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Um Processo de Criação entre a Pintura e Artes do corpo: Carolee Schneemann e Aby Warburg1 1 Este texto é resultado de pesquisa com Fomento do CNPq e de pesquisa de pós-doutorado com bolsa da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF) realizada na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris. ,2 2 O presente texto é o recorte de uma investigação mais extensa, cuja apresentação preliminar foi publicada (Pugliese, 2019) e outro recorte, concernente à questão do estatuto poético e epistemológico da fotografia nas obras de Warburg e Schneemann, apresentado no Simpósio Internacional Warburg, em Buenos Aires, Argentina, em abril de 2019.

RESUMO

O artigo discute a questão da pujança do gesto pictórico no processo de criação de Carolee Schneemann e de como sua utilização do corpo permitiu a ela questionar se poderia, além de uma imagem, ser também uma image maker: a um só tempo uma justaposição poética e teórica, que causa deslocamentos específicos em sua obra performática. Objetiva-se cotejar conceitos operatórios em torno da ninfa como objeto teórico, com especial atenção a seus acessórios em movimento, no sentido warburguiano, a partir do exame de percursos iconológicos e abordagens teóricas inaugurados por Aby Warburg, tendo como escopo os atravessamentos entre a pintura e as artes do corpo.

Palavras-chave:
Performance e Pintura; Pathosformeln; Poéticas Contemporâneas; Carolee Schneemann; Aby Warburg

ABSTRACT

This article discusses the issue of the pictorial gesture potency in Carolee Schneemann’s creating process and how her use of herself body allowed her to question whether she could, in addition to an image be also an image maker: a poetic and theoretical juxtaposition at the same time, which causes specific displacements in her performative work. This study aims to correlate operatory concepts around the nymph as a theoretical object, with special attention to its accessories in movement, in the Warburgian sense, from the examination of iconological paths and theoretical approaches inaugurated by Aby Warburg, having as focus the crossings between painting and the body arts.

Keywords:
Performance and Painting; Pathosformeln; Contemporary Poetics; Carolee Schneemann; Aby Warburg

RÉSUMÉ

Cet article traite de la question de la puissance du geste pictural dans le processus de création de Carolee Schneemann et de la façon dont son utilisation du corps lui a permis de se demander si elle pouvait, en plus d’une image, être aussi une image maker: à la fois une juxtaposition poétique et théorique qui provoque des déplacements spécifiques dans son œuvre performatique. On cherche corréler les concepts opératoires autour de la nymphe en tant qu’objet théorique, avec une attention particulière à ses accessoires en mouvement, dans le sens warburgien à partir de l’examen des parcours iconologiques et les approches théoriques inaugurés par Aby Warburg, ayant comme accent les croisements entre la peinture et les arts du corps.

Mots-clés:
Performance et Peinture; Pathosformeln; Poétiques Contemporaines; Carolee Schneemann; Aby Warburg

Ao comentar a retrospectiva Up to and including her limits de Carolee Schneemann (1939-2019), realizada em 1996 no New Museum of Contemporary Arts, em Nova York, Robert Morgan (1997, p. 97)MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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a descreveu como “[...] intelectual e fisicamente complexa, visualmente excessiva, frequentemente arrebatadora e, por vezes, emocionalmente devastadora”3 3 Esta e as demais citações a partir de textos em língua estrangeira foram traduzidas pela autora. . Schneemann diluía a possibilidade de demarcação de fronteiras entre instalação, cinema e performance, que seria incoerente à sua poética. Morgan (1997, p. 98)MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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creditou à irredutibilidade estilística de sua obra um dos motivos para ela ter sido recorrentemente “[...] negligenciada por museus importantes e curadores”, mas faz-se necessário escavar mais a fundo suas escolhas e exigências poéticas, envolvendo processos de significação em suas pinturas cinéticas para compreender essa rejeição.

A artista advertia, frequentemente, que suas obras performativas eram pinturas, rompendo os limites bidimensionais de seu gesto em direção ao espaço. É o caso da performance realizada entre 1973 e 1977 que se tornou uma referência para essa década e deu o nome à mencionada exposição de 1996. Nela, Schneemann problematizou o Expressionismo Abstrato, em especial a Action Painting, que, segundo Harold Rosenberg, descartaria “[...] a ideia da tela como uma superfície na qual um objeto pode ser representado; os novos pintores a conceberam como uma arena, a cena de um evento” (Breitwieser, 2015BREITWIESER, Sabine (ed.). Carolee Schneemann: Kinetic Painting. Munich: Prestel; Salzburg: Museum der Moderne Salzburg, 2015., p. 14).

Nessa performance, a artista incorporou o gesto pictórico de Jackson Pollock, ao desenhar em diferentes planos com um lápis de cera, de acordo com seus intensos movimentos, nua e suspensa por um arnês, deslocando o interesse da obra do resultado para o processo de criação. Para Maura Reilly (2016, p. 7)REILLY, Maura. Carolee Schneemann: Em que se transformou a pintura?. Performatus, Inhumas, v. 4, n. 16, p. 1-10, jul. 2016. Available at: <http://performatus.net/wp-content/uploads/2016/03/Carolee-Schneemann-Pintura_Performatus.pdf>. Accessed on: Mar. 04, 2018.
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ela se materializava como “[...] um comentário direto sobre a hipermasculinidade da Action Painting e a natureza sexualizada da gota ejaculatória de Pollock”, integralizando a pintura como “[...] ação e objeto quando se mov[ia] através do seu corpo”. Em 1984, Schneemann provocaria outro deslocamento a partir dessa pintura performativa, em direção a uma expansão intermediática da pintura, em um vídeo cuja montagem continha diferentes filmagens dessas performances dos anos 1970.

Mas se a artista é repetidamente reconhecida como pioneira da performance e da arte feminista dos anos 1960, associada à questão do corpo feminino por pesquisas sobre sua representação na história da arte4 4 Trata-se do campo disciplinar da história da arte, cujas discussões sobre seus objetos, premissas teórico-metodológicas e fronteiras inerem à própria constituição desta esfera de conhecimento, em especial no que tange à problematização da relação entre imagem e tempo. Não cabe aqui maior aprofundamento na explanação teórica de tal questão, mas é digno de nota que é justamente a especificidade dessa problematização que, de certo modo, a obra de Schneemann toca, bem como sua inscrição no âmbito da história da arte. Nesse sentido, cf. desdobramentos da referida relação entre imagem e tempo na história da arte, incluindo a crítica a modelos triviais do tempo, na qual Georges Didi-Huberman (2002a, p. 24-25) cita a questão do fim da história da arte, sustentada por Hans Belting em L’Histoire de l'art es t-elle finie? (1983). e por seu papel frente a tabus socioculturais, sua fortuna crítica raramente lhe deu destaque entre os experimentalistas nova-iorquinos dos anos 1960 e 1970. Daí Morgan (1997, p. 97)MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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constatar uma leitura fragmentada de sua produção, pois se sua obra “[...] foi amiúde associada ao Fluxus, Neo-Dada, Performance Art, Beat Generation e Happenings, [...] ela desafia e subsume essas categorias”. Todavia, se suas obras desafiam os limites bidimensionais da tela, elas também materializam o ato, o gesto formador da pintura em toda a sua potência.

Este artigo se debruça sobre duas pinturas performáticas: Eye Body: 36 Transformative Actions (1963) e Meat Joy (1964), que dialogam diferentemente com a tradição pictórica ocidental moderna, inaugurada no Renascimento, assim como relacionam a pintura e o teatro. Se na primeira assistimos a uma intensificação do gesto e a uma potencialização de conteúdos eróticos total ou parcialmente ocultos na referida tradição, na segunda, vemos a exacerbação do desejo culturalmente censurado nos corpos de mulheres, homens e animais, num ritual extático que a transborda.

Ao remeter a tal tradição de modo tão intenso, Schneemann suscitou um conjunto de conteúdos antes reprimidos que, no entanto, apresentam questões que não podem ser pensadas exclusivamente por um olhar masculino marcado. Ela toma o discurso sobre a representação do corpo feminino para si, mas por dialogar com paradigmas pictóricos que veem nele as entradas do belo, do erótico e do desejo na história da arte, a artista redobra e complexifica seus sentidos.

Sem desconsiderar críticas de parcela significativa de teorias feministas pós-modernas sobre o uso que fez de seu próprio corpo, uma vez que ele apresentaria, em última instância, o papel do feminino numa sociedade pautada pelo logos e reafirmaria a aproximação da mulher à natureza, este texto procura outra abordagem à sua obra. Tomando os elementos de exposição do corpo nessas duas performances, propõe-se retomar os conceitos operatórios de Pathosformel (fórmula de pathos) e de Nachleben der Antike5 5 Inicialmente cunhado por Anton Springer em Das Nachleben der Antike im Mittelalter [Idade Média] (1867), que marcou a historiografia da arte oitocentista, em especial quanto ao papel de reemergências do antigo na arte medieval e renascentista. Quanto à controversa tradução de Nachleben, nos estudos warburguianos (Rampley, 2000, p. 33-34), que literalmente seria pós-vida (afterlife) (Baitello Junior, 2017, p. 39), o que é sustentado sobretudo por estudiosos anglo-saxões em detrimento de vida póstuma, defendida, entre outros, por Giorgio Agamben (1998, p. 55-56) e sobrevivência (survivance) em uso na França, principalmente na acepção de Didi-Huberman, esta é aqui adotada, devido à sua abertura filológica e epistemológica. Tal controvérsia pode se dever ao desencaixe entre a concepção de Springer, para quem o Nachleben redu ziria uma Antiguidade a sobrevivências medievais em prol da Antiguidade triunfante do Renascimento, enquanto para Warburg esse conceito não concerniria a uma periodização, sob uma acepção estrutural na qual o Nachleben do antigo estaria presente tanto na Idade Média quanto no Renascimento, como uma subtendência em diferentes estilos (Didi-Huberman, 2002a, p. 84). segundo a acepção de Aby Warburg (1866-1929). Este retorno preocupa-se, sobretudo, com elementos constituintes da noção teórica da ninfa ou mesmo da presença da Mênade na obra warburguiana.

Schneemann via seu próprio corpo na performance como potência de libertação das mesmas convenções estéticas que marcaram o uso do corpo feminino e o qual ela passou a utilizar em um pathos hiperbolizado. Ela o relacionava com diferentes matérias, imagens, instrumentos e mídias que reportam direta ou indiretamente à tradição plástica, desenvolvendo um discurso sensorial e teórico que problematiza abordagens sobre seu trabalho. Contudo, se a inserção de sua obra na arte contemporânea parece evidente, interessa refletir sobre a relação dessas performances com a história da arte, além de verificar a complexidade de relações entre a incorporação e a representação de seu corpo como objeto, matéria, meio e conceito em seu processo criativo em jogo com antigos códigos gestuais, na intrínseca relação entre pintura e performance.

Desse modo, este artigo se dedica à questão da pujança do gesto formador no processo de criação de Schneemann em suas implicações plásticas e teóricas e como sua utilização do corpo permitiu a ela questionar se poderia, além de uma image maker (criadora de imagem), ser também uma imagem, justaposição e sobreposição plástica e teórica, que causa deslocamentos específicos em sua obra. Assim, objetivamos cotejar conceitos operatórios em torno da ninfa como objeto teórico, com especial atenção àquilo que seriam não seus atributos, mas sua íntima relação com seus “[...] acessórios em movimento”, no sentido de Warburg (2013, p. 20)WARBURG, Aby. O Nascimento de Vênus e A Primavera de Sandro Botticelli (1893). In: WARBURG, Aby. A renovação da Antiguidade pagã: contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. P. 3-87., entre a pintura e as artes do corpo.

