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Negação da Política e Negacionismo como Política: pandemia e democracia

Resumo:

O texto se desenvolve em três etapas complementares: primeiro, discutimos a estratégia da negação da política, com a qual Bolsonaro afrontou valores democráticos sem romper definitivamente com a democracia, tanto na campanha presidencial como na pandemia. No segundo momento, discutimos a estratégia do negacionismo como política, importante para a compreensão do modo como Bolsonaro empreendeu sua gestão da pandemia. No terceiro momento, argumentamos que durante a pandemia aquelas duas estratégias se conjugaram, produzindo fenômenos sócio-políticos que corroem a democracia, como a banalização das mortes e a naturalização da clivagem entre vidas valiosas, vidas submetidas a processos de menos-valia e vidas descartáveis.

Palavras-chave:
Negacionismo; Negação da Política; Pandemia; Banalização da Morte; Crise da Democracia

Abstract:

The text is developed in three complementary stages: Firstly, we discuss the strategy of denying politics, which allowed President Bolsonaro to reject democratic values ​​without definitively breaking with democracy, employed both during the presidential campaign but also during the pandemic. Secondly, we analyze the strategy of denialism as a policy, important to the understanding of the way thru which Bolsonaro undertook his management of the pandemic. Thirdly, we argue that during the pandemic both strategies were combined, thus producing socio-political phenomena that erode democracy, such as the trivialization of deaths and the naturalization of the cleavage between valuable lives, less valuable lives, and disposable lives.

Keywords:
Denialism; Denial of Politics; Pandemic; Death Banalization; Crisis of Democracy

Este artigo faz a experiência arriscada de refletir sobre acontecimentos dramáticos do país no exato momento em que estão se desenrolando. Dado o caráter de urgência dessa forma de intervenção intelectual, o texto assume o formato do ensaio e não tem pretensões teóricas à exaustividade, visando tão somente a interrogar o Bolsonarismo, fenômeno político cujas características parecem ter se acentuado durante a pandemia do novo Coronavírus.

Entendemos o Bolsonarismo como um movimento político autoritário, de extrema-direita, que promove divisões ou clivagens (simbólicas, econômicas, culturais, políticas) entre formas de vida cujo valor e significado é avaliado a partir de rígidos processos de hierarquização valorativa. Um aspecto central do Bolsonarismo é distinguir entre as vidas que valem mais, as que valem menos e as que nada valem. Em sentido amplo, o Bolsonarismo é uma forma viver, sentir, pensar e se relacionar consigo, com os outros e com o mundo, é um ethos autoritário e violento, que reafirma e reforça as posições normativas da ordem, da segurança e da hierarquia, escorando-se em valores e concepções patriarcais, heterossexuais, cristãs, empreendedoristas e apegadas à branquitude, donde seu caráter racista e discriminatório. De modo geral, o Bolsonarismo é contrário à ciência, ao pensamento crítico e às políticas educacionais públicas, motivo pelo qual apoia práticas de censura contra a liberdade de cátedra, ao mesmo tempo em que agride o financiamento das universidades e sua autonomia administrativa.

Enquanto amálgama do conservadorismo e do autoritarismo brasileiros, o Bolsonarismo encontra sua síntese no ideal fantasmático do Homem de Bem (Duarte, 2020DUARTE, André. A Pandemia e o Pandemônio: ensaio sobre a crise da democracia brasileira. Rio de Janeiro: Via Verita, 2020.), ideal normativo que se compõe de valores e ideais do cristianismo, do conservadorismo anti-esquerda, do patriotismo nacionalista, do armamentismo, do machismo, da família tradicional heterossexual, da meritocracia, do empreendedorismo econômico sacrificial, que responsabiliza o indivíduo pelo seu sucesso ou fracasso social, bem como de ideais relativos à plena liberdade de mercado, da recusa dos serviços e servidores públicos e da liberdade das maiorias para discriminar as minorias, sobretudo aquelas organizadas em movimentos políticos e sociais. Em um sentido político mais restrito, o Bolsonarismo tem como propósito fortalecer a oposição binária entre nós/eles, amigo/inimigo, por meio da qual se pretende minimizar e, se possível, neutralizar toda forma de oposição e dissidência política. O Bolsonarismo orienta-se por um projeto paradoxal de democracia, de caráter autoritário, que se propõe a restringir os direitos e liberdades daquelas formas de vida que não espelham seu modelo ideal normativo de cidadão, o Homem de Bem.

Neste texto, analisamos dois traços distintivos do Bolsonarismo, bastante evidenciados no modo pelo qual o Governo Federal vem tentando enfrentar a pandemia: a estratégia da negação da política, condensada na autoproclamação de Bolsonaro como um outsider ou como um político anti-establishment, bem como a estratégia do negacionismo como política para fazer frente à pandemia. O texto se desenvolve em três etapas complementares: no primeiro momento, discutimos a estratégia da negação da política, a qual permitiu que Bolsonaro pudesse afrontar valores democráticos sem romper definitivamente com a democracia, estratégia que caracterizou suas declarações políticas durante a campanha presidencial, mas que se viu intensificada durante a crise da pandemia. No segundo momento, discutimos a estratégia do negacionismo como política, central para a compreensão da forma peculiar pela qual Bolsonaro empreendeu sua gestão da pandemia. No terceiro e conclusivo momento, defendemos a hipótese de que a conjugação daquelas duas estratégias durante a pandemia do novo Coronavírus acentuou ainda mais a crise da democracia brasileira, ao produzir fenômenos sócio-políticos como a banalização das mortes e a naturalização da clivagem entre vidas valiosas, vidas submetidas a processos de menos-valia e vidas descartáveis. Neste sentido, parece-nos que o Bolsonarismo soube se aproveitar politicamente da pandemia para promover seus interesses políticos e suas visões de mundo conservadoras e autoritárias, ao menos até o momento.

