a imagens, textos, depoimentos e memórias. De forma articulada, esses elementos foram gerando subsídios para a criação e estruturação das corporeidades colocadas em jogo com a Mímesis Corpórea. Certamente, pela singularidade do território habitado, bem como por se tratar do trabalho de um músico-atuador, a materialidade sonora e musical passou a ser um elemento mobilizador de afetos fundamentais para o trabalho com as qualidades físicas de cada figura:

Figura 1
Cícero Batuqueiro em Uji - O Bom da Roda.

Figura 2
Cícero com lata em Uji - O Bom da Roda.

Após uma passagem quase onírica em que Cícero tem sua corporeidade transfigurada, a memória de Zarité começa a percorrer meu corpo. Bato no chão com as solas dos pés, e uma qualidade altiva sobe pelas minhas pernas, afeta os quadris, percorre as estruturas ósseas e musculares, reconfigurando o corpo do músico-atuador, que passa se expandir em direção ao céu para trazer à cena uma mulher longilínea e ávida em viver a roda.

A Sambadeira, em seus meneios e tremulações, faz-se presente feito chama ancestral, labareda em torno da qual a roda se forma desde tempos imemoriais. Assim pude ver as mestras do Samba de Roda, mulheres inspiradoras, referências para a composição da Sambadeira. Senhoras como Dona Dalva Damiana de Freitas, sambadeira e compositora, nascida em 1927, com quem tive contato durante a passagem pela cidade de Cachoeira, e Dona Aurinda da Anunciação, sambadeira e mestra septuagenária, tocadora de prato e faca13 13 Utensílios de cozinha tradicionalmente usados como instrumento musical percussivo do samba de roda. , foram referências fundamentais.

Para o trabalho com a Mímesis, além do encontro com D. Dalva, da magia das rodas vivenciadas na cidade de Cachoeira, foi também importante o acesso aos materiais audiovisuais publicados sobre o Samba de Roda do Recôncavo baiano14 14 Dentre esses materiais, estão os documentários de onde foram extraídos trechos de depoimentos que transcritos e recriados foram levados à cena como textos da Sambadeira e do Sambador Violeiro: O Samba de Roda na palma da mão (O samba..., 2008); Samba de roda do Recôncavo Baiano (Samba..., 2004); Cantadores de Chula. Dir: Marcelo Rabelo (Cantadores..., 2009). . Dona Aurinda, mesmo que apenas pela mediação videográfica, capturou-me e veio habitar comigo a cena. Dessa relação múltipla com as mestras do recôncavo, surge, em seus depoimentos, olhares, posturas, silêncios e cantorias singelas, uma imagem de grande vitalidade, de força e alegria em permanecer sambando. Esse fato passou a reafirmar o Samba de Roda como um universo sensível e poético de grande riqueza para a composição do espetáculo. Como pesquisador ligado às manifestações musicais e coletivas, já vinha procurando compreender quais sentidos o samba trazia para a vida daqueles que têm suas trajetórias perpassadas por essa manifestação, por esse modo de expressão e convívio comunitário. Desse olhar, algumas questões passaram, então, a guiar o processo de coleta e organização dos materiais com os quais ia me deparando e trazendo para habitar o território de criação: que afetos a roda produz? Como a roda atua na criação do espaço-tempo de sociabilidade, celebração, criação e compartilhamento do sensível (cantar, dançar, comer e beber juntos)? Na busca pela alegria spinozista, pela produção de presença como potencializadora dos modos de agir e de existir no mundo, o Bom da Roda parecia se apresentar como a própria configuração desse espaço-tempo do compartilhamento e de celebração da vida em coletivo. A partir disso, a Sambadeira, quando chega à cena, entre cantigas, e memórias narradas, aos poucos vai mostrando como o samba e a roda se convertem em força vital. Mesmo diante das dificuldades e agruras da vida, ela afirma o desejo de continuar sambando. Na proximidade com o público, troca olhares e conta:

Lhe digo eu tô com as perna travada de reumatismo, a pressão circulando, a coluna também, mas quando toca o pinicar do samba, acho que eu fico é boa, eu sambo... pareço uma menina de quinze anos. (Risos…) (Trecho de entrevista com D. Dalva Damiana, transcrito do documentário: Samba de Roda do Recôncavo Baiano (Samba..., 2004)).

