Acessibilidade / Reportar erro

A Educação do Corpo nos Tratados de Esgrima do Século XVI

RESUMO

As transformações decorrentes do processo de civilização dos costumes podem ser visualizadas em diversos espaços sociais, inclusive na trajetória histórica das modalidades esportivas. Sendo assim, o presente artigo explora os processos de educação do corpo presentes nos tratados de esgrima do século XVI. Nesse período, a luta de espadas de uma prática bélica se transformou em um confronto mais regrado, ao qual novas pedagogias corporais foram acionadas. A análise aqui apresentada indica que a aproximação da corte real, a formação das cidades, o aumento da sensibilidade e o surgimento das armas de fogo tiveram um importante papel nas modificações das técnicas e armas de esgrima e, consequentemente, em todo processo de educação do corpo.

Palavras-chave
Civilização dos Costumes; Tratados de Esgrima; Educação do Corpo

ABSTRACT

The transformations resulting from the civilizing process of customs can be seen in different social spaces, including the historical trajectory of sports. In this sense, this article explores the processes of body education in 16th- century fencing treaties. During this period, the military sword fight became a more regulated confrontation, activating new bodily pedagogies. The analysis presented here indicates that the approximation of the royal court, the formation of cities, the increase in sensibility, and the emergence of firearms played an important role in the modification of fencing techniques and weapons and, consequently, in the entire process of educating the body.

Keywords
Civilization of Customs; Fencing Treaties; Body Education

Introdução

A arte da esgrima é, sem dúvida, uma arte que demanda muito tempo para ser dominada; no entanto, seria difícil descobrir qualquer espadachim assumido que se arrependa do tempo dedicado a ela […]

(Castle, 1885CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885., p. 223, tradução nossa).

A esgrima é uma arte que, como explana a epígrafe acima, leva muito tempo para ser dominada pela complexidade de suas técnicas, e que também levou um grande período para ser apreendida completamente em seu aspecto sócio histórico, por conta de sua trajetória. A esgrima, conforme sugere Vaucelle (2004)VAUCELLE, Serge. L’art de Jouer à la Cour: transformation des jeux d’exercice dans l’éducation de la noblesse française, au début de l’ère moderne (XIIIe-XVIIe siècles). 2004. 620 f. Tese (Doutorado em História e Civilização) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2004., se trata de uma prática com uma história educacional rica e singular.

A luta de espadas, diferentemente de outras práticas corporais, não tem seu início marcado como divertimento e/ou jogo, e sim como uma atividade bélica. Vaucelle (2004VAUCELLE, Serge. L’art de Jouer à la Cour: transformation des jeux d’exercice dans l’éducation de la noblesse française, au début de l’ère moderne (XIIIe-XVIIe siècles). 2004. 620 f. Tese (Doutorado em História e Civilização) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2004.; 2009)VAUCELLE, Serge. L’espée & L’esteuf. Escrime et Jeu de Paume dans la France moderne (xve–Xviie siècles). Sport History Review, Alberta, v. 40, n. 1, p. 57-68, 2009., Vigarello (2005)VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302. e García (2018)GARCÍA, Raúl Sánchez. Revisiting Duelling and Fencing in the Sociology of Norbert Elias. In: HAUT, Jan; DOLAN, Paddy; REICHER, Dieter; GARCÍA, Raúl Sánchez (Org.). Excitement Processes: Norbert Elias’s unpublished works on sports, leisure, body, culture. Wiesbaden: Springer VS, 2018. P. 255-273. lembram que o confronto com espadas era uma atividade presente no cotidiano de muitas sociedades europeias que só posteriormente, após o declínio dos duelos, se tornou um divertimento, e apenas no século XIX se aproximou às lógicas do esporte moderno. A esgrima é uma atividade humana que foi transformada pelo desenvolvimento de tecnologias de armamento, pelo aumento da sensibilidade, por técnicas de manejo cada vez mais específicas; bem como foi marcada por um sistema judicial complexo.

Torna-se necessário salientar que não se tem como objetivo emitir um juízo de valor sobre a história da esgrima – afinal, não se pode afirmar que as transformações foram um melhoramento e/ou um aprimoramento ocorrido ao longo tempo. As metamorfoses simplesmente surgiram para atender às lógicas e às necessidades de cada tempo e espaço, e acabaram produzindo um determinado tipo de educação do corpo.

A noção de educação do corpo, segundo sinaliza Soares (2021)SOARES, Carmen Lucia. Education of the Body: notes for the historicity of a notion. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021., é marcada por pequenos traços, muitas vezes discretos e pouco visíveis, porém, bastante eloquentes. Uma educação corporal é composta de detalhes que se encontram, conforme mostra Vigarello (2018)VIGARELLO, Georges. Le Corps Redressé. Paris: Editions du Félin, 2018., nos interstícios de diversos tipos de escritos, como, por exemplo, os textos pedagógicos e médicos, bem como se evidenciam, segundo o próprio autor, nos diversos tratados de esgrima.

Cabe ainda destacar que os processos educativos, conforme evidenciam Revel (1986)REVEL, Jacques. Les Usages de la Civilité. In: ARIES, Philippe; DUBY, Georges. Histoire de la Vie Privée: de la renaissance aux lumieres. Paris: Seuil 1986. (Volume 3). P. 169-209., Fumat (2000)FUMAT, Yveline. La Civilité peut-elle s’Enseigner?. Revue Française de pédagogie, Lyon, n. 132, p. 101-113, 2000., Thomas (2003)THOMAS, Jérôme. Corps Violents, Corps Soumis: le policement des moeurs à la fin du Moyen- Âge. Paris: L’Harmattan, 2003., Vigarello (2018)VIGARELLO, Georges. Le Corps Redressé. Paris: Editions du Félin, 2018., Capraro e Moraes e Silva (2021)CAPRARO, André Mendes; MORAES E SILVA, Marcelo. A Dandy in the Tropics: sport and body education in the chronicles of Paulo Barreto (João do Rio). Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021. e Soares (2021)SOARES, Carmen Lucia. Education of the Body: notes for the historicity of a notion. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021., não se restringem exclusivamente ao espaço escolar, sendo realizados por diferentes indivíduos e instituições. Soares (2021)SOARES, Carmen Lucia. Education of the Body: notes for the historicity of a notion. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021. destaca que os termos cortesia e civilidade foram fundamentais para esse processo de educação do corpo. Tais noções são centrais, visto que também se manifestaram, de alguma maneira, nas pedagogias e técnicas presentes nos diversos tratados de esgrima produzidos no século XVI, segundo sinalizam Vaucelle (2004VAUCELLE, Serge. L’art de Jouer à la Cour: transformation des jeux d’exercice dans l’éducation de la noblesse française, au début de l’ère moderne (XIIIe-XVIIe siècles). 2004. 620 f. Tese (Doutorado em História e Civilização) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2004.; 2009)VAUCELLE, Serge. L’espée & L’esteuf. Escrime et Jeu de Paume dans la France moderne (xve–Xviie siècles). Sport History Review, Alberta, v. 40, n. 1, p. 57-68, 2009. e Vigarello (2018)VIGARELLO, Georges. Le Corps Redressé. Paris: Editions du Félin, 2018..

As mudanças sociais estão presentes em todos os aspectos da vida dos indivíduos, desde seus comportamentos e relações sociais, até suas práticas corporais (Elias, 1973ELIAS, Norbert. La Civilisation des Mœurs. Paris: Calmann-Lévy, 1973.; 1974; Chartier; Vigarello, 1982CHARTIER, Roger; VIGARELLO, Georges. Les Trajectoires du Sport. Le Débat, Paris, v. 19, p. 35-58, 1982.; Elias; Dunning, 1986ELIAS, Elias; DUNNING, Eric. Quest for Excitement: sport and leisure in the civilizing process. Oxford: Basil Blackwell, 1986.; Vigarello, 2018VIGARELLO, Georges. Le Corps Redressé. Paris: Editions du Félin, 2018.; Loudcher, 2020LOUDCHER, Jean-François. Procès de Civilisation et Transformations Sociales: une discussion de la théorie de Norbert Elias dans le domaine du sport. Loisir et Société, Trois-Rivières, v. 43, n. 3, p. 372-392, 2020.; Soares, 2021SOARES, Carmen Lucia. Education of the Body: notes for the historicity of a notion. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021.). Portanto, o surgimento e o desenvolvimento de determinadas práticas não estão imunes a essas mudanças e estão impregnados de inúmeros elementos de um processo de educação do corpo. Sendo assim, o presente artigo busca responder a seguinte problemática investigativa: quais são os elementos de educação do corpo presentes em tratados de esgrima escritos no século XVI?