A Estratégia da Negação da Política

A candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da República em 2018 beneficiou-se de um ambiente prévio de forte rejeição à política e aos políticos tradicionais. Este ambiente político não é certamente novidade no Brasil, mas foi se fortalecendo e se generalizando desde as manifestações públicas de Junho de 2013, as quais, ao longo de pouco mais de 30 dias, evoluíram da cobrança coletiva por melhores serviços públicos urbanos, para a rejeição abrangente e incondicional contra tudo isso que está aí, a luta contra a corrupção tornando-se uma de suas principais bandeiras. As Jornadas de Junho de 2013 foram um acontecimento político inesperado e enigmático, um signo a ser interpretado, motivo pelo qual se travou acirrada batalha interpretativa a respeito de seu significado político (Bignotto, 2020BIGNOTTO, Newton. O Brasil à Procura da Democracia. Da proclamação da República ao século XXI (1889-2018). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. Edição Kobo.; Nobre, 2020NOBRE, Marcos. Ponto-final. São Paulo: Todavia , 2020. Edição do Kindle., 2013NOBRE, Marcos. Choque de Democracia. Razões da revolta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Edição eletrônica.; Maricato et al., 2013MARICATO, Ermínia et al. Cidades Rebeldes. Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo Editora , 2013.). Tudo começou com as reivindicações do Movimento Passe Livre (MPL) em grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Florianópolis, Porto Alegre, Curitiba, dentre outras capitais. Inicialmente, seu foco foram os aumentos do preço do transporte público, com tudo que essa medida acarreta para a experiência cotidiana da vida nas grandes cidades, sobretudo para os jovens e os trabalhadores. Rapidamente, contudo, o movimento evoluiu e surgiu um lema significativo: Não é apenas por 20 centavos! Durante algumas semanas, o que se viu foi uma imensa multidão de jovens que saíram às ruas pela primeira vez para participar de um movimento político difuso, mas que, ao menos inicialmente, parecia dar sinais de que pretendia aprofundar o processo de transformações e de inclusão social que fora iniciado com as políticas de inclusão social do Partido dos Trabalhadores. Ao mesmo tempo em que o MPL inaugurava um espírito de rebeldia anônimo, criativo e independente dos partidos políticos, a grande mídia entregava-se à tarefa de pautar o movimento na direção do combate à corrupção, bem como repudiava as violências cometidas durante as manifestações, dividindo os manifestantes entre os assim chamados vândalos e os cidadãos ordeiros. A partir de então, o que era um movimento a-partidário foi se tornando um movimento anti-partidário e contrário à própria política. Durante esse importante giro começaram a surgir forças autoritárias, representadas por grupos sociais vinculados à direita e extrema-direita. Não faltou quem alertasse, desde o início das manifestações, para o perigo político que elas traziam consigo, motivo pelo qual, retrospectivamente, se tornou lugar-comum afirmar que elas foram o ovo da serpente que eclodiu no impeachment de Dilma Rousseff. Por outro lado, o caráter autônomo, descentralizado e horizontalizado das Jornadas também parecia indicar a possibilidade de um fortalecimento da democracia brasileira. Parece-nos, portanto, simplista a tese que busca estabelecer relações de causa e efeito entre as Jornadas de Junho de 2013 e o impeachment de 2016, embora não caibam dúvidas de que foi durante este período que começou a se agravar a atual crise da democracia brasileira. Newton Bignotto (2020) analisou recentemente essa crise que se desenvolveu entre 2013-2018 a partir da noção de “guerra de facções” entre grupos políticos que defendem posições ideológicas e de interesses particulares radicalmente contrapostos, cada um deles visando a se “[...] apropriar dos mecanismos estatais para fazer prevalecer seus pontos de vista a todo custo” (2020).

A rejeição à política começou a se aprofundar em 2014, na esteira das manifestações a favor e contra as obras públicas para a realização da Copa do Mundo. Também contribuiu o agravamento da crise econômica e a estagnação do crescimento do PIB, além da inauguração e gradual intensificação das ações da Operação Lava-Jato, a qual estabeleceu um nexo inquestionável entre política e corrupção, insistentemente ressaltado pelas mídias convencionais e pelas redes sociais. A apertada vitória de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais de 2014 levou o Partido da Social Democracia Brasileira a questionar a validade das eleições, a propor sua anulação e a postular o impeachment como alternativa para aceder ao poder a qualquer custo. Tais posições foram sendo majoritariamente reproduzidas por campanhas midiáticas que estimularam o sentimento coletivo de revolta contra a corrupção, canalizado especialmente contra o Partido dos Trabalhadores. A partir de março de 2015 o país viu as ruas serem inundadas por milhares de manifestantes vestidos com a camiseta verde-amarelo da seleção brasileira de futebol, enfurecidas com as denúncias de corrupção e os supostos desmandos autoritários do PT, convertido em símbolo reatualizado do velho perigo vermelho do comunismo. Em pouco tempo o Juiz Sergio Moro foi transformado em justiceiro nacional e toda a classe política, mas especialmente os políticos vinculados ao PT, foram transformados em inimigos vermelhos e corruptos, a serem politicamente eliminados do jogo político nacional. No contexto da Operação Lava Jato, houve diversos casos de abusos e de medidas jurídicas que suspenderam princípios básicos do estado democrático de direito em nome da luta contra a corrupção. Tais abusos não foram condenados pela mídia, antes pelo contrário, criando-se assim todas as condições favoráveis para a aprovação do impedimento presidencial, finalmente ocorrido em sessão congressual que entrou para a história como “[...] uma mancha no curso da democracia brasileira” (Bignotto, 2020BIGNOTTO, Newton. O Brasil à Procura da Democracia. Da proclamação da República ao século XXI (1889-2018). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. Edição Kobo.). O voto do deputado Bolsonaro fazendo o elogio público ao torturador de Dilma Rousseff é certamente um marco a respeito da guinada política que abriu caminho para a ascensão da extrema-direita ao poder.

O curto governo de Michel Temer (2016-2017) tampouco foi poupado das investigações e denúncias de corrupção no contexto dos desdobramentos da operação Lava Jato. Consolidou-se assim o enfraquecimento generalizado das instituições democráticas e dos principais partidos e lideranças políticas que vinham disputando a Presidência da República desde meados dos anos 90. Ademais, como observou Marcos Nobre (2020NOBRE, Marcos. Ponto-final. São Paulo: Todavia , 2020. Edição do Kindle.), “Grande parte do eleitorado estava se sentido existencialmente ameaçada em 2018. Temia pelo seu emprego, pela sua vida, pela vida de sua família, pela religião que professava, pelo seu prestígio social” (p. 24). Foi assim que Jair Bolsonaro se tornou um ator político decisivo, algo praticamente impensável alguns anos atrás. O atentado à faca durante a campanha presidencial foi um episódio decisivo, pois permitiu uma arquitetada e bem-sucedida vinculação simbólica entre seu corpo e o corpo político brasileiro, ambos agredidos e em risco de morte, como argumentou Letícia Cesarino (2019CESARINO, Letícia. Identidade e Representação no Bolsonarismo: corpo digital do rei, bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal. Revista de Antropologia (Online), São Paulo, Universidade de São Paulo, v. 62, n. 3, p. 530-557, 2019.) em sua apurada análise da ascensão do populismo digital no país.

