Acessibilidade / Reportar erro

Novo Ensino Médio: análise da política de escolas em tempo integral

RESUMO

O artigo analisa a Política de Fomento a Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, indutora do Novo Ensino Médio Brasileiro, para identificar possibilidades de educação ecossistêmica. A base teórica é plural, baseada na complexidade e na governança. A metodologia inclui análise documental, levantamento com escolas e imersão em escola do Distrito Federal. À luz da Análise de Discurso Crítica, concluiu-se que há espaço de auto-eco-organização de políticas locais, indicando que a reforma não está nas normas ou recursos, mas na ação das pessoas, no contexto da prática. A não alocação de recursos financeiros e de informação pode comprometer a sustentabilidade.

Palavras-chave
Novo Ensino Médio; Tempo Integral; Educação Ecossistêmica

ABSTRACT

This paper analyzes the Policy of Promoting Full-Time Secondary Schools, which prompts the Brazilian New Secondary Education to identify possibilities for ecosystemic education. Its theoretical basis is plural, based on complexity and governance. Methodology includes document analysis, survey with schools, and immersion in a school in the Brazilian Federal District. Based on critical discourse analysis, it concluded that there is room for self-eco-organization of local policies, indicating that reform does not take place in norms or resources but in people’s actions, in the context of practice. Failure to allocate financial resources and information can compromise sustainability.

Keywords
New Secondary Education; Full-Time School; Ecosystemic Education

Introdução

As mais diversas correntes defendem que a última etapa da Educação Básica exige reformulações, exige revitalização. Se recentes mobilizações de estudantes do Ensino Médio chamaram atenção como um movimento expressivo em diversos estados brasileiros, já no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, tinha-se que o ponto nevrálgico da educação era o ensino secundário (Azevedo, 1944AZEVEDO, Fernando de. Manifesto dos pioneiros da educação nova. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 79, p. 108-127, 1944.). Se, como consta no manifesto, considerássemos que a escola é, para a sociedade, como um ponto luminoso no meio da escuridão, a forma como o Ensino Médio tem excluído os jovens de um percurso educacional que lhes garanta formação adequada para uma vida digna sugere que, também aqui, há um “túnel no fim da luz” (Bauman, 1998BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998., p. 33).

Foi no relato de maus resultados e no “[…] descompasso entre os objetivos propostos por esta etapa e o jovem que ela efetivamente forma” (Brasil, 2016BRASIL. Medida provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016. Institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral […]. Diário da Câmara dos Deputados, Suplemento, Brasília, DF, 1 dez. 2016. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/medpro/2016/medidaprovisoria-746-22-setembro-2016-783654-exposicaodemotivos-151127-pe.html. Acesso em: 12 nov. 2018.
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/med...
) que o Ministério da Educação (MEC) propôs o que tem sido chamado de Reforma do Ensino Médio (REM) ou Novo Ensino Médio (NEM), lançada pela Medida Provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016, e depois convertida na Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, com algumas alterações em relação à norma inicial, mantida a essência. Os elementos centrais estão relacionados à ampliação da carga horária, articulada à flexibilização curricular, enaltecendo a possibilidade de escolha do estudante por diferentes itinerários formativos e a redução no número de componentes curriculares obrigatórios (Brasil, 2017BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, […]. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 fev. 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htm. Acesso em: 12 nov. 2018.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

Chama atenção que, na publicação da medida provisória, as primeiras palavras eram “Institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral” (PEMTI). Não se falava de flexibilização curricular, em ensino técnico e profissionalizante, nas alterações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9.394/1996 (Brasil, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 12 nov. 2018.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
), mas sim em uma política de fomento à ampliação da jornada escolar, especificamente para o Ensino Médio, com projeção de alcançar cerca de 10% dos estudantes do Ensino Médio – diferentemente do NEM, de alcance universal. Portanto, há uma política (ou programa) dentro da política.

Por isso, damos atenção especial aos reflexos sobre o financiamento, observado pela perspectiva da governança. O que nos propomos é investigar o quanto a PEMTI está alinhada a uma concepção complexa de educação, ou educação ecossistêmica (Moraes, 2004MORAES, Maria Cândida. Pensamento Eco-Sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI. Petrópolis: Vozes, 2004.). Para isso, “[…] precisamos ver a política educacional e a governança em uma escala diferente e por meio de novas lentes conceituais; nitidez não é uma opção” (Ball, 2014BALL, Stephen John. Educação Global S.A.: novas redes políticas e o imaginário neoliberal. Tradução: Janete Bridon. Ponta Grossa: UEPG, 2014., p. 44). Para isso, buscamos a combinação de referencial teórico que discutimos à frente.

Assumimos que política pública se refere a um “[…] fluxo de decisões públicas, orientado a manter o equilíbrio social ou a introduzir desequilíbrios destinados a modificar essa realidade” (Saravia, 2006SARAVIA, Enrique. Introdução à Teoria da Política Pública. In: SARAVIA, Enrique; FERRAREZI, Elisabete (Org.). Políticas Públicas. Coletânea. Volume 1. Brasília: ENAP, 2006. P. 13-42. Disponível em: http://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/3132/1/Coletanea_pp_v1.pdf. Acesso em: 12 nov. 2018.
http://repositorio.enap.gov.br/bitstream...
, p. 28). Fluxo e desequilíbrios são palavras-chave para nossa abordagem, cujo objetivo geral é analisar se os desequilíbrios gerados pela PEMTI contribuem para que o NEM seja pensado de forma ecossistêmica (Moraes, 2004MORAES, Maria Cândida. Pensamento Eco-Sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI. Petrópolis: Vozes, 2004.). Por isso, além de analisar a política em seus traços constitutivos (Arretche, 2009ARRETCHE, Marta. Tendências no estudo sobre avaliação. In: RICO, Elizabeth Melo (Org.). Avaliação de Políticas Sociais: uma questão em debate. São Paulo: Cortez, 2009.), interessa-nos identificar “[…] como as escolas fazem política” (Ball; Maguire; Braun, 2016BALL, Stephen John; MAGUIRE, Meg; BRAUN, Annette. Como as Escolas fazem Políticas: atuação em escolas secundárias. Ponta Grossa: Editora EUPG, 2016.).

Referencial Teórico e Metodológico

Assumimos que “[…] o tipo de processo para chegar ao objeto é dado pelo tipo de objeto e não o contrário” (Gamboa, 2012GAMBOA, Silvio Sánchez. Pesquisa em Educação: métodos e epistemologias. Chapecó: Argos, 2012., p. 28). Em trabalho anterior (Wathier, Guimarães-Iosif, 2016), buscamos base no resgate de fundamentos clássicos – Bacon (1999)BACON, Francis. Novum Organum. São Paulo: Nova Cultural, 1999., De Montaigne (2009)DE MONTAIGNE, Michel. Dos canibais. São Paulo: Alameda, 2009., Dilthey (2010)DILTHEY, Wilhelm. Introdução às Ciências Humanas: tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história. Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010., Feyerabend (2007)FEYERABEND, Paul. Contra o método. São Paulo: UNESP 2007., Kuhn (1975)KUHN, Thomas Samuel. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975., Günther (2006)GÜNTHER, Hartmut. Pesquisa Qualitativa versus Pesquisa Quantitativa: esta é a questão. Psicologia: teoria e pesquisa, UnB, Brasília, v. 22, n. 2, p. 201-210, 2006., Popper (2004)POPPER, Karl Raimund. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, 2004.. Progressivamente, reconhecemos que os autores clássicos da filosofia da ciência estão distantes da questão da complexidade, e, neste estado de conhecimento, temos dificuldade de pensar soluções para as questões atuais, que são tão urgentes quanto essenciais (Morin, 2015MORIN, Edgar. A Via para o Futuro da Humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.).