Pintura e Gesto Pictórico

Reilly (2016, p. 2)REILLY, Maura. Carolee Schneemann: Em que se transformou a pintura?. Performatus, Inhumas, v. 4, n. 16, p. 1-10, jul. 2016. Available at: <http://performatus.net/wp-content/uploads/2016/03/Carolee-Schneemann-Pintura_Performatus.pdf>. Accessed on: Mar. 04, 2018.
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nota que a pintura stricto sensu de Schneemann é frequentemente desvalorizada em sua fortuna em prol das performances, instalações e filmes. A curadora se refere às telas do final dos anos 1950, quando, oriunda de Fox Chase, Philadelphia, a artista cursou artes no Bard College e pintura nas Universidades de Illinois e Columbia, antes de se transferir para Nova York, em 1961. Telas como The Secret Garden (1956), Mill Forms (1958) e Early Landscape (1959), mostram familiaridade com poéticas gestuais e matéricas do Expressionismo Abstrato. Seu diálogo com a história da arte já aparece nessas pinturas, como é o caso de Three Figures after Pontormo (1957), na qual pareceu transpor para essa pintura, de modo intensamente gestual, os desenhos dos dois lados de uma mesma folha do maneirista florentino, Jacopo da Pontormo (1494-1557), para além da bidimensão da tela. Ao dirigir-se para o exterior, ela também escavou profundidades por baixo das camadas pictóricas, nessa e em outras telas, com instrumentos pontiagudos ou cortantes (Breitwieser, 2015BREITWIESER, Sabine (ed.). Carolee Schneemann: Kinetic Painting. Munich: Prestel; Salzburg: Museum der Moderne Salzburg, 2015., p. 17).

À época, suas pinturas exploravam abalos modernos da espacialidade perspéctica, instaurada no Renascimento, e a pincelada gestual se tornava um recurso para ultrapassar os limites da tela, assim como o seria para seu futuro kinetic theater. Sua mudança a inseriu na vanguarda experimental de Nova York, junto a artistas como Allan Kaprow, Claes Oldenburg, Jim Dine e Robert Rauschenberg, que desdobravam experiências da Action Painting (Reilly, 2016REILLY, Maura. Carolee Schneemann: Em que se transformou a pintura?. Performatus, Inhumas, v. 4, n. 16, p. 1-10, jul. 2016. Available at: <http://performatus.net/wp-content/uploads/2016/03/Carolee-Schneemann-Pintura_Performatus.pdf>. Accessed on: Mar. 04, 2018.
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, p. 3-4), dialogando também com outras linguagens além da pintura, como a poesia e a música.

Em 1962, mostrou suas telas a Leo Steinberg e lhe disse que tentava aproximá-las da vida, com sua pincelada dinâmica, ao que o crítico respondeu, segundo ela6 6 Esta e outras explicações de Schneemann ocorreram mediante emails trocados com Sabine Breitwieser - que também comissariou a retrospectiva homônima da artista no MoMa PS1, em Long Island, de outubro de 2017 a março de 2018 -, durante o processo curatorial da mostra Kinetic Painting, que teve lugar no Museum der Modern em Salzburg, em 2015. Há que se questionar se muitas das interpretações da artista podem ter tido elaborações posteriores sobre sua obra em uma visão retrospectiva, além da percepção de que poderia haver certa condução dos caminhos de sua fortuna em diversas publicações conjuntas com curadores e até críticos sobre sua obra, durante décadas. Assim, deve-se considerar, em cada caso, até que ponto a artista se colocaria como intérprete de sua própria obra no curso do tempo. , que realizar essa pretensão era impossível. Ela, então, entendeu que sua pintura, diferente da Action Painting, era concebida como um “[...] ato criado em si mesmo” (apud Breitwieser, 2015BREITWIESER, Sabine (ed.). Carolee Schneemann: Kinetic Painting. Munich: Prestel; Salzburg: Museum der Moderne Salzburg, 2015., p. 17). Embora Steinberg acedesse em alguns pontos e a incentivasse, entendiam diversamente o que seria a exploração da pintura. Breitwieser nota que a obra de Schneemann poderia exemplificar a apreensão de Clement Greenberg quanto ao ultrapassamento do que seria próprio ao pictórico em uma pintura, numa tentativa de desqualificar essas explorações como apenas uma “ousadia” (Breitwieser, 2015BREITWIESER, Sabine (ed.). Carolee Schneemann: Kinetic Painting. Munich: Prestel; Salzburg: Museum der Moderne Salzburg, 2015., p. 19-21) por artistas que tentavam tridimensionalizar a tela. Mas Schneemann ainda iria além, utilizando-se do corpo, além de outras linguagens. Ao fazer isso, ela criava a questão de tornar-se imagem para além de ser uma criadora de imagens. Sua exploração tratava da pintura não como categoria artística histórica, mas como um conceito ampliado de pintura, de modo análogo ao que Rosalind Krauss (1984)KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Revista Gávea, Rio de Janeiro, n. 1, p. 87-93, 1984. entenderia como conceito de escultura no campo ampliado.

Maura Reilly, curadora de Painting, What It Became? (2010) na P.P.O.W. Gallery em Nova York, partiu desta indagação para verificar posteriores explorações da artista, relacionadas a “[...] outros meios de expressão [...]” (Reilly, 2016REILLY, Maura. Carolee Schneemann: Em que se transformou a pintura?. Performatus, Inhumas, v. 4, n. 16, p. 1-10, jul. 2016. Available at: <http://performatus.net/wp-content/uploads/2016/03/Carolee-Schneemann-Pintura_Performatus.pdf>. Accessed on: Mar. 04, 2018.
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, p. 2) que derivariam do entendimento da artista sobre a “[...] ampliação dos princípios visuais para além da tela” (Reilly, 2016REILLY, Maura. Carolee Schneemann: Em que se transformou a pintura?. Performatus, Inhumas, v. 4, n. 16, p. 1-10, jul. 2016. Available at: <http://performatus.net/wp-content/uploads/2016/03/Carolee-Schneemann-Pintura_Performatus.pdf>. Accessed on: Mar. 04, 2018.
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, p. 2). Para Reilly, ela sempre relacionou sua obra ao gesto pictórico, abrindo “a moldura” e concebendo “[...] o próprio corpo como um material tátil” (Reilly, 2016REILLY, Maura. Carolee Schneemann: Em que se transformou a pintura?. Performatus, Inhumas, v. 4, n. 16, p. 1-10, jul. 2016. Available at: <http://performatus.net/wp-content/uploads/2016/03/Carolee-Schneemann-Pintura_Performatus.pdf>. Accessed on: Mar. 04, 2018.
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, p. 82). A curadora fala em “[...] pinturas performáticas, fílmicas e cinéticas” (Reilly, 2016REILLY, Maura. Carolee Schneemann: Em que se transformou a pintura?. Performatus, Inhumas, v. 4, n. 16, p. 1-10, jul. 2016. Available at: <http://performatus.net/wp-content/uploads/2016/03/Carolee-Schneemann-Pintura_Performatus.pdf>. Accessed on: Mar. 04, 2018.
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, p. 2) e usa sua expressão “telas explodidas” (Schneemann, 1997SCHNEEMANN, Carolee. More Than Meat Joy: performance works and selected writings. New York: Documentext, 1997., p. 167), para esclarecer que suas preocupações operavam “[...] como mecanismo básico e campo unificador” em sua produção mais conhecida (Reilly, 2016REILLY, Maura. Carolee Schneemann: Em que se transformou a pintura?. Performatus, Inhumas, v. 4, n. 16, p. 1-10, jul. 2016. Available at: <http://performatus.net/wp-content/uploads/2016/03/Carolee-Schneemann-Pintura_Performatus.pdf>. Accessed on: Mar. 04, 2018.
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, p. 2).

As construções pictóricas de Schneemann, bem como as esculturas de Richard Stankiewicz, as combine paintings de Rauschenberg, os relevos de Oldenburg e os assemblages de John Chamberlain, como notou Reilly (2016, p. 2)REILLY, Maura. Carolee Schneemann: Em que se transformou a pintura?. Performatus, Inhumas, v. 4, n. 16, p. 1-10, jul. 2016. Available at: <http://performatus.net/wp-content/uploads/2016/03/Carolee-Schneemann-Pintura_Performatus.pdf>. Accessed on: Mar. 04, 2018.
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, envolviam materiais não artísticos, mas sem obrigatoriamente um lastro biográfico, como ocorria na obra da artista. Quarry Transposed (1960) e J & C (1961) evidenciam seu interesse pela montagem, afastando-se da tela plana, não para negá-la, mas para estender a superfície pictórica para além dela. Outros objetos se tornam matérias pictóricas, como madeiras, plásticos, tecidos, motores, fitas magnéticas, vidros e fotografias, além da tinta. Impõe-se, todavia, entender o sentido desses usos, como na série Controlled Burning, com pequenas caixas com objetos, em que ela integrou o fogo em seu processo criativo, após um incêndio no ateliê em Illinois, em 1960.

Se Breitwieser (2015, p. 17-18)BREITWIESER, Sabine (ed.). Carolee Schneemann: Kinetic Painting. Munich: Prestel; Salzburg: Museum der Moderne Salzburg, 2015. compara esse método coreografado, somado à aleatoriedade da composição, com John Cage na música experimental, pode-se também pensar em um ritual de criação de imagem, envolvendo o fogo, que se pode ser controlado, sabemos que é, de fundo, incontrolável7 7 A expressão advém de um procedimento do corpo de bombeiros, que, em certas circunstâncias, iniciam um incêndio controlado, o que sempre envolve riscos, uma vez que, de fundo, o fogo é incontrolável. . Em For Yvonne Rainer’s ordinary dance (1962) dessa série, homenageia uma das fundadoras do Judson Dance Theater, junto a Trisha Browm, Steve Paxton e Elaine Summers, e alude à exploração de movimentos cotidianos por este grupo de dança experimental, assim como Schneemann utilizava-se de materiais não artísticos.

Mas embora essas paintings-constructions possam ser associadas às combines de Rauschenberg no início dos anos 1960, Morgan (1997, p. 98)MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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entende que a artista passava a ter uma relação de intimidade com essas matérias, como uma exigência de seu processo de criação. Depreende-se, também, que ela se perguntava sobre qual gênero artístico seria esse, o que nos coloca diante da crise de categorias classificatórias na arte e na historiografia da arte contemporâneas. É nesse contexto que se deve entender declarações como: “Eu sou uma pintora, serei sempre uma pintora e morrerei uma pintora. Tudo o que tenho desenvolvido tem a ver com a ampliação dos princípios visuais para além da tela” (Schneemann, 1993 apud Reilly, 2016REILLY, Maura. Carolee Schneemann: Em que se transformou a pintura?. Performatus, Inhumas, v. 4, n. 16, p. 1-10, jul. 2016. Available at: <http://performatus.net/wp-content/uploads/2016/03/Carolee-Schneemann-Pintura_Performatus.pdf>. Accessed on: Mar. 04, 2018.
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, p. 2). Morgan (1997, p. 98)MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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percebe esse movimento também para outras mídias como um “[...] impulso em direção ao conceito libertador do corpo e da mente como uma totalidade”, de modo que sua obra integradora no início dos anos 1960 porta uma “[...] sensibilidade proto-feminista” que teria “[...] precedido a emergência do feminismo como uma ideia formal no final desta década”.

Contudo, o que Morgan identificou como sensibilidade proto-feminista em suas primeiras performances indica problemas terminológicos e conceituais na história da arte contemporânea. Essa complexidade se refere à expansão de seu gesto pictórico em direção às artes performáticas, que pode citar, deslocar e até potencializar conteúdos eróticos mais ou menos velados na tradição ocidental da pintura de cavalete. Esse atravessamento de categorias e gêneros artísticos que sua obra comporta parece negar-lhe um lugar de prestígio na arte contemporânea, salvo raras exceções8 8 É o caso de Manoel S. Friques (2018, p. 834), evocando Against Interpretation and Other Essays, de 1966, de Susan Sontag, quanto à noção de que da intimidade dos assemblages e combine paintings com os Happenings na Escola de Nova York se evidenciar na poética de Schneemann. , a não ser sob a égide de artista feminista. Evidentemente, não se trata de tentar reduzir a importância de tal inscrição, mas de verificar como ela parece interditar outras percepções de sua obra pela história da arte.

Em 1962, Schneemann iniciou Four Fur Cutting Boards9 9 Com nova mudança de ateliê, ela começou Fur Wheel (1962) e a obra em questão, ambas utilizando motores, além de retalhos de peles animais, mesas e outros materiais que serviam ao antigo locatário do loft, que revestia objetos com peles. a partir de quatro painéis de madeira marcados por pequenos furos onde se prendiam peles. Os painéis foram pintados nos dois lados com gestos intensos e seus cantos foram chamuscados antes de materiais como vidros e espelhos quebrados, fotografias, luzes coloridas, guarda-chuvas móveis, uma calota, tecido e partes motorizadas lhe serem afixados. Um ano depois, essa obra se tornou um componente, assim como o corpo da artista, espelhos, manequins, lonas plásticas e outros materiais, em Eye Body: 36 Transformative Actions (Figura 1).