No entanto, essas foram apenas as circunstâncias políticas prévias que permitiram e incentivaram a construção de Bolsonaro como um outsider, isto é, como um político antissistema, a despeito de ter feito parte dele por quase trinta anos, mesmo que habitando suas franjas obscuras. Por certo, diversos candidatos a cargos políticos do passado brasileiro souberam como capitalizar para si certo ambiente nacional difuso de rejeição à política. O aspecto importante é que apenas Bolsonaro soube como converter a estratégia eleitoral da recusa da política em estratégia de governamento, recusando-se a negociar com o sistema e a respeitar integralmente as regras do jogo democrático, ainda que permanecendo no seu interior. Leonardo Avritzer (2020AVRITZER, Leonardo. Política e antipolítica. São Paulo: Todavia, 2020. Edição do Kindle.) definiu a estratégia governamental de Bolsonaro como antipolítica, entendendo-a como “[...] a reação à ideia de que instituições e representantes eleitos devem discutir, negociar e processar respostas a temas em debate no país. A antipolítica constitui uma negação de atributos como a negociação ou a coalizão” (2019, p. 19). Para Avritzer (2020), a “[...] suposta luta anticorrupção” teria sido decisiva para isso (2020, p. 19). Seguindo uma linha de raciocínio semelhante, Marcos Nobre (2020NOBRE, Marcos. Ponto-final. São Paulo: Todavia , 2020. Edição do Kindle.) observou que “[...] não é acaso que a tática de Bolsonaro tenha envolvido sempre uma recusa de governar” (p. 23). Para Nobre, ao ganhar as eleições como candidato outsider, Bolsonaro se tornou refém daquela condição e converteu a guerra contra o sistema político e suas instituições em estratégia de governo, fazendo do caos o seu método ao apresentar-se como a solução para os problemas que ele mesmo cria (2020, p. 15-16). A negação da política como estratégia de governamento é mais um aspecto propriamente novo e desconcertante do Bolsonarismo, movimento que não apenas se apresenta publicamente como antipolítico e antissistêmico, como atua de maneira a fazer com que elementos centrais à democracia assumam efeitos antidemocráticos, sem, contudo, romper definitivamente com a própria democracia. Ademais, ao se apresentar como um político que nega o sistema político, Bolsonaro pôde introduzir em seus discursos diversas teses antidemocráticas. Como elas são proferidas no interior mesmo do jogo democrático, são frequentemente entendidas como cortina de fumaça ou como retórica desprovida de consequências políticas mais graves.

Um rápido levantamento das declarações políticas de BolsonaroBOLSONARO em 25 frases polêmicas. Carta Capital, São Paulo, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-25-frases-polemicas/ >. Acesso em: 21 out. 2020.
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mostra a persistência de suas convicções antipolíticas, antissistêmicas e antidemocráticas. Dentre as afirmações pelas quais Bolsonaro visa a negar a política, defender teses negacionistas quanto à história política nacional, ou apresentar-se como externo ao sistema político, temos as seguintes declarações recentes: “Tá na cara que estou sendo um problema para o sistema, não é para esse partido ou aquele, é para o sistema” (2018); “Não houve golpe militar em 1964. Quem declarou vago o cargo do presidente na época foi o Parlamento. Era a regra em vigor” (2018); sobre os assassinatos e torturas perpetrados pela ditadura militar, afirmou: “Errar, até na sua casa, todo mundo erra. Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu? Acontece” (2018). Dentre algumas de suas muitas declarações de cunho claramente antidemocrático, podem-se mencionar os seguintes exemplos: “Costumo dizer que não falo o que o povo quer. Sou o que o povo quer” (2016); “Não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros. Ideologias que destroem nossos valores e tradições, destroem nossas famílias, alicerce da nossa sociedade” (2019); “Preso não deve ter direito nenhum, não é mais cidadão. O sentido da cadeia não é ressocializar, mas tirar o marginal da sociedade” (2017)1 1 Cf. Disponível em: <https://epoca.globo.com/as-ideias-os-valores-de-bolsonaro-em-100-frases-23353141>. Acesso em: 23 set. 2020. (Constantino; Costa; Eiras, 2020CONSTANTINO, Rita; COSTA, Valter; EIRAS, Yuri. As Ideias e os Valores de Bolsonaro em 100 Frases. Época, 8 jan. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://epoca.globo.com/as-ideias-os-valores-de-bolsonaro-em-100-frases-23353141 >. Acesso em: 20 out. 2020.
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); “Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria” (2018); “Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre” (2018); “Somos um país cristão. Não existe essa historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão. Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar às maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem” (2017)2 2 Cf. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-25-frases-polemicas/>. Acesso em: 23 set. 2020. (Bolsonaro diz que cloroquina..., 2020BOLSONARO diz que cloroquina teria salvado vidas perdidas na pandemia. Correio do Povo, Porto Alegre, 24 ago. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/bolsonaro-diz-que-cloroquina-teria-salvado-vidas-perdidas-na-pandemia-1.469793 >. Acesso em: 19 out. 2020.
https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%...
, online). Finalmente, vejamos alguns exemplos de declarações com as quais Bolsonaro apela a vagos ideais democráticos e os direciona contra as práticas e valores da democracia: “A arma de fogo, mais do que garantir a vida de uma pessoa, garante a liberdade de um povo” (2018); “Se eu quiser entrar armado aqui, eu entro” (2016)3 3 Cf. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-25-frases-polemicas/>. Acesso em: 23 set. 2020. (Bolsonaro diz que cloroquina..., 2020, online); “Estamos com um governo que respeita a família. E para quem tem qualquer dúvida: parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição. Vamos ler lá o que é família. Quando alguém mudar a Constituição, eu falo das outras famílias” (2019)4 4 Cf. Disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2019-08-07/declaracoes-polemicas-bolsonaro.html>. Acesso em: 23 set. 2020. (Fonseca, 2020FONSECA, Nathallia. Declarações Chocantes Marcam Mandato De Bolsonaro. Especialista analisa frases. IG , 2019. Disponível em: <Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2019-08-07/declaracoes-polemicas-bolsonaro.html >. Acesso em: 21 out. 2020.
https://ultimosegundo.ig.com.br/politica...
).