Morin (2014, p. 20)MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2014. defende enfaticamente que a reforma da educação exige uma reforma do pensamento: “[…] trata-se de uma reforma não programática, mas paradigmática”. Segundo ele, as reformas falham por não perceberem que são concebidas dentro de um modelo de pensamento que é parte do problema, e que tem sido incapaz de se fazer parte da solução. Pensar uma reforma do Ensino Médio seria, então e também, pensar a partir de outras lentes, onde a Lei e os recursos financeiros são aspectos ambientais para se pensar uma reforma, não são ela própria. Assim, tais elementos não são assumidos como fatores que desencadeiam uma causalidade direta, mas sim medidas que ingressam na complexidade característica de campos como o da Educação.

Por complexidade, aqui, entendemos aquilo que não pode ser compreendido pela simples soma das partes, pela linearidade e sequencialidade, mas sim pelo reconhecimento de que os elementos constituintes da realidade interagem e organizam-se, de forma que não podem ser dissociados – são tecidos conjuntamente, são complexus (Morin, 2013MORIN, Edgar. O Método 1: a natureza da natureza. Porto Alegre: Editora Sulina, 2013.). Nesse sentido, desenvolvemos nossa análise a partir dos operadores cognitivos, ou princípios do pensamento complexo. Estes operadores são “[…] instrumentos conceituais, são metáforas que facilitam a compreensão e a prática do pensamento complexo” (Mariotti, 2010MARIOTTI, Humberto. Pensamento Complexo: suas aplicações à liderança, à aprendizagem e ao desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora Atlas, 2010., p. 137).

Destacamos:

  1. circularidade: os efeitos retroagem sobre as causas e as realimentam;

  2. operador dialógico: há contradições que não podem ser resolvidas, existindo, portanto, opostos que são ao mesmo tempo antagônicos e complementares;

  3. operador hologramático: as partes estão no todo, e o todo também está nas partes;

  4. auto-eco-organização: os seres vivos produzem os elementos que os constituem e se auto-organizam por este processo, em interação com o ambiente;

  5. interação sujeito-objeto: o observador faz parte daquilo que observa;

  6. ecologia da ação: as ações podem escapar ao controle de seus autores e produzir efeitos inesperados e até indesejados.

Os operadores, individualmente ou combinados, perpassam toda nossa forma de construir a pesquisa e apresentar a análise. Pela fluidez que apresentam, buscamos compreendê-los na perspectiva da modernidade líquida: não como compartimentos sólidos e estáticos, nos quais enquadramos este ou aquele conceito, esta ou aquela circunstância, mas como fatores que interagem na dinâmica dos múltiplos fluxos.

A metáfora da modernidade líquida contribui para nossa análise, particularmente, ao expressar que “[…] a velocidade do movimento e o acesso a meios mais rápidos de mobilidade chegaram nos tempos modernos como principal ferramenta de poder e dominação” (Bauman, 2001BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., p. 17). É na cognição complexa, imersa na modernidade líquida, que abordamos essa “[…] coisa tão enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e ausente, investida em toda parte, que se chama poder” (Foucault, 2014FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014., p. 137-138).

Quanto ao poder, temos que “[…] onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e no entanto ele sempre se exerce em determinada direção” (Foucault, 2014FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014., p. 138). Nesse sentido, teremos, como indicativo do poder, numa realidade complexa e líquida, a capacidade de produzir fluxos, ou de interferir neles. Trata-se de estudar o poder onde sua intenção “[…] está completamente investida em práticas reais e efetivas; estudar o poder em sua face externa […], onde ele se implanta e produz efeitos reais” (Foucault, 2014FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014., p. 283).

Com isso, focamos em analisar os movimentos e dinâmicas presentes nas interações localizadas – no contexto da prática escolar – como ação de múltiplos agentes, de instabilidades e contradições, mais do que como determinações de um conjunto normativo. Nesse sentido, um “velho” Ensino Médio está presente em sua estruturação, mas também na mentalidade de gestores e docentes, nas expectativas de estudantes, na noção de educação que legisladores carregam consigo (princípio hologramático). E, ao mesmo tempo que um modelo é constituído, causado, ele também é causa (circularidade), tanto de si mesmo, ao reafirmar realidades, quanto de outros modelos, ao evidenciar novas necessidades (princípio dialógico). A escola, como locus orgânico da educação, não é interpretada como mero objeto da política, mas como agente ativo (interação sujeito-objeto), e as ações de quaisquer atores ingressam na ecologia da ação, de forma que podem distanciar-se e até contradizer as intenções que as ensejaram.

Essa perspectiva nos leva a assumir as políticas públicas mais pela noção de governança, pois reconhecemos que políticas educacionais não podem ser integralmente compreendidas a partir de abordagens estadocêntricas (Power, 2011POWER, Sally. O Detalhe e o Macrocontexto: o uso da teoria centrada no Estado para explicar práticas e políticas educacionais. In: BALL, Stephen John; MAINARDES, Jefferson (Org.). Políticas Educacionais: questões e dilemas. São Paulo: Cortez, 2011.). Contemporaneamente, há uma mudança de governo para governança (Ball, 2013BALL, Stephen John; MAINARDES, Jefferson (Org.). Políticas Educacionais: questões e dilemas. São Paulo: Cortez, 2013.), exigindo uma nova capacidade de governar. Aqui, entendemos por governança em Educação “A substituição do pressuposto de que o Estado governa sempre e necessariamente a educação através do controle de todas as atividades de governo, pelo que se pode chamar de coordenação da coordenação” (Dale, 2010DALE, Roger. A sociologia da educação e o Estado após a globalização. Educação & Sociedade, Campinas, v. 31, n. 113, p. 1099-1120, 2010., p. 1113).

Dentro dessa coordenação, estão envolvidas múltiplas instituições, com seus recursos, interesses, preferências e prioridades. Consideradas as assimetrias, conveniências e oportunidades, a governança define “[…] espaços de formulação de políticas à base de convites” (Shultz, 2012SHULTZ, Lynette. Governança Global, Neocolonialismo e Respostas Democráticas para Políticas Educacionais. In: GUIMARAES-IOSIF, Ranilce (Org.). Política e Governança Educacional: contradições e desafios na promoção da cidadania. Brasília: Liber Livro, Universa, 2012. P. 25-40., p. 36). Então, a política pública não pode ser interpretada como uma decisão ou ação isolada, mas como um fluxo: uma ação em alguma direção, mas sem poder de determinação, interagindo por causalidades não lineares, sujeita à ecologia da ação.

As políticas públicas, embora sejam produzidas e planejadas em equipes, organizações e instituições, sua criação e implementação se realiza e se desenvolve mediante a ação de um ser singular e único, capaz de criar símbolos, produzir conhecimento, transformar a realidade, ao mesmo tempo, em que se auto transforma, se auto-organiza, sendo, simultaneamente, um sujeito observador e um objeto observado. Em resumo, um ser humano cuja natureza é, por sua vez, errática, contraditória e egoísta, sapiens-demens, ou seja, um ser de natureza extraordinariamente complexa (Moraes; Batalloso, 2017MORAES, Maria Cândida; BATALLOSO, Juan Miguel. Complexidade e transdisciplinaridade: impactos sobre as políticas públicas nas áreas de educação, saúde e meio ambiente. In: DITTRICH, Maria Glória; RAMOS, Flávio; NETO, Mário Uriarte (Org.). Políticas Públicas na Contemporaneidade: olhares cartográficos temáticos. Itajaí: Univali, 2017. P. 35-56.).

