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O Fenômeno Edutubers segundo a Revista Nova Escola

RESUMO

Este trabalho buscou mapear as enunciações sobre os youtubers da educação na revista Nova Escola. A partir da questão: ‘Como são representados os professores e os processos de ensino nas publicações da revista Nova Escola que tematizam o uso da plataforma de vídeos YouTube?’, e de referencial teórico advindo dos Estudos Culturais, realizou-se uma análise enunciativa de inspiração foucaultiana. O corpus foi constituído por 17 matérias, com dois focos de análise identificados: as recorrências enunciativas associavam educação à ação de entreter e apontavam o uso do YouTube como inovador. Questiona-se de que modo tais resultados afetam identidades e práticas docentes.

alavras-chave
Edutubers; YouTube; Identidades Docentes

ABSTRACT

This paper sought to map the enunciations about education YouTubers in the Nova Escola magazine. Starting from the question: ‘How are teachers and teaching processes represented in the publications of Nova Escola magazine that discuss the use of YouTube video platform?’, and adopting a theoretical framework derived from Cultural Studies, an enunciative analysis of Foucaultian inspiration was carried out. The corpus consisted of 17 articles, with two focuses of analysis identified: the enunciative recurrences associated education with the action of entertaining and pointed to the use of YouTube as innovative. It is questioned how such results affect teachers’ identities and practices.

Keywords
Edutubers; YouTube; Teacher Identities

Introdução

Os youtubers estão mudando o jeito de educar? Essa interrogação se apresenta a nós, que pesquisamos e atuamos na área da formação de professores, como uma provocação. Especialmente porque as mudanças no jeito de educar, neste caso, envolvem questões mais amplas, como as ligadas ao mundo do trabalho; e aquelas que dizem respeito à relação público x privado em nossa sociedade; e, ainda, só para citar alguns exemplos, as subjetividades emergentes decorrentes desse processo – quando passamos a nomear professor como youtuber, e aluno como audiência.

Inspiradas no tipo de reflexão que Rosa Maria Bueno Fischer (2013)FISCHER, Rosa Maria Bueno. Televisão & Educação: fruir e pensar a TV. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. vem fazendo nas últimas décadas – ao estudar as relações entre educação e televisão –, interessa-nos aqui problematizar a plataforma de vídeos YouTube, simultaneamente, como linguagem e como fato social. Especialmente porque, nas palavras da pesquisadora “[…] há […] um cruzamento básico aí, entre uma forma de expressão cultural, própria do nosso tempo, e modos de aprender e de ensinar, certamente alterados justamente pela existência desse e de outros meios de comunicação e informação” (Fischer, 2013FISCHER, Rosa Maria Bueno. Televisão & Educação: fruir e pensar a TV. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 20).

O tema tem recebido, mais recentemente, a atenção de pesquisadores sob diversas perspectivas de interesse. Um levantamento junto a Scopus, banco de dados internacional de resumos e citações referente aos anos de 2020 a 2022, a partir do termo [edutubers], remeteu-nos a pelo menos cinco trabalhos. Destacamos aqui a produção de Daniel Pattier (2021)PATTIER, Daniel. Science on Youtube: successful edutubers. Techno Review, UAM, Madrid, v. 10, n. 1, p. 1-15, 2021. Disponível em: https://journals.gkacademics.com/revTECHNO/article/view/2696. Acesso em: 2 jun. 2022.
https://journals.gkacademics.com/revTECH...
, que analisou 41 canais educacionais no YouTube dedicados ao ensino de Ciências, cujos resultados foram divulgados neste artigo sob o título Science on Youtube: Successful Edutubers. A investigação indica que a presença dos youtubers nas demais redes sociais é um fator de sucesso dos canais analisados, pois 85,4% deles também estão presentes no Twitter, 68,3% no Instagram e 78% no Facebook. Outra pesquisa que pode ser destacada é o estudo de Quintana et al. (2022)QUINTANA, Javier Gil et al. Nano-Influencers Edutubers: perspective of centennial generation families in spain. Media and Communication, Lisboa, v. 10, n. 1, p. 247-258, 24 feb. 2022. Disponível em: https://www.cogitatiopress.com/mediaandcommunication/article/view/4760. Acesso em: 2 jun. 2022
https://www.cogitatiopress.com/mediaandc...
, Nano‐Influencers Edutubers: Perspective of Centennial Generation Families in Spain. Na investigação foram aplicados 1.228 questionários e, destes, 20 foram analisados como amostra do corpus empírico. Nos resultados, há menção ao sucesso dos professores youtubers das escolas de redes privadas em comparação aos colegas que atuam em redes públicas de ensino.

Nesse cenário, apresentamos nossa contribuição a partir deste artigo. Fazemos um convite à reflexão acerca dos resultados parciais de nossa pesquisa, que tem como objetivo mapear as enunciações acerca dos youtubers da educação na versão online da revista Nova Escola, que foi incorporada pela Fundação Lemann em meados de 2015, após uma crise financeira da Editora Abril. A publicação tem como público-alvo professores e gestores da educação brasileira e faz parte do cotidiano de muitos colegas educadores, uma vez que disponibiliza planos de aula dos diferentes componentes curriculares, informação, notícias, materiais educacionais, cursos, formação para redes; ou seja, como a própria revista se anuncia ao leitor, nela você encontra tudo que precisa (Nova Escola, 2022NOVA ESCOLA. Associação Nova Escola. São Paulo: Fundação Lemann, 2022. Disponível em: https://novaescola.org.br/. Acesso em: 18 abr. 2022.
https://novaescola.org.br/...
).

Tomamos como problema de pesquisa a seguinte questão: “Como são representados os professores e os processos de ensino nas publicações da revista Nova Escola que tematizam o uso da plataforma Youtube?”. O campo teórico e metodológico da pesquisa é o dos chamados Estudos Culturais da Educação. Procedemos a uma análise enunciativa de inspiração foucaultiana.

Realizamos uma busca na versão online da revista, com as seguintes entradas: [edutuber], [youtube e educação], [youtuber]. Foram selecionadas 17 matérias que se mostraram mais diretamente ligadas à nossa questão-problema. Destacamos dois focos decorrentes da análise realizada neste material empírico, que trazemos ao debate:

a) as recorrências enunciativas encontradas associam educação à ação de entreter, vocábulo tomado aqui a partir do sentido que lhe atribuíam os latinos – manter junto, segurar1 1 Importa explicitar a situação em que nos encontramos enquanto autoras deste texto. Estamos, cada uma de nós, professoras e bolsista de pesquisa, há mais de 12 meses em isolamento/distanciamento social devido à pandemia de covid-19. O Brasil ultrapassou, no mês de março de 2021, quando estivemos mais diretamente envolvidas na escrita do artigo, 300 mil mortos pelo coronavírus. Desde meados de março de 2020, os prédios das instituições de ensino estão fechados na maior parte do tempo, sem receber estudantes. Passamos todos, progressivamente, com o avanço da pandemia, a oferecer o ensino remoto. Destaca-se que a pesquisa que deu origem à nossa comunicação já vinha sendo realizada desde o início de 2019, quando executamos outras etapas da investigação previstas no projeto. A etapa de produção dos dados, que foram coletados no mês de dezembro de 2020, se deu sem que aplicássemos filtro de data para o retorno das publicações. Com essa observação, queremos reforçar que há distinções sutis e outras mais evidentes entre ser um professor youtuber antes e depois da suspensão das aulas presenciais. Gravar vídeos sob a pressão da contingência atual a fim de manter o ensino remoto é um tanto diferente de tornar-se um youtuber como empreendedor digital na área dos serviços educacionais. Há, evidentemente, pontos convergentes também. O mais importante deles, ao nosso ver, está na popularização do uso de vídeos para marcar nossa telepresença junto dos alunos. ;

b) também foram recorrentes enunciações que apontam para o caráter de criatividade e inovação que o uso do YouTube representa, indicando a emergência do que é nomeado como um novo jeito de educar.