Esse breve apanhado de declarações negando o sistema político, professando teses de teor negacionista quanto à ditadura e seus crimes, descomprometendo-se com a democracia ou valendo-se de ideais democráticos para distorcer e descaracterizar a democracia, mostram que o candidato que foi eleito para a Presidência da República em 2018 jamais se afastou dos ideários autoritários que tornaram célebres suas velhas declarações a favor da tortura, do fechamento do Congresso, do assassinato indiscriminado e da própria ditadura: “Só vai mudar, infelizmente, quando nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil!” (1999). Essa atitude de negação da política e de negação da democracia em nada se alterou durante o surto do novo Coronavírus no Brasil, antes pelo contrário. Em manifestação antidemocrática ocorrida em Brasília no dia 19.04.20, na qual os manifestantes clamavam pelo fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro enunciou o que pode ser entendido como a suma de sua estratégia de negação da política e da democracia. Em cima de uma caminhonete, sem máscara, aos berros e tossindo, Bolsonaro disse o seguinte:

Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás, nós temos um novo Brasil pela frente. [...]. Todos, sem exceção no Brasil, têm que ser patriotas e acreditar e fazer a sua parte para que nós possamos colocar o Brasil no lugar de destaque que ele merece. [...]. Acabou a época da patifaria. [...]. Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro. Tenho certeza que todos nós juramos um dia dar a vida pela pátria. Vamos fazer o que for possível para mudar o destino do Brasil. [...]. Chega da velha política (Nós..., 2020NÓS Não Vamos Negociar Nada! Chega de Patifaria, Diz Bolsonaro, Em Discurso a Apoiadores. Folha Sul, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://folhasul.com.br/site/2020/04/19/nos-nao-vamos-negociar-nada-chega-de-patifaria-diz-bolsonaro-em-discurso-a-apoiadores/ >. Acesso em: 26 set. 2020.
https://folhasul.com.br/site/2020/04/19/...
, online)5 5 Cf. Disponível em: <https://folhasul.com.br/site/2020/04/19/nos-nao-vamos-negociar-nada-chega-de-patifaria-diz-bolsonaro-em-discurso-a-apoiadores/>. Acesso em: 23 set. 2020. .

Diante dessas afirmações, resta-nos apenas concordar com a afirmação de Marcos Nobre, segundo a qual “A posição antissistema de Bolsonaro está umbilicalmente ligada a seu projeto autoritário, não há como separar uma coisa da outra” (2020, p. 19). Parece-nos, pois, enganoso considerar tais afirmações como bravatas berradas ao vento. Por outro lado, elas representam o comportamento político do governo, mesmo durante a pandemia, bem como sinalizam qual é o ideal de nação e de regime político esposado pelo Bolsonarismo. A pandemia não foi uma circunstância que pegou o governo desprevenido, forçando-o a recorrer a declarações histriônicas para encobrir sua incapacidade de afrontar o problema, ou simplesmente para ganhar tempo. Marcos Nobre observou que desde o início de março de 2020 Bolsonaro havia sido informado pelo Gabinete de Segurança Institucional quanto à gravidade do problema que se anunciava, o que não o impediu de “[...] ir a uma manifestação contra o Congresso e contra o STF no dia 15 de março,” ou de fazer o famoso pronunciamento “[...] em cadeia de rádio e TV do dia 24 de março”, no qual classificou a contaminação por Covid-19 como ‘gripezinha’ e ‘resfriadinho’” (Nobre, 2020, p. 8). Se o Governo Federal não se planejou para fazer frente à pandemia por meio de ações e políticas públicas concertadas e organizadas em nível nacional, isto se deu porque o Presidente assim o quis: pareceu-lhe que mais importante do que combater o vírus era combater o sistema político e aproveitar-se da situação caótica para acertar contas com políticos - sobretudo os Governadores Witzel e Doria - e autoridades de seu próprio governo - os ministros Moro e Mandetta - que, antes aliados, mudaram de posição ao longo da evolução da pandemia no país, tornando-se seus maiores desafetos políticos.

Mais recentemente o Presidente estabeleceu conexões com parlamentares integrantes da ala conservadora do Congresso denominada como Centrão, em desacordo com as críticas que ele próprio dirigira anteriormente àquele grupo, associando-o à velha política venal da troca de favores. Contudo, tal aproximação não tem que ver com alianças para obter aprovação de suas políticas no Congresso, algo de que ele não tem necessitado quando se trata de suas principais reformas neoliberais, mas destina-se a proteger seu mandato e o de seus filhos das investigações empreendidas pelo STF. Assim, como observou Marcos Nobre, Bolsonaro instituiu um “[...] governo de guerra não contra o vírus, mas, sobretudo, contra o impeachment - o que inclui tentar bloquear persecuções judiciais de maneira mais ampla” (2020, p. 14). Uma vez mais, tal comportamento não é simplesmente instrumental e circunstancial, mas serve de maneira exemplar ao fortalecimento da posição de Bolsonaro e de seu ideário político autoritário. A estratégia da negação da política dissemina uma concepção de democracia que faz dela um regime compatível com o autoritarismo. Uma vez mais, estamos de acordo com Nobre (2020) quando ele argumenta que Bolsonaro

[...] associa suas posições de extrema direita à defesa de tudo o que é ético e decente e identifica o restante - todo o sistema político - com a ‘esquerda’, ou seja, com tudo o que é corrupto e corrompido da vida social em geral. [...]. A ‘verdadeira democracia’ é apenas aquela que existia durante a ditadura militar (p. 20).

Em uma palavra, Bolsonaro não se preocupou fundamentalmente em enfrentar o vírus, mas sim em politizar a pandemia para se fortalecer no poder e alimentar o sonho da reeleição, o que certamente lhe dará maior margem de manobra para levar a cabo a implantação gradual de uma democracia de caráter autoritário no país. E para que não se tenha a impressão de que a validade dessas hipóteses acerca da negação da política como estratégia de governamento seja restrita apenas às falas e ações de Bolsonaro, basta acompanhar a longa entrevista concedida pelo vice-Presidente, Hamilton Mourão, ao jornalista Tim Sebastian, que comanda o programa jornalístico Conflict Zone, do canal Deutsche Welle, em 09.10.20. Nessa entrevista, além de defender a honra do Coronel Brilhante Ustra e de negar que ele tenha sido torturador, a despeito dele ser o único militar incriminado por tais práticas, Mourão ainda afirmou que a participação e as falas de Bolsonaro nas manifestações antidemocráticas não deveriam ser levadas a sério, pois não constituíam ameaça à democracia: “[...] é muito mais conversa do que, digamos, ação6 6 Cf. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/09/vice-hamilton-mourao-diz-que-governo-lidou-muito-bem-com-a-pandemia.ghtml>. Acesso em: 23 set. 2020. ” (Sebastian, 2020SEBASTIAN, Tim. Vice Hamilton Mourão Diz que Governo Lidou ‘Muito Bem’ com Pandemia de Covid-19. G1/Globo , Rio de Janeiro, 9 out. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/09/vice-hamilton-mourao-diz-que-governo-lidou-muito-bem-com-a-pandemia.ghtml >. Acesso em: 27 out. 2020.
https://g1.globo.com/politica/noticia/20...
, online).