As fontes priorizadas para a elaboração desse artigo foram as documentais, sobretudo as impressas, sendo divididas em dois livros publicados no século XIX e três tratados de esgrima escritos no século XVI.

Utilizou-se o livro do inglês Egerton Castle, intitulado Schools and Masters of Fence: from middle ages to the eighteen century, publicado em 1885, que explora a trajetória da pedagogização da esgrima através da criação das diferentes escolas europeias (francesa, italiana, espanhola e inglesa), analisando os tratados dos mestres mais famosos de cada país e época, delimitando sua obra do século XV ao ano de 1800. O autor acreditava – crença, essa, interpretada a partir da introdução do seu livro – que a necessidade sentida em descrever as mudanças no manejo das armas brancas devia ter algum valor histórico. Aqui, não se valoriza somente a historicidade do livro, mas também suas expressões – não se sabe se intencionais ou não –, que remetem às mudanças sociais no decorrer dessa história.

Outra obra utilizada foi o livro do alemão Gustav Hergsell, publicado em 1896 e denominado Die Fechtkunst im XV. und XVI. Jahrhunderte. O autor, assim como Castle, também realizou uma análise sobre os tratados de esgrima; contudo, sua temporalidade se restringe às obras publicadas nos séculos XV e XVI. Em seu livro, são encontradas as descrições de diversos tratados publicados nessa delimitação temporal, dos quais ele retira, em detalhes, técnicas consideradas por ele como importantes para a constituição das bases da esgrima de seu tempo.

Cabe destacar que os dois autores, ao analisarem os tratados, o fazem em um momento no qual a esgrima se encontrava em amplo processo de esportivização, ao ponto de ser, segundo indicam Ottogalli-Mazzacavallo e Terret (2010)OTTOGALLI-MAZZACAVALLO, Cécile; TERRET, Thierry. La Création de la Fédération Internationale d’Escrime (1896-1913): quand la performance sportive se joue hors de la piste. Cahiers de l’INSEP, Paris, v. 46, n. 1, p. 29-37, 2010., uma das modalidades incluídas no programa dos primeiros Jogos Olímpicos modernos em 1896. Cabe ainda destacar que nesse período, assim como coloca García (2018)GARCÍA, Raúl Sánchez. Revisiting Duelling and Fencing in the Sociology of Norbert Elias. In: HAUT, Jan; DOLAN, Paddy; REICHER, Dieter; GARCÍA, Raúl Sánchez (Org.). Excitement Processes: Norbert Elias’s unpublished works on sports, leisure, body, culture. Wiesbaden: Springer VS, 2018. P. 255-273., os duelos haviam sido proibidos e as técnicas de esgrima estavam sendo desenvolvidas para poderem ser utilizadas em combates amistosos e organizados.

Os tratados de esgrima em seus formatos originais também foram consultados de maneira primária. Apesar de terem sido comentadas pelos dois autores acima, tais obras foram utilizadas para compreender os elementos de educação do corpo presentes no decorrer do processo de constituição da esgrima. Como são numerosos os tratados, selecionaram-se três dentre aqueles comentados por Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. e Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896., considerados pelos próprios autores como importantes para a sua época, e que revelam características da esgrima não somente em questões técnicas, mas também de comportamentos que os esgrimistas deveriam apresentar, possibilitando, assim, a aproximação da história da esgrima com os diversos elementos de educação do corpo presentes nos tratados.

Sendo assim, o primeiro tratado selecionado foi o de Achille Marozzo, intitulado Opera Nova, escrito em 1536. O mestre italiano é considerado por Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896. como o primeiro a publicar um trabalho pedagógico de esgrima. Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. escreveu que seria sábio ter Marozzo como o maior professor da velha escola do manejo de armas, afirmando que os movimentos descritos foram os mais típicos do século XVI.

O segundo tratado explorado foi o de Camillo Agrippa, publicado em 1553, com o nome Trattato di Scientia d’Arme, com um Dialogo di filosofia, di Camillo Agrippa, Milanese. Como se evidencia no próprio título, o autor, por ser um arquiteto, matemático e engenheiro, buscou, em sua obra, embasar os movimentos e posições através de cálculos matemáticos e figuras geométricas, objetivando, segundo sublinham Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. e Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896., elevar a esgrima a uma espécie de ciência.

Por fim, o último tratado utilizado foi o do mestre francês Henri de Sainct Didier (1573)DIDIER, Saint. Traicte Contenant les Secrets du Premier Livre sur l’Espee Seule. Paris, 1573.: Traicté contenant les secrets du premier livre sur l’espée seule, mère de tout les armes. Vaucelle (2004VAUCELLE, Serge. L’art de Jouer à la Cour: transformation des jeux d’exercice dans l’éducation de la noblesse française, au début de l’ère moderne (XIIIe-XVIIe siècles). 2004. 620 f. Tese (Doutorado em História e Civilização) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2004.; 2009)VAUCELLE, Serge. L’espée & L’esteuf. Escrime et Jeu de Paume dans la France moderne (xve–Xviie siècles). Sport History Review, Alberta, v. 40, n. 1, p. 57-68, 2009. salienta que esse livro é considerado pelos franceses como o primeiro tratado de esgrima essencialmente francês, visto que, até o momento da sua publicação, em 1573, eram poucas as evidências da presença de mestres e publicações francesas. A influência italiana é bastante evidente na obra, mas a publicação alcança o sucesso em Paris, tornando-se um dos marcos para o início daquilo que se convencionou denominar de escola francesa de esgrima.

O Declínio da Idade Média: a emergência de novas formas de comportamento

Muitas vezes foi dito que uma história da espada seria uma história da humanidade, uma vez que a última sempre foi uma cadeia de lutas entre nações e homens decididas pela violência. Da mesma forma, verifica-se que as mudanças nos modos da esgrima nos diferentes períodos correspondem, de maneira geral, às mudanças nos costumes

(Castle, 1885CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885., p. 4, tradução nossa).

O trecho de Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. acaba por conectar de certa forma a história da esgrima ao processo de civilização dos costumes apresentado por Elias (1973ELIAS, Norbert. La Civilisation des Mœurs. Paris: Calmann-Lévy, 1973.; 1974ELIAS, Norbert. La Société de Cour. Paris: Calmann-Lévy, 1974.; 1975)ELIAS, Norbert. La Dynamique de l’Occident. Paris: Calmann-Lévy, 1975.. Essa aproximação já pode ser realizada quando Castle comenta sobre a violência utilizada em combates entre nações e indivíduos, e se evidencia de forma ainda mais contundente quando o autor aborda as metamorfoses no modo de lutar com espadas e que, essas, de certa maneira, acompanharam as mudanças dos costumes.

Ao utilizar as reflexões de Elias e ao corroborar com Castle na colocação de que, para escrever sobre a esgrima, não é necessário ir muito além do século XV, encontrou-se um ponto de partida histórico em comum: o final da Idade Média. Outra similaridade é que os dois autores também se limitam à Europa, principalmente à França e Alemanha (Elias) e, além desses dois países, à Inglaterra, Itália e Espanha (Castle). Elias (1973)ELIAS, Norbert. La Civilisation des Mœurs. Paris: Calmann-Lévy, 1973., por colocar que o termo civilidade emerge na França e que o processo de civilização dos costumes é nítido nesse país, também compara a história e as relações sociológicas da França com as da Alemanha. Já Castle o faz por evidenciar que as causas para o desenvolvimento da esgrima moderna se deram principalmente nos cinco países europeus citados acima.

Segundo aponta Elias (1973)ELIAS, Norbert. La Civilisation des Mœurs. Paris: Calmann-Lévy, 1973., durante a Idade Média, as terras eram governadas pela nobreza de cavaleiros feudais. Os conflitos eram constantes, tanto entre senhores de terras como entre eles e os vassalos. A espada era uma das principais armas utilizadas nesses confrontos. Os cavaleiros, que vestiam armaduras, combatiam com suas armas grandes e pesadas, golpeando-as com força bruta no intuito de preservar suas vidas.

Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885., indica que, nesse período, a espada era predominantemente uma arma de ataque: a defesa ficava por conta da armadura. Contudo, o autor também indica que, nesse momento, começou a existir uma preocupação com os aspectos técnicos no manejo da espada, visto que os burgueses, que não possuíam armadura, precisaram desenvolver outras formas de escaparem dos golpes dos adversários. Para esses indivíduos, a espada também era uma arma de defesa; além dela, contavam normalmente com um buckler (pequeno escudo) e com a sua agilidade para desviar dos ataques adversários. Essa diferença de elementos técnicos é indicada por Castle (1885, p. 13-14, tradução nossa)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. na seguinte passagem:

A questão de um combate pessoal entre dois cavaleiros era determinada, em grande medida, pela resistência de sua armadura e, em última instância, pelo seu poder de endurance. Mas a luta entre dois camponeses, armados apenas com ‘clubs1 1 Arma similar a um porrete ou cassetete. , ou espada e escudo, admitia necessariamente uma grande variedade de habilidade.