Em ambos os focos apresentados, fomos levadas a nos questionar sobre os efeitos desse acontecimento discursivo – os youtubers estão mudando o jeito de ensinar – e sobre as identidades e práticas docentes no âmbito da educação escolarizada.

O texto que segue apresenta, na seção 1, um breve esboço teórico e metodológico da pesquisa. Em seguida, na seção 2, são discutidos alguns dados produzidos como resultado da análise dos materiais empíricos. Por fim, na seção 3, ponderamos sobre as enunciações mais recorrentes mapeadas, buscando relação com a questão norteadora desta investigação. Nossas considerações finais devem ser entendidas como apontamentos ainda provisórios, pois desejamos avançar nos estudos acerca do tema do trabalho docente e sua relação com os edutubers, como assim têm sido nomeados os youtubers da educação.

Escolhas Teóricas e Metodológicas

No que concerne às concepções teóricas que sustentam este trabalho, pontuamos, inicialmente que entendemos o momento histórico que vivemos considerando a análise realizada por Noguera-Ramírez (2009)NOGUERA-RAMÍREZ, Carlos Ernesto. O Governamento Pedagógico: da sociedade do ensino para a sociedade da aprendizagem. 2009. 266 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/18256. Acesso em: 18 abr. 2021.
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. Ele nomeia a sociedade moderna como sociedade educadora. Para ele, a educação moderna pode ser dividida em três períodos históricos: 1) o período da sociedade do ensino, a partir da instituição da ideia comeniana de que é preciso ensinar tudo a todos, estabelecendo a educação como universal e enciclopédica; 2) o período do estado educador, em que cada vez mais os estados liberais modernos assumem a função educacional, com uma mutação operada no conceito de educação, de uma formação predominantemente moral para uma formação predominantemente voltada ao conhecimento, visto ser a razão a balizadora do homem moderno; 3) o período contemporâneo, nomeado como sociedade da aprendizagem (Popkewitz; Olsson; Petersson, 2009POPKEWITZ, Thomas; OLSSON, Ulf; PETERSSON, Kenneth. Sociedade da Aprendizagem, Cosmopolitismo, Saúde Pública e Prevenção à Criminalidade. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 2, p. 73-96, mai/ago, 2009.), no qual o foco é o aprendiz, o qual deve ser autônomo o suficiente para “aprender a aprender” em uma sociedade cada vez mais tecnológica e em acelerada mutação.

Podemos também vincular a parte mais recente deste terceiro período da educação na modernidade, identificado por Noguera-Ramírez (2009)NOGUERA-RAMÍREZ, Carlos Ernesto. O Governamento Pedagógico: da sociedade do ensino para a sociedade da aprendizagem. 2009. 266 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/18256. Acesso em: 18 abr. 2021.
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, às noções de sociedade do espetáculo, de Guy Debord (1967)DEBORD, Guy. La Société du Spectacle. Paris: Buchet-Chastel, 1967., sociedade da informação, de Daniel Bell (1973)BELL, Daniel. The Coming of Post-Industrial Society: a venture in social forecasting. New York: Basic Books, 1976., sociedade do conhecimento, de Peter Drucker (1993)DRUCKER, Peter. Post-Capitalist Society. New York: Harper Collins, 1993. e de sociedade em rede, de Manuel Castells (2005)CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 2005.. Pensadores sociais fundamentais para montar o cenário teórico que serve de grade de inteligibilidade às questões aqui discutidas.

É nesse contexto de ênfase cognitiva, de proliferação de mídias e de tecnologias, e de múltiplas tentativas de apreensão conceitual sobre as transformações sociais em curso, que surge, em junho de 2005, a plataforma de vídeos online YouTube. Na ocasião, a internet já completava 10 anos de abertura comercial, e os computadores pessoais se faziam cada vez mais presentes em companhias e lares, acompanhados por dispositivos móveis como PDAs desde a década de 1990 e por smartphones rudimentares a partir do início do milênio.

A plataforma foi fundada por ex-funcionários do website de comércio online PayPal, Chad Hurley, Steve Chen e Jawed Karim, sob a premissa de remover barreiras técnicas ao compartilhamento ilimitado de vídeos online. A interface integrada permitia aos usuários carregar, publicar e visualizar vídeos sem a necessidade de habilidades técnicas e com a utilização de padrões dos navegadores e a modesta largura de banda da época. Os vídeos ali publicados podiam ser vinculados a outros usuários e websites por meio de hiperlinks, havendo como única restrição o tempo de duração dos vídeos que poderiam ser carregados: 5 minutos, à época.

Com tantas possibilidades de produção de conteúdos e de compartilhamento por meio de interações sociais em rede, a plataforma alcançou popularidade, contando com um repertório de 85 milhões de vídeos carregados já no ano de 2008 (Burgess; Green, 2009BURGESS, Jean; GREEN, Joshua. YouTube: online video and participatory culture. Cambridge, UK; Malden, MA: Polity Press, 2009.). Expoente tecnológica da cultura da participação, os primeiros vídeos publicados tinham como conteúdos majoritariamente videoclipes musicais e animais domésticos, mas os usos da plataforma foram sendo diversificados ao longo dos anos.

Atualmente, diversas culturas e subculturas ‘habitam’ o YouTube, que abriga canais sobre os mais diversos assuntos, desde esportes, notícias, política, economia, entretenimento, culinária, artes, games e cultura em geral, incluindo amenidades, como “pegadinhas”, listas sobre os melhores e piores dos mais diversos temas, e paródias variadas. Chama a atenção, na plataforma, a emergência de novos gêneros discursivos em vídeo, como a resenha de produtos e serviços, que vão de eletrodomésticos a eventos. Também, destacam-se os tutoriais de todos os tipos, que ensinam sobre receitas culinárias, técnicas de embelezamento, manutenção de equipamentos, construção de móveis e uso de softwares e aplicativos, entre outros.

A plataforma diversifica seus serviços e conta, cada vez mais, com produtores de conteúdos especializados, que a sustentam, os denominados youtubers. Alguns deles alcançam fama e seguidores a nível internacional. Eles são os principais provedores de lucro à plataforma, por meio de parcerias com marcas anunciantes.

Uma vez que a modernidade se assume, conforme Noguera-Ramírez (2009)NOGUERA-RAMÍREZ, Carlos Ernesto. O Governamento Pedagógico: da sociedade do ensino para a sociedade da aprendizagem. 2009. 266 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/18256. Acesso em: 18 abr. 2021.
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, como sociedade educadora, não poderiam deixar de surgir ‒ nesse caldeirão de liberalismo tecnocientífico híbrido de espetáculo, informação, conhecimento e crítica purificadora em rede (Latour, 1994) ‒, os edutubers, youtubers especializados em educar.

No que concerne ao método de pesquisa adotado aqui, esclarecemos nossa filiação junto aos Estudos Culturais em Educação. Os procedimentos envolvidos nas etapas de produção e análise dos dados empíricos mobilizaram o uso de conceitos foucaultianos que nos serviram como ferramentas operacionais, tais como: discurso, enunciado, enunciação. Tomamos a noção de discurso, entendendo-a a partir do que ensina Fischer (2013, p. 78):

[…] como o conjunto de enunciados de um determinado campo do saber, os quais sempre existem como prática, […] eles são constituídos de uma série de enunciados, que existem propriamente como prática discursiva (há saberes articulados produzidos nesses discursos) e como acontecimento histórico, institucional e social (inseparável de uma série de regras, normas, modos de exercício do poder, formas de comunicação, lutas políticas).