Figura 1
Carolee Schneemann. Eye Body #2 da Eye Body: 36 Transformative Actions for Camera, 1963, impressão em gelatina de prata (2005), 61 × 50,8 cm.

Em cada uma das ações para a câmera, ela combinou seu corpo nu pintado - como material plástico e táctil - com essa construção cinética, no que declarou ser “[...] um tipo de ritual xamânico” (Schneider, 2002SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 2002., p. 33), transformando seu ateliê em sua extensão corporal. Tendo se incorporado pela primeira vez a uma obra, borrando a fronteira entre a imagem e sua criadora, “[...] vendo e sendo visto, olho e corpo - daí o título Corpo Olho” (Reilly, 2016REILLY, Maura. Carolee Schneemann: Em que se transformou a pintura?. Performatus, Inhumas, v. 4, n. 16, p. 1-10, jul. 2016. Available at: <http://performatus.net/wp-content/uploads/2016/03/Carolee-Schneemann-Pintura_Performatus.pdf>. Accessed on: Mar. 04, 2018.
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, p. 4-5), sugeria, conforme Rebecca Schneider (2002, p. 35)SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 2002., “[...] uma visão incorporada, um olho corporal [...] - os olhos da artista -, não apenas naquele que vê, mas no corpo daquilo que é visto”.

Seu posicionamento em sua obra como agente ativa contribuiu para a constituição do seu teatro cinético (Reilly, 2016REILLY, Maura. Carolee Schneemann: Em que se transformou a pintura?. Performatus, Inhumas, v. 4, n. 16, p. 1-10, jul. 2016. Available at: <http://performatus.net/wp-content/uploads/2016/03/Carolee-Schneemann-Pintura_Performatus.pdf>. Accessed on: Mar. 04, 2018.
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, p. 5). Enquanto performava coberta por diversos materiais, incluindo graxa, giz e plástico, foi 36 vezes fotografada pelo artista islandês Erró, sendo essas fotografias ações transformadoras como fotogramas de um filme. A partir dessa série, expandiu o conceito de pintura em outros meios, que passaram a integrar-se mutuamente, entremeados por operações de interferência em fotografias e filmes. A questão da imagem fotográfica e filmográfica no processo de criação da artista demanda um exame, bem como os materiais de Eye Body, especialmente de seu corpo, das duas serpentes de jardim, que deslizavam sobre ele (Figura 2), e de peles animais e plásticos que utilizou como estranhos invólucros que vestiam e desvestiam seu corpo. Reconhece-se daí sua obra sob a poética da colagem: do corpo da própria artista, de serpentes, obras, fotografias, e outros materiais, bem como uma colagem de temporalidades, evocadas por essas matérias e seus gestos, movimentos que aludem a poses e reminiscências de imagens, que se reproduzem e se deslocam entre outras imagens, de seu olhar como criadora e de seu corpo como imagem. Segundo ela, suas fotografias (Figura 3) foram descartadas por galerias e museus, como “[...] exibicionismo puramente narcisista” (Morgan, 1997MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
https://www.jstor.org/stable/777735?newa...
, p. 98), enquanto ela as entendeu integradas à performance, como reapropriação de sua sexualidade, frente à usurpação do corpo feminino “[...] pelas tradições da história da arte e, depois, pela Pop Art” (Morgan, 1997MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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, p. 98)12 12 Original em inglês disponível em: ˂https://www.theartstory.org/artist/schneemann-carolee/˃. Acesso em: 02 fev. 2020. .

Figura 2
Carolee Schneemann. Eye Body #5 da Eye Body: 36 Transformative Actions for Camera, 1963, impressão em gelatina de prata (2005), 61 × 50,8 cm.

Figura 3
Carolee Schneemann. Eye Body: 36 Transformative Actions for Camera, 1963, 18 gelatin silver prints, 61 x 50.8 cm cada.

Schneemann associou-se a Dick Higgins em 1962, e realizou a performance Glass Environment for sound and motions, com performers como Yvonne Rainer, que a convidou, em 1963, para integrar o Judson Dance Theater (Schneider, 2002SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 2002., p. 32). O grupo performou seu Newspaper Event, voltando-se para as sensações corporais no processo de criação e pela relação entre o corpo, materiais e ambiente, entre o individual e o social. Para Schneider (2002, p. 33)SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 2002., sua preocupação com a materialidade da carne e o “[...] status-objeto do corpo feminino relativo a suas delimitações socioculturais” surgiu de sua experiência como mulher artista diante da hegemonia masculina no Fluxus14 14 Schneider (2002, p. 188-189) observa que embora esses dois movimentos tivessem marcações políticas e fossem mais abertos e inclusivos a artistas mulheres, no contexto estado-unidense, eles manteriam os mesmos critérios culturais do apropriado/não apropriado para uma artista segundo a Minimal Art e a Pop Art, rejeitando a marcação de gênero e seus códigos. Sua posição como image maker era, também, uma resposta a essa situação. Embora fosse uma das pioneiras do Fluxus, foi oficialmente excomungada por seu fundador após a realização de Meat Joy (1964). Em nota oficial, George Maciunas justificou o banimento devido a “[...] tendências expressionistas confusas dessa mulher aterrorizante” (Schneider, 2002, p. 188-189). Embora na comunidade europeia a expulsão não vigorasse, até hoje ela não é considerada uma artista Fluxus pura. e no Happenings, numa tomada de consciência política que provocou uma virada em seus processos poéticos, escolhas e exigências.

Ela desenvolveu o conceito de kinetic theater, emblematizado por Meat Joy (Figura 4), apresentada em 1964, em Paris, Londres e Nova York. Integrada pela composição musical experimental formada como uma colagem sonora de James Tenney, oito performers, quatro mulheres (incluindo ela mesma) e quatro homens seminus iniciavam a performance com um roteiro com aberturas à improvisação, como um estranho jantar com convidados, que passava a ser criticamente desconstruído. Na sequência, outra performer começava a despejar sobre eles frangos, peixes e linguiça crus, com os quais passavam a interagir lúdica e eroticamente num ritual extático de inspiração dionisíaca (Figura 5). Após brincarem de modo cada vez mais frenético para não deixar as carnes tocarem o chão, entintavam-se mutuamente com tintas coloridas e começavam a rolar sobre pilhas de papel. Nessa celebração da carne, criavam esculturas vivas, juntavam-se e separavam-se, pintando-se como se fossem pincéis e telas16 16 A comparação com as Anthropométries (1959-1960) de Yves Klein é inescapável. Mas, apesar de sua importância, acabavam por reforçar o objetificação do corpo e da imagem da mulher pelo artista homem, num processo de criação que se apropria do modelo feminino como instrumento artístico, imprimindo seu corpo. .

Figura 4
Carolee Schneemann. Meat Joy, 1964, registro fotográfico da performance.

Figura 5
Carolee Schneemann. Meat Joy, 1964, registro fotográfico da performance.

Schneemann a descreve como “[...] uma visão erótica que superou uma série de ideais viscerais da expansão da energia física - para além da tela, para além da moldura” (apud Reilly, 2016REILLY, Maura. Carolee Schneemann: Em que se transformou a pintura?. Performatus, Inhumas, v. 4, n. 16, p. 1-10, jul. 2016. Available at: <http://performatus.net/wp-content/uploads/2016/03/Carolee-Schneemann-Pintura_Performatus.pdf>. Accessed on: Mar. 04, 2018.
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, p. 6). Já Morgan (1997, p. 98)MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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a vê como “[...] selvagem performance extática” e salienta sua extensa documentação. Tendo percebido a importância do registro imagético e como componente da obra, ela passou a entender as filmagens realizadas como efetivamente integrantes da performance. Morgan (1997, p. 98) acredita que tal percepção adveio do início do uso do “[...] filme como uma forma mixed-media em si mesma” e conjugada a outros meios e linguagens, como ocorreu em Viet Flakes (1965), Fuses (1964-67) e Snows (1967).

A assunção da documentação imagética como parte crucial e constituinte da performance18 18 Sua relação com essas diferentes categorias artísticas, linguagens ou suportes, talvez possa ser aproximada ao cinema-documentário de Erwin Piscator, no que concerne ao uso da montagem no processo poético de interferir no teatro com projeções de cinema (Huapaya, 2016, p. 114). se deve a ela “[...] comunicar a qualidade expressiva da obra e revelar sua estrutura” (Morgan, 1997MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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, p. 98), bem como pelas singularidades formais e conceituais de seu processo de criação, fazendo as imagens reemergirem para sua pintura cinética, assim como outras imagens, muito mais antigas, outras poses características da tradição pictórica moderna. Mas se foi um marco do feminismo, conforme Kristine Stiles e da revolução sexual dos 1960, conforme Lucy Lippard, Schneider (2002, p. 33-34)SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 2002. afirma que, nesta década, a artista “[...] sentiu agudamente que seu trabalho foi desvalorizado como um ‘exibicionismo autoindulgente’” 19 19 Este pretenso narcisismo se enraíza na rejeição à atuação de artistas mulheres que assumiram a agência de seu próprio corpo na arte. Schneider (2002, p. 35-36) avança que Schneemann além de mostrar seu corpo como objeto ativo, quis mostrar o nu como a artista, seu corpo como o lugar de seu discurso, vinculado à noção de seu gesto pictórico frente à referida tradição pictórica. .

Interessa-nos, portanto, verificar como sua remissão a essa tradição acedeu a certos conteúdos que estariam reprimidos em iconografias que teriam sido naturalizadas na história da arte, por meio de genealogias que aparentemente teriam uma lógica própria da pintura em certos gêneros pictóricos, como é o caso dos nus reclinados e cenas mitológicas. Daí sua afirmação de uma pintura performática, apesar da escassez dos atributos historicamente vinculados à linguagem da pintura.

Nesse jogo entre diferentes mídias, cuja medida é a pintura, Morgan (1997, p. 98)MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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ressalta Interior Scroll (1975)20 20 Realizada na conferência Women Here and Now. Após entrar numa sala coberta por um lençol sobre um avental amarrado em seu corpo nu, ela se despiu e subiu em uma mesa, desenhou em seu corpo com lama - num ato ritualístico - e mimetizou poses típicas de aula de desenho com modelo vivo. Finalmente, leu trechos de seu livro Cézanne, She Was a Great Painter, e depois começou a puxar um rolo de papel de sua vagina, enquanto lia passagens de seu Kitch’s Last Meal (Schneemann, 1997, p. 238-239). , que a qualificaria como artista feminista. Essa performance se destaca na fortuna de Schneemann e deveria favorecer sua inscrição na arte contemporânea, definindo sua posição frente ao político e ao erótico. Para ele, ela deve ser compreendida no contexto Pós-Minimal e Pós-conceitual dessa década, bem como que seu feminismo partia do contraste do corpo com “[...] a proteção insular do cérebro masculino” (Morgan, 1997MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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, p. 98). Desse modo, ao ler textos feministas no pergaminho extraído de seu próprio sexo em voz alta, ela “[...] declara que o que está escrito dentro de seu corpo sexual é um discurso inseparável de seu corpo” (Morgan, 1997MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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, p. 98). Morgan também coteja essa performance com Eye Body, “[...] na qual ela usou dois chifres em sua testa” (Morgan, 1997MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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, p. 98) em alusão aos raios de luz (Ex 34: 29-35) da prece do Moisés (c.1513-1515) esculpido por Michelangelo Buonarroti. Em Interior Scroll ela “[...] coloca a fonte do poder e intelecto dos órgãos sexuais femininos - o intuitivo como oposto ao conceito racional da criatividade artística” -, transformando as “[...] soluções masculinas de certos artistas minimalistas e conceptualistas em um discurso feminista sobre o corpo” (Morgan, 1997MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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, p. 98).

Morgan (1997, p. 100)MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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vê na tensão entre esses dois temas uma marca de sua obra, indicando um resíduo do primitivismo modernista, envolto em nostalgia e idealização, mas também um lugar de embate e escândalo em relação à perda de valores civilizacionais no uso do corpo ligado ao prazer livre e selvagem, ou em “[...] atos de selvageria”, como no Meat Joy. Mas não se tratava de um emprego do primitivo e sim de um mergulho, ainda que sob acusações de fetichizá-lo. Sua busca pela ancestralidade e pela representação do feminino se configurariam também em obras posteriores, como Ask to Goddess (1991) e Vulva’s School (1995). Em relação às suas evocações da Deusa, Morgan (1997, p. 100)MORGAN, Robert C. Carolee Schneemann: The Politics of Eroticism. Art Journal, New York, v. 56, n. 4, p. 97-100, 1997. Available at: <https://www.jstor.org/stable/777735?newaccount=true&read-now=1&seq=1#page_scan_tab_contents>. Accessed on: Apr. 29, 2018.
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entendeu que os antecedentes de sua obra remontam “[...] à antiguidade como os cultos místicos em louvor” a Ela, donde compara os antigos ritos à “[...] separação mente/corpo que se exacerbou com o surgimento da tecnologia moderna”.