Figura 3
Sambadeira em Uji - O Bom da Roda.

Figura 4
Sambadeira com pratinho em Uji - O Bom da Roda.

Depois de rodopiar sua saia como em um sonho, completa:

Eu, teve uma vez que eu fui pra um samba, umas quatro horas da tarde eu comecei a sambar. No outro dia, 8 hora do dia eu vim pra casa chorando! Eu queria sambar mais!

E segue cantando:

Me deixa, me deixa

Me deixa eu sambar

Por Nossa Senhora me deixa (Trecho de entrevista com Dona Davina Vicente Ferreira, sambadeira de Cabaceiras do Paraguaçú - Recôncavo Baiano. Fala e versos transcritos do documentário: Samba de Roda do Recôncavo Baiano (Samba..., 2004)).

Figura 5
Sambadeira cantando com pratinho em Uji - O Bom da Roda.

Figura 6
Sambadeira com pratinho em Uji - O Bom da Roda.

Inspirada em Dona Aurinda, a figura da Sambadeira traz como parte de sua composição o prato de metal envernizado e sua faquinha. Entre cantigas e chulas15 15 Chula é uma das formas poéticas e musicais que integram o Samba de Roda. , acompanhadas pelo raspar ritmado do prato, a Sambadeira fala da satisfação de fazer parte do samba e, com orgulho, mostra-se empoderada ao destacar a maneira como rompeu com a tradição de que mulher não podia tocar nas rodas. Ao mesmo tempo, ao ser reconhecida como a irmã de Quadrado16 16 Dona Aurinda Raimunda da Anunciação é irmã de Gerson Francisco da Anunciação, mestre de capoeira conhecido como mestre Quadrado da Ilha de Itaparica. , ela revela, em sua fala, outras dimensões desse tratamento dado à mulher. Dentro do espetáculo, esse é um dos momentos em que a Sambadeira traz à tona seu descontentamento e resistência diante de um contexto ainda marcado por relações permeadas pelo machismo e desigualdades.

Figura 7
Sambadeira na roda 1 em Uji - O Bom da Roda.

Figura 8
Sambadeira na roda 2 em Uji - O Bom da Roda.

De modo estruturante para a dramaturgia, a Sambadeira aprofunda a relação do espetáculo com a própria roda de samba. A partir da concepção de que a roda se configura como campo de relações para a formação de um corpo coletivo, o espetáculo passa a ser compreendido efetivamente como um espetáculo-roda. Nesse sentido, a própria construção dramatúrgica passou a apontar para a necessidade de uma configuração do espaço cênico que culminasse na formação de uma roda dentro da qual o público também estivesse integrado e pudesse experienciar seu campo de forças. Ou seja, a formação da roda por meio dessa reconfiguração espacial do público é o ponto-chave que leva à efetivação da roda dentro da qual, juntamente com a Sambadeira, o público passa a compor e participar ativamente do acontecimento estético.

Contando com essa mobilização da plateia e compreendendo que o funcionamento da roda requer uma proximidade entre os seus participantes, o espetáculo é realizado em seções para um máximo de 45 pessoas, sendo destinado para salas que possibilitem a mobilidade e reposicionamento dos participantes em cena. Inicialmente, o público ocupa toda a sala e é disposto em cadeiras distribuídas de maneira aparentemente aleatória. Dentro desse espaço ocupado pelo público, Cícero vai estabelecendo sua relação com os presentes até criar as condições para a chegada da Sambadeira, que finda por chamar o público para formar e participar da roda.

Figura 9
Sambador na roda com Anabela Leandro, Roberto Amaral e Xeina Barros (Musicistas integrantes do elenco) em Uji - O Bom da Roda.

Desse modo, o espetáculo-roda se configura como uma construção coletiva conduzida pela figura da Sambadeira. A partir dessa reconfiguração há uma intensificação da presença da música como linha guia das ações e interações no interior da roda. Por estar fundamentada em sua dimensão musical, a roda de samba, para ser efetivada dentro do espetáculo, necessitou da construção de uma base musical muito bem estabelecida, por isso, como parte do elenco, passamos a contar com a atuação de três musicistas que, na parte inicial do espetáculo, encontram-se diluídos na plateia e que, a partir da formação em roda, juntamente com as personagens que se sucedem, passam a gerar a base rítmica e harmônica centrais para a condução da roda.