Importante destacar, de tal concepção, a ideia mais importante apresentada por Foucault para este tipo de trabalho que ora realizamos: “[…] o discurso é ele mesmo uma prática: o discurso constitui nossas práticas e é construído no interior dessas mesmas práticas” (Fischer, 2013FISCHER, Rosa Maria Bueno. Televisão & Educação: fruir e pensar a TV. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 78).

No que diz respeito a enunciado e enunciação, igualmente alinhadas à Fischer, entendemos que “[…] enunciação seria aquilo que é dito ou mostrado numa determinada cena (texto). Para descrever os enunciados de um discurso, certamente precisamos recorrer a enunciações, analisar o que é dito, escrito ou mostrado em diferentes materiais”. Nesse sentido, o enunciado seria “[…] aquilo que faz com que essas coisas sejam ditas” (Fischer, 2013FISCHER, Rosa Maria Bueno. Televisão & Educação: fruir e pensar a TV. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p. 78-79).

Assim, o que nos desafiamos a fazer aqui, como modesta contribuição ao campo da educação em sua interface com as tecnologias, foi mapear as unidades dispersas dos discursos – as enunciações –, e rastrear, na superfície desses ditos acerca das transformações no ensino decorrentes da emergência da plataforma de vídeos YouTube, enunciados que nos permitam refletir sobre os efeitos desse processo sobre as identidades e práticas docentes.

Operacionalmente, mapeamos as enunciações acerca dos youtubers postas em circulação na versão online da revista Nova Escola, cuja compilação sintética dos resultados está na Tabela 1 a seguir. Ao lermos cada uma das matérias, perguntávamo-nos: “Como o professor é narrado? Quais características lhes são atribuídas? Quais os métodos de ensino são descritos?”. Essas questões nos ajudavam a manter o foco nas identidades e nos métodos utilizados pelos youtubers da educação.

Tabela 1
Youtubers na Revista Nova Escola

Precisamos esclarecer que, ao digitar cada um dos termos acima, o site nos apresentava 10 resultados por página. Lemos cada uma das publicações nas muitas páginas indicadas como resultado da pesquisa para cada um dos termos. Mas, embora uma tag tenha sido posta pela revista, na matéria, relacionando-a com a palavra-chave que estávamos pesquisando, a leitura que realizávamos nos mostrava que, de fato, a maioria das publicações não correspondia à temática, e, por vezes, os resultados se repetiam mesmo se usássemos qualquer uma das três entradas distintas para pesquisa. Por isso, muitas matérias não foram incluídas no corpus empírico da pesquisa. Dessa triagem inicial, conseguimos apenas 17 publicações que realmente traziam elementos que se relacionavam à nossa questão nesta investigação, qual seja “Como são representados os professores e os processos de ensino nas publicações da revista Nova Escola que tematizam o uso da plataforma YouTube?”, como apresentamos na Tabela 2 abaixo.

Tabela 2
Matérias na Revista Nova Escola que tematizam o uso do YouTube como ferramenta de ensino

Alinhadas a Marluce Alves Paraíso (2012, p. 37-38)PARAÍSO, Marluce Alves. Metodologias de Pesquisas Pós-Críticas em Educação e Currículo: trajetórias, pressupostos, procedimentos e estratégias analíticas. In: MEYER, Dagmar Estermann; PARAÍSO, Marluce Alves (Org.). Metodologias de Pesquisas Pós-críticas em Educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012. P. 23-45., na etapa seguinte da pesquisa procedemos à descrição dos ditos, pois “[…] a descrição é extremamente importante em nossos modos de pesquisar, porque é por meio dela que estabelecemos relações dos textos, dos discursos, dos enunciados em suas múltiplas ramificações”.

Finalmente, em uma terceira fase de trabalho, da qual decorre este artigo, analisamos os resultados obtidos para refletir sobre o modo como, uma vez que assume um estatuto pedagógico, a mídia “ensina” verdades sobre os professores e o ensino no interior da relação saber-poder por ela tornada possível. Afinal, “[…] se a descrição que fazemos dos textos e discursos é sempre analítica, a análise que fazemos das relações de poder é sempre descritiva” (Paraiso, 2012PARAÍSO, Marluce Alves. Metodologias de Pesquisas Pós-Críticas em Educação e Currículo: trajetórias, pressupostos, procedimentos e estratégias analíticas. In: MEYER, Dagmar Estermann; PARAÍSO, Marluce Alves (Org.). Metodologias de Pesquisas Pós-críticas em Educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012. P. 23-45., p. 38).

A intenção é pôr em suspenso as verdades que circulam, por meio de tais enunciações com mais recorrência, e procurar refletir sobre os possíveis efeitos de subjetivação implicados na nossa relação com a revista. Alinhadas a Sibilia (2012)SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012., permitimo-nos, aqui, pôr o nosso “presente em questão”. Afinal, nós mesmas, como docentes, nos vemos envolvidas gravando aulas, garimpando recursos tecnológicos que tornem nosso vídeo mais atrativo, incorporando métodos de ensino mais adequados ao novo formato da sala de aula durante a pandemia de coronavírus no Brasil. De fato, assumimos que

[…] sermos contemporâneos não é uma tarefa isenta de riscos: se estivermos atentos aos sinais do mundo, talvez tenhamos a sorte de que eles nos perturbem a ponto de suscitarem o pensamento; mas isso só ocorrerá se conseguirmos escapar dos perigos que aparecem quando pisamos terrenos tão pantanosos sem evitar a complexidade dos fenômenos nem desprezar suas contradições

(Sibilia, 2012SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012., p. 10).

Regularidades Enunciativas Mapeadas

Em meados de 2011, a revista Nova Escola publicou uma matéria intitulada 8 razões para usar o Youtube na sala de aula (Pechi, 2011aPECHI, Daniele. Os professores campeões de audiência no Youtube. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 11 nov. 2011a. Disponível em https://novaescola.org.br/conteudo/1856/os-professores-campeoes-de-audiencia-no-youtube. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/1856/...
, online). A chamada incitava o leitor a descobrir como utilizar a ferramenta para “[…] produzir vídeos e planejar aulas mais dinâmicas e interessantes” para os alunos. E o principal argumento apresentado, que reforçava a urgência do conteúdo, se reflete na afirmação que abre a matéria: “Prender a atenção dos estudantes, que estão cada vez mais conectados, não tem sido uma tarefa fácil para os educadores. O problema se torna cada vez maior conforme os alunos ficam mais velhos” (Pechi, 2011aPECHI, Daniele. Os professores campeões de audiência no Youtube. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 11 nov. 2011a. Disponível em https://novaescola.org.br/conteudo/1856/os-professores-campeoes-de-audiencia-no-youtube. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/1856/...
, online).

As oito dicas de uso da plataforma enunciam o papel do professor como mediador na medida em que reúne as dúvidas apontadas em aula e indica bons vídeos para saná-las; como um curador que atua na criação de playlists de vídeos confiáveis na plataforma; ainda, como um incentivador, para que seus alunos também produzam conteúdos a serem compartilhados na plataforma.

No que diz respeito ao modelo de ensino enunciado na matéria em questão, chamou a nossa atenção a ênfase sobre o interesse dos alunos e como o uso do YouTube permitiria que eles explorassem assuntos de seu interesse com maior profundidade, a partir das indicações de temas e listas de conteúdos nas playlists do canal do professor.