O autor sugere que a forma mais complexa de combate com as espadas era praticada pela burguesia da Idade Média, época em que o artefato bélico era utilizado como arma de ataque e defesa, surgindo, assim, a necessidade de se ter movimentos mais ágeis. Essa maior mobilidade, na visão de Castle, seria uma possível aproximação com o início da esgrima moderna. Contudo, Castle (1885, p. 5, tradução nossa)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. aponta que a “A luta rude e sem regras da Idade Média representa fielmente o reinado da força bruta na vida social bem como política […]”, ou seja, cabe destacar que a valência física e a força geralmente se sobrepunham à habilidade e à destreza.

Porém, novos modos de viver e de se comportar estavam por emergir na sociedade europeia (Elias, 1973ELIAS, Norbert. La Civilisation des Mœurs. Paris: Calmann-Lévy, 1973.; Revel, 1986REVEL, Jacques. Les Usages de la Civilité. In: ARIES, Philippe; DUBY, Georges. Histoire de la Vie Privée: de la renaissance aux lumieres. Paris: Seuil 1986. (Volume 3). P. 169-209.; Thomas, 2003THOMAS, Jérôme. Corps Violents, Corps Soumis: le policement des moeurs à la fin du Moyen- Âge. Paris: L’Harmattan, 2003.). A busca por mais poder e riquezas e a disputa por territórios fez com que os senhores feudais entrassem em guerra uns com os outros. Segundo indicam Elias (1975)ELIAS, Norbert. La Dynamique de l’Occident. Paris: Calmann-Lévy, 1975., Duby (1984)DUBY, Georges. L’Europe au Moyen Âge: Art Roman, art gothique. Paris: Flammarion, 1984. e Le Goff (1991)LE GOFF, Jacques. Pour un autre Moyen Âge: Temps, travail et culture en Occident. Paris: Gallimard, 1991., ao longo do tempo, as terras se dividiram sob o poder de poucos senhores, e as disputas continuariam até que um deles conseguisse manter seu governo sobre uma grande área e fosse nomeado rei, constituindo uma espécie de comando central. Essa maior centralização incluía não somente a autoridade militar, mas também o poderio tributário. Outro elemento significativo desse período, conforme apontam os autores, foi o fato de que os indivíduos que perderam suas terras começaram a procurar por outros espaços, fazendo com que as primeiras cidades modernas florescessem.

Sendo assim, ao fim da Idade Média, como apontam Revel (1986)REVEL, Jacques. Les Usages de la Civilité. In: ARIES, Philippe; DUBY, Georges. Histoire de la Vie Privée: de la renaissance aux lumieres. Paris: Seuil 1986. (Volume 3). P. 169-209., Courtine e Haroche (1988)COURTINE, Jean-Jacques; HAROCHE, Claudine. Histoire du Visage, XVIe-début XIXe siècle. Paris: Rivages, 1988., Le Goff (1991)LE GOFF, Jacques. Pour un autre Moyen Âge: Temps, travail et culture en Occident. Paris: Gallimard, 1991., Le Goff e Truong (2003)LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Une Histoire du Corps au Moyen Âge. Paris: Liana Levi, 2003., Thomas (2003)THOMAS, Jérôme. Corps Violents, Corps Soumis: le policement des moeurs à la fin du Moyen- Âge. Paris: L’Harmattan, 2003. e Vigarello (2005VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302.; 2018)VIGARELLO, Georges. Le Corps Redressé. Paris: Editions du Félin, 2018., novos costumes tomaram forma. Diferentes sentimentos e sensibilidades emergiram de forma mais intensa, enquanto as emoções foram cada vez mais controladas. Elias (1973)ELIAS, Norbert. La Civilisation des Mœurs. Paris: Calmann-Lévy, 1973., ao explorar tal período, indica que a sociedade estava em transição e que tal questão repercutiu nas boas maneiras, evidenciando que algo diferente estava a caminho, principalmente naquilo que se referia a um controle maior das emoções.

Para Elias (1973)ELIAS, Norbert. La Civilisation des Mœurs. Paris: Calmann-Lévy, 1973., esse momento histórico pertence a uma fase em que a velha nobreza de cavaleiros feudais estava em declínio, enquanto se encontrava em formação a nova aristocracia das cortes absolutistas. Os guerreiros estavam se transformando em cortesãos, utilizando as palavras do sociólogo alemão. Essa nova corte que se formava procurava adotar costumes mais refinados. Dessa forma, hábitos considerados grosseiros foram amenizados, e uma vida de aparências graciosas se tornou, segundo lembram Revel (1986)REVEL, Jacques. Les Usages de la Civilité. In: ARIES, Philippe; DUBY, Georges. Histoire de la Vie Privée: de la renaissance aux lumieres. Paris: Seuil 1986. (Volume 3). P. 169-209., Courtine e Haroche (1988)COURTINE, Jean-Jacques; HAROCHE, Claudine. Histoire du Visage, XVIe-début XIXe siècle. Paris: Rivages, 1988., Thomas (2003)THOMAS, Jérôme. Corps Violents, Corps Soumis: le policement des moeurs à la fin du Moyen- Âge. Paris: L’Harmattan, 2003., Vigarello (2014VIGARELLO, Georges. Le Sentiment de Soi: histoire de la perception du corps. Paris: Le Seuil, 2014.; 2018)VIGARELLO, Georges. Le Corps Redressé. Paris: Editions du Félin, 2018. e Soares (2021)SOARES, Carmen Lucia. Education of the Body: notes for the historicity of a notion. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021., cada vez mais valorizada.

Foram primeiramente os pequenos círculos da corte francesa que adotaram esses novos costumes (Revel, 1986REVEL, Jacques. Les Usages de la Civilité. In: ARIES, Philippe; DUBY, Georges. Histoire de la Vie Privée: de la renaissance aux lumieres. Paris: Seuil 1986. (Volume 3). P. 169-209.; Courtine; Haroche, 1988COURTINE, Jean-Jacques; HAROCHE, Claudine. Histoire du Visage, XVIe-début XIXe siècle. Paris: Rivages, 1988.; Thomas, 2003THOMAS, Jérôme. Corps Violents, Corps Soumis: le policement des moeurs à la fin du Moyen- Âge. Paris: L’Harmattan, 2003.). Foi somente mais tarde que tal processo se tornou mais abrangente, conforme sinalizou o próprio Elias (1973)ELIAS, Norbert. La Civilisation des Mœurs. Paris: Calmann-Lévy, 1973., pois a sociedade como um todo passou a permitir que as emoções assim modificadas se difundissem progressivamente. A estrutura hierárquica foi unificada, possibilitando que modas pudessem ser ditadas por um pequeno grupo aristocrático e disseminadas como modelo para os outros segmentos sociais.

Revel (1986)REVEL, Jacques. Les Usages de la Civilité. In: ARIES, Philippe; DUBY, Georges. Histoire de la Vie Privée: de la renaissance aux lumieres. Paris: Seuil 1986. (Volume 3). P. 169-209., Le Goff (1991)LE GOFF, Jacques. Pour un autre Moyen Âge: Temps, travail et culture en Occident. Paris: Gallimard, 1991., Courtine e Haroche (1988)COURTINE, Jean-Jacques; HAROCHE, Claudine. Histoire du Visage, XVIe-début XIXe siècle. Paris: Rivages, 1988., Thomas (2003)THOMAS, Jérôme. Corps Violents, Corps Soumis: le policement des moeurs à la fin du Moyen- Âge. Paris: L’Harmattan, 2003., Le Goff e Truong (2004)LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Une Histoire du Corps au Moyen Âge. Paris: Liana Levi, 2003., Vigarello (2014VIGARELLO, Georges. Le Sentiment de Soi: histoire de la perception du corps. Paris: Le Seuil, 2014.; 2018)VIGARELLO, Georges. Le Corps Redressé. Paris: Editions du Félin, 2018. e Soares (2021)SOARES, Carmen Lucia. Education of the Body: notes for the historicity of a notion. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021. caracterizam essa transição como lenta – afinal, os novos tipos de comportamento não foram adotados de forma imediata. Nesse momento, os indivíduos começaram, pouco a pouco, a perceber mais uns aos outros, e, como a corte era formada por uma hierarquia social mais rígida, segmentos sociais inferiores começaram a imitar os comportamentos daqueles que estavam no topo dessa hierarquia.