No Brasil, convivemos com um governo federal preponderante na federação e cujas decisões repercutem por todo o país. Nesse sentido, “[…] se a complexidade social de um país extremamente desigual […] impõe rigorosa vigilância ao pesquisador, deve-se acrescentar a essa complexificação o caráter federativo do Estado Brasileiro” (Cury, 2011CURY, Carlos Roberto Jamil. Federalismo político e educacional. In: FERREIRA, Naura Syria Carapeto. Políticas Públicas e Gestão da Educação – Polêmicas, Fundamentos e Análises. Brasília: Editora Liber Livro, 2011., p. 111-112). Significa que ao analisar políticas oriundas do Governo Federal, por mais que o mesmo desenho se aplique a todo o país, precisamos considerar que a configuração local, em cada escola, ocorre no contexto de interações muito mais complexas do que uma determinação vertical ou unidirecional.

Shultz (2012, p. 30)SHULTZ, Lynette. Governança Global, Neocolonialismo e Respostas Democráticas para Políticas Educacionais. In: GUIMARAES-IOSIF, Ranilce (Org.). Política e Governança Educacional: contradições e desafios na promoção da cidadania. Brasília: Liber Livro, Universa, 2012. P. 25-40. esclarece que precisamos assumir que a política educacional “[…] não é resultado da expressão da vontade dos cidadãos ou do Ministro da Educação, mas sim de uma política educacional nacional que se baseia em políticas globais mais amplas”.

A essa perspectiva teórica, combinamos a abordagem da Análise de Discurso Crítica (ADC), com base em Fairclough (2012)FAIRCLOUGH, Norman. Análise Crítica do Discurso como Método em Pesquisa Social Científica. Linha d’Água, São Paulo, v. 25, n. 2, p. 307-329, 2012., por combinar “[…] uma apreciação negativa, no diagnóstico do problema, com uma apreciação positiva, na identificação das possibilidades” (Fairclough, 2012FAIRCLOUGH, Norman. Análise Crítica do Discurso como Método em Pesquisa Social Científica. Linha d’Água, São Paulo, v. 25, n. 2, p. 307-329, 2012., p. 312). Nessa abordagem, buscamos identificar o que está emergindo, “[…] mas também indicar direções alternativas não realizadas existentes” (Chouliaraki; Fairclough, 1999CHOULIARAK, Lilie; FAIRCLOUGH, Normam. Discourse in Late Modernity: rethinking critical discourse analysis. Edimburgo: Edinburgh University Press, 1999., p. 4). Sintetizamos assim nossos objetivos e recursos metodológicos:

Quadro 1
Objetivos Específicos e Recursos Metodológicos

Reforma do Ensino Médio

Na primeira etapa, analisamos os traços constitutivos da Política Pública e realizamos a verificação geral de alcance nos aspectos quantitativos e diretos para, em seguida, avançar aos elementos orgânicos, observados no contexto da prática. Apresentada como precursora, a Medida Provisória nº 746/2016 trouxe muito do que antes já era discutido no Congresso Nacional em proposta de Reforma para o Ensino Médio, que nunca chegou a ser aprovada. Assim, um elemento que distingue a proposta que foi concebida e logo publicada em 2016 é o fato de ela se converter em norma. Ainda, carecendo de maiores discussões com a sociedade, materializou-se tendo por base argumentos recorrentes que em sua maioria acompanham os diagnósticos massivos da educação, sem, porém, adentrar as questões mais complexas da dinâmica social que envolvem o Ensino Médio. Nesse contexto, o NEM foi instituído tendo como principais pilares:

  1. flexibilização curricular, com criação de itinerários formativos e possibilidade de opção pelos estudantes;

  2. ampliação progressiva de carga horária – de 800 para 1.400 horas/ano – com mínimo de 1.000 horas anuais após 02/03/2022;

  3. obrigatoriedade do ensino da língua inglesa a partir do sexto ano do ensino fundamental e durante o Ensino Médio, com prevalência em relação às demais línguas estrangeiras;

  4. obrigatoriedade do ensino de língua portuguesa e matemática durante os três anos do Ensino Médio, com flexibilização das demais disciplinas;

  5. aproveitamento de conteúdos cursados no Ensino Médio para o ensino superior ou de estudos diversos para a composição dos itinerários formativos;

  6. criação da Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral (PEMTI) (Brasil, 2017BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, […]. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 fev. 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htm. Acesso em: 12 nov. 2018.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
    ).

Sabendo que “[…] na maioria das pesquisas sobre política educacional, o dinheiro é raramente mencionado e é substituído por foco nas ideias e nas práticas” (Ball, 2014BALL, Stephen John. Educação Global S.A.: novas redes políticas e o imaginário neoliberal. Tradução: Janete Bridon. Ponta Grossa: UEPG, 2014., p. 222), traçamos uma abordagem que busca interligar as questões de financiamento com as concepções curriculares e pedagógicas. Para isso, o foco se direciona à PEMTI, uma vez que nela são previstos recursos expressivos.

A política de fomento se propõe a alcançar escolas que passem a trabalhar em tempo integral após a vigência do NEM, e que adaptem seus projetos político pedagógicos ao Art. 36 da LDB, o qual foi substancialmente alterado pela reforma e passou a prever os itinerários formativos que, por sua vez, complementam-se pela BNCC (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018.).

Os sistemas de ensino deverão estabelecer cronograma de implementação das alterações na Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, conforme os arts. 2º, 3º e 4º desta Lei, no primeiro ano letivo subsequente à data de publicação da Base Nacional Comum Curricular, e iniciar o processo de implementação, conforme o referido cronograma, a partir do segundo ano letivo subsequente à data de homologação da Base Nacional Comum Curricular

(Brasil, 2017BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, […]. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 fev. 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htm. Acesso em: 12 nov. 2018.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

Ocorre que a PEMTI iniciou 2017, mas a BNCC foi aprovada em 2018, fazendo com que as alterações da LDB e, portanto, os itinerários formativos propriamente ditos só passassem a vigorar a partir de 2020. As normas infralegais, especialmente Resolução do Conselho Deliberativo do FNDE e Portarias do MEC, que cumprem a função de edital para escolha das escolas, estabelecem critérios pormenorizados, os quais são discutidos em Wathier (2019)WATHIER, Valdoir Pedro. Reforma do Ensino Médio: vamos pensar uma educação ecossistêmica? 2019. 240 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-graduação, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2019.. Quanto ao financiamento, estabeleceu-se o valor de R$ 2.000/ano para cada nova matrícula gerada no Ensino Médio em tempo integral das escolas participantes da PEMTI. Esse valor é transferido inicialmente com base nas metas e ajustado de acordo com as matrículas efetivadas, conforme censo escolar subsequente.

As duas primeiras chamadas da PEMTI resultaram na escolha de 900 escolas, distribuídas nos 26 estados e no Distrito Federal, com projeção de alcance de 434 mil estudantes. Portanto, os números ficaram levemente abaixo da projeção realizada pelo MEC, que era de alcançar 1 mil escolas. O Gráfico 1, a seguir, apresenta o número de escolas por UF:

Gráfico 1
Número de Estudantes por UF – Metas para 2017, 2018 e 2019

Previamente à PEMTI, já havia tendência de ampliação do Ensino Médio em tempo integral. Em números absolutos e arredondados, entre 2013 e 2016, passou-se de 300 para 400 mil estudantes; em 2018, saltou-se para 600 mil, conforme expresso no gráfico abaixo, já como efeito da política:

Gráfico 2
Série Histórica do Número de Matrículas em EMTI

O tempo integral passou de menos de 5% dos estudantes do Ensino Médio para aproximadamente 10%. Aumento ainda pequeno, considerando que a meta da PEMTI era de cerca de 10% do Ensino Médio migrando para tempo integral.