No mesmo ano, uma matéria intitulada Os professores campeões de audiência no Youtube (Pechi, 2011bPECHI, Daniele. 8 Razões para usar o Youtube em Sala de Aula. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 11 nov. 2011b. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/1350/8-razoes-para-usar-o-youtube-em-sala-de-aula. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/1350/...
, online), tinha como objetivo apresentar “As experiências de profissionais de Educação que ficaram famosos na internet ao produzir conteúdos que ajudam alunos de várias partes do mundo”. Então o leitor é convidado a conhecer ao menos dois exemplos de professores que, à época, nos EUA, faziam sucesso com aulas gravadas no YouTube. É citada a ferramenta YouTube Teachers – a área educacional da plataforma, e lemos sobre ela que

A ideia da ferramenta – que oferece um passo a passo de como usar o Youtube para produzir vídeos e planejar as aulas – é fazer com que a ferramenta se torne uma rede consistente, formada por professores de todas as disciplinas. O objetivo é fazer com que os educadores troquem e compartilhem conteúdos em vídeo para serem apresentados em aula ou disponibilizados como material de apoio aos estudantes

(Pechi, 2011bPECHI, Daniele. 8 Razões para usar o Youtube em Sala de Aula. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 11 nov. 2011b. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/1350/8-razoes-para-usar-o-youtube-em-sala-de-aula. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/1350/...
, online, grifo nosso).

O uso de pesquisas e a entrevista a pesquisadores são de comum uso para reforçar o argumento de que a adoção de tecnologias em sala de aula é imperativa aos professores de nossos dias.

Em 2014, encontramos uma matéria intitulada Como seus alunos usam a tecnologia? Nela, logo percebemos a naturalização do uso das tecnologias contemporâneas pelo público que frequenta as escolas, quando lemos “[…] música, vídeos e jogos sempre fizeram parte do dia a dia de crianças e jovens” (Como…, 2014COMO seus alunos usam a tecnologia. Nova Escola, Fundação Victor Civita (FVC), São Paulo, 6 ago. 2014. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/4600/como-seus-alunos-usam-a-tecnologia. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/4600/...
, online, grifo nosso). Após apresentar resultados matemáticos e gráficos que procuram demonstrar a afirmação acima, todos dados decorrentes de uma pesquisa com 700 entrevistados, lemos ao final da matéria:

A pesquisa termina com uma sentença que pode ser vista como ameaça ou oportunidade: ‘Nativos digitais não se permitem ficar entediados’. Ela pode ser ameaça se o professor tiver receio de se reinventar e de repensar suas aulas em função dos novos comportamentos de crianças e jovens, mas uma oportunidade para quem se dispõe a compreender melhor essas novas tecnologias e utilizá-las a favor do ensino

(Como…, 2014COMO seus alunos usam a tecnologia. Nova Escola, Fundação Victor Civita (FVC), São Paulo, 6 ago. 2014. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/4600/como-seus-alunos-usam-a-tecnologia. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/4600/...
, online).

Aqui, vemos a questão do ensino relacionado ao entretenimento sendo enunciada como solução para professores diante de uma geração que vive, segundo têm sugerido alguns pensadores, na chamada “era do tédio” (Corea, 2010COREA, Cristina. Pedagogia del Aburrido. Buenos Aires: Paidós, 2010.).

As narrativas de professores que usam aplicativos e redes sociais para ensinar também se destacaram. A chamada da matéria enuncia o entusiasmo pela novidade, como podemos ler abaixo

Olá, educador! Uma das coisas que mais empolgam quem acompanha práticas inovadoras na Educação é ver docentes usando criativamente ferramentas do dia a dia com suas turmas. Isso mostra que, de maneira relativamente simples, é possível inovar com o que temos à mão – e isso inclui redes sociais, muitas vezes consideradas grandes concorrentes pela atenção na sala. Para inspirar você a tentar algo parecido – adaptando às necessidades e às características de seus alunos –, apresento cinco histórias bem-sucedidas de professores que usaram Facebook, WhatsApp, Instagram e Youtube nas aulas

(Sassaki, 2015SASSAKI, Claudio. Professores contam como Usam Redes Sociais e Aplicativos em Aula. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 8 dez. 2015. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/109/professores-contam-como-usam-redes-sociais-e-aplicativos-em-aula. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/109/p...
, online, grifos nossos).

Vamos destacar aqui a história de sucesso relativa ao uso do YouTube, assim como é narrada na revista Nova Escola. A revista entrevistou uma professora que participava, à época, da equipe técnica da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Sobre o projeto, lemos

O projeto Mediação e Linguagem, criado em 2014 e em continuidade em 2015, que tem por objetivo propor para alunos e professores a transposição das obras literárias para a linguagem do vídeo, do cinema e do podcast, por meio de orientações técnicas a distância (no formato de videoconferência), que contribuem para o letramento digital. A partir da formação, eles escolheram uma obra literária, que tinha sido trabalhada em sala de aula, e a adaptaram em um roteiro para curta de animação ou podcast (radionovela). Os trabalhos foram postados no Youtube, publicados em blogs e exibidos em Mostras Virtuais da SEESP. O projeto foi bastante significativo, pois com ele alunos e professores puderam anular as barreiras de sala de aula, que muitas vezes dificultam o ensino e a aprendizagem. Desde o momento da criação do roteiro até a finalização do audiovisual, eles se transformaram em colaboradores, trabalhando com o objetivo de se apropriarem da obra literária de forma prazerosa e interativa. Foi uma grande experiência para todos!

(Sassaki, 2015SASSAKI, Claudio. Professores contam como Usam Redes Sociais e Aplicativos em Aula. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 8 dez. 2015. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/109/professores-contam-como-usam-redes-sociais-e-aplicativos-em-aula. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/109/p...
, online, grifos nossos).

Grandes obras foram encenadas em vídeos curtos pelos alunos, tais como Os Miseráveis e Morte e Vida Severina, por exemplo.

Em uma outra edição, ainda em 2016, o imperativo tecnológico é enunciado em uma matéria intitulada Os alunos como produtores de conteúdos. Nela, a ênfase recai na mediação que os professores devem fazer ao promover, em suas aulas, experiências de produção de conteúdos no qual os alunos sejam protagonistas. Ali, lemos:

Todo esse processo é importante porque por muito tempo a escola foi consumidora apenas de informações da TV e do rádio. Mas não dá mais para ignorar as Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação. E isso exige a construção de uma didática reflexiva e crítica para que os alunos possam, também eles, ‘dar seu recado ao mundo’

(Os alunos…, 2016OS ALUNOS como produtores de conhecimento. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 24 maio 2016. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/4679/os-alunos-como-produtores-de-conteudo. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/4679/...
, online).

Na matéria em questão, a relação dos alunos com o YouTube é apresentada do seguinte modo

Experimente perguntar em sala de aula para os seus alunos quais os Youtubers preferidos deles e se eles seguem seus canais. Se você não sabe o que é Youtuber vale a explicação: são pessoas, das mais diversas idades, que produzem conteúdos diversos em vídeo e se comunicam pela internet, mais especificamente por meio do Youtube. Com o avanço da tecnologia, os alunos estão cada vez conectados às informações, mas também com maior domínio sobre as ferramentas de produção de conteúdo

(Os alunos..., 2016OS ALUNOS como produtores de conhecimento. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 24 maio 2016. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/4679/os-alunos-como-produtores-de-conteudo. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/4679/...
, online, grifos do autor).