Cabe destacar, assim como colocam Revel (1986)REVEL, Jacques. Les Usages de la Civilité. In: ARIES, Philippe; DUBY, Georges. Histoire de la Vie Privée: de la renaissance aux lumieres. Paris: Seuil 1986. (Volume 3). P. 169-209. e Fumat (2000)FUMAT, Yveline. La Civilité peut-elle s’Enseigner?. Revue Française de pédagogie, Lyon, n. 132, p. 101-113, 2000., que em 1530 foi publicado o importante tratado de civilidade escrito por Erasmo de Roterdã, intitulado De Pueris. Revel (1986)REVEL, Jacques. Les Usages de la Civilité. In: ARIES, Philippe; DUBY, Georges. Histoire de la Vie Privée: de la renaissance aux lumieres. Paris: Seuil 1986. (Volume 3). P. 169-209. salienta que, em uma época em que a unidade católica estava se rompendo e o absolutismo não havia ainda se concretizado, as hierarquias estabelecidas na Idade Média sofriam questionamentos por parte da sociedade de corte e de cavalheiros; dessa forma, uma linguagem comum se fazia necessária. Soares (2021)SOARES, Carmen Lucia. Education of the Body: notes for the historicity of a notion. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021. salienta que o texto pedagógico formulado por Erasmo vai ao encontro dessas expectativas, tornando-se um importante marco da educação do corpo desse período.

Elias (1973)ELIAS, Norbert. La Civilisation des Mœurs. Paris: Calmann-Lévy, 1973. se apropriou da obra erasmiana como fonte de sua pesquisa sobre os comportamentos, que acabou por exemplificar toda sua teoria da civilização dos costumes, mostrando que esse guia de civilidade e cortesia escrito por Erasmo de Roterdã, apesar de não ser repleto de ideias novas e originais, marcou significativamente a transformação dos comportamentos.

Torna-se necessário, ainda, salientar que outros tratados de civilidade, como Il libro del cortegiano (1528), de Baltasar Castiglione, e Galateo (1558), de Giovanni della Casa, também foram formulados para ditar como a sociedade, principalmente a nobreza, deveria se comportar naquele período (Shrank, 2019SHRANK, Cathy. Masters of Civility: Castiglione’s Courtier, della Casa’s Galateo, and Guazzo’s Civil Conversation in early modern England. In: MARRAPODI, Michele (Org.). The Routledge Research Companion to Anglo-Italian Renaissance Literature and Culture. Abingdon: Routledge, 2019. P. 144-159.; Soares, 2021SOARES, Carmen Lucia. Education of the Body: notes for the historicity of a notion. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021.). A sensibilidade passava cada vez mais a ser levada em consideração quando comparada à brutalidade e rusticidade com a qual os indivíduos viviam em outros momentos históricos. Elias (1973)ELIAS, Norbert. La Civilisation des Mœurs. Paris: Calmann-Lévy, 1973. argumenta que estava sendo elaborado um senso do que fazer ou não para não chocar ou ofender os outros indivíduos, criando um sistema muito mais restrito e interdependente no que se refere aos costumes.

A sensibilidade, como bem disse Elias (1973)ELIAS, Norbert. La Civilisation des Mœurs. Paris: Calmann-Lévy, 1973., pode ser notada nas mais diversas esferas da sociedade renascentista. Cabe destacar que essa época presenciou, assim como sugerem Vigarello (2005)VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302. e Linklater e Mennel (2010)LINKLATER, Andrew; MENNELL, Stephen. Norbert Elias, the Civilizing Process: sociogenetic and psychogenetic investigations – An overview and assessment. History and Theory, Middletown, v. 49, n. 3, p. 384-411, 2010., o aprimoramento e desenvolvimento das armas de fogo. Segundo Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. e Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896., foi nesse momento que se iniciou a história da esgrima moderna e de todos os processos pedagógicos nela envolvidas. Contudo, o que a sensibilidade e contenção de emoções influenciam nessa história? Afinal, as lógicas dos manuais de cortesia e civilidade também se materializaram na educação do corpo presente nos primeiros tratados de esgrima.

O Controle das Emoções e os Processos de Educação do Corpo: influências na consolidação da esgrima moderna

Vigarello (2005)VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302., entre as diversas atividades das quais fez uso para exemplificar as mudanças na visão que se tinha sobre o corpo e suas manifestações, afirma que a arte da espada foi uma das que revelava da melhor maneira a evolução das qualidades físicas esperadas, como também dos movimentos corporais do contexto europeu a partir do fim da Idade Média. Ainda sobre a sistematização dessa arte no decorrer dos séculos pós-renascimento, o historiador francês argumenta que jamais uma vontade de geometrizar se impôs de uma maneira tão significativa, modificando profundamente as aprendizagens e as diversas pedagogias corporais.

Destaca-se que o próprio Vigarello (2005)VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302., para analisar a esgrima, utilizou da obra de Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. como fonte de pesquisa. Nesse sentido, não é de se estranhar que o historiador francês indique, assim como o autor inglês, que, apesar de a origem da esgrima como esporte ter sido influenciada pelos combates com a espada, ela surgiu, também, como fruto de um paradoxo bastante particular: o aprimoramento das armas de fogo.Vigarello (2005)VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302. evidencia que a armadura, que antes defendia o indivíduo dos pesados golpes de espada, passou a não ter mais serventia, pois não conseguia conter os projéteis atirados pelas armas de fogo. O autor francês lembra que, no começo, esses armamentos de fogo não substituíram completamente as espadas, que continuaram sendo usadas com frequência; entretanto, elas precisaram ser adaptadas a uma nova forma de luta e a uma nova realidade social.

Segundo aponta Vigarello (2005)VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302., as espadas passaram a ser utilizadas em combates individuais aproximados e, como as armaduras tinham sido deixadas de lado, determinadas valências físicas como velocidade e agilidade passariam a ser um pouco mais valorizadas. Para atender tal demanda, as espadas se tornaram mais leves e finas, visto que objetivavam ser de mais fácil manejo, conforme indica Castle (1885, p. 5, tradução nossa)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. na seguinte passagem:

Mais tarde, depois do Renascimento, quando a vida foi levada de forma mais leve, a armadura foi descartada na vida privada. A descoberta de uma maior variedade de interesses e prazeres induziu os homens a levarem uma existência mais ativa, e eles começaram a caminhar onde antes tinham cavalgado, reduziram dimensões das suas espadas, bem como os arreios agora eram só usados nos campos, passaram a depender de sua agilidade e astúcia para compensar a escassa proteção do manto e do buckler.

Enquanto Vigarello (2005)VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302. corroborou em sua análise com o olhar mais técnico de Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885., ao relacionar a utilização de armas de fogo com o início da esgrima moderna, Elias (1974)ELIAS, Norbert. La Société de Cour. Paris: Calmann-Lévy, 1974. trouxe uma perspectiva que avança significativamente nesse ponto. Para o sociólogo alemão, o desenvolvimento das armas de fogo e o relativo abandono das armaduras deslocou, de certa forma, o equilíbrio social que antes favorecia a nobreza guerreira. Os exércitos, anteriormente recrutados nas camadas superiores, passaram a ser conscritos em sua maior parte nos grupos menos abastados. Segundo o autor, as armas de tiro como as bestas eram normalmente instrumentos de camponeses e de tropas que não pertenciam à nobreza; portanto, eram os segmentos sociais mais baixos que usavam armas de fogo com mais eficiência.

Contudo, Elias (1974)ELIAS, Norbert. La Société de Cour. Paris: Calmann-Lévy, 1974. sublinha que uma nova aristocracia se formava na corte, pois, como os príncipes não necessitavam mais dos fidalgos para as guerras, os últimos não podiam mais se utilizar dessa dependência para serem favorecidos, o que os levou a se aproximarem da realeza, vivendo cada vez mais nos entornos e/ou até mesmo nos castelos do soberano. Sendo assim, como se aumentava a proximidade entre os indivíduos, os conflitos pessoais, segundo sugere García (2018)GARCÍA, Raúl Sánchez. Revisiting Duelling and Fencing in the Sociology of Norbert Elias. In: HAUT, Jan; DOLAN, Paddy; REICHER, Dieter; GARCÍA, Raúl Sánchez (Org.). Excitement Processes: Norbert Elias’s unpublished works on sports, leisure, body, culture. Wiesbaden: Springer VS, 2018. P. 255-273., se acentuaram, e as querelas passaram a ser resolvidas muitas vezes através de duelos.