O Negacionismo Como Política

Por certo, o negacionismo no que concerne à pandemia sempre esteve presente nos atos e nas falas presidenciais desde antes de abril de 2020, bastando recordar suas inúmeras declarações espalhafatosas a respeito da gripezinha e da suposta histeria da mídia acerca dos efeitos superdimensionados do vírus. O aspecto que somente aos poucos foi se revelando é que o negacionismo de Bolsonaro quanto à pandemia constituiu, desde o princípio, uma política de caráter autônomo e eficaz, e não mero diversionismo7 7 No Brasil, Tatiana Roque tem promovido uma importante discussão acerca do negacionismo climático em sua relação com a ascensão ao poder de governantes vinculados à extrema-direita. Veja-se o seu artigo O negacionismo no poder. Revista Piauí, fev. 2020b. Mais recentemente, já no âmbito da pandemia do novo Coronavírus, ela foi uma das primeiras teóricas a compreender a importância que Bolsonaro atribuiu ao negacionismo como forma de governamento. Cf. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=52wP-CPFIOs>. Acesso em: 23 set. 2020. (Roque, 2020aROQUE, Tatiana. O Negacionismo Como Forma de Governo. 2020a. Disponível em: <Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=52wP-CPFIOs >. Acesso em: 21 out. 2020.
https://www.youtube.com/watch?v=52wP-CPF...
). Afinal, a despeito do aumento descontrolado do número de mortos e contaminados, a insistência de Bolsonaro na manutenção do negacionismo quanto à pandemia não abalou os índices de sua popularidade, antes pelo contrário8 8 Pesquisa Ibope divulgada em 24 de setembro de 2020 indica que 40% da população aprovam o governo de Bolsonaro. Cf. Disponível em: <https://jovempan.com.br/noticias/brasil/popularidade-jair-bolsonaro-maior-percentual-desde-o-inicio-do-mandato.html>. Acesso em: 23 set. 2020. (Popularidade..., 2020POPULARIDADE de Jair Bolsonaro chega a 40%, maior percentual desde o início do mandato. Jovem Pan, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://jovempan.com.br/noticias/brasil/popularidade-jair-bolsonaro-maior-percentual-desde-o-inicio-do-mandato.html >. Acesso em: 17 out. 2020.
https://jovempan.com.br/noticias/brasil/...
, online). Decorridos sete meses desde a chegada da pandemia ao país, parece-nos claro que o negacionismo de Bolsonaro constitui uma política per se, aquela que consiste em negar, confundir, agredir, ignorar, desprezar, silenciar quem quer que não esteja absolutamente de acordo com suas medidas de combate à pandemia, ou com as escolhas políticas e morais que pautam seu governo.

Em alguma medida, o negacionismo está relacionado com a descoberta freudiana acerca da negação, Verneinung (Freud, 2014FREUD, Sigmund. A Negação. São Paulo: Cosac-Naify, 2014.), a capacidade psíquica do sujeito de negar desejos reprimidos. Como diz Freud, “Negar algo no juízo no fundo significa: isto é uma coisa que eu preferiria reprimir” (2014, p. 23). É certamente possível propor diagnósticos políticos e sociais acerca dos desejos reprimidos subjacentes à defesa incondicional de teses negacionistas (Dunker, 2020DUNKER, Christian. A Arte da Quarentena Para Principiantes. São Paulo: Boitempo Editora, 2020. Versão eletrônica. ; Swako, 2020SWAKO, José Leon. O Que Nega o Negacionismo? A Terra é Redonda. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-nega-o-negacionismo/#_edn1 >. Acesso em: 21 out. 2020.
https://aterraeredonda.com.br/o-que-nega...
), mas não se pode desconsiderar que o negacionismo é, ele mesmo, um fenômeno político e social, ainda que sua análise requeira reconhecer a importância central dos afetos, emoções e desejos na sua constituição e propagação (Bucci, 2019BUCCI, Eugênio. Existe Democracia sem Verdade Factual? Cultura política, imprensa e bibliotecas públicas em tempos de fake news. Barueri: Estação das Letras e Cores, 2019. Edição do Kindle.). O negacionismo é um fenômeno social não apenas porque implica a produção e difusão em massa de teses controversas em relação a consensos científicos validados, mas também porque teses negacionistas provocam impactos diretos no comportamento de milhões de pessoas. Simultaneamente, o negacionismo é um fenômeno político porque, o mais das vezes, está associado com a extração de vantagens por parte de grupos econômicos interessados em negar ou questionar teses e conhecimentos científicos. Isto ocorre, sobretudo, quando tais conhecimentos inspiram políticas públicas destinadas a transformar comportamentos e modos de vida coletivos, os quais afetam interesses econômicos poderosos. Não por acaso, uma das primeiras manifestações do negacionismo científico esteve associada à negação e deslegitimação, por parte de cientistas, dos estudos científicos que associavam o tabagismo à proliferação de doenças graves. É sabido também que o negacionismo climático é fomentado por cientistas financiados pelos interesses das empresas petrolíferas desde que, a partir da década de 1990, consolidou-se o consenso científico acerca do dióxido de carbono, dentre outros gases poluentes, como causadores do efeito estufa que acentua o aquecimento terrestre. Como afirmou Tatiana Roque (2020bROQUE, Tatiana. O Negacionismo no Poder. Revista Piauí, fev. 2020b.), “Como era impossível negar o aquecimento global antrópico, a única saída era travesti-lo de controvérsia9 9 Cf. O Negacionismo no Poder, op.cit. ”.