Considerando somente as escolas abrangidas pela política, em todas as UFs, houve ampliação das matrículas de Ensino Médio em tempo integral, totalizando um aumento de 140.954 matrículas (de 37.818 para 178.772). Ainda que seja expressivo, este quantitativo é menos de metade da meta para 2018, que era de 331.608 novas matrículas em tempo integral nessas escolas. No mesmo período, o número de estudantes atendidos em tempo parcial reduziu 271.583 (de 433.093 para 161.510). Isso evidencia que se trata, nessas escolas, de uma troca de 2 vagas em tempo parcial por uma vaga em tempo integral.

Aprofundando a relação meta/matrícula versus efetivada/censo, também analisamos os valores repassados nos anos de 2017 e 2018, dos quais aferimos a quantidade de vagas consideradas para calcular o montante da transferência. No gráfico abaixo, percebe-se que matrículas efetivadas ficaram substancialmente abaixo das metas. Por outro lado, os valores repassados aos estados, em 2017, foram expressivamente superiores às metas e, em 2018, ainda que sejam inferiores à meta, persistem substancialmente superiores às matrículas efetivadas.

Gráfico 3
Metas, Matrículas e Projeção da PEMTI

Em 2017, foi repassado o correspondente a R$ 8.764,00 por matrícula efetivada. Em 2018, há supostamente um processo de correção. Porém, ainda que haja redução do desequilíbrio, o que as normas previam era a dedução dos valores correspondentes às matrículas não efetivadas, e isso não foi cumprido, uma vez que para cada matrícula em 2018 foram repassados valores equivalentes a R$ 3.355,00.

Na conclusão da pesquisa, em junho/2019, não havia transferências no exercício de 2019, nem dados de matrículas que permitissem estender essa avaliação para além da escola onde houve a imersão. Em análise geral, os recursos foram aportados pelo Governo Federal, inclusive em valores inexplicadamente superiores à projeção. Portanto, se já avaliamos (Wathier; Guimarães-Iosif, 2017WATHIER, Valdoir Pedro; GUIMARAES-IOSIF, Ranilce. Reforma do Ensino Médio: o que essa política fomenta? In: JESUS, Wellington Ferreira (Org.). O Financiamento da Educação em Tempos de Golpe Parlamentar e da PEC 95/2016: antigos desafios e novas possibilidades. Uberlância: Culturatrix, 2017.) que o valor per capita da política de fomento era muito superior aos de outros programas, constatou-se o aporte em valores ainda maiores.

Ao analisar o caso específico da escola selecionada, percebe-se indicativo de umas das possíveis causas do problema: a meta estabelecida, já para 2017, foi de 400 matrículas em tempo integral. Isso seria viável apenas se a escola desse um salto de 100% parcial para 100% integral, o que não corresponde à estratégia adotada, que foi de introdução incremental do tempo integral: 1º ano em 2017; 1º e 2º anos em 2018; os três anos do Ensino Médio em 2019.

Em 2016, a escola possuía 458 matrículas no Ensino Médio em tempo parcial e atendia ao Ensino Fundamental (EF) no contraturno, além de Educação de Jovens e Adultos (EJA) à noite. O fluxo de implantação do Ensino Médio em Tempo Integral incluiu deixar de atuar com EF e EJA. Quanto ao tempo integral em si, a escola mostrou evolução de matrículas em contrabalanço aos números do tempo parcial; em 2016, 0 e 458; em 2017, 132 e 228; em 2018, 309 e 4121 1 Este número refere-se a falha de preenchimento do censo, mas está como número oficial. , conforme o censo escolar (INEP, 2017INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar: 2016. Brasília: INEP, 2017. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados. Acesso em: 12 jul. 2022.
https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-a...
; 2018INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar: 2017. Brasília: INEP, 2018. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados. Acesso em: 12 jul. 2022.
https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-a...
; 2019INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar: 2018. Brasília: INEP, 2019. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados. Acesso em: 12 jul. 2022.
https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-a...
). Em 2019, apuramos que não há mais estudantes em tempo parcial na escola e que o número de matrículas é de 440 estudantes. Ou seja, a meta para 2019 no PEMTI foi alcançada e superada, restando a necessidade de tratar do problema decorrente da definição inicial das metas.

Esses primeiros resultados evidenciaram que, mesmo nos aspectos quantitativos e de observância direta às normas, os fluxos financeiros e de alcance de matrículas não obedeceram a uma lógica de causalidades diretas. Houve um fluxo de recursos financeiros do Governo Federal às Secretarias Estaduais de Educação que destoou da projeção, superando-a. Já o fluxo de estudantes para ingresso no Ensino Médio em Tempo Integral ficou aquém das projeções, enquanto percebeu-se que houve o efeito colateral de descontinuidade do atendimento ao Ensino Fundamental regular, ou Educação de Jovens e Adultos (EJA), tanto fundamental quanto médio. Trata-se, aqui, de uma primeira camada de fluxos promovidos no ambiente educacional do Ensino Médio, a partir da qual avançamos às camadas seguintes, buscando compreender a complexidade desses movimentos.

Levantamento em Escolas de Ensino Médio

Por meio de questionário virtual enviado a 27.548 escolas de Ensino Médio de todo o Brasil, levantamos informações sobre perfil de atuação e percepções sobre o Novo Ensino Médio e sobre a Política de Fomento. Se assumimos que todos os atores exercem ações de poder, essa busca é por compreender minimamente suas inclinações no empreendimento de tais ações. Da análise dos resultados, destacamos:

  1. existe uma percepção geral e relativamente uniforme de que os efeitos do NEM tendem a ser mais positivos do que negativos;

  2. na maioria das escolas, não há ensino médio em tempo integral e nem propostas de implantação, indicando que os efeitos de tempo integral serão restritos às participantes da PEMTI;

  3. respondentes que se sentiam sabendo menos sobre o NEM tendiam a apresentar uma visão menos positiva quanto às possibilidades de uma nova organização para o Ensino Médio e centravam a responsabilidade no Governo Federal;

  4. predomina a percepção de que o melhor mecanismo de gestão financeira é descentralizado, para execução diretamente pelas escolas;

  5. predomina a percepção de que os pontos fortes das escolas são a articulação da gestão com a comunidade e a postura propositiva do corpo docente. Por outro lado, há visão de baixa disponibilidade de recursos. As questões de infraestrutura e de autonomia em relação à rede ficaram no campo intermediário;

  6. questões ambientais e relacionadas à ética demonstraram comportamento de tendência central, mesmo com técnicas que tentassem evitar isso. Infere-se que esses temas não costumam ser esquecidos, mas raras vezes são priorizados;

  7. percebe-se grande proximidade nas respostas das escolas participantes e das não participantes da PEMTI;

  8. questões curriculares evidenciam que, enquanto as participantes da PEMTI possuem maior inclinação ao protagonismo, as não participantes tendem a ser mais dependentes de participação em competições (olimpíadas de matemática, jogos escolares…). Participantes da PEMTI indicam estar alcançando outras temáticas (preparação para mercado de trabalho, ensino superior, cultura e protagonismo) em nível levemente acima das não participantes.

Esses dados gerais servem para alimentar visão ampla do processo e informar sobre possíveis pontos fora da curva identificados na escola. Por um lado, permitem perceber o movimento geral da política, que é também um movimento genérico e superficial, sendo necessário compreender suas nuances no contexto da prática.