Elias (1974)ELIAS, Norbert. La Société de Cour. Paris: Calmann-Lévy, 1974. salienta ainda que nobres que haviam crescido nas propriedades de seus pais precisavam se acostumar à vida de corte, mais refinada, diversificada e rica em relações, exigindo um autocontrole maior das emoções. Sobre essa questão, Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. indica que, onde existe um autocontrole maior, subsiste uma probabilidade superior de tensões e conflitos. Por isso, o autor inglês sublinha que muitos duelos passam a acontecer no universo das diversas cortes europeias.

Outro ponto levantado por Elias (1974)ELIAS, Norbert. La Société de Cour. Paris: Calmann-Lévy, 1974. é de que essa nobreza de corte buscava uma forma de se distinguir, e o uso da espada e a prática de duelos pode ter sido uma dessas formas distintivas. Eram principalmente os membros da aristocracia que portavam espadas e tinham acesso às aulas de esgrima. Nesse sentido, autores como Vaucelle (2004VAUCELLE, Serge. L’art de Jouer à la Cour: transformation des jeux d’exercice dans l’éducation de la noblesse française, au début de l’ère moderne (XIIIe-XVIIe siècles). 2004. 620 f. Tese (Doutorado em História e Civilização) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2004.; 2009)VAUCELLE, Serge. L’espée & L’esteuf. Escrime et Jeu de Paume dans la France moderne (xve–Xviie siècles). Sport History Review, Alberta, v. 40, n. 1, p. 57-68, 2009., Vigarello (2005)VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302., Drévillon (2011)DRÉVILLON, Hervé. Du Guerrier au Militaire. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire de La Virilité: de l’Antiquité aux Lumières, l’invention de la virilité. Paris: Seuil, 2011. (Volume I). P. 293-325. e García (2018)GARCÍA, Raúl Sánchez. Revisiting Duelling and Fencing in the Sociology of Norbert Elias. In: HAUT, Jan; DOLAN, Paddy; REICHER, Dieter; GARCÍA, Raúl Sánchez (Org.). Excitement Processes: Norbert Elias’s unpublished works on sports, leisure, body, culture. Wiesbaden: Springer VS, 2018. P. 255-273. corroboram com as análises oitocentistas de Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. ao se referirem aos duelos como algo muito comum nos círculos da nobreza europeia.

Para aprimorar sua técnica no manejo da espada, os membros da corte passaram a contratar plebeus como mestres de esgrima, pois esses já tinham experiência no ensino de manuseio das armas e haviam criado as suas escolas; já que, por não possuírem armaduras, tinham uma relação mais técnica com a espada. Essa questão pode ser confirmada no seguinte trecho de Castle (1885, p. 15, tradução nossa)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885.: “Quando os hábitos dos nobres cavaleiros desapareceram e foram substituídos por modos cavalheirescos, os cavalheiros tomaram lições de armas de alguns mestres de lutas plebeus”.

Utilizar essa citação de Castle, a princípio, parece redundante após a afirmação anterior; contudo, além de confirmar essa transição, o autor inglês chama a atenção para a mudança nos comportamentos, quando escreve sobre o período anterior à renascença ou à formação da sociedade de corte e também sobre o período posterior a essa constituição. Em seu texto, Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. utiliza, para se referir aos nobres cavaleiros, o termo knightly, remetendo aos nobres que viviam livres em suas terras e tinham seus dias marcados pelas lutas e guerras sobre cavalos, vestidos de armaduras e segurando suas armas. A palavra, apesar de continuar se referindo à nobreza, é substituída pelos termos cavalier ou gentleman que, após essa transição, foram vocábulos que marcaram um tempo em que a nobreza se caracterizava por gestualidades mais refinadas, corteses e civilizadas imbuídas, conforme sugerem Vigarello (2005VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302.; 2018)VIGARELLO, Georges. Le Corps Redressé. Paris: Editions du Félin, 2018. e Soares (2021)SOARES, Carmen Lucia. Education of the Body: notes for the historicity of a notion. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021., de uma refinada educação corporal.

Vigarello (2005)VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302., ao falar sobre o balé equestre, apresenta a mesma substituição dos termos levantados por Castle, citando-os em francês, mostrando a transformação do chevalier para o cavalier. Para o historiador francês, o cavalo juntamente com o seu chevalier representava o poder bélico e eram, de certa forma, a encarnação do vigor e da força. Por essa razão, esses indivíduos deveriam ser submetidos a uma rigorosa educação corporal, apresentando, a partir de então, movimentos mais elegantes e regrados. Na obra de Elias (1974)ELIAS, Norbert. La Société de Cour. Paris: Calmann-Lévy, 1974., também existe essa mudança na retórica, pois o sociólogo alemão, ao falar do contexto francês, indica que a sociedade de corte constituída em torno da figura do rei passou a ser denominada de seigneurs e grands seigneurs, bem como a própria efígie real deixou de ser chamada le roi chevalier para se tornar um soberano aristocrático.

Percebe-se, na transição do século XVI para o XVII, que a espada foi perdendo uma parte de seu caráter bélico. Contudo, assim como sinalizam Vaucelle (2004VAUCELLE, Serge. L’art de Jouer à la Cour: transformation des jeux d’exercice dans l’éducation de la noblesse française, au début de l’ère moderne (XIIIe-XVIIe siècles). 2004. 620 f. Tese (Doutorado em História e Civilização) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2004.; 2009)VAUCELLE, Serge. L’espée & L’esteuf. Escrime et Jeu de Paume dans la France moderne (xve–Xviie siècles). Sport History Review, Alberta, v. 40, n. 1, p. 57-68, 2009. e García (2018)GARCÍA, Raúl Sánchez. Revisiting Duelling and Fencing in the Sociology of Norbert Elias. In: HAUT, Jan; DOLAN, Paddy; REICHER, Dieter; GARCÍA, Raúl Sánchez (Org.). Excitement Processes: Norbert Elias’s unpublished works on sports, leisure, body, culture. Wiesbaden: Springer VS, 2018. P. 255-273., a espada continuou sendo altamente usada em combates privados, na guarda pessoal dos reis, em jogos e torneios e nos duelos que se tornaram cada vez mais comuns na sociedade europeia do período; afinal, como coloca Drévillon (2011)DRÉVILLON, Hervé. Du Guerrier au Militaire. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire de La Virilité: de l’Antiquité aux Lumières, l’invention de la virilité. Paris: Seuil, 2011. (Volume I). P. 293-325., os cavaleiros do século XVII não se transformaram automaticamente em guerreiros estoicos: eles ainda eram homens com paixões, feitos de carne e osso, mas que ao mesmo tempo deveriam submeter-se aos valores de cortesia e civilidade. Os jogos de espadas fascinavam os membros da nobreza, e, segundo indica Vigarello (2005)VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302., essa atração vinha da imagem de força que emanava de tal atividade. De certa forma, os aristocratas canalizavam suas emoções, controlavam a vontade de violência, evidenciando, nesses jogos de espada, todo o seu poderio. Porém, nesses eventos precisavam seguir algumas regras de civilidade, e a violência precisava ser controlada e regrada.

Vigarello (2005)VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302. salienta que, no século XVI, os jogos começaram a não ser somente uma disputa de força e violência, mas também um encontro no qual a habilidade, destreza e elegância no manejo da espada necessitariam ser demonstradas através do domínio de determinadas técnicas. Segundo o historiador francês, tais habilidades deveriam ser incorporadas pelos indivíduos através de uma pedagogia corporal bastante específica.

Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. e Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896. salientam que, para atender à necessidade dos nobres de lutarem em jogos e duelos, diversos mestres se especializaram no ensino do manejo das armas e da arte da esgrima. Sendo assim, abriram escolas de esgrima e escreveram alguns tratados descrevendo guardas, movimentos e estratégias de combates, além das regras que deveriam reger os duelos. Segundo indicam Vaucelle (2004VAUCELLE, Serge. L’art de Jouer à la Cour: transformation des jeux d’exercice dans l’éducation de la noblesse française, au début de l’ère moderne (XIIIe-XVIIe siècles). 2004. 620 f. Tese (Doutorado em História e Civilização) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2004.; 2009)VAUCELLE, Serge. L’espée & L’esteuf. Escrime et Jeu de Paume dans la France moderne (xve–Xviie siècles). Sport History Review, Alberta, v. 40, n. 1, p. 57-68, 2009. e Drévillon (2011)DRÉVILLON, Hervé. Du Guerrier au Militaire. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire de La Virilité: de l’Antiquité aux Lumières, l’invention de la virilité. Paris: Seuil, 2011. (Volume I). P. 293-325., a esgrima se transformou em uma arte governada cada vez mais por princípios racionais. Para evidenciar esses preceitos, utilizam-se os elementos presentes em três tratados de esgrima publicados no século XVI.