Já nos anos 1960, ela citava momentos de ruptura e de reafirmação da tradição pictórica ocidental, posando como a moderna Olympia (1963) de Édouard Manet na performance Site (1964), a convite de Robert Morris, que deslocava os planos do espaço que a continha, sem encontrar um lugar para o moderno na contemporaneidade. Moderno que seria exaltado a partir do texto de Warburg (2015c)WARBURG, Aby. O “Déjeuner sur l’Herbe” de Manet. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015c. P. 349-362. sobre o Déjeuner sur l’herbe (1863) de Manet, que seria o marco, em 1929, da fortuna do Manétisme, segundo Andrea Pinotti (2013, p. 1)PINOTTI, Andrea. Archéologie des images et logique rétrospective: note sur le «Manétisme» de Warburg. Images Re-vues, Horssérie, v. 4, n. 16, p. 1-17, 2013. Available at: <http://imagesrevues.revues.org/3043>. Accessed on: Nov. 30, 2017.
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, ao oferecer “[...] um novo horizonte pictórico, aberto por um escândalo”.

Breitwieser (2015, p. 18)BREITWIESER, Sabine (ed.). Carolee Schneemann: Kinetic Painting. Munich: Prestel; Salzburg: Museum der Moderne Salzburg, 2015. entende, conforme ocorreu com Pontormo, que a artista estenderia seus diálogos com a história da arte. Em Sir Henry Francis Taylor (1961), celebrado literato, primo de Virginia Wolf e Julia Margaret Cameron, ela criticou a diferença de tratamento entre os sexos na sociedade vitoriana. Já em Lou Andreas-Salomé (1965), ela retratou a escritora junto a seus famosos interlocutores intelectuais homens, Rainer Maria Rilke e Friedrich Nietzsche, sobre um emaranhado de fitas com gravações de citações da psicanalista.

Mas, a partir de Eye Body, seu diálogo crítico com a história da arte problematizava os papéis da mulher e de seu corpo sendo visto por um olhar masculino, mais especificamente do corpo feminino nu e de suas poses convencionais em certos gêneros pictóricos, de seu olhar como artista e da manipulação de seu próprio corpo, bem como do corpo de outras mulheres e homens, como em Meat Joy. Contudo, ao incorporar essa problematização, ou seja, ao colocar a si própria no lugar da ninfa, isso não seria uma reafirmação do lugar do corpo feminino na tradição citada e na sociedade patriarcal? E sua busca pelos antecedentes do grande feminino e a remissão aos antigos cultos místicos em louvor à Deusa poderiam ser equívocos de uma visão arcaizante que religa o feminino à natureza?

Ao incorporar conteúdos dionisíacos, que fenomenizavam a corporeidade, sua obra foi rechaçada por críticos, curadores e galeristas, além de parcela considerável da crítica feminista, que mesmo depois de Interior Scroll e Up to and including her limits silenciou frequentemente em relação às suas performances anteriores, ligadas ao que seria uma descarga de energia libidinal ou um abandono dionisíaco. Nesse sentido, as serpentes do Eye Body, embora aparentemente inofensivas, podem reservar um importante papel na compreensão de certas escolhas de Schneemann, para além de sua consideração como mero atributo pictórico, bem como outras matérias e gestos postos em ação em Meat Joy.

A Dança da Serpente e a Imagem da Mênade

A serpente emerge na obra de Schneemann associada à busca por antigas tradições matriarcais e cultos ancestrais ditos primitivos, identificada a uma imagerie antiga, que parece retornar, conscientemente ou não. Sua chave simbólica reporta a The Migration of Symbols, de Donald Alexander Mackenzie (1926)MACKENZIE, Donald Alexander. The Migration of Symbols: and their relations to beliefs and costums. London; New York: Alfred A. Knopf, 1926. Available at: <https://archive.org/details/in.ernet.dli.2015.283505/page/n13>. Accessed on: Ago. 15, 2018.
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21 21 Embora fosse interessado por arqueologia, antropologia e religiões antigas, o folclorista escocês esboçou uma teoria difusionista fortemente controversa a partir do Budismo até os povos americanos, que se distancia completamente do quadro teórico de Warburg. , contemporâneo de Aby Warburg. Ela afirmou que quando começou a pesquisar sobre seu simbolismo em 1960, não desconfiava que a serpente pudesse estar associada ao masculino em algumas culturas e, após sabê-lo, decidiu reinterpretar mitos históricos, apropriando-se do conceito de espaço vúlvico, que entendeu como sendo o simbolismo da forma serpentinada:

Da minha identificação com a simbologia do corpo feminino, assumi que entalhes e esculturas da forma de serpente eram atributos da Deusa e teriam sido feitos por mulheres adoradoras (artistas) como análogas ao seu próprio conhecimento físico, sexual. Eu pensei na vagina de muitos modos - fisicamente, conceitualmente; como uma forma escultórica, um referente arquitetônico, a fonte do conhecimento sagrado, êxtase, passagem do nascimento, transformação. Eu vi a vagina como uma câmara translúcida da qual a serpente foi um modelo exterior: animada por sua passagem do visível ao invisível, uma espiralada bobina anelada com a forma do desejo e dos mistérios geradores, atributo dos poderes sexuais tanto femininos quanto masculinos Schneemann, 1997SCHNEEMANN, Carolee. More Than Meat Joy: performance works and selected writings. New York: Documentext, 1997., p. 234).

Não é intenção do presente artigo contrastar as teorias de Mackenzie e, ainda menos, as asserções de Schneemann com a reflexão de Warburg sobre o ritual moki da serpente. Trata-se, diferentemente, de compreender como Warburg (2015a)WARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253. procurou rastrear a infiltração da serpente e de seu culto especialmente nas considerações finais da Conferência Imagens da Região dos índios Pueblos na América do Norte, que proferiu em 192322 22 Seu psiquiatra, Ludwig Binswanger, havia concordado com a proposta de elaboração e proferição desta Conferência no Bellevue Sanatorium em Kreuzlingen, Suíça, onde recebia tratamento de sua afecção mental desde 1921, e com a qual provou a viabilidade de sua alta, em 1924. .

A Conferência reportava à expedição ao Novo México, realizada em 1896, antecedida por pesquisas no Peabody Museum, em Harvard, e na Smithsonian Institution, em Washington, sobre descobertas de pesquisadores das First Nations, como Franz Boas, Frederick W. Hodge, Frank H. Cushing e James Mooney. Assim, ele pôde planejar sua viagem aos povoamentos em que encontraria índios pueblos que faziam rituais referentes ao primitivo culto à serpente.

Para Warburg (2015b, p. 258)WARBURG, Aby. Memórias de Viagem à região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015b. P. 255-287. “[...] a arte dos índios apontava para duas áreas distintas, que [...] eram uma atividade única: a dança e as artes plásticas”, entendendo por dança a abertura expressiva do gestual inerente aos rituais. Propõe-se aqui aproximar esse sentido amplo das artes visuais e corporais a um sentido expandido da arte contemporânea, que busca dissolver fronteiras entre as respectivas categorias estabelecidas pela história da arte moderna. Warburg (2015b, p. 260)WARBURG, Aby. Memórias de Viagem à região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015b. P. 255-287. ressaltou que o elo entre as expressões artísticas que se encontram separadas no Ocidente se basearia em “[...] um tronco comum de duas representações religiosas, que vêm à tona como práticas mágicas de visão cosmológica de mundo profundamente elaborada e grandiosa”. Daí ele entender que os desenhos sobre a saga da serpente recebidos do sacerdote Cleo Jurino revelam “[...] concepções auxiliares à fantasia ordenadora surpreendentemente idênticas às que encontramos [...] na terrível Antiguidade pagã da Europa e da Ásia” (Warburg, 2015bWARBURG, Aby. Memórias de Viagem à região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015b. P. 255-287., p. 260), mas que na produção visual dos pueblos, só poderiam ser conhecidas a partir de sobredeterminações culturais hispânicas e estado-unidenses (Warburg, 2015bWARBURG, Aby. Memórias de Viagem à região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015b. P. 255-287., p. 261).

Warburg (2015a, p. 200)WARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253. esperava que “[...] a arte plástica dos pueblos, com sua ornamentação simbólica e sua dança mascarada” fosse capaz de indicar “[...] em que medida podemos observar os traços característicos essenciais da humanidade pagã primitiva”. Daí sua preocupação com as fotografias, que envolvem uma atenção às imagens, que apreenderiam testemunhos vivos daquela cultura, não se reduzindo a meras reproduções fotográficas. Elas seriam parte integrante de uma nova episteme em história da arte. Os pueblos se dedicavam a práticas ancestrais e a uma cultura técnica que se destacava na arquitetura e nas artes aplicadas (Warburg, 2015aWARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253., p. 200-201).

Para lidar com tal paradoxo, ele adotou diferentes modelos de tempo a fim de examinar suas danças rituais e produção imagética. Assim, Warburg colocava no eixo de sua observação o que seria para o homem moderno um sintoma “esquizoide” (Warburg, 2015aWARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253., p. 201) entre a crença participativa nos poderes influenciadores de seus ritos e o intelecto prático que possibilitou os feitos de sua cultura técnica. Ao mesmo tempo, identificou o preconceito europeu moderno que interdita a visão da própria cultura, plena de sobrevivências, donde o conceito de cisão da sociedade moderna. Esse raciocínio o levou a relacionar a história da arte com a antropologia e a psicanálise para examinar como o problema da sobrevivência dessa “[...] visão de mundo pagã [...] entre os pueblos nos fornece um parâmetro para os processos de desenvolvimento que [...] passam pelo homem do paganismo clássico e chegam à modernidade” (Warburg, 2015aWARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253., p. 202).

Para Warburg (2015a, p. 202)WARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253., o principal fator desencadeador de práticas mágicas seria o clima dessa região. Após testemunhar cultos de propiciação do milho em Oraibi e da caça em Santo Idelfonso, ele conheceu indiretamente o ritual da serpente em Walpi. Warburg (2015a, p. 209)WARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253. compreendeu, baseado em sua visão cosmológica, que a serpente como divindade meteorológica, vincula-se mimeticamente ao raio que traz chuva, de modo causal e mágico. Logo, as danças mascaradas eram medidas sociais para garantir a sobrevivência, sendo esquizoides, no sentido em que resultam no encontro paradoxal da magia e da técnica: “[...] justaposição de civilização lógica e causalidade mágica”, estando “[...] a meio caminho entre a magia e o logos” (Warburg, 2015aWARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253., p. 218-219). Não seria essa, de certo modo, a dualidade que parece sobreviver, ainda que criticamente e com inversões energéticas, na coextensão entre artes visuais e do corpo na pintura performática de Schneemann? Sua pintura cinética, então, estaria reagindo às categorias de linguagem estabelecidas pela tradição plástica e pela historiografia da arte moderna, num gesto de transbordamento?

Warburg (2015a, p. 235)WARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253. associou os conceitos de participação mística e mimesis nessa solidariedade da dança e das artes plásticas. Após coletarem cerca de cem cascavéis, os sacerdotes as atiram magicamente sobre o desenho em areia colorida de serpentes-raio num templo subterrâneo, de modo a desfazê-lo, misturando-se à areia. Assim, elas se tornam simultaneamente “[...] a chuva, a serpente e o santo (primitivo) vivendo em forma animal” (Warburg, 2015aWARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253., p. 235). No auge da festividade, elas são levadas e presas a um arbusto. Cada uma é retirada por um sacerdote que a entrega a dois índios, que dançam pintados e trajados com peles, um deles com a cobra na boca, até serem devolvidas à planície, para trazer a chuva e conjurar o clima (Warburg, 2015aWARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253., p. 235-236).