Em agosto de 2016, na seção “Sala de Aula”, o título da matéria explicava O que o Youtube pode fazer pela sua aula. O primeiro exemplo dado indica o youtuber Átila Iamarino, que durante a pandemia alcançou ainda mais projeção nas redes sociais. À época, a revista narrava, desse modo, seu trabalho: “É assim, com criatividade e humor, que pesquisadores como Iamarino estão divulgando a ciência na internet e atraindo um grande público de crianças e adolescentes” (Cassimiro; Perozim; Cardoso, 2016CASIMIRO, Patrick; PEROZIM, Lívia; CARDOSO, Monise. O que o YouTube pode fazer pela sua aula. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, ago. 2016. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/8657/o-que-o-youtube-pode-fazer-pela-sua-aula. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/8657/...
, online, grifos nossos). Interessa-nos, ao final da matéria, um lembrete dado aos leitores, em sua maioria professores:

A seguir, selecionamos cinco canais de Youtubers brasileiros que traduzem o universo científico para uma linguagem jovem e atraente aos alunos. Vale lembrar que vlogs não substituem a aula. Eles podem ser um interessante gatilho para motivar a turma e introduzir a discussão de conceitos. O resto do trabalho duro, claro, segue concentrado nas suas mãos

(Cassimiro; Perozim; Cardoso, 2016CASIMIRO, Patrick; PEROZIM, Lívia; CARDOSO, Monise. O que o YouTube pode fazer pela sua aula. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, ago. 2016. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/8657/o-que-o-youtube-pode-fazer-pela-sua-aula. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/8657/...
, online, grifos nossos).

Novamente as enunciações se concentram na inovação e criatividade, sob o argumento da motivação, como meio de despertar o interesse dos alunos.

Na matéria intitulada Como usar a videoaula para inovar em sala, vimos circular diferentes enunciações que apontam para o imperativo tecnológico e o uso de vídeos para ensinar. Como lemos abaixo

As tecnologias fazem parte do nosso cotidiano. Como educadores, temos de aproveitar as possibilidades que elas trazem para tornar as aulas atrativas, promovendo concentração, interesse e motivação. É uma ferramenta fundamental para irmos a fundo nos problemas de ensino e encontrar novas maneiras de conceber a aprendizagem […] Aulas atrativas e interativas são importantes para ambos os lados. O professor consegue despertar a aprendizagem, foco e atenção da maioria dos alunos, e sente confiança, motivação e obtém resultados com o processo de aprendizagem. O aluno também ganha, com maior envolvimento, interação, compreensão e aproveitamento. […] A tecnologia é capaz de transformar o currículo, torná-lo mais envolvente e lhe atribuir novo sentido à sala de aula

(Garofalo, 2017GAROFALO, Débora. Como usar a Videoaula para inovar em Sala. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 7 jul. 2017. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/5072/como-inovar-na-sala-de-aula-com-o-uso-da-videoaula. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/5072/...
, online, grifos nossos).

A enunciação relaciona tecnologia, atratividade e transformação no campo do ensino, à semelhança de outras passagens já apresentadas. Reforçando o argumento de que o YouTube torna possível a emergência de novos modos de ensino.

Um ponto que nos chamou atenção, ainda, foram as enunciações que remetiam ao gigante da comunicação Google ‒ de que o YouTube faz parte ‒, como organizador de premiação para melhores iniciativas de educadores e alunos produtores de conteúdo (Seixas, 2021SEIXAS, Gabriel. Google e Governo de SP abrem Inscrições para premiar Influenciadores Digitais da Educação. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 11 ago. 2017. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/5343/vagas-e-oportunidades-google-e-governo-de-sp-abrem-inscricoes-para-premiar-influenciadores-digitais-da-educacao. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/5343/...
); também a oferta de cursos, por meio do evento “Cresce com o Google”, uma iniciativa gratuita da empresa de tecnologia para “treinamento digital para educadores” (Semis, 2018).

Ora, embora sutil, é um significativo deslocamento no campo do trabalho docente, a passagem da ideia de formação para outra, mais ligada a treinamento. Especialmente porque, em nosso tempo, parece que “[…] os conhecimentos técnicos – quanto mais especializados e prontos para um rendimento imediato no trabalho, melhor – vieram, a ser valorizados acima da formação cívica e ética […]” (Savater, 19972 2 SAVATER, Fernando. El Valor de educar. Barcelona: Ariel, 1997. , p. 45-45 apud Sibilia, 2012SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012., p. 134).

Nesse sentido, soma-se à enunciação de que é preciso entreter para educar, como estamos tentando demostrar aqui, outra que relaciona inovação a soluções técnicas para enfrentamento de velhos problemas da educação escolarizada. Ou seja:

Assim como a automação industrial e doméstica conseguiu eliminar a necessidade de se exercerem atividades físicas pesadas ou repetitivas, considera-se que seria desejável conceber soluções técnicas equivalentes que nos livrassem dos sofrimentos implícitos nos métodos tradicionais de escolarização

(Sibilia, 2012SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012., p. 137).

Se não, vejamos os excertos a seguir.

Em 2018, a revista havia publicado uma edição especial relativa à divulgação dos vencedores do Prêmio Educador Nota 10, nomeado como o mais importante na área da educação no país. Na seção Pesquisa, na qual se apresentam resultados de pesquisas realizadas por diferentes instituições, sempre relacionadas ao tema mais geral da edição mensal, temos uma matéria produzida por Oliveira (2018)OLIVEIRA, Tory. Como a Geração Z aprende? Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, out. 2018. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/12649/como-a-geracao-z-aprende. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/12649...
, intitulada Como a geração Z aprende? Então, lemos

Nascida após 1995, a Geração Z é a que tem mais interesse em aprender com a ajuda do Youtube: assistir vídeos é o método favorito de 59% dos jovens americanos com menos de 21 anos. Só perde mesmo para o professor, mas a plataforma agrada mais do que as aulas tradicionais, os aplicativos educacionais e os livros didáticos. A tendência foi capturada pela pesquisa The Next Generation of Learners, encomendada pela empresa de ensino digital Pearson. Para eles, cujos expoentes mais velhos chegam agora ao Ensino Superior, o acesso à informação (nem sempre de boa qualidade) é rápido e simples, mas há menos foco para se concentrar por um período prolongado em uma mesma atividade – um desafio para o professor acostumado às aulas expositivas tradicionais

(Oliveira, 2018OLIVEIRA, Tory. Como a Geração Z aprende? Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, out. 2018. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/12649/como-a-geracao-z-aprende. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/12649...
, online, grifos nossos).

Em seguida, sob o título Profissão: edutuber, vemos a indicação de três canais de youtubers, com milhares de seguidores, tomados como exemplo de quem “descomplica” e torna acessível os conteúdos escolares.

Desejamos destacar, ainda, a matéria que nos serviu de monumento3 3 “A discussão em torno do uso do termo ‘monumento’ para se referir a documentos históricos foi inaugurada pelo historiador francês Jacques Le Goff, e também considerada por Michel Foucault em suas pesquisas. Faz parte de um conjunto de posturas adotadas pelos historiadores ao longo do século XX a partir das reflexões no âmbito da historiografia, propostas pelos membros da Escola de Annales, na França. Significou a passagem de uma concepção dos monumentos e outras fontes documentais como vestígios do passado através dos quais se pode ‘reconstruir’ a verdade histórica, para outra, que compreende o documento como monumento construído a partir de relações de poder contingentes e que podemos ‘desconstruir’ – através do exercício inverso de análise até aquele momento adotado pelos historiadores – para compreender as condições históricas que condicionaram seu aparecimento” (Mutz, 2013, p. 14). nesta etapa da pesquisa, da qual decorre este artigo, correspondente ao trabalho com os materiais empíricos, intitulada Os Youtubers estão mudando o jeito de ensinar – e você pode ser um deles. Chamou a nossa atenção como as enunciações nas demais edições da revista, como demonstramos até aqui e iremos demonstrar ainda no restante do texto, tornam visível e dizível a afirmação de que os youtubers estão mudando o jeito de ensinar. Vejamos o argumento apresentado na abertura da matéria em questão:

É muito comum ouvir dos alunos a pergunta ‘Professora, tem algum vídeo que a gente possa ver para compreender melhor esse assunto?’. Estamos diante de uma nova geração de estudantes cada vez mais atraída pela Internet e pelos canais dos Youtubers. Enquanto nós, professores, atingimos em média 30 alunos em uma sala, eles chegam a milhões. Como educadores, temos de aproveitar as possibilidades que eles trazem para tornar nossas aulas atrativas. É uma ferramenta essencial para ir fundo nos problemas de ensino e encontrar novas maneiras de idealizar a aprendizagem

(Garofalo, 2018, online, grifos nossos).