Por um Aprimoramento da Técnica: a criação de um sentimento de si

Antes do século XVI já tinham sido escritos alguns tratados de esgrima, porém, segundo indicam Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. e Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896., não se encontram muitos detalhes sobre eles. Os autores lembram que, na história dessa modalidade esportiva, existe uma contradição relativa às explicações sobre em quais locais e quem foram os autores que escreveram os seus primeiros tratados. Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896. afirma que enquanto os espanhóis, por serem os grandes fabricadores de espadas e por terem iniciado a luta de rapiera, tomam o início da esgrima moderna para si, os italianos acreditam que o primeiro manual do qual se tem conhecimento, apesar de elaborado por espanhóis (La Torre e Majorca), foi escrito e formulado em território italiano e escrito nesse idioma, comprovando, assim, a hegemonia da Itália no combate de espadas.

Outro elemento que sugere a primazia dos italianos é que a maioria dos tratados escritos no século XVI são oriundos da península itálica, revelando uma tradição de mestres que, segundo Hergsell (1896, p. 18, tradução nossa)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896. já deveria existir desde antes do século XVI: “Certamente não nos levaria à admiração se for relatado que antes do ano 1500 já existiam escolas de esgrima na Itália […]”. Como não se tem acesso a esses tratados, os quais nem se sabe se foram realmente publicados, não será discutida aqui se a origem da esgrima moderna foi espanhola ou italiana. No entanto, foram extraídos dos textos vestígios das características e comportamentos que evidenciam a transformação dos costumes e os processos de educação do corpo.

Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896. indica que, durante o século XVI, ainda se lutava com uma espada em uma das mãos, enquanto na outra o indivíduo portava um punhal e/ou algum tipo de escudo, que poderia ser grande, cobrindo boa parte do corpo, ou de um tamanho inferior. Cabe destacar que esses instrumentos menores acabavam sendo utilizados tanto para a defesa quanto para o ataque. O autor lembra que o ato técnico de se defender não era muito apreciado naquele período, pois era considerado uma ação covarde. O elemento mais exaltado era replicar um ataque com uma outra ação ofensiva. De acordo com Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896., o indicado como correto era desarmar o adversário para, então, cair violentamente sobre ele para matá-lo.

Contudo, os novos costumes, conforme salientam Elias (1973)ELIAS, Norbert. La Civilisation des Mœurs. Paris: Calmann-Lévy, 1973., Vigarello (2014)VIGARELLO, Georges. Le Sentiment de Soi: histoire de la perception du corps. Paris: Le Seuil, 2014. e Loudcher (2020)LOUDCHER, Jean-François. Procès de Civilisation et Transformations Sociales: une discussion de la théorie de Norbert Elias dans le domaine du sport. Loisir et Société, Trois-Rivières, v. 43, n. 3, p. 372-392, 2020., levaram os indivíduos a ficarem mais sensíveis à violência, e tais mudanças sociais também começaram a se evidenciar no confronto com espadas. A seguinte citação de Hergsell (1896, p. 45, tradução nossa)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896. exemplifica muito bem essa questão: “Essas lutas, nas quais o desarmamento e o uso de força bruta e astúcia parecem justificados, foram paradas pela delicadeza dos costumes no final do século XVI”. Nessa citação, pode-se visualizar que a brutalidade de um combate do início do século XVI foi retratada pelo olhar oitocentista como algo indesejável. Nesse sentido, já se pode vislumbrar uma mudança na percepção sobre a violência, quando Hergsell menciona que ela seria amenizada pela delicadeza dos costumes que haviam emergido na sociedade europeia do final do século XVI.

No que concerne ao século XVI, tanto Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. como Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896. apontam os tratados de esgrima escritos por Achille Marozzo, Camillo Agrippa e Henri Sainct Didier, entre os principais desse período. Achille Marozzo, considerado o pai da esgrima italiana, publicou um manual em 1536 intitulado Opera Nova. Antes dele, segundo salienta Castle (1885, p. 33, tradução nossa), por ser a Itália subdividida em diversos estados independentes, existiam várias associações de prática de manejo de armas, cada uma seguindo um mestre diferente, e, entre elas, constantes conflitos foram cultivados: “Nada poderia ser menos condutor à melhoria, e consequentemente, até os dias de Marozzo, quando a Itália assumiu a liderança nas questões de esgrima, a escola italiana não podia se gabar de qualquer grande superioridade”.

Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. e Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896. salientam que Marozzo era de Bologna e mantinha uma escola de esgrima em Veneza. Segundo os autores, ele foi um dos pioneiros na sistematização do ensino do manejo de espadas, materializada em seu tratado. A ordenação do seu conhecimento sobre a esgrima, bem como as ilustrações presentes na sua obra, indica a transição de uma luta de espadas antiga para uma com caráter mais moderno, na qual comportamentos mais corteses e civilizados foram ressaltados. Elementos que, inclusive, foram indicados por Castle (1885, p. 35, tradução nossa)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885.: “Talvez fosse mais sábio considerá-lo como o maior professor da velha escola, a esgrima rude e indisciplinada dependia tanto do golpe, da violência e da inspiração súbita quanto da habilidade cuidadosamente cultivada”.

No tratado de Marozzo se tinha ainda a predominância da arma de corte, sendo poucos os movimentos ensinados com a estocada. Os únicos golpes sugeridos com a ponta eram aqueles dados no rosto, de preferência nos olhos: “Esse ataque poderia vir dos tempos das lutas cavalheirescas, nas quais se objetivava acertar a viseira do inimigo […]” (Hergsell, 1896HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896., p. 84, tradução nossa). A espada utilizada era longa e de dois gumes, normalmente acompanhada por um buckler (pequeno escudo), um punhal ou uma capa.

A Figura 1 refere-se a uma imagem retirada da obra de Marozzo e mostra um esgrimista com objetos utilizados para complementar a luta com as espadas. Em uma das mãos, porta um buckler e, na cintura, se visualiza um punhal. Na fonte iconográfica, também se pode perceber a robustez da espada utilizada. Ela possuía uma lâmina larga e longa e tinha uma empunhadura pouco adaptada para movimentos complexos, mas que facilitava a execução de golpes cortados.

Figura 1
Espada e Buckler

Como dito anteriormente, a defesa era desvalorizada; portanto, as guardas ainda não tinham o conceito atual, que é a de ser a posição na qual o corpo do esgrimista está pronto tanto para o ataque quanto para a defesa. As guardas sugeridas por Marozzo eram todas posições que privilegiavam o ataque: “[…] elas são meramente uma coleção de atitudes em que cada uma é somente a preliminar de um ou dois ataques” (Castle, 1885CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885., p. 37, tradução nossa). Cabe destacar que, no tratado de Marozzo (1536)MAROZZO, Achille. Opera Nova. Bologna, 1536., foram descritas doze guardas utilizadas em sequências diferentes, dependendo de cada situação de combate. Tais posições funcionavam como fintas, técnica que, de acordo com Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896., se tornaria posteriormente um importante conceito técnico do universo esgrimista do século XIX.

Já a Figura 2 representa três guardas presentes no tratado. Os posicionamentos auxiliam a visualização do pouco valor que se dava à defesa, com posturas que expunham o corpo sem a preocupação com sua proteção. Também é possível observar uma leve inclinação do corpo à frente com o peso todo colocado sobre a perna direita, indicando claramente uma postura que valorizava ações ofensivas.

Figura 2
Guardas de Marozzo

A análise de Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896. sobre a obra de Marozzo evidencia que a esgrima do século XVI ainda não tinha se desenvolvido muito – atribuição de valor dada pelo autor oitocentista – e, por esse motivo, a parte menos explorada era a defensiva. Apesar da palavra parada aparecer por diversas vezes no manual do mestre italiano, a concepção que se tinha na época sobre o significado dela não era a mesma dada hodiernamente. A defesa ocorria basicamente de duas formas: a primeira se dava através da movimentação das pernas para trás ou para os lados, e a segunda era atacando a lâmina do adversário para, então, desferir um golpe.

O segundo tratado explorado foi o escrito por Camillo Agrippa, publicado em 1553. Em seu manual, o arquiteto e engenheiro italiano apresenta, com explicações geometrizadas, as quatro guardas que seriam bases para a execução de um ataque. Para Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885., a obra de Agrippa era original e avançada para a esgrima de sua época, pois as questões, por ele levantadas, só seriam aceitas posteriormente. Ele não era um mestre d’armas, e sim um praticante apaixonado que queria, através da ciência, explicar e desmistificar alguns ensinamentos do manejo das armas.