Além de deslegitimar ou pôr em dúvida conhecimentos aceitos como verdadeiros pelas instituições sociais habilitadas para auferir tal qualificação, o negacionismo põe em questão a autoridade dos cientistas, de seus métodos científicos, bem como a autoridade e a legitimidade das próprias instituições sociais destinadas à validação da produção do conhecimento. Ademais, ao negar ou pôr em dúvida a autoridade das instâncias sociais responsáveis pela produção do conhecimento científico, o negacionismo também enseja formas de associação coletiva caracterizadas por comportamentos radicalizados, avessos à discussão argumentativa. O mínimo que se pode dizer é que o negacionismo dissemina e fomenta comportamentos desconfiados ou indiferentes quanto ao valor social da ciência, produzindo efeitos no comportamento de milhões de pessoas, que passam a tomar decisões cruciais para suas próprias vidas amparando-se apenas naquilo que lhes parece mais conveniente ou útil em determinada circunstância. Não se podem desconsiderar os efeitos sociais e políticos derivados da coesão social formada entre aqueles que acreditam e divulgam teses negacionistas, pois se tornam parte de um universo paralelo, de uma sociedade peculiar, no interior da qual desfrutam de sentimentos de pertencimento e de autovalorização, de que se sentiam privados no mundo social mais amplo em que vivem. Eis porque Dunker (2020DUNKER, Christian. A Arte da Quarentena Para Principiantes. São Paulo: Boitempo Editora, 2020. Versão eletrônica. ) observou que o negacionismo cria uma atmosfera social na qual “[...] tudo se passa como se a negação coletiva nos tornasse mais e mais imunes à dúvida. Nossa crença aumenta à medida que repudiamos a crença alheia” (2020, p. 5). Por este motivo, tampouco é casual que a difusão social de teorias negacionistas parasite ou engendre crenças religiosas (Dunker, 2020, p. 5), ou esteja conectada à formulação de teorias conspiratórias (Oliveira, 2020OLIVEIRA, Thaiane. Desinformação Científica em Tempos de Crise Epistêmica: circulação de teorias da conspiração nas plataformas de mídias sociais. Revista Fronteiras - estudos midiáticos, Novo Hamburgo, Unisinos, v. 22, n. 1, p. 21-35, jan./abr. 2020.): em ambos os casos, se reforçam os sentimentos de pertença coletiva. Neste sentido, o negacionismo é poderoso não somente porque produz confusões, dúvidas, incertezas, enganos e mesmo graves equívocos, mas também porque empodera aqueles que compartilham tais visões de mundo. Nos casos mais graves de defesa do negacionismo, observa-se uma situação bem descrita por José Swako (2020SWAKO, José Leon. O Que Nega o Negacionismo? A Terra é Redonda. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-nega-o-negacionismo/#_edn1 >. Acesso em: 21 out. 2020.
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): “Não só o negacionista se acha ‘razoável’, como também lhe é mentalmente impossível não ter ‘a razão’10 10 Swako, José. O Que Nega o Negacionismo?. In: A Terra é Redonda, 2020. Cf. Disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/o-que-nega-o-negacionismo/#_edn4>. Acesso em: 21 set. 2020. ” (Swako, 2020).

Se há dimensões do fazer e da produção científica que não são politicamente neutras, há que se observar que, se o negacionismo se origina desde o interior do campo científico, ele procede a partir de processos de manipulação, esgarçamento e distorção dos procedimentos científicos, os quais, entretanto, são desconhecidos do público em geral. Tampouco é infrequente que teses negacionistas sejam formuladas por cientistas cuja posição no interior da comunidade científica é irrelevante, questionada ou mesmo recusada pelas próprias instâncias de aferição do reconhecimento científico. Assim, se por um lado o negacionismo não se confunde com, nem se reduz ao mero obscurantismo ou à ignorância, por outro lado, ele pode levar à adoção de comportamentos perigosos para a vida humana e para a garantia das condições de vida no planeta. Não pode haver negacionismo sem a reprodução social massiva de teses negacionistas, as quais são rapidamente transformadas em opiniões negacionistas, de caráter imediatamente acessível e de forte apelo emocional. Ao longo do seu processo de difusão social massificada, as teses negacionistas perdem qualquer referência ao fazer científico e seus métodos, pois o que importa é a politização grosseira e enviesada da ciência e dos cientistas.

O negacionismo tende a se intensificar e a se multiplicar no mundo todo no contexto contemporâneo da pós-verdade, caracterizado como aquele “[...] ambiente em que os fatos objetivos têm menos peso do que apelos emocionais ou crenças pessoais em formar a opinião pública” (Bucci, 2019BUCCI, Eugênio. Existe Democracia sem Verdade Factual? Cultura política, imprensa e bibliotecas públicas em tempos de fake news. Barueri: Estação das Letras e Cores, 2019. Edição do Kindle.). O fenômeno da pós-verdade está diretamente relacionado com a crise de autoridade que abalou a confiança da população nos mediadores tradicionais, particularmente a mídia, que estabelecia a comunicação entre cientistas, poder público e as pessoas. Com a intensificação do uso das redes sociais, tornou-se fácil e rotineiro descartar a verdade factual (Bucci, 2019) produzida a partir de critérios compartilhados e avalizados consensualmente, multiplicando-se as mentiras, os boatos e as informações fraudulentas (fake news), por meio de uma comunicação direta, simples, acessível e fortemente carregada de aspectos emocionais, os quais transformam o receptor em um agente disseminador da desinformação. Segundo Eugênio Bucci (2019),

Nas redes sociais, diferentemente do que acontecia na televisão ou no cinema, a propagação das mensagens depende diretamente da ação das audiências, nas quais o desejo leva vantagem sobre o pensamento. Uma notícia (falsificada, fraudulenta ou mesmo verdadeira, pouco importa) só se difunde à medida que corresponda a emoções, quaisquer emoções, ‘positivas’ ou ‘negativas’.

Eis porque notícias fraudulentas se multiplicam e repercutem com muito mais rapidez que notícias confiáveis e lastreadas, fomentando desinformação e confusão que se retroalimentam reciprocamente. Na mesma direção, Oswaldo Giacoia (2020GIACOIA, Oswaldo. E se o Erro, a Fabulação, o Engano Revelarem-Se Tão Essenciais Quanto a Verdade? Jornal Folha de São Paulo, Caderno Ilustríssima de 19 fev. 2017. Cf. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/02/1859994-e-se-o-erro-a-fabulacao-o-engano-revelarem-se-tao-essenciais-quanto-a-verdade.shtml >. Acesso em: 20 out. 2020.
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) argumentou que,

Dado que os indicadores de acesso substituem os antigos critérios de verificação, embute-se o risco de esse novo parâmetro gerar um círculo vicioso: a quantidade de acessos quase sempre está em relação com o potencial de atração contido na distorção da mensagem. Isso significa que o horizonte de avaliação é o do impacto causado11 11 Giacoia, Oswaldo. E se o erro, a fabulação, o engano revelarem-se tão essenciais quanto a verdade? In Jornal Folha de São Paulo, Caderno Ilustríssima de 19.02.2017. Cf. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/02/1859994-e-se-o-erro-a-fabulacao-o-engano-revelarem-se-tao-essenciais-quanto-a-verdade.shtml>. Acesso em: 21 set. 2020. (Giacoia, 2020).