Análise da Escola Selecionada

Para a realização da imersão em escola participante da Política, buscamos identificar uma escola na qual tivéssemos indícios de protagonismos e de trabalho com questões ecossistêmicas. Esse levantamento se deu por acionamento de rede de contatos, o que se relaciona com os objetivos da pesquisa, no sentido de que queríamos buscar possibilidades para uma compreensão complexa da Política, e para compreender casos em que a escola se assumisse como ator da política pública educacional, criando melhores condições para uma abordagem complexa. Nesse sentido, não tratamos da ambição estatística de que uma ou algumas escolas pudessem ser representativas do universo das escolas participantes, mas sim de que a escola é a protagonista e única legitimada a falar do seu próprio universo. Assim, elegemos uma escola de porte médio (aproximadamente 400 matrículas), situada numa região central de Brasília, que recebe estudantes de diversas regiões do Distrito Federal, e que conta com infraestrutura de padrão médio para a região.

A análise documental ocorreu ao longo de 2018. As visitas à escola ocorreram durante maio e junho de 2019. Os trabalhos de campo foram realizados em três focos: gestão e professores, por meio de entrevistas; estudantes, por meio de grupo focal; infraestrutura e dinâmica escolar, por meio de observações do cotidiano escolar e atividades abertas à comunidade. Para retratar a análise de forma otimizada, faremos aqui a abordagem mesclando todos os atores e tendo em conta os documentos e as observações. A gestão é identificada como GA, GB, GC e GD. Os Professores como P1 a P5. E as falas dos estudantes são identificadas de forma genérica, como E, uma vez que tivemos em conta apenas as posições que se mostraram representativas de uma visão geral. No caso de visões contraditórias, trouxemos ambas as perspectivas, fazendo o contraponto.

Política Institucional e Recursos

A adesão à PEMTI foi herdada pela escola da gestão anterior, sem grande discussão prévia. Houve uma espécie de convalidação comunitária pela atual gestão: “Eu falei com os pais sobre todas as vantagens de adotar o tempo integral. Tivemos a maioria dos pais e uma quase maioria por parte dos estudantes, porque aqueles alunos que estavam no ensino fundamental não queriam deixar a escola (GA)”.

Os recursos foram mote à defesa de participação na Política. A gestão projetava receber R$ 800 mil no primeiro ano, e contava que poderia executar esse recurso diretamente, pois possuía experiência com ações federais ligadas ao Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE).

Se você tem o recurso, não levar ele pra escola porque você não confia que ele vai ser destinado correto é você não confiar depois nos mecanismos de regulação e controle. Sabendo que a escola tem autonomia e tem expertise pra executar, você tem que entregar o dinheiro

(GD).

Mesmo sendo uma gestão muito atenta, o fato de essa definição constar nas normas não foi eficaz o suficiente, uma vez que “[…] na rotina da escola você passa batido nessas medidas que tão lá em cima” (GD). Assim, sobre como a questão dos recursos se deu na prática, tem-se resposta categórica: “Não se deu. Simples assim. O dinheiro não chegou” (GB).

Com apoio da comunidade, duma igreja que a gente empresta a escola no final de semana aqui. Aquele refeitório lá fora a gente fez com a ajuda da igreja e pra que os alunos pudessem ter onde almoçar […] é até chato falar assim, porque parece que tudo, o professor […] tem sempre como a primeira reclamação a questão do financeiro. Mas o financeiro é muito importante no integral. Você dar condições mínimas para que o aluno passe o dia inteiro dentro da escola

(GA).

Pode-se pensar que a escola está tendo que atender a essas novas demandas com os mesmos recursos que tinha anteriormente, mas a percepção da gestão é ainda um pouco mais grave do que isso: “[…] a gente teve que abrir mão de um programa que a verba vinha e era segura […] a gente tem menos dinheiro hoje do que teria sem esse processo” (GD).

O que identificamos como recursos substanciais são as pessoas que, em parte, são custeadas com recursos da PEMTI. Para além disso, destacamos alguns pontos:

  1. professores usam kits próprios de trabalho, por não disporem de equipamentos da escola;

  2. gestores assumem papéis múltiplos e trabalham substancialmente além do horário regular;

  3. estudantes atuam como voluntários, o que é usado para suprir carências de pessoal;

  4. todos buscam recursos externos, como doações, patrocínios;

  5. o uso da escola por outras instituições em horários que ela estaria ociosa é utilizado como contrabalanço para apoio da comunidade.

Verifica-se, portanto, que a adesão da escola à Política não decorre propriamente da forma como ela foi desenhada, mas também da percepção que a escola, em seu ambiente próprio, tinha em relação às políticas federais. Além disso, evidencia o papel que o recurso – ou a expectativa dele – representa nas decisões, mesmo quando a essência do enfoque é curricular. Tem-se, com isso, que o recurso financeiro é uma importante variável ambiental, não cabendo nem a colocar acima das demais nem a deixar de fora da análise.

Política sobre as Pessoas

Assim como ocorreu com a escola, também muitos estudantes ingressaram no Integral de forma desavisada: “[…] eu tava conversando com uma amiga minha e disse que eu não via a hora de dar meio dia e quinze, porque esse povo aqui é meio chato, né? Aí ela falou bem assim: a gente vai ficar aqui até cinco e vinte. Meu olho encheu d’água” (E). A mesma estudante afirma que, hoje, entre o tempo parcial e o integral, ela optaria pelo integral, pois “[…] no tempo que eu não faria nada… […] eu tô aqui fazendo alguma coisa e criando laços com outras pessoas” (E).

Há quem entrou no tempo integral por vontade própria, mas também a esses a experiência parece não ter sido agradável no primeiro momento: “[…] eu tava muito animada quando eu entrei. Aí na primeira semana eu falei: não, quero sair, mãe, me tira dessa escola! […] Aí eu me adaptei, porque nessas oficinas eu aprendo mais” (E).

Há relatos de que muitos estudantes, pelo mesmo motivo, deixaram a escola: “[…] esse perfil do aluno que trabalha ou que precisa trabalhar pra ajudar a família, ele não se adequou e eles acabaram saindo todos” (GD). Os entrevistados tinham claro o perfil dos estudantes que cabia na escola e, também, o que não cabia, especialmente a partir da PEMTI: “Seu filho quer fazer estágio? Ele quer trabalhar e estudar? Essa não é a escola pra ele. A secretaria tem outras opções de escola pra ele, mas não essa. A nossa opção aqui é formação: o aluno vai ter que imergir aqui na escola e ficar aqui o dia inteiro” (GA).

Percebemos falta de comunicação e decisões pouco informadas da escola em relação à Secretaria de Educação e também dos estudantes em relação à escola. Na relação entre professores e gestão, embora tenha sido estabelecida a comunicação, não houve construção de consentimento, sendo o processo mais conflituoso da PEMTI na escola.

Dos professores atuantes na instituição, que configuravam um quadro estável, apenas quatro permaneceram na escola (cerca de 20%). Foi clara a governança baseada nos convites e desconvites: “[…] aqui vai ser assim agora. Se você não gosta, procure outra escola” (GD). A gestão percebeu que a oferta de oficinas permitia a chamada de professores com aptidões específicas: a escola define as temáticas das oficinas e faz uma chamada a professores. Esses professores se candidatam à vaga e, se selecionados, passam a atuar na escola. Não havendo professores efetivos interessados, é recebido um professor de contrato temporário.

Esse recurso é um dos raros pontos de reconhecimento da gestão quanto ao apoio recebido da instância central da educação no DF: “[…] poder selecionar os professores que vêm pra cá, isso já foi muito bom. Antes a gente tinha que trabalhar com qualquer um” (GD).

Pelo exposto, percebe-se que o movimento de adesão à PEMTI é amplo, não se restringindo à secretaria de educação que adere à política federal, ou às escolas que participarão. Trata-se de uma adesão multicamada: a gestão (que não é sempre a mesma) precisa aderir, entre os estudantes, há os que aderem e os que não, entre os professores há movimento similar. Trata-se de um movimento que afeta profundamente a vida de muitos. Foi possível perceber alto grau de satisfação dos que lá permaneceram, sendo que, por nosso escopo, não pudemos avançar para compreender os efeitos gerados na vida dos que não permaneceram e, em especial, quais opções eles tiveram pela frente.