Um importante ponto levantado por Agrippa foi a falta de necessidade de que os mestres ensinassem muitas guardas. Segundo ele, tais posições limitavam o esgrimista em suas ações e, por isso, as resume em apenas quatro posicionamentos, nos quais todas as ações de ataque poderiam ser desferidas, economizando, assim, tempo e energia. Mesmo com uma visão avançada, na interpretação de Castle e Hergsell, as guardas de Agrippa ainda não tinham a definição que teriam no século XIX, quando passariam a ser as posições básicas a partir das quais o esgrimista estaria apto tanto para o ataque quanto para a defesa, sendo voltadas até então somente às ações ofensivas.

Na Figura 3, pode-se visualizar os motivos da admiração dos autores oitocentistas pelo tratado de Agrippa (1553)AGRIPPA, Camillo. Trattato di Scientia d’arme, com um Dialogo di Filosofia di Camillo Agrippa, milanese. Roma, 1553., visto que este revelava uma aproximação da esgrima com o universo científico.

Figura 3
Prima

Na imagem estão traçadas linhas que expressam a transformação da luta com espadas robustas e rudes em uma esgrima geometrizada mais próxima dos moldes sugeridos por Vigarello (2005)VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302.. Como essa característica não esteve presente na maioria dos tratados anteriores, e somente será reencontrada nos séculos subsequentes, pode-se afirmar que esse conhecimento ainda não se encontrava difundido e concretizado, porém, já evidenciava os rumos que a esgrima tomaria.

O último tratado analisado é o de Sainct Didier, publicado em 1573, que descreve diversos princípios que, em certo sentido, apresentam semelhanças com os manuais italianos. O mestre francês, assim como Agrippa, apresenta um número reduzido de guardas, mostrando apenas três posicionamentos. Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896. explica que o manual de Sainct Didier utiliza sequências de golpes e defesas entre mestre e discípulo, descrevendo o ataque e o que o aluno deveria efetuar como defesa e contra-ataque. Vários deslocamentos também foram explanados em formas geométricas pelas quais os pés deveriam passar durante sua realização, corroborando, de alguma maneira, com o que foi dito sobre Agrippa. A geometrização da esgrima, conforme levantada por Vigarello (2005)VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302., tomava cada vez mais forma.

Assim como colocado por Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. e Vaucelle (2004VAUCELLE, Serge. L’art de Jouer à la Cour: transformation des jeux d’exercice dans l’éducation de la noblesse française, au début de l’ère moderne (XIIIe-XVIIe siècles). 2004. 620 f. Tese (Doutorado em História e Civilização) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2004.; 2009)VAUCELLE, Serge. L’espée & L’esteuf. Escrime et Jeu de Paume dans la France moderne (xve–Xviie siècles). Sport History Review, Alberta, v. 40, n. 1, p. 57-68, 2009., um dos motivos para o sucesso desse tratado seria o alto número de duelos que ocorreram na França naquele período. Nesse momento, já se tinha perdido a ideia de que não era digno aprender com um mestre a arte de esgrimir. Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. menciona que, na segunda metade do século XVI, o número de duelos privados cresceu extraordinariamente, de tal forma que, em um período de 180 anos, a França perdeu em torno de quarenta mil nobres. Por um tempo, a nobreza buscou essas aulas com mestres italianos, mas, quando surgiu o tratado de Sainct Didier (1573)DIDIER, Saint. Traicte Contenant les Secrets du Premier Livre sur l’Espee Seule. Paris, 1573., percebeu-se que os mestres franceses estavam se apropriando do conhecimento nessa área e desenvolvendo uma escola própria.

O tratado de Sainct Didier (1573)DIDIER, Saint. Traicte Contenant les Secrets du Premier Livre sur l’Espee Seule. Paris, 1573. evidencia também diversas formas de desarmar o adversário, por essa ser uma das maneiras de vencer o duelo e tirar a dignidade, e, muitas vezes, a vida do adversário. A Figura 4 exibe o desarmamento e indica a espada (no caso, a estocade) utilizada comumente pelos franceses, que possuía aproximadamente um metro de comprimento e uma lâmina plana e reta de dois gumes. Essa espada representa a transição das armas pesadas e brutas utilizadas em períodos anteriores para artefatos mais leves e finos, como a rapiera e a small sword, que enfatizavam mais a ponta e a agilidade do que o corte e a força.

Figura 4
Desarmamento de Sainct Didier

Essas características – as guardas ofensivas, armas de corte ainda largas e robustas, a ênfase no ataque considerando a defesa como uma atitude covarde, técnicas de desarmamento e formas veladas descritas com o objetivo de matar – mostram o quanto a brutalidade ainda dominava os combates.

Porém, cabe destacar que, nos tratados analisados, estão descritas diversas regras que deveriam ser seguidas durante um duelo, demonstrando que o corpo deveria ser dominado e que a elegância, cortesia, civilidade e nobreza dos combatentes deveriam ser priorizadas, conforme evidencia o seguinte trecho de Hergsell (1896, p. 89, tradução nossa)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896. que analisa a obra de Marozzo: “A arte da esgrima, que pode ser considerada uma ciência séria, exige a maior calma, que deve ser incentivada em todos os alunos”. Hergsell, ao se referir ao autor de Opera Nova, demonstra que, mesmo em combate, a calma precisa ser mantida, exigindo um domínio sobre as emoções; ou seja, os indivíduos deveriam ter uma educação corporal que privilegiasse o autocontrole e o domínio de si.

Essa educação do corpo se materializa no tratado de Marozzo (1536)MAROZZO, Achille. Opera Nova. Bologna, 1536., principalmente quando o mestre italiano escreve sobre a forma de ensinar outros mestres a ministrarem suas aulas. Os praticantes não deveriam combater antes que conhecessem todas as bases da esgrima e, para sua proteção, sempre que fossem exercitá-la, o fizessem com esgrimistas experientes. Esses procedimentos evidenciam toda a dimensão pedagógica que começava a se instalar no universo da esgrima. Afinal, se “[…] um deles é inferior, não deve aferir aos golpes recebidos muita importância, mas considerar o andamento da lição como um aprendizado” (Hergsell, 1896HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896., p. 88, tradução nossa). Posicionamento que também foi compartilhado por Castle (1885, p. 43, tradução nossa)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885.:

Os mestres do século XVI já haviam descoberto a verdade sobre um princípio que não é suficientemente considerado em nossos dias, a saber, que para se tornar um espadachim proficiente, um esgrimista não deve atribuir muita importância aos toques recebidos na prática e nunca mostrar temperamento, mas sim, tomar sua falha como uma lição e aprender a evitar a sua recorrência, em bom estilo.

Se, comparados à esgrima antiga e às lutas dos gladiadores – que Hergsell cita ao relacionar as causas do florescimento da esgrima moderna na Itália –, os combates com regras e movimentos ensaiados poderiam ser considerados um tanto corteses e civilizados, apesar da geometrização, nos termos ensinados por Vigarello (2005)VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302., já o controle da violência ainda estaria para ser sistematizado com mais detalhes nos séculos subsequentes. Sobre a esgrima no século XVI, Hergsell (1896, p. 49, tradução nossa)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896. comenta que: ¨[…] um exame minucioso desses tratados nos informa que, apesar das frases científicas, o esgrimista se apoiava mais na força física e na agilidade, mais na inspiração do momento do que em princípios estabelecidos”.

Apesar das diferenças entre a esgrima do século XVI e a sua vertente esportiva no sentido do uso de movimentos contidos e delicados, no final dos oitocentos, várias mudanças aconteceriam. Na citação de Hergsell (1896, p. 45, tradução nossa)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896. já utilizada anteriormente: “Essas lutas, nas quais o desarmamento e o uso de força bruta e astúcia parecem justificados, foram paradas pela delicadeza dos costumes no final do século XVI”, é possível visualizar que, nesse período, a delicadeza e a sensibilidade irão substituir diversos costumes considerados brutais e violentos e que, nas palavras do autor, a “[…] arte da esgrima assumia o caráter da corte” (Hergsell, 1896HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896., p. 49, tradução nossa), ou seja, a luta de espadas passava a requerer uma outra tipologia de educação corporal, mais cortês e civilizada.

Conclusões

O processo de civilização dos costumes não é a causa das transformações sociais, e sim a consequência visível dessas. Disputas por territórios até que um grupo dominasse amplas extensões territoriais, a exponencial expansão das cidades, uma divisão maior de funções e trabalhos, a curialização dos cavaleiros, entre outras transformações, despertou necessidades de elaboração de novos comportamentos e costumes considerados mais civilizados.

Dentre as diversas atividades humanas afetadas pelo processo de civilização de costumes, estava a luta com as espadas. As alterações encontradas na esgrima não se deram numa relação de causa e efeito com o processo de civilização dos costumes; esse processo, contudo, pode ser nitidamente visto na história da luta de espadas. No transcorrer do presente artigo, foram evidenciadas diversas relações entre a constituição da esgrima moderna com a denominada civilização dos costumes e processos de educação do corpo nela contidas.