O epílogo do texto alude à sua associação dos povoados do Novo México e da Grécia antiga: a origem europeia da dança da serpente nos mistérios dionisíacos (Warburg, 2015aWARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253., p. 236-237). E, então, inicia um percurso mostrando como a “[...] redenção do culto sanguinário do sacrifício animal, com as Mênades e suas serpentes vivas e dilaceradas no êxtase do culto orgiástico permeia, como o mais intrínseco dos ideais da purificação, o movimento religioso do Oriente ao Ocidente”, pinçando sobrevivências cultuais e imagéticas dessa dança, entremeada por visões cosmológicas e poderes miméticos e propiciatórios (Warburg, 2015aWARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253., p. 238-239).

Após mencionar a terrível serpente primordial babilônica Tiamat no Antigo Testamento, ele percorre a Grécia, desde o pessimismo trágico e desesperançado com a impiedosa Erínia até a força salvadora na Antiguidade. Com Laocoonte, a serpente como força destruidora do mundo inferior levou ao “símbolo trágico” do castigo divino com o “[...] máximo sofrimento humano” (Warburg, 2015aWARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253., p. 239). Mas Warburg (2015a, p. 240)WARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253. contrastou essa visão com o “[...] gênio amigo do homem, clássico e glorificado”: Esculápio, que após ser “[...] venerado como serpente [...]”, a vê simbolicamente “[...] enrolada em seu bastão terapêutico [...]”, pois sua troca de pele revela que “[...] ela é capaz de mergulhar terra adentro e dela reemergir”.

Warburg (2015a, p. 241-242)WARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253. identificou transposições iconográficas de Esculápio em manuscritos medievais como sobrevivências que ressignificam seus conteúdos em outras formas, como divindade cósmica que influencia o signo de Escorpião, como “[...] delimitação matemática dos limites e portador do fetiche”. Assim, reconheceu evidências “[...] idênticas às abordagens mágicas dos índios diante das serpentes [...]”, como “[...] a incubação no templo, a serpente, o modo como ela é carregada com as mãos e [...] venerada na condição de divindade manancial [...]” (Warburg, 2015aWARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253., p. 241-242), embora, eventualmente, marcas representativas sobrevivessem apenas formalmente, tendo perdido seus referentes.

Warburg (2015a, p. 243-244)WARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253., enfim, toma um “[...] exemplo da indestrutibilidade elementar dessa memória do culto à serpente” em uma pintura setecentista do forro de uma igreja depois identificada como suíça: o martírio de Laocoonte sob a serpente de Moisés edificada a partir do bastão de Esculápio, donde a tipificação da criação e destruição da serpente e do complexo sacrificial e da sobrevivência da idolatria veterotestamentária, que ela representa entre os profetas reformadores (Nm 21:4-9; II Rs 18:4). Tendo regido o “[...] desenrolar da ordem bíblica [...]”, a serpente como símbolo “[...] mais provocador e hostil [...]” da cultura judaico-cristã, até em iconografias da Crucificação e na cultura popular renascentista, tornou-se um alvo da “[...] luta contra a idolatria” (Warburg, 2015aWARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253., p. 244-246).

A questão de sua indestrutibilidade em épocas vindouras envolve a noção de Nachleben der Antike. Retornando ao ritual pueblo, Warburg (2015a, p. 247-248)WARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253. concluiu que “[...] diante do inapreensível nos processos da natureza, o índio contrapõe sua vontade de apreender; pois assim ele próprio se metamorfoseia em uma dessas causas [...]” materializadas na “[...] causalidade mitológica em forma de dança”. Assim, mediante a polarização de logos e magia, operacionalizada pelo símbolo, ele afirmou que o “[...] simbolismo da serpente deve nos indicar [...] a transformação que vai do simbolismo do corpo e da realidade e que é apanhado com as mãos ao simbolismo do que é apenas pensado” (Warburg, 2015aWARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253., p. 247-248). Mas após trilhar por onde a serpente se infiltrou na cultura clássica, medieval e renascentista, Warburg (2015a, p. 253)WARBURG, Aby. Imagens da região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a. P. 199-253. questionou a viabilidade de sua sobrevivência na cultura técnica moderna, sob a égide do logos.

Como, então, compreender a escolha de Schneemann por este animal demoníaco no Eye Body? Cabe lembrar que a via pela qual a artista se aproximou de sua simbologia não foi a de Warburg, mas a de Mackenzie, que pregava a ascendência do matriarcado sobre o patriarcado, sob um fundo essencialista23 23 “O essencialismo de Schneemann foi mais óbvio em sua imagery da Deusa - cobras colocadas sobre seu corpo em Eye Body eram alusões à Deusa. Mas esse essencialismo foi matizado com declarações de sua própria agência - seu status como construtora, artista, criadora ativa. Ela incomodou feministas de ambos os lados da cisão essencialismo/materialismo. Feministas rigidamente essencialistas, como o Coletivo Heresies nos anos 1960, criticaram-na por rebaixar a Deusa com o que elas leram como narcisismo sexual em sua obra. Vinte anos depois, feministas estritamente materialistas analogamente rejeitaram sua obra, ao ler quaisquer gestos em direção à sacralidade deusa-identificada como repetidamente nostálgica e como ingenuidade apolítica” (Schneider, 2002, p. 36-37). . Seguindo a via teórica de Warburg, consideramos como montagens, envolvendo reproduções fotográficas da artista, obras concernentes à representação do corpo feminino em Native Beauties (1962-1964), à sua imagerie arcaica em Unexpectedly Research (1992) ou na palestra performática Vulva’s Morphias (1997).

Ao evocar figurações do feminino, desde imagens pré-históricas, que Schneemann estrategicamente reinterpretou como produzidas por mulheres, até evocações do feminino como a ninfa, como a Mênade ou como a Deusa, mais do que constituir um inventário iconográfico, a artista coloca a imagem em trabalho. Essa emergência mantém uma íntima relação com a questão da image maker. Nesse sentido cabe mencionar o oxímoro de Teresa de Lauretis (1987, p. 20)DE LAURETIS, Teresa. Technologies of gender. Bloomington: Indiana University Press, 1987. manifesto por toda representação do feminino, de que “[...] a mulher é irrepresentável, exceto como representação”.

A Ninfa e as Representações de seu Corpo

Warburg se dedicou a pesquisas ligadas ao Bilderatlas Mnemosyne desde 1926 até sua morte em 1929, ano em que escreveu O Déjeuner sur l’herbe de Manet. Roland Recht (2012, p. 54-55)RECHT, Roland. A escritura da história da arte diante dos modernos. In: HUCHET, Stéphane (org.). Fragmentos de uma Teoria da Arte. São Paulo: EDUSP, 2012. P. 33-60. salientou que para ele, a questão do antigo na modernidade se relacionava a elementos exógenos da busca consciente de um antigo apolíneo, em imagens que ele reconheceu como uma ninfa antiga, como na figura à direita do Nascimento de S. João Batista (1486-1490) de Domenico Ghirlandaio, que Recht relaciona à busca do personagem Norbert Hanolf pela Gradiva de Jensen24 24 Personagem do romance homônimo (1903) do escritor alemão, sobre o qual Sigmund Freud escreveu Delírios e Sonhos em ‘Gradiva’ de Wilhelm Jensen (1907). . Entendendo a Pathosformel warburguiana como “[...] uma forma superlativa da linguagem dos gestos, que traduz a necessidade dos florentinos de resolver, pela imagem, conflitos psíquicos”, Recht (2012, p. 55-59)RECHT, Roland. A escritura da história da arte diante dos modernos. In: HUCHET, Stéphane (org.). Fragmentos de uma Teoria da Arte. São Paulo: EDUSP, 2012. P. 33-60., contribuiu para o debate sobre a relação entre a estrutura do Bilderatlas com as estruturas da colagem “[...] como princípio essencialmente plástico [...]” e da montagem em Walter Benjamin. É significativo que Warburg tenha reconhecido, em seu ensaio sobre o Déjeuner sur l’Herbe, “[...] um exemplo do desenvolvimento tardio [...]” (Recht, 2012RECHT, Roland. A escritura da história da arte diante dos modernos. In: HUCHET, Stéphane (org.). Fragmentos de uma Teoria da Arte. São Paulo: EDUSP, 2012. P. 33-60., p. 57-59) da Pathosformel, com fontes que recuam a obras do século XVI e a sarcófagos antigos.

Para compreender o retorno de Warburg, mas também no retorno de Morris e Schneemann a Manet, recorremos ao Manétisme, com o qual Pinotti (2013, p. 1-4)PINOTTI, Andrea. Archéologie des images et logique rétrospective: note sur le «Manétisme» de Warburg. Images Re-vues, Horssérie, v. 4, n. 16, p. 1-17, 2013. Available at: <http://imagesrevues.revues.org/3043>. Accessed on: Nov. 30, 2017.
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alinha autores desde o século XIX, destacando Warburg e Georges Bataille25 25 Bataille (1979, p. 143) interpretou os empréstimos de esquemas composicionais de obras do passado por Manet, cuja especificidade moderna se diferenciava daquelas de seus contemporâneos. , que valorizaram a ruptura moderna de Manet. Contudo, em Site há uma complexificação desse conceito, pois a performance reverbera a Olympia como marco da modernidade, mas descredencia sua entrada na arte contemporânea. Ademais, os interesses dessa citação para Morris e para Schneemann eram divergentes, o que explica a posterior crítica que ela fez de sua própria participação (Schneider, 2002SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 2002., p. 31). Na Olympia a nudez sem pudor e o olhar desafiador da modelo são agenciados por Manet e não por ela (Schneider, 2002SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 2002., p. 25-27). Mas quando Schneemann assumiu sua pose, assumiu sua posição e intencionava assumir a agência nessa questão, ao se colocar como imagem e como artista em Site, perturbando a lógica da representação do corpo feminino social e culturalmente marcada pelo olhar masculino, o que não ocorreu. Além disso, se na Olympia de Manet o corpo nu da mulher branca coincide com o campo escópico e contém o ponto de fuga, dos quais a mulher negra26 26 Sobre a presença dessa personagem e do buquê na pintura e sua exclusão em Site, cf. Schneider (2002, p. 27-28). é apartada, portanto tornada ausente, em Site, ela foi literalmente excluída.

Para Warburg (2015c, p. 349)WARBURG, Aby. O “Déjeuner sur l’Herbe” de Manet. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015c. P. 349-362., o Déjeuner provava a codeterminação dos “[...] nexos formais e objetivos e a tradição [...]” plástica. Nela, Manet evocou o Concerto campestre (1508-09)27 27 Esta pintura era, à época, atribuída a Giorgione. Ainda que seja controversa, a autoria de Tiziano Vecellio é hoje aceita pelo Museu do Louvre, ao qual pertence. , o que não neutralizou o teor revolucionário da cena com a mulher nua e homens vestidos. Warburg (2015c, p. 349)WARBURG, Aby. O “Déjeuner sur l’Herbe” de Manet. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015c. P. 349-362. esclareceu que parte da modernidade da obra se deve a Manet evidenciar “[...] que é antes de tudo a participação no pleno patrimônio espiritual que cria a possibilidade de descobrimento de um estilo gerador de novos valores expressivos [...]”, extraindo sua eficácia da “[...] nuance de recriação [...]”.

Se essa participação na cultura europeia e seus antecedentes, cujas propriedades passaria a compartilhar, doa legibilidade à obra quanto ao reconhecimento do modelo, o deslocamento epistemológico causado pela escolha de Manet problematiza a mesma tradição da qual se apropria. Tal deslocamento provoca senão uma inversão de seus valores, a valorização de elementos latentes que estavam recônditos em seus próprios modelos. Warburg (2015c, p. 350)WARBURG, Aby. O “Déjeuner sur l’Herbe” de Manet. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015c. P. 349-362. reconhece, numa cadeia iconográfica, a anterioridade da calcogravura Juízo de Páris (1514-18), que Marcantonio Raimondi realizou a partir de um desenho hoje perdido de Raffaello Sanzio, sobre a pintura de Manet, que Theodore G. Pauli comentou em Rafael e Manet (1908), assim como que esse desenho se baseara em um relevo do sarcófago romano do século III AD, encrustado na fachada da Villa Medici, em Roma.