Então, após apresentar seis dicas, voltadas aos leitores/professores que desejam iniciar um canal de vídeo e diversificar suas aulas, e indicar os canais de grandes youtubers, a revista encerra a matéria nos provocando o pensamento:

Os recursos visuais transformam o currículo, tornando-o mais envolvente e atribuindo novos sentidos à construção do conhecimento. Já pensou que a maior parte das informações que absorvemos hoje nos chegam pelo sentido da visão? Assim nos conectamos com o mundo exterior e assimilamos novos conhecimentos. Por isso, trabalhar com os estímulos visuais é importante para despertar o interesse e a curiosidade, além de ser um facilitador para compreensão do objeto estudado

(Garofalo, 2018GAROFALO, Débora. Os youtubers estão mudando o jeito de ensinar – e você pode ser um deles. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 6 mar. 2018. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/10249/os-youtubers-estao-mudando-o-jeito-de-ensinar--e-voce-pode-ser-um-deles. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/10249...
, online, grifos nossos).

Fizemos uma visita aos canais indicados na revista. Trazemos, aqui, apenas dois exemplos. O canal Manual do Mundo, conta com 14.5 milhões de inscritos. A soma de visualizações dos vídeos é de 2.672.148.850. As estatísticas impressionam. Na descrição do canal, lemos:

Olá! Somos o Manual do Mundo e viemos mostrar que há sempre um caminho mais interessante e divertido para aprender sobre as coisas ao nosso redor. Oferecemos produtos e conteúdos criativos que promovem experiências únicas de entretenimento e aprendizagem, no físico e no digital, sozinhos ou acompanhados

(Manual do Mundo, 2006MANUAL DO MUNDO. Brasil, 24 jul. 2006. YouTube: Manual do Mundo. Disponível em: https://www.youtube.com/c/manualdomundo/about. Acesso em: 18 jul. 2022.
https://www.youtube.com/c/manualdomundo/...
).

Outro canal referenciado na revista Nova Escola é o Se liga nessa história. São 1.43 milhões de inscritos e 59.874.317 visualizações. E a descrição do mesmo é a seguinte:

Este é o canal do Se Liga! Aqui você encontra videoaulas para aprender todas as disciplinas de forma fácil e bem-humorada! Somos um cursinho on-line e você pode conhecer a nossa plataforma de estudos. Lá, temos um curso completo de preparação para o Enem e os Vestibulares com aulas incríveis, exercícios com resolução comentada, correções de redação, simulados, plantão de dúvidas e todo o apoio que você precisa para estudar!

(Se liga - Enem e Vestibulares, 2014SE LIGA - ENEM E VESTIBULARES. Brasil, 3 nov. 2014. YouTube: Se liga – Enem e Vestibulares. Disponível em: https://www.youtube.com/c/SeLigaEnemeVestibulares/about. Acesso em: 20 jun. 2021.
https://www.youtube.com/c/SeLigaEnemeVes...
, online, grifo nosso).

As enunciações que relacionam ensino a entretenimento se repetem no conjunto do material empírico analisado. No caso da matéria intitulada Alunos criam Domingão do Platão para discutir filosofia em canal do Youtube (Menezes, 2018MENEZES, Uanderson de Jesus. Alunos criam Domingão do Platão para discutir filosofia em canal do YouTube. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 19 abr. 2018. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/11664/alunos-criam-domingao-do-platao-para-discutir-filosofia-em-canal-do-youtube. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/11664...
), isso fica bem evidente. Após destacar as dificuldades encontradas pelos professores de Filosofia para tornar a disciplina “dinâmica e atualizada” aos alunos do ensino médio, somos apresentados a um projeto intitulado TV FILOSOFIA. Sobre ele, lemos que:

O projeto levou a filosofia para onde os alunos estavam, já que a grande maioria deles têm acesso à internet, redes sociais, canais de vídeo, entre outros, porém poucos utilizam essas ferramentas para estudo e pesquisa. Da pesquisa de temas, passando pela elaboração dos trabalhos até a apresentação final, inúmeras são as contribuições que os educandos obtêm em sua formação humana e intelectual. O trabalho é de fácil aplicabilidade e pode ser levado para outras realidades educacionais. Como atividade central do trabalho os alunos deveriam criar um vídeo criativo sobre filosofia, incluindo temas, conceitos e discussões realizadas em sala de aula. Este vídeo deveria ser no formato de um mini programa de TV

(Menezes, 2018MENEZES, Uanderson de Jesus. Alunos criam Domingão do Platão para discutir filosofia em canal do YouTube. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 19 abr. 2018. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/11664/alunos-criam-domingao-do-platao-para-discutir-filosofia-em-canal-do-youtube. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/11664...
, online, grifo nosso).

E o acervo do projeto conta com muitos vídeos no YouTube. Trata-se de adaptações de programas já existentes na grade das grandes emissoras de televisão aberta no país, ou clássicos da literatura, e mesmo do cinema. Como está enunciado no texto da matéria:

Imagine conhecer um pouco mais sobre a filosofia grega assistindo ao programa ‘Domingão do Platão’, torcer para um dos competidores dos ‘Pensadores Vorazes’, entrar em uma história em quadrinhos no episódio de ‘O mundo sem filosofia’, entender um pouco mais sobre Freud e se aventurar com ‘Alice no país da loucura’, refletir sobre moral e ética através do episódio de ‘Em Família’, acompanhar as entrevistas de políticos da cidade e de pessoas comuns falando sobre diversos temas no ‘Jornal Filosofia da Política’ ou atualizar a alegoria da caverna de Platão assistindo ao curta-metragem ‘A mente do acorrentado’

(Menezes, 2018, online).

Na seção Inspire-se, conhecemos uma youtuber de 24 anos, criadora do canal A Matemaníaca. A matéria é de julho de 2019. Quando visitamos o canal, por ocasião da escrita deste artigo, encontramos 92,1 mil inscritos. A apresentação feita pela criadora, na seção Sobre, nos indica o perfil dela:

Aqui quem fala é a Julia Jaccoud, a Matemaníaca. Sou formada em Licenciatura em Matemática pela Universidade de São Paulo (IME-USP). Tudo que eu produzo para a internet tem o objetivo de popularizar a matemática mostrando-a da maneira bonita e divertida que eu vejo! Independente de onde você me acompanhar, verá muitos debates e questionamentos. Quero te apresentar uma matemática que vai muito além de sua aplicabilidade, apresentar matemática como forma de arte! Vamos andar juntos no recreio?

(A Matemaníaca por Julia Jaccoud, 2015A MATEMANÍACA POR JULIA JACCOUD. Brasil, 12 mar. 2015. YouTube: A Matemaníaca por Julia Jaccoud. Disponível em: https://www.youtube.com/c/AMateman%C3%ADaca/about. Acesso em: 20 jun. 2021.
https://www.youtube.com/c/AMateman%C3%AD...
).