Assim, proliferação do uso das redes sociais é parte do fenômeno que tem sido chamado de crise epistêmica, associada à “[...] passagem de um regime de verdade baseado na confiança nas instituições para um outro regime regulado pela crença individual e pela experiência pessoal, dando voz a movimentos conspiratórios em que a informação é um campo de disputa sobre a produção de narrativa” (Oliveira, 2020OLIVEIRA, Thaiane. Desinformação Científica em Tempos de Crise Epistêmica: circulação de teorias da conspiração nas plataformas de mídias sociais. Revista Fronteiras - estudos midiáticos, Novo Hamburgo, Unisinos, v. 22, n. 1, p. 21-35, jan./abr. 2020., p. 22). Tal contexto, como se pode supor, é francamente favorável à formação e disseminação de inúmeras formas simultâneas de negacionismo, como as que hoje circulam nas redes: climático-ecológico, histórico-político, quanto ao gênero e orientação sexual, científico-sanitário, geofísico, etc.

Ora, no caso da pandemia do novo Coronavírus, o negacionismo se tornou moeda corrente no Brasil sob o governo Bolsonaro. As consequências disso foram ainda mais graves, dado que não apenas a própria doença e seus efeitos no organismo humano eram (e ainda são) relativamente desconhecidos da comunidade médica mundial, mas também pelo fato de que as recomendações médico-científicas exigiam forte e imediata modificação de comportamentos, na esteira da proposição de políticas públicas informativas e preventivas por parte das autoridades nacionais. Estavam dadas, assim, todas as condições para que a pandemia de Covid-19 se transformasse num foco privilegiado de produção e disseminação governamentais de teses negacionistas, as quais implicaram não apenas a politização do vírus, mas também a politização de medicamentos, como a Cloroquina e a Hidroxicloroquina, a politização da própria Organização Mundial da Saúde e de suas recomendações científicas, bem como, mais recentemente, a própria politização das vacinas. Tudo isso produziu considerável impacto nas relações políticas entre o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, os Governadores de Estado, Prefeitos e a própria população, gerando-se um ambiente caótico e favorável a que as pessoas fossem levadas a tomar decisões por si mesmas, amparando-se nas concepções que lhe parecessem mais convenientes. Foi nesse contexto que o negacionismo se afirmou e se confirmou como mais uma forma política de governamento de populações no país.

Dada a afinidade do Bolsonarismo com as más práticas do uso agressivo das redes sociais, incluindo-se aí o disparo organizado de propaganda política enganosa, de notícias fraudulentas visando a confundir a população e/ou desmoralizar oponentes políticos, além dos ataques de ódio direcionados contra indivíduos e grupos sociais que discordem das afirmações e dos atos do Presidente, não seria de se espantar que este movimento político recorresse ao negacionismo como política governamental diante da pandemia. Passados 6 meses desde a chegada do vírus ao Brasil, o site Aos Fatos, que checa a veracidade das declarações presidenciais, contabilizou nada menos que 653 declarações falsas ou distorcidas de Bolsonaro sobre a pandemia e sobre as ações adotadas pelo governo no seu enfrentamento, totalizando uma média de três informações enganosas por dia sobre o assunto entre 11 de março e 11 de setembro de 202012 12 Cf. Disponível em: <https://www.aosfatos.org/noticias/bolsonaro-deu-656-declaracoes-falsas-ou-distorcidas-sobre-covid-19-em-seis-meses-de-pandemia/>. Acesso em: 17 set. 2020. (Ribeiro; Cunha, 2020RIBEIRO, Amanda; CUNHA, Ana Rita. Bolsonaro Deu 653 Declarações Falsas ou Distorcidas sobre Covid-19 em Seis Meses de Pandemia. Aos Fatos, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.aosfatos.org/noticias/bolsonaro-deu-656-declaracoes-falsas-ou-distorcidas-sobre-covid-19-em-seis-meses-de-pandemia/ >. Acesso em: 18 out. 2020.
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). De maneira mais geral, Bolsonaro pronunciou 1417 frases em que abordou o tema da pandemia, sendo que os alvos prioritários de suas afirmações visando a promover confusão, dúvida e desinformação entre os cidadãos brasileiros tiveram seu foco na defesa do uso da Cloroquina, na crítica à OMS e às suas recomendações sanitárias, e nos ataques políticos ao Supremo Tribunal Federal, aos governadores de Estado e aos prefeitos, os quais foram acusados de impedir o Presidente de agir para conter a pandemia. O presidente também proferiu conhecidas teses negacionistas com relação à imunidade de rebanho, repetindo exaustivamente que os brasileiros somente estariam protegidos da infecção depois que uma porcentagem entre 60-70% da população tivesse sido contaminada. Segundo o site, essa narrativa foi enunciada por 34 vezes a fim de desacreditar a importância do isolamento social como forma preventiva eficaz de contenção da pandemia, medida que foi imediatamente politizada segundo o argumento de que seria desnecessária, ineficaz, geraria pânico e, finalmente, agravaria a crise econômica, com o que se pretenderia desestabilizar o Governo Federal. Bolsonaro foi também o principal defensor do uso da Cloroquina no Twitter, repetindo a informação de que o medicamento seria eficaz por 21 vezes. Em 9 vezes, o Presidente afirmou que a Cloroquina seria o único tratamento existente contra a Covid-19, ao passo em que noutras 11 vezes admitiu não haver comprovação científica de que o medicamento fosse eficaz, apostando, entretanto, que melhor seria fazer uso dele do que não o fazer. Como diversos negacionistas, Bolsonaro fundamentou suas afirmações em estudos médicos observacionais, considerados de menor confiabilidade, bem como se amparou na sua própria experiência individual como usuário do medicamento. Considere-se, finalmente, que as declarações negacionistas de Bolsonaro quanto à pandemia foram feitas em lives e entrevistas divulgadas nas redes sociais, alcançando com rapidez milhões de cidadãos e multiplicando seu impacto de maneira exponencial.