Para Warburg (2015c, p. 351)WARBURG, Aby. O “Déjeuner sur l’Herbe” de Manet. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015c. P. 349-362., o grupo de três figuras do canto inferior direito do relevo antigo está presente em Raimondi e Manet, no qual “[...] o jogo dos gestos e da fisionomia consuma-se em uma transformação energética da humanidade representada [...]” até chegar, passando pela gravura, à “[...] configuração de uma humanidade livre [...]” na pintura. Esses semideuses assistiriam ao julgamento que inaugura a Guerra de Tróia acerca da beleza das deusas Hera, Atena e Afrodite, presentes em outras obras antigas e modernas, que Warburg (2015c, p. 351-353)WARBURG, Aby. O “Déjeuner sur l’Herbe” de Manet. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015c. P. 349-362. contrastou com o relevo e gravura. Ao aproximar essas três figuras às do Déjeuner, observou que “[...] o termo de ligação é a cabeça da ninfa da fonte, que está voltada para o espectador, presente na obra [...]” (Warburg, 2015cWARBURG, Aby. O “Déjeuner sur l’Herbe” de Manet. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015c. P. 349-362., p. 353) italiana. Como marco da secularização desse processo, além da perda de sua postura adoradora, ela nota um observador imaginário na terra, consciência que Manet reforçaria em termos ainda mais mundanos.

Warburg (2015c, p. 355-357)WARBURG, Aby. O “Déjeuner sur l’Herbe” de Manet. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015c. P. 349-362. entendeu que Raffaello inaugurou o “[...] transporte arqueologizante dos deuses para o reino da beleza de aparência escultural [...]”, o que teve como corolário a superação dos antigos deuses como “[...] potências do destino [...]”, sendo-lhes retirado o conteúdo caótico de suas figurações. Analogamente, a matematização do espaço pictórico pela perspectiva linear impôs a corporeidade e a proporcionalidade das figuras, que no Renascimento passavam a ser regidas pela cultura técnica, o que é corroborado em outros Julgamentos de Páris dos séculos XVI e XVII.

Não se deve, portanto, ignorar o valor de exemplo desse tema, vinculando a questão da beleza e do desejo à presença da ninfa, incontornáveis na tradição pictórica que Schneemann menciona quanto à representação da mulher e de seu corpo na história da arte. Partindo de Warburg, Hubert Damisch deslocou a discussão para a questão da beleza nesta disciplina em Le Jugement de Pâris (1992). Damisch (1992, p. 7-8)DAMISCH, Hubert. Le Jugement de Pâris: iconologie analytique I. Paris: Flammarion, 1992. explorou a noção psicanalítica da beleza não como uma idealidade do belo, mas como um construto ligado à elaboração humana de prazeres substitutivos do gozo que estruturariam as bases de uma civilização, nos termos de uma economia libidinal.

Ele, então, iniciou um percurso a partir de Warburg, passando pelos Julgamentos de Páris de Pieter P. Rubens (1600-1638) e de Antoine Watteau (c.1720), chegando aos Déjeuner sur l’herbe (1959-1961) de Pablo Picasso, em diálogo com a pintura de Manet. Assim, identificou não transposições iconográficas, no sentido panofskyano, mas um trabalho da imagem, relacionando o mito, o belo, a arte e o inconsciente. Tal tema seria privilegiado para abordar a questão do belo nessa tradição pictórica, pois o julgamento do mortal diante das deusas nuas partia da diferença sexual e da suscitação do desejo, e seu deslocamento para seus predicados físicos, cabeleiras e panejamentos, transformando a beleza num inquietante problema, além de levar a humanidade à guerra e ao sofrimento.

Damisch (1992, p. 53-54)DAMISCH, Hubert. Le Jugement de Pâris: iconologie analytique I. Paris: Flammarion, 1992. comentou o desconforto do público e do meio artístico diante do Déjeuner, no Salon de Réfuses em 1863, que exibia cruamente a diferença sexual. Ele investigou sua recepção, que sobredeterminou o escândalo do próprio Salon onde foi exposta, junto a outras centenas de obras rejeitadas naquele ano pelo júri do Salon oficial. Damisch (1992, p. 55-56)DAMISCH, Hubert. Le Jugement de Pâris: iconologie analytique I. Paris: Flammarion, 1992., então, perguntou o que essa pintura “[...] dava a ver que não deveria ser visto [...] sem que, paradoxalmente, o sorriso da modelo não engendrasse no espectador esse mesmo sentimento de inquietante estranheza [...]” que gerou o riso no público, embora o público não tenha rido de La perle et la vague (1862) de Paul Baudry e La Naissance de Vénus (1863) de Alexandre Cabanel, no Salon oficial. Tratava-se não de uma rejeição ao nu, mas da “[...] questão da distinção ou distanciamento, já que a pintura de Manet recusa qualquer álibi poético ou mitológico” (Damisch, 1992DAMISCH, Hubert. Le Jugement de Pâris: iconologie analytique I. Paris: Flammarion, 1992., p. 53-54).

A exposição do corpo nu da mulher nessa tradição pictórica é levantada pelo diálogo que Damisch promoveu com a fortuna do Déjeuner. Ao comentar lapsos na pretensa objetividade da crítica, ele a acusa de uma “[...] cegueira endêmica [...]”, manifesta por uma fuga de elementos constituintes da beleza, uma fuga do olhar sobre ela, tendo sido constatada sua indecência em comparação com obras contemporâneas e “[...] clássicas cuja longevidade e renome as imunizaram das [mesmas] acusações” (Damisch, 1992DAMISCH, Hubert. Le Jugement de Pâris: iconologie analytique I. Paris: Flammarion, 1992., p. 57-59).

Ele também identificou comentários críticos sobre a composição do Déjeuner, que revelaria a “[...] técnica de montagem ou colagem, que surge como uma das forças principais do trabalho da pintura” (Damisch, 1992DAMISCH, Hubert. Le Jugement de Pâris: iconologie analytique I. Paris: Flammarion, 1992., p. 59). Isso fortalece a sensação de que sua composição é artificial, inorgânica, sobre a qual ele propõe uma indagação que terá desdobramentos na história da arte, assim como para a obra de Schneemann: “Mas o que é desejar um corpo em sua forma pintada?” (Damisch, 1992DAMISCH, Hubert. Le Jugement de Pâris: iconologie analytique I. Paris: Flammarion, 1992., p. 59). Essa questão lhe permitiu explorar a ligação28 28 Baseada em Wayne Andersen (1973), mas se tornou notória a partir de Damisch. entre o julgamento de Páris e o julgamento público de Paris diante do Salon des Réfuses na relação entre o belo indecente e o belo oficial, no âmbito da história da arte. Daí poderíamos, também, indagar sobre a motivação das críticas tanto do establishment quanto de vertentes feministas sobre a exposição da nudez em Eye Body e Meat Joy.

Em 1864, Ernest Chesneau reconheceu no Déjeuner a gravura de Raimondi, que era “[...] bem conhecida nos ateliês [...]”, apesar de ter composto com essas poses sob “[...] um efeito de colagem, imitando as posturas da ninfa (uma ninfa estranhamente musculosa e andrógina, se é que se trata mesmo de uma ninfa) e dos dois deuses do rio” (Damisch, 1992DAMISCH, Hubert. Le Jugement de Pâris: iconologie analytique I. Paris: Flammarion, 1992., p. 62-63). Mas Warburg viu essa pintura “[...] como o último elo numa longa cadeia que retrocede do Renascimento até o período helenístico” (Damisch, 1992DAMISCH, Hubert. Le Jugement de Pâris: iconologie analytique I. Paris: Flammarion, 1992., p. 63). Damisch salientou que críticos, como os irmãos Goncourt, não compreenderam as citações “[...] crípticas que demandam interpretação [...]” de obras do passado como “[...] prova de uma assombrosa falta de imaginação [...]”, em paródias que seriam “[...] farsa ou blague d’atelier” (Damisch, 1992DAMISCH, Hubert. Le Jugement de Pâris: iconologie analytique I. Paris: Flammarion, 1992., p. 63).

Schneemann, contudo, não se reporta diretamente a eles, mas à figuração do feminino nessa tradição cunhada por olhares masculinos na pintura estabelecida durante o Renascimento, e por seu retorno à Antiguidade greco-romana. A trama não linear de seu tratamento de fontes iconográficas, não obstante, volta-se a uma estrutura de montagem (Figura 6), aqui relacionada a Warburg e sua pesquisa sobre “[...] a função pré-figurativa das divindades pagãs”30 30 Em menção ao subtítulo que o artigo de Warburg recebeu pelas mãos de Ernst Gombrich, em 1937 (Latsis, 2015, p. 10). . Inferimos, portanto, que, ao evocar a pujança do gesto formador da pintura, ainda que criticando elementos da tradição pictórica moderna, a artista o tenha feito ao encarnar o movimento da imagem e a imagem em movimento em sua corporeidade gestual. Assim, ela também teria convocado o teor arcaizante da imagem feminina, vinculado a conteúdos dionisíacos da formação da imagem em movimento e de sua memória cultural. Mas não eram esses os conteúdos dionisíacos que, ao fazer renascer conteúdos apolíneos da arte antiga (clássica), os renascentistas os teriam também feito retornar de sua latência, e que se infiltravam nos detalhes, cabeleiras, panejamentos cujos movimentos Warburg (2013, p. 20) notou não terem uma causa na lógica racional da obra?

Figura 6
Carolee Schneemann. Eye Body #1 da Eye Body: 36 Transformative Actions for Camera, 1963, impressão em gelatina de prata (2005), 61 × des50,8 cm.

O Gesto da Ninfa e seus Acessórios em Movimento

Em outro retorno a Warburg, Georges Didi-Huberman discute o dobramento do corpo feminino nos panos colados, esvoaçantes, caídos, em Ninfa moderna (2002). Para ele, essa figura tornava-se perturbadora no entresséculos. Ainda que sem “[...] poder institucional [...]”, ela tem a potência de inquietar a alma, o que a torna perigosa, ligada “[...] ao desejo, ao tempo, à memória” (Didi-Huberman, p. 2002bDIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Paris: Flammarion, 2002b., p. 7). Para sustentar tal afirmação, ele a evoca como personagens literárias de Théophile Gautier a Stéphane Mallarmé e André Breton. Daí, também, a citação da moderna “[...] ciência da alma [...]” que Freud veria, em 1885, em pacientes “histéricas” (Didi-Huberman, p. 2002bDIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Paris: Flammarion, 2002b., p. 7) no anfiteatro de Jean Charcot na Salpêtrière, e depois em suas pacientes como Anna, Emma e Dora. Daí a imagem cativante da Gradiva, “[...] como se [ela] chegasse a fazer do saber analítico [...] um exercício perturbador, memória e desejo reunidos em uma mesma aparição” (Didi-Huberman, 2002bDIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Paris: Flammarion, 2002b., p. 8-10). Ela seria a ninfa que Warburg reconheceu em seus “[...] acessórios em movimento [...]”, cabeleiras e panejamentos (Campos, 2018CAMPOS, Daniela Queiroz; FLORES, Maria Bernardete Ramos. Vênus Desnuda: a nudez entre o pudor e o horror. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 8 n. 2, p. 248-276, abr./jun. 2018. Available at: <https://www.scielo.br/pdf/rbep/v8n2/2237-2660-rbep-8-02-248.pdf>. Accessed on: Feb. 04, 2019.
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, p. 262).

Desse modo, a “Ninfa atravessa os objetos da história da arte warburguiana como um verdadeiro organismo enigmático [...]”, mostrando-se simultaneamente fugidia e “[...] tenaz como um fóssil [...]”, designando “[...] em Warburg, a heroína impessoal do Nachleben - a sobrevivência dessas coisas paradoxais do tempo” (Didi-Huberman, 2002bDIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Paris: Flammarion, 2002b., p. 10-11). Daí ele procurar a aparição da ninfa através dos séculos em tipos iconográficos da tradição plástica, em especial nos tipos em que ela faz um movimento deliberado em direção ao solo. Para Didi-Huberman (2002b, p. 11-12)DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Paris: Flammarion, 2002b., Warburg não ignorou o “[...] destino moderno [...] dessas representações fortemente erotizadas [...] da queda dos corpos: elas culminaram em Füssli, Ingres ou Goya, em Courbet, em Degas e, seguramente, em Manet”.