Em que pese o processo tortuoso no início, os atuais professores sentem profundo suporte na escola: “[…] ao mesmo tempo em que a gestão está ali presente, eles dão bastante liberdade. […] eles confiam bastante na gente e dão liberdade pra gente criar” (P2). Assim, os projetos não são estanques e nem assumem caráter de controle: “Projeto é esse. Funciona assim, de tal maneira. Mas ele é teu” (P4).

Percebe-se que há, na relação da gestão com os professores, algo similar ao que os professores buscam na relação com os estudantes: tirá-los da zona de conforto, mas mantendo-se presente, para conferir segurança. É um percurso contraditório. Por um lado, “[…] os próprios estudantes, eles ainda tão no tempo da educação bancária” (P3). Por outro, há relato de professor que criou uma oficina em que os estudantes propunham e desenvolviam oficinas de um dia. E isso mostrou que “[…] eles não querem mais a educação tradicional, eles querem uma educação que é mais prática” (P4). O relato é de que “[…] todas as oficinas que eles propuseram, eles tinham uma fala de 20 minutos, depois era mão na massa” (P4).

A políticas de convites e desconvites (Shultz, 2012SHULTZ, Lynette. Governança Global, Neocolonialismo e Respostas Democráticas para Políticas Educacionais. In: GUIMARAES-IOSIF, Ranilce (Org.). Política e Governança Educacional: contradições e desafios na promoção da cidadania. Brasília: Liber Livro, Universa, 2012. P. 25-40.) aparece em múltiplos níveis, e essa tentativa de trazer ou afastar configura-se como ação de poder (Foucault, 2014FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.), seja da direção em relação a professores, de responsáveis em relação a estudantes, e mesmo em relações de amizade. Ainda, tais ações não possuem capacidade determinística, sendo necessário vê-las sob a ótica da ecologia da ação (Mariotti, 2010MARIOTTI, Humberto. Pensamento Complexo: suas aplicações à liderança, à aprendizagem e ao desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora Atlas, 2010.). O que percebemos é que houve importante fluxo em relação a quem assumiu voz, ou seja, entendeu-se como agente ativo. Evidência disso é quando a gestão afirma que o projeto só não perdurou dividido pelo fato de que não houve candidatura à coordenação por parte do grupo de professores que não era simpático à nova modelagem. Portanto, tem-se evidente que, a depender de ações locais, individuais e ecologizadas, os movimentos naquele ambiente poderiam ser diferentes: o sentido não é dado de fora.

Pessoas em Relação à Política

Depois do forte desequilíbrio que a política trouxe à vida das pessoas, aquelas que permaneceram sentiram outros efeitos e passaram a assumir posturas e protagonismos. Um aspecto inicial é de que a escola adotou turno integral em todos os dias da semana, ultrapassando as 1.400 horas previstas na PEMTI.

De imediato, o que se viu foi que “[…] eles [os estudantes] muitas vezes eram revoltados de ter que estar aqui no integral” (GB). Os estudantes que estavam na escola no primeiro ano de implantação da PEMTI classificam a experiência como horrível, de forma unânime. O aspecto do conforto é destacado: a falta de um espaço para descanso é vista como o principal problema estrutural da escola. A indignação se concentrava, com isso, no tempo que ali permaneciam: “[…] a gente estava estudando além do horário que deveria estudar” e “[…] corremos atrás pra arrumar isso” (E). O pleito foi encampado pela gestão: “[…] até a diretora da regional ficou contra a gente; porque a gente não podia fazer isso, porque era nosso nome que tava em jogo […] mas a gente bateu o pé […] os meninos estão insatisfeitos” (GB).

Após muito esforço, houve a redução do integral de cinco dias na semana para três dias, o que viabilizou a possibilidade de descanso aos estudantes e de planejamento e colaboração aos professores, uma vez que, em função do trabalho com os estudantes todos os dias, não havia tempo hábil para os professores se reunirem. Uma interessante contradição: menos dias de tempo integral gerou mais dimensões integradas. E mais do que a alteração de horários em si, esse fato é vórtice da percepção dos estudantes de que eles podem atuar na política, dialogar com a gestão e promover melhorias para os problemas de sua própria vida. A falta de recursos, a falta de espaço de descanso e o desconforto foram aspectos que impulsionaram o protagonismo. Não apenas a falta, mas ela combinada com a expectativa e a confiança de que era possível uma condição melhor.

É nesse sentido que a forma de a escola trabalhar o protagonismo, baseada na busca de solução para problema real, não forjados em sala de aula, vem se constituindo num modelo de vivência escolar. Outro exemplo desse processo é a criação do grupo de estudantes voluntários.

Na prática da coordenação pedagógica de disseminar informações de oportunidades de desenvolvimento aos estudantes, foi divulgado o Programa Jovens Embaixadores, da embaixada Norte Americana, e isso despertou interesse de alguns estudantes para um possível intercâmbio nos Estados Unidos. De um problema decorrente, trazido por um estudante, construiu-se a solução: “[…] tem que ter um ano de serviço voluntário. E não dá pra ter isso numa escola que é de tempo integral. Vamos criar então aqui um programa” (GD).

Assim surgiu o projeto de Estudantes Voluntários, que, primeiro, se focou em criar as redes sociais da escola e, progressivamente, foi ampliando-se para outras frentes, de forma orgânica: “[…] o grupo foi crescendo e foi se auto alimentando” (GC)

Eu mesma entrei por causa dos jovens embaixadores, só que quando eu vi que a gente podia realmente fazer a diferença, que não é ser só um diploma e ah… o voluntariado. Cara, eu me dediquei muito e realmente ganhei um carinho muito grande pelo voluntário (E).

O grupo de estudantes voluntários chamou nossa atenção por ter modelagem que quebra o processo linear que, em regra, se estabelece no sentido Gestão » Professor » Estudante, como uma relação de sentido único. Os voluntários geram uma aproximação estudantes-gestão, em sentido duplo, uma vez que tanto a gestão se torna mais profícua em atender as demandas dos estudantes quanto os estudantes contribuem com a gestão naquilo que foge à sua condição de fazer sozinha. Esse grupo abrange atualmente cerca de 40 estudantes, de um total de 440 matrículas da escola. De todo modo, o que se percebe é que a perspectiva de protagonismo não se restringe a isso: “[…] muito aluno nem manifesta esse protagonismo na sala de aula. Mas ele cria coisas por fora da sala de aula. Então muito aluno traz parceria, traz contato…” (GD).

Entendemos que isso decorre da assunção, pelos estudantes, de que eles têm uma leitura mais profunda dos problemas da escola do que a própria gestão:

Não fosse isso, a gente taria desorganizado igual 2017 […] não fosse isso, os próprios estudantes propondo melhorias, acho que a gente não taria como a gente tá hoje […] tem coisa assim que a direção da escola não tá sabendo mas a gente sabe que a gente tem que mudar (E).

Essa forma de perceber e agir é alimentada também pela postura predominante dos professores: “[…] tento estabelecer vínculo de confiança, de troca, sem hierarquizar […] sento na altura deles […] invertendo a estrutura da sala de aula” (P1); procuram realizar um “[…] intenso exercício de escuta entre as e os estudantes para que se decida em grupo” (P5). Nesse sentido, percebe-se que o protagonista não é aquele que usualmente entendemos como um ator destacado entre muitos, mas sim o coletivo, com todos tendo seu espaço:

Olha, eu percebo o protagonismo de todos os atores envolvidos como muito maiores, né. Muito maiores do que em qualquer outra escola onde eu já estive, onde se tem uma organização muito mais hierárquica e autoritária mesmo, tipo é assim e pronto. Enquanto ali […] é uma relação muito mais construída. Às vezes eu vejo os alunos fazendo umas coisas que eu nem sabia que eles podiam fazer, sabe, assim, eu acho isso muito legal (P1).