O Sambador Violeiro é introduzido com a roda já formada e se junta aos participantes para contar e cantar suas estórias até dar desfecho ao espetáculo. Como um dos pilares da figura do Sambador Violeiro, juntamente com Sr. João do Boi - compositor, cantador e tocador de chula, Seu Zé de Lelinha - saudoso violeiro de São Francisco do Conde, atravessa-me em cena trazendo a síntese das reflexões acerca da presença no contexto da pesquisa. Ao terminar de pontear uma Chula em sua viola de machete, Zé de Lelinha diz de sua experiência.

Quando eu tô tocando o meu negocinho aqui, aquilo pra mim eu não tô me lembrando de nada ruim e nem de bem. Eu só tô me lembrando disso. Eu só tô com meu sentido aqui óh (Trecho de entrevista com Seu Zé de Lelinha, transcrito do documentário: Samba de Roda do Recôncavo Baiano (Samba..., 2004O SAMBA de Roda na palma da mão. Bahia: Secretaria de Cultura, 2008. 1 vídeo (30min). Direção e Fotografia: José Carlos Torres. Realização: Jorge Páscoa. Publicado pelo canal labeldisco em 2013. Disponível em: <https:// www.youtube.com/watch?v=p9h2rydFT_0&t=>. Acesso em: 16 jan. 2017.
https:// www.youtube.com/watch?v=p9h2ryd...
)).

Figura 10
Sambador com cavaquinho em Uji - O Bom da Roda.

Com as figuras da Sambadeira e do Sambador Violeiro, trago os afetos para dançar. Com eles, o trabalho técnico tomou outra direção, no caso dessas figuras, passei a ter como referências não uma matriz, um único corpo. Essas figuras foram constituídas pelas fisicidades de várias senhoras e senhores observados. Fui somando elementos para criar a Sambadeira e o Sambador que trago para Uji - O Bom da Roda. Ao mesmo tempo, nessa relação, houve um período, logo após a ida ao Recôncavo, em que o trabalho técnico consistia em ficar horas sambando como forma de me aproximar desses corpos femininos e dos velhos sambadores observados. Queria encontrar, em meu corpo, o devir sambadeira e sambador. Assim, passei a entender essas como corporeidades que estão em mim, que perpassam minhas memórias e passo a criar a partir delas, numa expansão para várias relações e afetos que trazem a presença das mulheres, velhos e velhas que me habitam, de minha mãe à D. Dalva e D. Aurinda, de Mestre João do Boi ao avô materno com quem convivi na infância. O refinamento dessas corporeidades foi desenvolvido a cada nova entrada em sala ao longo do processo. Características físicas, qualidades vocais, dinâmicas das ações foram sendo constituídas como criação, a partir das memórias de campo e de um conjunto de imagens selecionadas como forma de acessar tecnicamente cada figura. Como disse, elas se constituíram como somatória e foram definidas em seus contornos, já no período de construção dramatúrgica, dentro do qual uma gama de detalhes técnicos foi sendo trabalhado para a chegada a um contorno final para cada figura junto à elaboração dos figurinos e elementos cenográficos.

Da Sala Vazia despontam Conclusões

Quando o espetáculo finda, e a sala fica novamente vazia, como cinzas em brasa, restam vestígios do vivido. Aos meus ouvidos soam os ecos de cada figura. No ambiente, há pouco habitado pela roda, restaram objetos inertes. O chapéu do sambador repousa no encosto da cadeira, ao seu lado descansa o cavaquinho, companheiro de todas as chulas e lamentos cantados, marcas das vidas que encontram alento e continuam a se expandir com as vibrações da roda.

Nessa atmosfera de sensações ainda pulsantes, concluo que a roda de samba se configurou para esse trabalho como território de encontros, de liberdade expressiva e de reconstrução da memória. Nesse sentido, a formulação do espetáculo trouxe uma nova relação com minha própria trajetória de vivências e pesquisas. Ao trazer a Mímesis para habitar a roda, como na dança das sambadeiras, giros metodológicos e conceituais foram produzidos. Esse rodopiar descreveu um percurso em espiral dentro do qual as relações com o corpo, cena, presença e com a própria música ganharam novos sentidos e profundidades. Procedimentos técnicos alimentaram composições poéticas e cocriaram o próprio território existencial que habito. Do diálogo entre as experiências com o universo expressivo da roda de samba articulados com a Mímesis, fui ao encontro de pessoas, pude me relacionar e trazer a inteireza de trabalhadores, mestres e mestras do samba que, ao habitarem o universo poético da roda, carregam-no para a vida. Por meio desses encontros, pude me reconectar com o fazer que cria como modo mesmo de produção de presença, existência-tempo mobilizadora de um campo poético, por isso vivido como território de fricções, amálgamas e contaminações entre matérias expressivas que, ao serem posicionadas em um mesmo mapa, potencializaram-se mutuamente.