Didi-Huberman (2002b, p. 12-13)DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Paris: Flammarion, 2002b. se interessa pela dinamografia31 31 Ela revelaria o trabalho fantasmático da imagem, aberto pela ideia warburguiana de que as imagens conservariam energias psíquicas residuais, que reemergeriam na história da arte, podendo-se inverter sua polaridade, relacionando o conceito de símbolo ao de engrama, como observou Giorgio Agamben (1998, p. 57), não podendo uma obra ser entendida exclusivamente segundo a vontade consciente do artista, em seu processo de criação, para além da força dos estilos. dessa queda progressiva e estende o sentido de declinação temporal de suas aparições: “Como a aura [...], a Ninfa declina com os tempos modernos”. Para tal, evoca o conceito de clinamen, por um lado no eixo fenomenológico da queda no sonho, na teoria de Binswanger, tratando do movimento corporal imputado à ninfa, quando inclinada às forças do desejo, e por outro, no sentido de um desvio do movimento na teoria lucreciana da criação da matéria, como um desvio de intensidades, uma figurabilidade, como um trabalho “[...] de condensações e de deslocamentos” (Didi-Huberman, 2002bDIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Paris: Flammarion, 2002b., p. 13-16). Pensando em termos progressivos, como num filme, ele imagina a queda da ninfa como uma “[...] bifurcação que toma a forma de uma lentíssima dissociação da nudez em relação ao tecido que antes a vestia [...]”, que a desnuda e volta a acolhê-la como o lençol no leito sobre o qual ela cairá.

Didi-Huberman (2002b, p. 16-20)DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Paris: Flammarion, 2002b. depreende daí que este tecido tomaria uma “[...] autonomia figural [...]” e que “[...] desde o Renascimento, o movimento se acelera: as superfícies têxteis (as dobras) tendem a bifurcar superfícies corporais (as carnes)”. Assim, ele inicia seu percurso das Vênus de Botticelli a Tiziano. Nessa transmutação do acessório, os tecidos que protegiam seu corpo em seu pathos, passariam a mimetizá-lo, tornando-se os receptáculos patéticos, donde Didi-Huberman (2002b, p. 20)DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Paris: Flammarion, 2002b. reconhece, nessas telas (toile) “[...] a função de tela (écran) - no sentido cinematográfico”, na longa duração.

Essa progressão confirmaria, para Didi-Huberman (2002b, p. 20)DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Paris: Flammarion, 2002b., a percepção warburguiana do panejamento como “[...] ferramenta patética [...]” capaz de acolher “[...] inversões dinâmicas”. Ele, então, atenta para os “[...] panos obsidionais [...]” abandonados nos cantos inferiores de telas como o Bacanal (1518-1519) de Tiziano ou o Triunfo de Pan (1636) de Nicolas Poussin lembrando-nos do pano caído no Déjeuner próximo a um buquê e uma máscara da comédia (Didi-Huberman, 2002bDIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Paris: Flammarion, 2002b., p. 24), um vestígio de sua ligação com o teatro.

Didi-Huberman (2002b, p. 25-45)DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Paris: Flammarion, 2002b., em seguida, recapitula a hipótese-filme e procura as ninfas em um recôndito para o qual, segundo Heinrich Heine, os Deuses e Deusas pagãos “[...] precisaram fugir e procurar sua salvação sob travestimentos de toda a espécie” diante do surgimento do Deus cristão: as santas marmóreas deitadas em capelas dos séculos XVII e XVIII, envoltas em dinâmicos panejamentos, que acolhem seu pathos. Finalmente, no século XIX, toma os extáticos panos de Madame Gervaisais (1869) dos Irmãos Goncourt e Le ventre de Paris (1873) de Émile Zola.

Assim, Didi-Huberman (2002b, p. 46-49)DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Paris: Flammarion, 2002b. chega ao que Warburg identificou como um esvaziamento secular do referente: a perda da transcendência: “Tais são o declínio, a queda da Ninfa [...] na miséria contemporânea”, a secularização da aura transformando em trapos os acessórios em movimento de Warburg. Ele propõe, então, uma arqueologia das ruas das grandes cidades europeias, como um “[...] terreno de anacronismos [...]”, inspirado em Benjamin, ao encontrar os trapos oriundos de antigas vestes, como aquele que Didi-Huberman (2002b, p. 64)DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa moderna. Paris: Flammarion, 2002b. encontra descartado em uma fotografia de Eugène Atget.

Esse dobramento dos corpos doaria outro sentido aos acessórios em movimento de Schneemann, a revelação da história desses panos, vestes, peles, mas também de plásticos (Figura 7), carnes - muitas vezes em um espaço visceral quase insuportável ao logos, por desconstruir hierarquias de modo arrebatador - e outros assessórios que ela não cessa de fazer uso, assim como das poses provenientes das mesmas blagues d’atelier de Manet, seja no Interior Scroll, no Eye Body ou na orgia do Meat Joy. Ou, poderíamos dizer que das poses que cristalizavam gestos, ela estaria fazendo esses panos performarem.

Figura 7
Carolee Schneemann. Eye Body #6 da Eye Body: 36 Transformative Actions for Camera, 1963, impressão em gelatina de prata (2005), 61 × 50,8 cm.

Os problemas levantados pelo percurso de Didi-Huberman evocam Warburg tanto em relação a seu olhar sobre o passado quanto sobre o moderno. Se a ninfa impessoal, concebida como objeto teórico, atravessa a obra de Warburg da Antiguidade à Modernidade, ela também estaria presente, sob uma inversão energética - ou um deslocamento crítico - na obra de Schneemann. A artista teria incorporado intencionalmente figurações convencionais do corpo feminino, da beleza, do desejo. Mesmo que tivesse consciência da relação entre o desejo e a representação, conforme ao sentido do nu feminino como “[...] terreno obsessivo da fantasia representacional” (Schneider, 2002SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 2002., p. 6), talvez inconscientemente, ela tenha também promovido a emergência de Pathosformeln antigas em imagens dialéticas que propiciaram montagens de relâmpagos do caráter indecente da ostentação da diferença sexual. Isso poderia explicar a eficácia de sua problematização do olhar e do corpo que invertem os lados de um mesmo tecido, ou de uma película, unido como uma fita de Moebius, entre a imagem e a criadora de imagens, brincando seriamente com modelos propostos, manipulados e sustentados por homens através dos séculos.

Se Warburg (2016, p. 187-188)WARBURG, Aby. De Arsenal a Laboratório. Tradução de Cássio Fernandes. Figura: Studies on the Classical Tradition, Campinas, v. 4, p. 182-196, 2016. Available at: <http://www.figura.art.br/images/2016/2016_4_documents_1_cassio%20fernandes.pdf>. Accessed on: Ago. 25, 2018.
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procurou na dança da serpente fundamentos da “[...] expressão humana na obra figurativa como efígie da vida prática em movimento (tratando-se de um culto religioso ou do drama da cultura através da festividade cortesã ou através do teatro33 33 Também em alusão ao seu ensaio “Os figurinos teatrais para os ‘intermezzi’ de 1589” (1895). )”, podemos indagar sobre a intimidade inextricável que ela estabeleceu entre pintura e performance, ao deslocar-se por tempos, poses, gestos, convenções, marcos da história da arte, e os papéis do feminino na arte, embaralhando categorias e linguagens historicamente demarcadas. Esses atravessamentos fazem lembrar a personagem Vanda Jourdain de A Vênus das peles34 34 Em referência ao filme (2013), dirigido por Roman Polanski, a partir da peça teatral de Ives David (2010) sobre o romance homônimo de Leopold von Sacher-Masoch, de 1870. , cujos deslocamentos para a personagem Wanda von Dunajew se intensificam, envolvendo sua encarnação como Mênade e a personificação de Vênus. Nesta ação, as tradições do teatro grego e moderno, da literatura e do cinema também se entrecruzam.

Assim como nas trocas de pele de Vanda, as citações de Schneemann suscitaram a emergência de Pathosformeln, o que esbarra em sua inscrição paradoxal no essencialismo e no materialismo, querendo que seu corpo fosse provocativo e “[...] marcado, escrito em um texto de pincelada e gesto descoberto por minha vontade feminina criativa” (Schneemann, 1997SCHNEEMANN, Carolee. More Than Meat Joy: performance works and selected writings. New York: Documentext, 1997., p. 52). Ou seja, ela não apenas exibiria sua imagem ativamente, mas esta seria potencializada como imagem dialética.

A conduta diante do mundo que Warburg (2015b, p. 258)WARBURG, Aby. Memórias de Viagem à região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015b. P. 255-287. identificou nos pueblos em relação ao ritual da serpente distingue-se da conduta moderna porque “[...] a imagem mimética deve estabelecer à força o vínculo, enquanto nós almejamos o distanciamento espiritual e real”. Ele propõe um lugar privilegiado para a dança como manifestação de causalidade - “[...] essa conquista científica dos chamados primitivos” (Warburg, 2015bWARBURG, Aby. Memórias de Viagem à região dos índios pueblos na América do Norte. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015b. P. 255-287., p. 263-264) -, para esse encontro entre o animal e o humano. Nesse sentido, a adoção de serpentes por Schneemann convoca o que há de mais participativo nos índices de uma relação mimética que na tradição pictórica se naturalizou como mero identificador, mas é evocação de um lastro antiquíssimo.

O interesse de Warburg (2015c, p. 360)WARBURG, Aby. O “Déjeuner sur l’Herbe” de Manet. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015c. P. 349-362. no Déjeuner era de um lado, “[...] indicar o movimento expressivo humano maximizado em um movimento intensificado como função hereditária da cultura da Antiguidade pagã [...]” e, de outro, “[...] indicar o movimento expressivo humano em um estado de repouso profundo como função hereditária mnêmica [...]”, que formam uma polaridade regida por forças complementares de modo à valorização de um polo desequilibrar tal relação. Ele constatou o fim de uma longa trajetória de superação da escultura em prol da pintura no “[...] novo mundo da totalidade entre o homem e a natureza, o elo perdido entre a maçã olímpica e o desjejum secular francês” (Warburg, 2015cWARBURG, Aby. O “Déjeuner sur l’Herbe” de Manet. In: WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015c. P. 349-362., p. 360).

Nesse sentido, impõe-se pensar na noção mais fundamental de pintura que Schneemann parece evocar, ao extrair dela a força do gesto pictórico incorporado, manifesto fenomenologicamente em seu corpo e em seu movimento. É como se os restos vitais das Mênades que foram cristalizados nas imagens poéticas e pictóricas, que estão no próprio fundamento do teatro grego, que foram, de certo modo presos à bidimensionalidade da superfície pictórica, insistissem obsessivamente por retornar ao espaço tridimensional, entrecruzando miríades de temporalidades. Não é sem motivo que Schneider (2002, p. 7)SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 2002. entende que a obra de Schneemann “[...] abre os legados da perspectiva visual relativos à cena do corpo tornado explícito na performance feminista contemporânea”. Pensando relações antigas entre artes plásticas, teatro e dança, como nos rituais indígenas americanos e na pintura florentina do século XV, além do teatro florentino do século XVI, à luz de Warburg, abre-se a possibilidade de pensarmos diferentes sobrevivências do antigo gesto intenso na Modernidade de Bertold Brecht, Antonin Artaud, Rudolf von Laban, Mary Wigman, mas também em Pina Bausch, e, por que não, em Carolee Schneemann. De modo análogo, poderíamos pensar o conceito de Pathosformel à luz do transbordamento de seu gesto pictórico para as artes do corpo.