É relevante destacar que os estudantes, ao perceberem suas possibilidades de participação ativa, raras vezes apresentam posturas fatalistas em relação à política. Por parte de gestores e professores, há também uma visão proativa destacável, mas estão presentes os calos construídos ao longo da vida: “[…] me incomoda muito quando a gente tem uma política pública educacional que é pensada de cima pra baixo, por pessoas que, se brincar, nunca entraram numa sala de aula” (P1).

Mesmo com as ressalvas, o que ficou evidenciado é que o ambiente ativo estimula posturas mais construtivas. Apesar de extenso, o registro abaixo, de um dos professores que estava na escola desde antes da PEMTI, demonstra bem a capacidade que o ambiente tem de influenciar:

[…] quando eu cheguei na escola […] era um cara tradicional e frio, […] percebi que eu não atingia tanto os alunos quanto alguns outros colegas meus que tinham um relacionamento […] um pouquinho mais aberto com os alunos, de ouvir um pouco mais, de trocar um pouco mais […]. Então, por que não tentar? E aí eu comecei a trocar um pouco mais com os alunos. Diria que assim, o gatilho pra mim foi ver alguns colegas meus que tinham um relacionamento mais aberto com os alunos tendo resultados melhores do que os meus (P4).

Por todo o exposto, ratificamos a política educacional, no caso em questão a PEMTI, como extremamente complexa, promotora de fluxos e desequilíbrios, sentido no qual se efetiva, na prática, o conceito de Saravia (2006)SARAVIA, Enrique. Introdução à Teoria da Política Pública. In: SARAVIA, Enrique; FERRAREZI, Elisabete (Org.). Políticas Públicas. Coletânea. Volume 1. Brasília: ENAP, 2006. P. 13-42. Disponível em: http://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/3132/1/Coletanea_pp_v1.pdf. Acesso em: 12 nov. 2018.
http://repositorio.enap.gov.br/bitstream...
. Contudo, ao tempo que vimos no espaço da escola analisada ações muito positivas, percebemos o movimento de “desconvites” a professores, estudantes e modalidades de ensino, evidenciando o caráter altamente excludente da Política. Também reafirmamos a fluidez, no exemplo de que um programa da embaixada Norte Americana influenciou na forma de organização da escola, não por um recurso ou por uma norma, mas por movimentar um desejo dos estudantes. Quando a informação flui, e as pessoas têm consciência de suas reais condições, é dado o direito de escolha, que não significa uma opção em um rol, mas sim a interação com a própria realidade e a vivência de que possibilidades podem ser construídas e reformuladas: perceber-se capaz de ações de poder, na acepção de Foucault (2014)FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014..

Por outro lado, fica evidenciado que ainda há estruturas políticas rígidas e limites substanciais às fronteiras de ação. Em outras palavras: o poder ainda é demasiadamente centralizado, por meio de barreiras que limitam o fluxo de decisões que, por sua vez, estão atreladas a um modelo de pensar a política ainda deveras verticalizado. Nesse sentido, reencontramos o alerta de Morin (2014)MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2014., de que para pensar uma reforma é preciso reformar o pensamento. Nossa imersão na escola evidenciou que construir uma nova forma de pensar é possível, mas exige substanciais perturbações do ambiente. Ainda, pelo que analisamos para fora da escola, mesmo não sendo uma recorrência, trata-se de um processo emergente (Moraes, 2004MORAES, Maria Cândida. Pensamento Eco-Sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI. Petrópolis: Vozes, 2004.)

Conclusões: uma questão de escolha?

Ao desenvolvermos a pesquisa, buscando perceber fluxos e desequilíbrios e concebendo a realidade como complexa e imersa na fluidez dos tempos atuais, teríamos mais sorte em compreender a realidade, do que se buscássemos verdades ou fatos imutáveis. Também esteve presente nos trabalhos de campo o retrato recorrente da escola pública, de conteúdos demasiados e desconectados. Poderíamos focar neles, mas detivemo-nos ao nosso objetivo, que era buscar por possibilidades orgânicas dentro de uma política que se iniciou de cima para baixo, carente de diálogos. E essas possibilidades também se mostraram claras.

Vimos que a escola não recebeu os fluxos devidos de informação e recursos. Mas ela os desenvolveu por meio das pessoas e do espaço temporal criado. A dissintonia da PEMTI em relação à aprovação da BNCC mostrou-se uma oportunidade, na medida em que gerou um espaço aberto, e tensão para que ele fosse preenchido. Notamos que essa abertura evidenciou um grande diferencial: a escolha.

Fazer escolhas presume a capacidade de escolher e, também, de ter as condições para isso. Isso nos leva à tese da prevalência da auto-eco-organização. O desafio da política central é reconhecer suas limitações e aceitar que sua fertilização ocorre no seio das instituições que estão em contato cotidiano com as vidas às quais se dedicam. Assumindo isso, ela deve saber que, se não interagir com instituições vivas, não será mais do que uma instituição zumbi (Bauman, 2001BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.). Afinal, só faz sentido presumir a “[…] auto-eco-organização ao conceber um sistema como organização viva” (Moraes, 2004MORAES, Maria Cândida. Pensamento Eco-Sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI. Petrópolis: Vozes, 2004., p. 74). Ao forjar barreiras aos recursos e não se dedicar à fluidez das informações, as instâncias centrais e intermediárias bloqueiam o fluxo vital das instituições.

Entendemos que a PEMTI, a BNCC e as DCEM viabilizam múltiplos arranjos, o que permite que cada escola trabalhe com seu contexto e construa sua resposta: a fórmula não pode ser uma forma pré-definida, mas um fomento à auto-definição, à auto-eco-organização. Assim como a escola tem feito com seus estudantes, injetando informação e energia para que desenvolvam sua capacidade de auto-organização, é preciso também esse apoio em relação às escolas.

Em nossa jornada de pesquisa, fica evidente que não é uma reforma em seus aspectos normativos ou de decisões centrais que gera efeito sobre a vida das escolas. Essas ações podem, a depender de como são empreendidas, gerar os desequilíbrios esperados da política, sem determinar os caminhos. O que se pode fazer é abrir portas a diálogos e recursos, viabilizar escolhas. Depois disso, cabe aos mecanismos da política pública assumir um processo de averiguação, com finalidade de apoio e garantias. Em síntese, é preciso fazer fluir energia nas escolas, sinalizar que elas podem, sim, reinventarem-se, e ver como reagem.

Gestão, professores e estudantes estão imersos no contexto social que dissemina o discurso de que a educação e a escola pública estão em estado de falência. Não há organização que resista a isso, seja pública ou privada, de educação ou negócios. A escola tem sofrido desse mal e resistido de modo admirável a inúmeros ataques. O que percebemos, porém, é que uma instituição acreditada pode se reinventar, por incursão de energia advinda das pessoas que ali ainda veem um ambiente profícuo, e inspiram-se mutuamente.

Portanto, concluímos que a PEMTI será bem-sucedida se oferecer as condições mínimas em termos de recurso, permeando ao invés de edificando as fronteiras políticas. O NEM, por sua vez, tem desafios maiores, pois não pode gerar os desequilíbrios aqui expressos apenas nas participantes da PEMTI: é preciso criar as oportunidades de escolha em todas as escolas, para que alcancemos todos os estudantes do Ensino Médio, e também aqueles que ao longo de suas histórias pessoais foram convidados a abandonar essa etapa dos estudos, muitas vezes, pela imposição de um rol que tinha opções, mas não possibilidades.