O conjunto de imagens, textos, memórias, depoimentos, sons e músicas, ao serem colocadas em relação como parte de um mesmo território existencial, trouxeram a perspectiva da produção de presença considerando-a fundamentalmente como produtora de um campo relacional onde há sempre o jogo em que afetar e ser afetado transforma e integra as partes em relação. Com isso, a pesquisa que culmina na composição de Uji - O Bom da Roda esteve diretamente relacionada a uma busca por elementos de equilíbrio entre a prática, como sendo a própria pesquisa, e todas as discussões teóricas e metodológicas para a construção de um corpo que busca sua inteireza. Se, em grande medida, podemos buscar nas artes (com e por meio delas) a quebra de paradigmas racionalistas, a desconstrução da cisão cartesiana entre racional e sensível, mente e materialidade física, entre objeto e observador, essas quebras se iniciam numa relação com o corpo íntegro, no alargamento de sua potência expressiva. Experimentar e investigar, com e a partir do corpo, fez parte da virada do ser e do saber, iniciada pelo encontro com o LUME e que continuo buscando no envolvimento com as artes da presença. Dentro dessa perspectiva, a Mímesis Corpórea possibilitou tecer fios, trilhas que se entrelaçaram para a produção da dramaturgia como uma narrativa da presença.

Como processo, a pesquisa trilhou um caminho criativo aberto no interior de um território particular, território no qual foi possível se pensar e estruturar experiências práticas de contaminação entre o cênico e musical, fundamentalmente entre arte e vida. Nesse território, permaneço a recompor o corpo-pesquisador-músico-atuador-roda de samba.