Notas

  • 1
    Este texto é resultado de pesquisa com Fomento do CNPq e de pesquisa de pós-doutorado com bolsa da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF) realizada na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris.
  • 2
    O presente texto é o recorte de uma investigação mais extensa, cuja apresentação preliminar foi publicada (Pugliese, 2019PUGLIESE, Vera. Entre corpos e serpentes na História da Arte: pathos e anacronismo em Carolee Schneemann. In: COLÓQUIO DO COMITÊ BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA ARTE: ARTE & EROTISMO, 38., 2018, Florianópolis. Anais… Florianópolis: UDESC, 16-20 out. 2019. P. 185-198. Available at: <http://www.cbha.art.br/coloquios/2018/anais/pdfs/01%20Vera%20Pugliesi.pdf>. Accessed on: Nov. 09, 2019.
    http://www.cbha.art.br/coloquios/2018/an...
    ) e outro recorte, concernente à questão do estatuto poético e epistemológico da fotografia nas obras de Warburg e Schneemann, apresentado no Simpósio Internacional Warburg, em Buenos Aires, Argentina, em abril de 2019.
  • 3
    Esta e as demais citações a partir de textos em língua estrangeira foram traduzidas pela autora.
  • 4
    Trata-se do campo disciplinar da história da arte, cujas discussões sobre seus objetos, premissas teórico-metodológicas e fronteiras inerem à própria constituição desta esfera de conhecimento, em especial no que tange à problematização da relação entre imagem e tempo. Não cabe aqui maior aprofundamento na explanação teórica de tal questão, mas é digno de nota que é justamente a especificidade dessa problematização que, de certo modo, a obra de Schneemann toca, bem como sua inscrição no âmbito da história da arte. Nesse sentido, cf. desdobramentos da referida relação entre imagem e tempo na história da arte, incluindo a crítica a modelos triviais do tempo, na qual Georges Didi-Huberman (2002a, p. 24-25)DIDI-HUBERMAN, Georges. L’Image Survivante: histoire de l´art et temps des fantômes selon Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002a. cita a questão do fim da história da arte, sustentada por Hans Belting em L’Histoire de l'art es t-elle finie? (1983).
  • 5
    Inicialmente cunhado por Anton Springer em Das Nachleben der Antike im Mittelalter [Idade Média] (1867), que marcou a historiografia da arte oitocentista, em especial quanto ao papel de reemergências do antigo na arte medieval e renascentista. Quanto à controversa tradução de Nachleben, nos estudos warburguianos (Rampley, 2000RAMPLEY, Matthew. From Serpent Ritual to Cosmic Allegory. In: RAMPLEY, Matthew. The Remembrance of Things Past: on Aby M. Warburg and Walter Benjamin. Wiesbaden: Harrassowitz Verlag, 2000. P. 32-49., p. 33-34), que literalmente seria pós-vida (afterlife) (Baitello Junior, 2017BAITELLO JUNIOR, Norval. Idea vincit! Algumas imagens tangenciais à elipse de Aby Warburg. Revista Figura: Studies on the Classical Tradition, Campinas, v. 5, n. 1, p. 29-44, 2017., p. 39), o que é sustentado sobretudo por estudiosos anglo-saxões em detrimento de vida póstuma, defendida, entre outros, por Giorgio Agamben (1998, p. 55-56)AGAMBEN, Giorgio. Aby Warburg e la scienza senza nome (1975). Rivista Aut Aut, Milano, n. 199-200, p. 51-66, jan./abr. 1984. reed. 1998. e sobrevivência (survivance) em uso na França, principalmente na acepção de Didi-Huberman, esta é aqui adotada, devido à sua abertura filológica e epistemológica. Tal controvérsia pode se dever ao desencaixe entre a concepção de Springer, para quem o Nachleben redu ziria uma Antiguidade a sobrevivências medievais em prol da Antiguidade triunfante do Renascimento, enquanto para Warburg esse conceito não concerniria a uma periodização, sob uma acepção estrutural na qual o Nachleben do antigo estaria presente tanto na Idade Média quanto no Renascimento, como uma subtendência em diferentes estilos (Didi-Huberman, 2002aDIDI-HUBERMAN, Georges. L’Image Survivante: histoire de l´art et temps des fantômes selon Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002a., p. 84).
  • 6
    Esta e outras explicações de Schneemann ocorreram mediante emails trocados com Sabine Breitwieser - que também comissariou a retrospectiva homônima da artista no MoMa PS1, em Long Island, de outubro de 2017 a março de 2018 -, durante o processo curatorial da mostra Kinetic Painting, que teve lugar no Museum der Modern em Salzburg, em 2015. Há que se questionar se muitas das interpretações da artista podem ter tido elaborações posteriores sobre sua obra em uma visão retrospectiva, além da percepção de que poderia haver certa condução dos caminhos de sua fortuna em diversas publicações conjuntas com curadores e até críticos sobre sua obra, durante décadas. Assim, deve-se considerar, em cada caso, até que ponto a artista se colocaria como intérprete de sua própria obra no curso do tempo.
  • 7
    A expressão advém de um procedimento do corpo de bombeiros, que, em certas circunstâncias, iniciam um incêndio controlado, o que sempre envolve riscos, uma vez que, de fundo, o fogo é incontrolável.
  • 8
    É o caso de Manoel S. Friques (2018, p. 834)FRIQUES, Manoel Silvestre. Entre a Ilusão e a Teatralidade: Rosalind Krauss, Michael Fried e o Minimalismo. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 8, n. 4, p. 807-837, out./dez. 2018. Available at: <https://www.scielo.br/pdf/rbep/v8n4/2237-2660-rbep-2237-266075601.pdf>. Accessed on: Jan. 09, 2020.
    https://www.scielo.br/pdf/rbep/v8n4/2237...
    , evocando Against Interpretation and Other Essays, de 1966, de Susan Sontag, quanto à noção de que da intimidade dos assemblages e combine paintings com os Happenings na Escola de Nova York se evidenciar na poética de Schneemann.
  • 9
    Com nova mudança de ateliê, ela começou Fur Wheel (1962) e a obra em questão, ambas utilizando motores, além de retalhos de peles animais, mesas e outros materiais que serviam ao antigo locatário do loft, que revestia objetos com peles.
  • 10
    Disponível em: <https://www.moma.org/collection/works/200141>. Acesso em: 30 jan. 2020.
  • 11
  • 12
    Original em inglês disponível em: ˂https://www.theartstory.org/artist/schneemann-carolee/˃. Acesso em: 02 fev. 2020.
  • 13
  • 14
    Schneider (2002, p. 188-189)SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 2002. observa que embora esses dois movimentos tivessem marcações políticas e fossem mais abertos e inclusivos a artistas mulheres, no contexto estado-unidense, eles manteriam os mesmos critérios culturais do apropriado/não apropriado para uma artista segundo a Minimal Art e a Pop Art, rejeitando a marcação de gênero e seus códigos. Sua posição como image maker era, também, uma resposta a essa situação. Embora fosse uma das pioneiras do Fluxus, foi oficialmente excomungada por seu fundador após a realização de Meat Joy (1964). Em nota oficial, George Maciunas justificou o banimento devido a “[...] tendências expressionistas confusas dessa mulher aterrorizante” (Schneider, 2002SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 2002., p. 188-189). Embora na comunidade europeia a expulsão não vigorasse, até hoje ela não é considerada uma artista Fluxus pura.
  • 15
  • 16
    A comparação com as Anthropométries (1959-1960) de Yves Klein é inescapável. Mas, apesar de sua importância, acabavam por reforçar o objetificação do corpo e da imagem da mulher pelo artista homem, num processo de criação que se apropria do modelo feminino como instrumento artístico, imprimindo seu corpo.
  • 17
  • 18
    Sua relação com essas diferentes categorias artísticas, linguagens ou suportes, talvez possa ser aproximada ao cinema-documentário de Erwin Piscator, no que concerne ao uso da montagem no processo poético de interferir no teatro com projeções de cinema (Huapaya, 2016HUAPAYA, Cesar. Montagem e Imagem como Paradigma. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 110-123, jan./abr. 2016. Available at: <https://www.scielo.br/pdf/rbep/v6n1/2237-2660-rbep-6-01-00110.pdf>. Accessed on: Jan. 09, 2020.
    https://www.scielo.br/pdf/rbep/v6n1/2237...
    , p. 114).
  • 19
    Este pretenso narcisismo se enraíza na rejeição à atuação de artistas mulheres que assumiram a agência de seu próprio corpo na arte. Schneider (2002, p. 35-36)SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 2002. avança que Schneemann além de mostrar seu corpo como objeto ativo, quis mostrar o nu como a artista, seu corpo como o lugar de seu discurso, vinculado à noção de seu gesto pictórico frente à referida tradição pictórica.
  • 20
    Realizada na conferência Women Here and Now. Após entrar numa sala coberta por um lençol sobre um avental amarrado em seu corpo nu, ela se despiu e subiu em uma mesa, desenhou em seu corpo com lama - num ato ritualístico - e mimetizou poses típicas de aula de desenho com modelo vivo. Finalmente, leu trechos de seu livro Cézanne, She Was a Great Painter, e depois começou a puxar um rolo de papel de sua vagina, enquanto lia passagens de seu Kitch’s Last Meal (Schneemann, 1997SCHNEEMANN, Carolee. More Than Meat Joy: performance works and selected writings. New York: Documentext, 1997., p. 238-239).
  • 21
    Embora fosse interessado por arqueologia, antropologia e religiões antigas, o folclorista escocês esboçou uma teoria difusionista fortemente controversa a partir do Budismo até os povos americanos, que se distancia completamente do quadro teórico de Warburg.
  • 22
    Seu psiquiatra, Ludwig Binswanger, havia concordado com a proposta de elaboração e proferição desta Conferência no Bellevue Sanatorium em Kreuzlingen, Suíça, onde recebia tratamento de sua afecção mental desde 1921, e com a qual provou a viabilidade de sua alta, em 1924.
  • 23
    “O essencialismo de Schneemann foi mais óbvio em sua imagery da Deusa - cobras colocadas sobre seu corpo em Eye Body eram alusões à Deusa. Mas esse essencialismo foi matizado com declarações de sua própria agência - seu status como construtora, artista, criadora ativa. Ela incomodou feministas de ambos os lados da cisão essencialismo/materialismo. Feministas rigidamente essencialistas, como o Coletivo Heresies nos anos 1960, criticaram-na por rebaixar a Deusa com o que elas leram como narcisismo sexual em sua obra. Vinte anos depois, feministas estritamente materialistas analogamente rejeitaram sua obra, ao ler quaisquer gestos em direção à sacralidade deusa-identificada como repetidamente nostálgica e como ingenuidade apolítica” (Schneider, 2002SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 2002., p. 36-37).
  • 24
    Personagem do romance homônimo (1903) do escritor alemão, sobre o qual Sigmund Freud escreveu Delírios e Sonhos em ‘Gradiva’ de Wilhelm Jensen (1907).
  • 25
    Bataille (1979, p. 143)BATAILLE, Georges. Manet (1955). In: BATAILLE, Georges. Œuvres complètes: volume 9. Paris: Gallimard, 1979. P. 103-167. interpretou os empréstimos de esquemas composicionais de obras do passado por Manet, cuja especificidade moderna se diferenciava daquelas de seus contemporâneos.
  • 26
    Sobre a presença dessa personagem e do buquê na pintura e sua exclusão em Site, cf. Schneider (2002, p. 27-28)SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance. New York: Routledge, 2002..
  • 27
    Esta pintura era, à época, atribuída a Giorgione. Ainda que seja controversa, a autoria de Tiziano Vecellio é hoje aceita pelo Museu do Louvre, ao qual pertence.
  • 28
    Baseada em Wayne Andersen (1973)ANDERSEN, Wayne. Manet and the Judgement of Paris. ArtNews, New York, v. 72, p. 63-69, fev. 1973., mas se tornou notória a partir de Damisch.
  • 29
    Disponível em: <https://news.artnet.com/app/newsupload/2017/11/eyebody800.jpg>. Acesso em: 30 jan. 2020.
  • 30
    Em menção ao subtítulo que o artigo de Warburg recebeu pelas mãos de Ernst Gombrich, em 1937 (Latsis, 2015LATSIS, Dimitrius. The afterlife of antiquity and modern art: Aby Warburg on Manet. Journal of Art Historiography, Birmingham, n. 13, p. 1-28, dec. 2015. Available at: <https://arthistoriography.files.wordpress.com/2015/11/latsis-warburg-translation.pdf>. Accessed on: Dec. 09, 2017.
    https://arthistoriography.files.wordpres...
    , p. 10).
  • 31
    Ela revelaria o trabalho fantasmático da imagem, aberto pela ideia warburguiana de que as imagens conservariam energias psíquicas residuais, que reemergeriam na história da arte, podendo-se inverter sua polaridade, relacionando o conceito de símbolo ao de engrama, como observou Giorgio Agamben (1998, p. 57)AGAMBEN, Giorgio. Aby Warburg e la scienza senza nome (1975). Rivista Aut Aut, Milano, n. 199-200, p. 51-66, jan./abr. 1984. reed. 1998., não podendo uma obra ser entendida exclusivamente segundo a vontade consciente do artista, em seu processo de criação, para além da força dos estilos.
  • 32
    Disponível em: <https://kunsthallewinterthur.ch/en/carolee-schneemann>. Acesso em: 30 jan. 2020.
  • 33
    Também em alusão ao seu ensaio “Os figurinos teatrais para os ‘intermezzi’ de 1589” (1895).
  • 34
    Em referência ao filme (2013), dirigido por Roman Polanski, a partir da peça teatral de Ives David (2010) sobre o romance homônimo de Leopold von Sacher-Masoch, de 1870.
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

References

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Editado por

Editor-responsável: Gilberto Icle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2020
  • Aceito
    01 Jul 2020
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