Na matéria da Nova Escola, as enunciações apontam para a ideia de inovação, atrelada aos novos formados que, supostamente, o YouTube permite utilizar. Entrevistada, a youtuber afirma para a revista:

Não queria fazer videoaulas, mas não sabia como inovar. Mesmo assim, gravei o primeiro vídeo e comecei a postar. A grande virada aconteceu quando viajei e tive a ideia de falar sobre Matemática nos locais onde estava. Estava sem lousa, sem papel e resolvi testar um formato diferente

(Oliveira, 2019OLIVEIRA, Tory. “Sem lousa, tentei um formato diferente”. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 30 maio 2019. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/17548/sem-lousa-tentei-um-formato-diferente. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/17548...
, online, grifo nosso).

A partir de 2020, o cenário da pandemia emerge nas matérias da Nova Escola. São listados canais de acesso gratuito no YouTube, cursos de formação gratuitos, entre outros recursos, para auxiliarem os professores no ensino remoto (Educação..., 2020EDUCAÇÃO em tempos de coronavírus. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 18 maio 2020. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/19126/educacao-em-tempos-de-coronavirus. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/19126...
). Também são publicadas dicas para gerir bem o tempo na quarentena (Martins, 2020MARTINS, Miguel. A Aula é Online: dicas para gerir bem o tempo na quarentena. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 29 abr. 2020. Disponível em https://novaescola.org.br/conteudo/19090/a-aula-e-online-dicas-para-gerir-bem-o-tempo-na-quarentena Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/19090...
) e soluções encontradas até o momento para três realidades distintas (internet limitada, rotina de estudos com mensagens no Facebook, e periferia conectada com Google Classroom) mais frequentes nas escolas públicas brasileiras, para não deixar a garotada perder o ritmo de estudo (Albuquerque, 2020ALBUQUERQUE, Maria Laura. Da Sala De aula para a Internet: como a pandemia de coronavírus está impactando as escolas públicas. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 2 abr. 2020. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/19006/da-sala-de-aula-para-a-internet-como-a-pandemia-do-coronavirus-esta-impactando-as-escolas-publicas. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/19006...
).

Nos chamou a atenção a matéria intitulada Estratégias criativas que os professores encontraram para dar aulas a distância (Santos, 2020SANTOS, Victor. Estratégias Criativas que os Professores encontraram para dar Aulas a Distância. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 24 jun. 2020. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/19385/escola-x-pandemia-estrategias-criativas-que-os-professores-encontraram-para-dar-aulas-a-distancia. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/19385...
). Nela, revista afirma ter entrevistado educadores e especialistas para que dessem dicas de quais ferramentas podemos nos valer a fim de superar os desafios de educar durante a pandemia. O argumento da criatividade é mencionado, como lemos abaixo:

Desde o registro do primeiro caso de COVID-19 no Brasil, o mundo escolar virou de cabeça para baixo: com o esquema 100% remoto, professores, alunos e pais precisaram experimentar diferentes ferramentas e formatos de aula para dar continuidade aos estudos. ‘O que se viu, desde então, é que uma grande rede de apoio se formou, na qual todos os educadores estão trabalhando juntos para alcançar um nível de aprendizado e desenvolvimento nessas novas ferramentas’, afirma Renata Capovilla, formadora de professores e capacitadora do Google For Education. ‘Os professores se descobriram muito criativos nesse momento, ao mesmo tempo em que encaram uma demanda de trabalho surreal’

(Santos, 2020SANTOS, Victor. Estratégias Criativas que os Professores encontraram para dar Aulas a Distância. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 24 jun. 2020. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/19385/escola-x-pandemia-estrategias-criativas-que-os-professores-encontraram-para-dar-aulas-a-distancia. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/19385...
, online, grifos nossos).

No centro do debate está a escola. Essa mesma especialista conclui a matéria, sentenciando “Dificilmente voltaremos a ter uma escola como era antes, e mesmo as escolas que resistiam à tecnologia vão passar a incorporar mais essas ferramentas” (Santos, 2020SANTOS, Victor. Estratégias Criativas que os Professores encontraram para dar Aulas a Distância. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 24 jun. 2020. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/19385/escola-x-pandemia-estrategias-criativas-que-os-professores-encontraram-para-dar-aulas-a-distancia. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/19385...
, online).

O aplicativo de mensagens WhatsApp e a plataforma YouTube foram as ferramentas mais citadas nos relatos. Como no exemplo abaixo:

Para seus vídeos, Helenita utilizou o próprio celular e um tripé. Com a ajuda do filho, ela gravou dois conteúdos: um com a lenda do Tangram, que contou com a ajuda de um amigo para uma edição mais elaborada, e outro ensinando uma receita de esfiha com ingredientes que vão no kit merenda entregue pela escola. Ambos foram disponibilizados no Youtube e via WhatsApp. ‘Os alunos gostaram muito’, diz a professora, ‘recebi vídeos de pais e filhos fazendo a atividade do Tangram, outra mãe me mandou um vídeo de um aluno, que é surdo, fazendo as esfihas todo feliz. Fiquei muito emocionada com esses retornos’

(Santos, 2020SANTOS, Victor. Estratégias Criativas que os Professores encontraram para dar Aulas a Distância. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 24 jun. 2020. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/19385/escola-x-pandemia-estrategias-criativas-que-os-professores-encontraram-para-dar-aulas-a-distancia. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/19385...
, online, grifos nossos).

E lemos o relato de outra professora e sua relação com as novas tecnologias em função da pandemia:

Eliane criou o Dicas Geografia, em que compartilha uma infinidade de materiais, como textos, explicações em áudio, enquetes, vídeos do Youtube, podcasts e dicas de filmes, e o retorno dos alunos tem sido muito bom. ‘Esse momento é um divisor de águas em minha vida profissional’, diz a professora

(Santos, 2020SANTOS, Victor. Estratégias Criativas que os Professores encontraram para dar Aulas a Distância. Nova Escola, Fundação Lemann, São Paulo, 24 jun. 2020. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/19385/escola-x-pandemia-estrategias-criativas-que-os-professores-encontraram-para-dar-aulas-a-distancia. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://novaescola.org.br/conteudo/19385...
, online, grifos nossos).

Percebemos, aqui, a força das enunciações que nos atravessam e nos povoam como professores. Foram repetidas as vezes em que a criatividade e a atratividade foram mencionadas como solução para aquilo que se narra como ensino mais tradicional. E pelas diferentes matérias analisadas, o uso da imagem em movimento – facilitada pelas câmeras nos smartphones e a plataforma de vídeos YouTube, parece ser um “divisor de águas”, para usarmos as palavras da professora citada acima.

O Efeito YouTube na Educação

Todos esses achados nos levaram a refletir sobre o que temos nomeado efeito YouTube na educação. Ao finalizarmos, é preciso lembrar que, neste artigo, seguimos alinhadas à perspectiva pós-estruturalista dos Estudos Culturais. Nesse sentido, não tomamos de antemão, nem como verdadeira e nem como falsa, a enunciação “[…] os youtubers estão mudando o jeito de educar”. Interessa-nos aqui, “[…] o processo pelo qual algo é considerado como verdade” (Silva, 2015SILVA, Tomas Tadeu. Documentos de Identidade. Uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 123), ou seja, as condições de possibilidade que tornam visível e dizível uma enunciação como essa em nossos dias, em nossa sociedade.

Pontuamos aqui algumas das contingências de nosso tempo que talvez estejam envolvidas neste duplo processo, no qual a cultura constitui novos modos de ensinar e, ao mesmo tempo, esses novos modos de ensinar acabam por constituir a cultura à nossa volta.