Notas

  • 1
    Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP, criado por Luís Otávio Burnier em 1985.
  • 2
    Roda de Samba é uma manifestação cultural coletiva de origens afro-brasileiras que tem no samba - gênero musical - o elemento expressivo, a partir do qual a manifestação é estruturada; entretanto, a dança e a poesia são indissociáveis da música pulsante cujos versos são entrecortados por refrões cantados coletivamente. Em momentos específicos deste artigo, tratarei da roda para além do samba, ou seja, a roda em si configura uma forma de organização espacial com importantes repercussões socioculturais. Sob essa perspectiva, marca a trajetória humana e vem se configurando historicamente como espaço-tempo da sociabilidade, do encontro comunitário para múltiplas relações de trocas culturais e expressivas. O Samba de Roda, que terá destaque ao longo deste artigo, é uma das modalidades de manifestações em roda que a historiografia aponta como uma das matrizes do gênero samba. Tradicionalmente realizado no Recôncavo Baiano, tem suas origens relacionadas ao período colonial e apresenta estreitas ligações com a religiosidade afro-brasileira. Apresento um maior aprofundamento bibliográfico a respeito dessas dimensões, históricas e sociais associadas à roda de samba em minha dissertação de mestrado e tese de doutorado. Ver: Souza (2007SOUZA, Eduardo Conegundes de. Roda de Samba: espaço da memória, sociabilidade e educação não-formal. 2007. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.; 2018)SOUZA, Eduardo Conegundes de. Samba e mímesis corpórea: encontros compositivos para a criação do corpo-espetáculo “Uji - O Bom da Roda”. 2018. Tese (Doutorado em Artes da Cena) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. .
  • 3
    Sempre que grafar a palavra Mímesis iniciando com letra maiúscula (M) estarei me referindo à Mímesis Corpórea.
  • 4
    Núcleo cultural de pesquisa e criação musical com sede em Campinas fundado em 2001.
  • 5
    Ver: Hirson (2012)HIRSON, Raquel Scotti. Alphonsus de Guimaraens: Reconstruções da Memória e Recriações no Corpo. 2012. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012..
  • 6
    Em um momento chave da encenação a roda é formada integrando toda a plateia. Essa mobilidade e participação do público fundamenta o caráter híbrido do espetáculo-roda de samba. Esse procedimento será mais bem detalhado adiante.
  • 7
    O ator e pesquisador Eduardo Okamoto, docente do curso de Artes Cênicas da UNICAMP, foi membro da banca de qualificação, momento em que a reflexão sobre o teatro-canção passa a ganhar relevância.
  • 8
    As observações em campo envolveram incursões realizadas em momentos específicos para alimentar o trabalho com a Mímesis por meio de vivências e coleta de registros. Para a composição das figuras do Sambador Violeiro e Sambadeira, em agosto de 2016, visitei as Cidades de Cachoeira, São Félix, Santo Amaro e São Francisco do Conde no Recôncavo Baiano, região onde pude vivenciar com mais profundidade o Samba de Roda.
  • 9
    Mímesis da Palavra coloca o texto como uma outra camada geradora de imagens propulsoras das ações. Como decorrência da Mímesis Corpórea, esta foi uma metodologia desenvolvida pela atriz e pesquisadora do LUME, Raquel Scotti Hirson, em sua pesquisa de doutorado. Ver: Hirson (2012)HIRSON, Raquel Scotti. Alphonsus de Guimaraens: Reconstruções da Memória e Recriações no Corpo. 2012. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012..
  • 10
    RAP - Música surgida na segunda metade do século XX, tem suas origens ligadas a comunidades afro-americanas e caribenhas. O RAP é composto por uma base rítmica marcada que acompanha um discurso poético cuja elocução se aproxima da fala estruturada em rimas. Essa música é considerada um dos pilares da cultura hip-hop, muito presente nas periferias de grandes centros urbanos ao redor do mundo.
  • 11
    A síncope pode ser definida como a ocorrência de um acento rítmico que ocorre em um tempo fraco do compasso tendo a sua duração estendida até o tempo forte. Esse procedimento gera uma sensação de deslocamento do tempo forte, algo muito recorrente na música africana e afro-brasileira.
  • 12
    No contexto das tradições das escolas de samba, agrupamentos carnavalescos surgidos no Rio de Janeira, no início do século XX, passista define o(a) componente que domina com maestria a dança do samba e, assim, ganha lugar de destaque dentro do desfile. Nesse mesmo contexto, o mestre sala pode ser considerado um passista que desenvolve sua dança em diálogo com a porta bandeira - dama que carrega o pavilhão - símbolo maior da agremiação.
  • 13
    Utensílios de cozinha tradicionalmente usados como instrumento musical percussivo do samba de roda.
  • 14
    Dentre esses materiais, estão os documentários de onde foram extraídos trechos de depoimentos que transcritos e recriados foram levados à cena como textos da Sambadeira e do Sambador Violeiro: O Samba de Roda na palma da mão (O samba..., 2008O SAMBA de Roda na palma da mão. Bahia: Secretaria de Cultura, 2008. 1 vídeo (30min). Direção e Fotografia: José Carlos Torres. Realização: Jorge Páscoa. Publicado pelo canal labeldisco em 2013. Disponível em: <https:// www.youtube.com/watch?v=p9h2rydFT_0&t=>. Acesso em: 16 jan. 2017.
    https:// www.youtube.com/watch?v=p9h2ryd...
    ); Samba de roda do Recôncavo Baiano (Samba..., 2004); Cantadores de Chula. Dir: Marcelo Rabelo (Cantadores..., 2009CANTADORES de Chula. Salvador: Umbigada, 2009. 1 vídeo (95 min). Direção: Marcelo Rabelo. Fotografia: Nicolas Hallet. Publicado pelo canal Saci Sapo em julho de 2009. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=H2Z_5wo7X_s&t=>. Acesso em: 16 jan. 2017.
    https://www.youtube.com/watch?v=H2Z_5wo7...
    ).
  • 15
    Chula é uma das formas poéticas e musicais que integram o Samba de Roda.
  • 16
    Dona Aurinda Raimunda da Anunciação é irmã de Gerson Francisco da Anunciação, mestre de capoeira conhecido como mestre Quadrado da Ilha de Itaparica.

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Editado por

Editora-responsável: Celina Nunes de Alcântara

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2020
  • Aceito
    19 Fev 2021
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