Sob as perspectivas oitocentistas trazidas e representadas aqui pelas obras de Castle e Hergsell, pode-se perceber como a luta brutal com as espadas grandes e largas, que tinham como o objetivo exaurir o adversário em campo de batalha, sendo que este tinha a sua armadura e escudos para sua proteção, toma nova forma a partir do final da Idade Média. Com a curialização dos cavaleiros medievais, que, a partir de então, deveriam se comportar como nobres cavalheiros e se aproximar da corte do rei, as atividades diárias com a espada se adaptaram aos modos exigidos pela sociedade de corte.

O manejo de armas se tornou mais geometrizado e conformado aos duelos, e as espadas pesadas foram substituídas por armas mais leves e delicadas. Portanto, para o êxito nesses combates individuais, algumas técnicas precisaram ser desenvolvidas e ensinadas por mestre d’armas. Valências físicas como agilidade e velocidade foram valorizadas, e as estocadas foram incluídas nas variadas formas de atacar os adversários. Com isso, um novo processo educacional passou a ser exigido, fazendo emergir novas pedagogias relativas ao maneio de espadas.

Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. e Hergsell (1896)HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte. Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896., por terem vivido no período em que a esgrima se encontrava em um amplo processo de esportivização, no qual as técnicas de defesa já haviam se aperfeiçoado para contribuir para a constituição de uma luta regrada e organizada para ser arbitrada de forma correta, acabaram colocando em evidência a falta desses elementos nos tratados escritos no século XVI. Para os autores oitocentistas, as guardas e os deslocamentos que buscavam o ataque eram ainda interpretados como ações brutas; já as características que traziam similaridades com os combates de seu tempo, por sua vez, eram consideradas avançadas. Em meio a isso, Castle (1885)CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885. afirma que não se deve comparar as técnicas do século XIX com as do século XVI como melhores ou piores, mas simplesmente como técnicas transformadas pela necessidade de cada época.

As diversas inovações tecnológicas, sobretudo aquelas relacionadas ao desenvolvimento das armas de fogo, acabaram por eliminar o uso das armaduras pesadas e resistentes, retirando, de certa forma, a centralidade da espada como arma bélica. Contudo, foi o aumento da sensibilidade em relação à violência, o monopólio da força por parte do governo e a civilização dos costumes que contribuíram significativamente na transformação de uma luta bruta em uma prática geometrizada e elegante que passou a exigir novas pedagogias para os processos de educação corporal. Tais elementos foram fundamentais para que a esgrima posteriormente se sintonizasse com as lógicas do esporte moderno. Porém, tais questões são histórias corporais a serem problematizados em pesquisas futuras.

Nota

  • 1
    Arma similar a um porrete ou cassetete.

Referências

  • AGRIPPA, Camillo. Trattato di Scientia d’arme, com um Dialogo di Filosofia di Camillo Agrippa, milanese Roma, 1553.
  • CAPRARO, André Mendes; MORAES E SILVA, Marcelo. A Dandy in the Tropics: sport and body education in the chronicles of Paulo Barreto (João do Rio). Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021.
  • CASTLE, Egerton. Schools and Masters of Fence: from the Middle Ages to the eighteenth century. London: George Bell and Sons, 1885.
  • CHARTIER, Roger; VIGARELLO, Georges. Les Trajectoires du Sport. Le Débat, Paris, v. 19, p. 35-58, 1982.
  • COURTINE, Jean-Jacques; HAROCHE, Claudine. Histoire du Visage, XVIe-début XIXe siècle. Paris: Rivages, 1988.
  • DIDIER, Saint. Traicte Contenant les Secrets du Premier Livre sur l’Espee Seule Paris, 1573.
  • DRÉVILLON, Hervé. Du Guerrier au Militaire. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire de La Virilité: de l’Antiquité aux Lumières, l’invention de la virilité. Paris: Seuil, 2011. (Volume I). P. 293-325.
  • DUBY, Georges. L’Europe au Moyen Âge: Art Roman, art gothique. Paris: Flammarion, 1984.
  • ELIAS, Elias; DUNNING, Eric. Quest for Excitement: sport and leisure in the civilizing process. Oxford: Basil Blackwell, 1986.
  • ELIAS, Norbert. La Civilisation des Mœurs Paris: Calmann-Lévy, 1973.
  • ELIAS, Norbert. La Société de Cour Paris: Calmann-Lévy, 1974.
  • ELIAS, Norbert. La Dynamique de l’Occident Paris: Calmann-Lévy, 1975.
  • FUMAT, Yveline. La Civilité peut-elle s’Enseigner?. Revue Française de pédagogie, Lyon, n. 132, p. 101-113, 2000.
  • GARCÍA, Raúl Sánchez. Revisiting Duelling and Fencing in the Sociology of Norbert Elias. In: HAUT, Jan; DOLAN, Paddy; REICHER, Dieter; GARCÍA, Raúl Sánchez (Org.). Excitement Processes: Norbert Elias’s unpublished works on sports, leisure, body, culture. Wiesbaden: Springer VS, 2018. P. 255-273.
  • HERGSELL, Gustav. Die Fechtkunst im XV und XVI. Jahrhunderte Prag: Selbstverlag druck von Carl Bellmann, 1896.
  • LE GOFF, Jacques. Pour un autre Moyen Âge: Temps, travail et culture en Occident. Paris: Gallimard, 1991.
  • LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Une Histoire du Corps au Moyen Âge Paris: Liana Levi, 2003.
  • LINKLATER, Andrew; MENNELL, Stephen. Norbert Elias, the Civilizing Process: sociogenetic and psychogenetic investigations – An overview and assessment. History and Theory, Middletown, v. 49, n. 3, p. 384-411, 2010.
  • LOUDCHER, Jean-François. Procès de Civilisation et Transformations Sociales: une discussion de la théorie de Norbert Elias dans le domaine du sport. Loisir et Société, Trois-Rivières, v. 43, n. 3, p. 372-392, 2020.
  • MAROZZO, Achille. Opera Nova Bologna, 1536.
  • OTTOGALLI-MAZZACAVALLO, Cécile; TERRET, Thierry. La Création de la Fédération Internationale d’Escrime (1896-1913): quand la performance sportive se joue hors de la piste. Cahiers de l’INSEP, Paris, v. 46, n. 1, p. 29-37, 2010.
  • REVEL, Jacques. Les Usages de la Civilité. In: ARIES, Philippe; DUBY, Georges. Histoire de la Vie Privée: de la renaissance aux lumieres. Paris: Seuil 1986. (Volume 3). P. 169-209.
  • SHRANK, Cathy. Masters of Civility: Castiglione’s Courtier, della Casa’s Galateo, and Guazzo’s Civil Conversation in early modern England. In: MARRAPODI, Michele (Org.). The Routledge Research Companion to Anglo-Italian Renaissance Literature and Culture Abingdon: Routledge, 2019. P. 144-159.
  • SOARES, Carmen Lucia. Education of the Body: notes for the historicity of a notion. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, 2021.
  • THOMAS, Jérôme. Corps Violents, Corps Soumis: le policement des moeurs à la fin du Moyen- Âge. Paris: L’Harmattan, 2003.
  • VAUCELLE, Serge. L’art de Jouer à la Cour: transformation des jeux d’exercice dans l’éducation de la noblesse française, au début de l’ère moderne (XIIIe-XVIIe siècles). 2004. 620 f. Tese (Doutorado em História e Civilização) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 2004.
  • VAUCELLE, Serge. L’espée & L’esteuf. Escrime et Jeu de Paume dans la France moderne (xve–Xviie siècles). Sport History Review, Alberta, v. 40, n. 1, p. 57-68, 2009.
  • VIGARELLO, Georges. S’exercer, Jouer. In: CORBIN, Alai.; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. Histoire du Corps: de la Renaissance aux Lumières. Paris: Seuil, 2005. (Volume I). P. 235-302.
  • VIGARELLO, Georges. Le Sentiment de Soi: histoire de la perception du corps. Paris: Le Seuil, 2014.
  • VIGARELLO, Georges. Le Corps Redressé Paris: Editions du Félin, 2018.

Editado por

Editora responsável: Lodenir Karnopp

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2022
  • Aceito
    13 Jul 2022
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Faculdade de Educação Avenida Paulo Gama, s/n, Faculdade de Educação - Prédio 12201 - Sala 914, 90046-900 Porto Alegre/RS – Brasil, Tel.: (55 51) 3308-3268, Fax: (55 51) 3308-3985 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: educreal@ufrgs.br