Inicialmente, é necessário levar em conta o contexto mencionado na seção inicial deste artigo, que nos remete à ideia de sociedade de aprendizagem (Noguera-Ramirez, 2009NOGUERA-RAMÍREZ, Carlos Ernesto. O Governamento Pedagógico: da sociedade do ensino para a sociedade da aprendizagem. 2009. 266 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/18256. Acesso em: 18 abr. 2021.
https://lume.ufrgs.br/handle/10183/18256...
). Neste tipo de sociedade, por razões que não temos condições aqui de esgotar, vemos emergir a valorização do empreendedorismo. Sucesso passa a ser entendido como auto-realização, dependendo quase que exclusivamente do indivíduo. E o insucesso também, via auto-responsabilização. E, como nos explica Sibilia (2012)SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012., as transformações no campo pedagógico também estão sob esse efeito, afinal:

É o que sustentam muitos discursos relacionados com o empreendedorismo neoliberal, presentes também no âmbito das reformas pedagógicas em curso, quando destacam a importância da distinção individual e as vantagens da singularização do indivíduo como uma marca, explorando a própria criatividade para poder ser sempre o primeiro a ganhar dos outros

(Sibilia, 2012SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012., p. 46, grifo nosso).

Interessante como a ligação entre empreendedorismo e criatividade se concretiza no nível discursivo e nas práticas. Ela se enuncia em histórias de sucesso postas em circulação na revista direcionada a professores – como é o caso da Nova Escola –, assim como por meio da materialidade cotidiana, na qual professores, forçados por questões salariais, desemprego, pandemias, busca de realização pessoal, enfim… se lançam como empreendedores digitais, por exemplo, criando canais “atrativos” que conquistam milhares de seguidores no YouTube. E ainda é preciso pontuar que:

[…] tudo isso se dá numa cultura que enaltece a busca da celebridade e o sucesso imediato, combinando nesse projeto a realização pessoal e a satisfação instantânea, exaltando valores como a autoestima, a aparência juvenil e o gozo constante. Em suma: bem estar corporal, emocional, profissional e afetivo, derivados de um ideal de felicidade ou de realização pessoal que atravessa todos os âmbitos e já não parece encontrar obstáculos nem diques capazes de inibi-lo

(Sibilia, 2012SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012., p. 49, grifo nosso).

Some-se a isso a emergente necessidade, decorrente do tipo de sociedade que procuramos demarcar também na seção inicial deste trabalho, em que prevalecem a espetacularização (também) dos processos de ensino, facilitada pelas grandes redes de conteúdo e informação, bem como da criação de produtos e serviços de comunicação. Junto a isso, vemos indivíduos em idade escolar com suas existências marcadas pelo tédio, à procura de entretenimento, cada vez mais enunciado como necessário; afinal, sentir-se entediado não parece ser mais permitido a ninguém. Levando em conta que “[…] a escola se instaurou sob à égide da ‘cultura letrada’ como um horizonte de realização” e que, hoje, vivemos o que alguns denominam de “civilização da imagem” (Sibilia, 2012SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012., p. 63), passamos a entender um pouco o sucesso dos youtubers da educação.

Um dos principais efeitos do YouTube na educação, a nosso ver, é marcado ainda pelo fato histórico de que “[…] quando o jovem deixa de ser aluno por excelência e se converte, antes de mais nada, num usuário dos meios de comunicação e num consumidor mais ativo que muitos adultos, constata-se uma obviedade que talvez não deveria sê-lo: a lógica do mercado se generalizou” (Sibilia, 2012SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012., p. 66). Especialmente porque, “Muitos discursos atuais, inclusive os oficiais, parecem coincidir num ponto: aos alunos do século XXI, é necessário oferecer diversão” (Sibilia, 2012SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012., p. 81). Parece ser isso: as subjetividades midiáticas querem, ou são levadas a pensar que precisam, se divertir o tempo todo.

Considerações finais

Assim, concluindo nossa reflexão, e considerando, conforme Paraíso (2012, p. 29)PARAÍSO, Marluce Alves. Metodologias de Pesquisas Pós-Críticas em Educação e Currículo: trajetórias, pressupostos, procedimentos e estratégias analíticas. In: MEYER, Dagmar Estermann; PARAÍSO, Marluce Alves (Org.). Metodologias de Pesquisas Pós-críticas em Educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012. P. 23-45., que “[…] o discurso que investigamos produz objetos, práticas, significados e sujeitos”, entendemos que a manifestação de enunciações como “o YouTube muda o jeito de educar” é contingente, faz-nos pensar em como nós estamos nos constituindo, uma vez professores, nas relações que vamos estabelecendo com as tecnologias de informação e comunicação.

A partir da existência da plataforma YouTube, de uma cultura digital em consolidação e de uma lógica individualista cada vez mais focada em uma sociedade da aprendizagem, a internet oferece aos atores educacionais, alunos e professores a metáfora da tela como vitrine, a qual está produzindo efeitos nos sujeitos e nos modos como se relacionam.

A tela como vitrine acentua os papéis de professores e alunos como produtos, produtores e consumidores, transformando seus modos de subjetivação pelo atravessamento dessas marcas identitárias. Sujeita professores ao signo da performance – os Edutubers. Modula a prática pedagógica de quem passa a se (pre)ocupar sempre com o melhor cenário para o espetáculo, a fim de conquistar inscritos e aumentar métricas de visualizações, acesso e engajamento.

Notas

  • 1
    Importa explicitar a situação em que nos encontramos enquanto autoras deste texto. Estamos, cada uma de nós, professoras e bolsista de pesquisa, há mais de 12 meses em isolamento/distanciamento social devido à pandemia de covid-19. O Brasil ultrapassou, no mês de março de 2021, quando estivemos mais diretamente envolvidas na escrita do artigo, 300 mil mortos pelo coronavírus. Desde meados de março de 2020, os prédios das instituições de ensino estão fechados na maior parte do tempo, sem receber estudantes. Passamos todos, progressivamente, com o avanço da pandemia, a oferecer o ensino remoto. Destaca-se que a pesquisa que deu origem à nossa comunicação já vinha sendo realizada desde o início de 2019, quando executamos outras etapas da investigação previstas no projeto. A etapa de produção dos dados, que foram coletados no mês de dezembro de 2020, se deu sem que aplicássemos filtro de data para o retorno das publicações. Com essa observação, queremos reforçar que há distinções sutis e outras mais evidentes entre ser um professor youtuber antes e depois da suspensão das aulas presenciais. Gravar vídeos sob a pressão da contingência atual a fim de manter o ensino remoto é um tanto diferente de tornar-se um youtuber como empreendedor digital na área dos serviços educacionais. Há, evidentemente, pontos convergentes também. O mais importante deles, ao nosso ver, está na popularização do uso de vídeos para marcar nossa telepresença junto dos alunos.
  • 2
    SAVATER, Fernando. El Valor de educar. Barcelona: Ariel, 1997.
  • 3
    “A discussão em torno do uso do termo ‘monumento’ para se referir a documentos históricos foi inaugurada pelo historiador francês Jacques Le Goff, e também considerada por Michel Foucault em suas pesquisas. Faz parte de um conjunto de posturas adotadas pelos historiadores ao longo do século XX a partir das reflexões no âmbito da historiografia, propostas pelos membros da Escola de Annales, na França. Significou a passagem de uma concepção dos monumentos e outras fontes documentais como vestígios do passado através dos quais se pode ‘reconstruir’ a verdade histórica, para outra, que compreende o documento como monumento construído a partir de relações de poder contingentes e que podemos ‘desconstruir’ – através do exercício inverso de análise até aquele momento adotado pelos historiadores – para compreender as condições históricas que condicionaram seu aparecimento” (Mutz, 2013MUTZ, Andresa Silva da Costa. A Constituição do Sujeito de Consumo Consciente – aprender a comprar bem, para comprar sempre. 2018. 218 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013., p. 14).

Referências

Editado por

Editor responsável: Luís Henrique Sacchi dos Santos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2021
  • Aceito
    18 Ago 2022
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