Nota

  • 1
    Este número refere-se a falha de preenchimento do censo, mas está como número oficial.

Referências

  • ARRETCHE, Marta. Tendências no estudo sobre avaliação. In: RICO, Elizabeth Melo (Org.). Avaliação de Políticas Sociais: uma questão em debate. São Paulo: Cortez, 2009.
  • AZEVEDO, Fernando de. Manifesto dos pioneiros da educação nova. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 79, p. 108-127, 1944.
  • BACON, Francis. Novum Organum São Paulo: Nova Cultural, 1999.
  • BALL, Stephen John. Educação Global S.A: novas redes políticas e o imaginário neoliberal. Tradução: Janete Bridon. Ponta Grossa: UEPG, 2014.
  • BALL, Stephen John; MAGUIRE, Meg; BRAUN, Annette. Como as Escolas fazem Políticas: atuação em escolas secundárias. Ponta Grossa: Editora EUPG, 2016.
  • BALL, Stephen John; MAINARDES, Jefferson (Org.). Políticas Educacionais: questões e dilemas. São Paulo: Cortez, 2013.
  • BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
  • BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
  • BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm Acesso em: 12 nov. 2018.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
  • BRASIL. Medida provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016. Institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral […]. Diário da Câmara dos Deputados, Suplemento, Brasília, DF, 1 dez. 2016. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/medpro/2016/medidaprovisoria-746-22-setembro-2016-783654-exposicaodemotivos-151127-pe.html Acesso em: 12 nov. 2018.
    » https://www2.camara.leg.br/legin/fed/medpro/2016/medidaprovisoria-746-22-setembro-2016-783654-exposicaodemotivos-151127-pe.html
  • BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, […]. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 fev. 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htm Acesso em: 12 nov. 2018.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htm
  • BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular Brasília: MEC, 2018.
  • CHOULIARAK, Lilie; FAIRCLOUGH, Normam. Discourse in Late Modernity: rethinking critical discourse analysis. Edimburgo: Edinburgh University Press, 1999.
  • CURY, Carlos Roberto Jamil. Federalismo político e educacional. In: FERREIRA, Naura Syria Carapeto. Políticas Públicas e Gestão da Educação – Polêmicas, Fundamentos e Análises. Brasília: Editora Liber Livro, 2011.
  • DALE, Roger. A sociologia da educação e o Estado após a globalização. Educação & Sociedade, Campinas, v. 31, n. 113, p. 1099-1120, 2010.
  • DE MONTAIGNE, Michel. Dos canibais São Paulo: Alameda, 2009.
  • DILTHEY, Wilhelm. Introdução às Ciências Humanas: tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história. Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
  • FAIRCLOUGH, Norman. Análise Crítica do Discurso como Método em Pesquisa Social Científica. Linha d’Água, São Paulo, v. 25, n. 2, p. 307-329, 2012.
  • FEYERABEND, Paul. Contra o método São Paulo: UNESP 2007.
  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
  • GAMBOA, Silvio Sánchez. Pesquisa em Educação: métodos e epistemologias. Chapecó: Argos, 2012.
  • GÜNTHER, Hartmut. Pesquisa Qualitativa versus Pesquisa Quantitativa: esta é a questão. Psicologia: teoria e pesquisa, UnB, Brasília, v. 22, n. 2, p. 201-210, 2006.
  • INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar: 2013. Brasília: INEP, 2014. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados Acesso em: 12 jul. 2022.
    » https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados
  • INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar: 2014. Brasília: INEP, 2015. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados Acesso em: 12 jul. 2022.
    » https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados
  • INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar: 2016. Brasília: INEP, 2017. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados Acesso em: 12 jul. 2022.
    » https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados
  • INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar: 2017. Brasília: INEP, 2018. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados Acesso em: 12 jul. 2022.
    » https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados
  • INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar: 2018. Brasília: INEP, 2019. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados Acesso em: 12 jul. 2022.
    » https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar/resultados
  • KUHN, Thomas Samuel. A Estrutura das Revoluções Científicas São Paulo: Perspectiva, 1975.
  • MARIOTTI, Humberto. Pensamento Complexo: suas aplicações à liderança, à aprendizagem e ao desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora Atlas, 2010.
  • MORAES, Maria Cândida. Pensamento Eco-Sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI. Petrópolis: Vozes, 2004.
  • MORAES, Maria Cândida; BATALLOSO, Juan Miguel. Complexidade e transdisciplinaridade: impactos sobre as políticas públicas nas áreas de educação, saúde e meio ambiente. In: DITTRICH, Maria Glória; RAMOS, Flávio; NETO, Mário Uriarte (Org.). Políticas Públicas na Contemporaneidade: olhares cartográficos temáticos. Itajaí: Univali, 2017. P. 35-56.
  • MORIN, Edgar. O Método 1: a natureza da natureza. Porto Alegre: Editora Sulina, 2013.
  • MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2014.
  • MORIN, Edgar. A Via para o Futuro da Humanidade Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.
  • POPPER, Karl Raimund. A Lógica da Pesquisa Científica São Paulo: Cultrix, 2004.
  • POWER, Sally. O Detalhe e o Macrocontexto: o uso da teoria centrada no Estado para explicar práticas e políticas educacionais. In: BALL, Stephen John; MAINARDES, Jefferson (Org.). Políticas Educacionais: questões e dilemas. São Paulo: Cortez, 2011.
  • SARAVIA, Enrique. Introdução à Teoria da Política Pública. In: SARAVIA, Enrique; FERRAREZI, Elisabete (Org.). Políticas Públicas Coletânea. Volume 1. Brasília: ENAP, 2006. P. 13-42. Disponível em: http://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/3132/1/Coletanea_pp_v1.pdf Acesso em: 12 nov. 2018.
    » http://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/3132/1/Coletanea_pp_v1.pdf
  • SHULTZ, Lynette. Governança Global, Neocolonialismo e Respostas Democráticas para Políticas Educacionais. In: GUIMARAES-IOSIF, Ranilce (Org.). Política e Governança Educacional: contradições e desafios na promoção da cidadania. Brasília: Liber Livro, Universa, 2012. P. 25-40.
  • WATHIER, Valdoir Pedro. Reforma do Ensino Médio: vamos pensar uma educação ecossistêmica? 2019. 240 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-graduação, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2019.
  • WATHIER, Valdoir Pedro; GUIMARAES-IOSIF, Ranilce. Pesquisa em Financiamento da Educação: fundamentos epistemológicos para definição metodológica. In: ENCONTRO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO DA REGIÃO CENTRO-OESTE, Reunião Científica Regional da ANPED, 13., 2016, Brasília. Anais [...] Projeto Nacional de Educação: Desafios Éticos, Políticos e Culturais. Brasília/DF: UnB, 2016.
  • WATHIER, Valdoir Pedro; GUIMARAES-IOSIF, Ranilce. Reforma do Ensino Médio: o que essa política fomenta? In: JESUS, Wellington Ferreira (Org.). O Financiamento da Educação em Tempos de Golpe Parlamentar e da PEC 95/2016: antigos desafios e novas possibilidades. Uberlância: Culturatrix, 2017.

Editado por

Editora responsável: Lodenir Karnopp

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2021
  • Aceito
    05 Maio 2022
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Faculdade de Educação Avenida Paulo Gama, s/n, Faculdade de Educação - Prédio 12201 - Sala 914, 90046-900 Porto Alegre/RS – Brasil, Tel.: (55 51) 3308-3268, Fax: (55 51) 3308-3985 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: educreal@ufrgs.br