Vejamos agora um apanhado significativo das declarações negacionistas de Bolsonaro sobre a pandemia e sobre as maneiras de lidar com os riscos da doença: “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar” (20.03.20); “Não estou acreditando nesses números” (27.03.20); “Eu desconheço qualquer hospital que esteja lotado” (02.04.20); “Esse vírus é igual a uma chuva, vai molhar 70% de vocês” (03.04.20); “Cada vez mais o uso da cloroquina se apresenta como algo eficaz” (08.04.20); “Parece que está começando a ir embora a questão do vírus” (12.04.20); “Não tem que se acovardar com esse vírus na frente” (18.04.20); “É uma neurose. 70% da população vai pegar o vírus” (09.05.20); “Lockdown não dá certo” (14.05.20); “O pessoal que reclama da cloroquina, então dê alternativa” (02.06.20); “Ou a OMS trabalha sem viés ideológico, ou vamos estar fora” (05.06.20); “Houve um superdimensionamento” (07.07.20); “A maioria da população brasileira contrai o vírus e não percebe” (07.07.20); “Se não temos alternativa, vamos com a hidroxicloroquina” (18.07.20); “Não precisa ter pavor no tocante ao vírus” (23.07.20); “Efeito colateral (da economia) é mais grave que o próprio vírus” (06.08.20); “Quem não quer tomar cloroquina, não tente proibir” (06.08.20)13 13 Cf. Disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2020-08-08/veja-cem-momentos-em-que-jair-bolsonaro-minimizou-a-covid-19.html>. Acesso em: 17 set. 2020. (Ribeiro; Cunha, 2020RIBEIRO, Amanda; CUNHA, Ana Rita. Bolsonaro Deu 653 Declarações Falsas ou Distorcidas sobre Covid-19 em Seis Meses de Pandemia. Aos Fatos, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.aosfatos.org/noticias/bolsonaro-deu-656-declaracoes-falsas-ou-distorcidas-sobre-covid-19-em-seis-meses-de-pandemia/ >. Acesso em: 18 out. 2020.
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).

O site Aos Fatos também levantou a informação de que entre 15 de março e 2 de agosto o Presidente se deixou fotografar ou filmar em público por 30 vezes, desobedecendo a indicação da comunidade científica quanto à importância do isolamento social. Mais recentemente, no dia 19.08.20, Bolsonaro declarou que o uso de máscaras tem eficácia quase nula14 14 Cf. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/08/19/bolsonaro-mascara-eficacia.htm>. Acesso em: 17 set. 2020. (Bolsonaro diz que máscara..., 2020BOLSONARO diz que máscara tem eficácia quase nula; ciência aponta proteção. UOL , 2020. Disponível em: <Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/08/19/bolsonaro-mascara-eficacia.htm >. Acesso em: 18 out. 2020.
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, online), ao passo em que no dia 24.08.20 afirmou que “[Se a cloroquina] não tivesse sido politizada, muito mais vidas poderiam ter sido salvas dessas 115 mil que o país perdeu até o momento15 15 Cf. Disponível em: <https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/bolsonaro-diz-que-cloroquina-teria-salvado-vidas-perdidas-na-pandemia-1.469793>. Acesso em: 17 set. 2020. ” (Bolsonaro diz que cloroquina..., 2020, online). Já no dia 3 de setembro afirmou que “[...] tem muito médico dizendo que essa máscara não protege nada, bulhufas16 16 Cf. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/09/04/125-mil-mortos-bolsonaro-desestimula-uso-de-mascara-de-protecao-contra-a-covid>. Acesso em: 17 set. 2020. ” (Lacerda, 2020LACERDA, Nara. 125 Mil Mortos: Bolsonaro desestimula uso de máscara de proteção contra a covid. Brasil de Fato, 4 set. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/09/04/125-mil-mortos-bolsonaro-desestimula-uso-de-mascara-de-protecao-contra-a-covid >. Acesso em: 19 out. 2020.
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). Finalmente, com o avanço das pesquisas e testagens de novas vacinas, apareceram declarações politizando a não obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19, bem como recusando a vacina chinesa Coronavac. No dia 19/10 o Presidente declarou: “Hoje em dia, pelo menos metade da população diz que não quer tomar essa vacina. Isso é direito das pessoas. Ninguém pode, em hipótese alguma, obrigá-las a tomar essa vacina17 17 Cf. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/10/nao-sera-obrigatoria-esta-vacina-e-ponto-final-afirma-bolsonaro-sobre-coronavac.shtml>. Acesso em: 21 set. 2020. ” (Carvalho; Uribe; Cancian, 2020CARVALHO, Daniel; URIBE, Gustavo; CANCIAN, Natália. Não Será Obrigatória Esta Vacina e Ponto Final, Afirma Bolsonaro sobre Coronavac. Folha/Uol, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/10/nao-sera-obrigatoria-esta-vacina-e-ponto-final-afirma-bolsonaro-sobre-coronavac.shtml >. Acesso em: 21 out. 2020.
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). Subindo o tom das declarações e da própria politização da questão, em 21.10.20 Bolsonaro desautorizou seu Ministro da Saúde, que pouco antes havia anunciado a assinatura de um protocolo de intenções com o Governo de São Paulo para a compra de 46 milhões de doses da vacina chinesa, desenvolvida em parceria com o Instituto Butantã. Disse Bolsonaro: “Já mandei cancelar. O Presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade. [...]. Até porque estaria comprando uma vacina que ninguém está interessado nela, a não ser nós18 18 Cf. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/10/21/bolsonaro-cancela-acordo-por-coronavac-nao-abro-mao-da-minha-autoridade.htm?utm_source=facebook&utm_medium=social-media&utm_campaign=noticias&utm_content=geral&fbclid=IwAR0ZvwyhP5Nce6dFzPAbWNk05JSszGMidFgB49EUxIngdIH7ujZMO0qfYGU>. Acesso em: 22 set. 2020. ” (Andrade, 2020ANDRADE, Hanrrikson de. Toda e Qualquer Vacina Está Descartada, Diz Bolsonaro. UOL. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/10/21/bolsonaro-cancela-acordo-por-coronavac-nao-abro-mao-da-minha-autoridade.htm?utm_source=facebook&utm_medium=social-media&utm_campaign=noticias&utm_content=geral&fbclid=IwAR0ZvwyhP5Nce6dFzPAbWNk05JSszGMidFgB49EUxIngdIH7ujZMO0qfYGU >. Acesso em: 21 out. 2020.
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). Tais declarações, ao politizarem grosseiramente o assunto, visam a produzir dúvidas e incertezas na população, ao mesmo tempo em que alimentam movimentos negacionistas contra a validade da prática da vacinação em geral. Como vimos anteriormente, este é um uso peculiar da noção de liberdade individual, utilizado em sentido contrário à defesa do valor democrático da proteção da saúde da população, especialmente em tratando de uma doença altamente contagiosa e potencialmente letal.

Esse compêndio de declarações presidenciais parece indicar que o negacionismo ultrapassou, em muito, o plano da mera difusão de opiniões pessoais, transformando-se em estratégia política de gestão da pandemia e das condições de vida da população, na ausência de políticas públicas sanitárias coerentes. A consequência direta dessa intensa disseminação de teses negacionistas no país foi a criação de uma atmosfera social nebulosa, permeada por fanatismos, dúvidas e incertezas. Em meio à confusão produzida pelo negacionismo como política, as recomendações científicas visando à prevenção da disseminação do vírus foram rechaçadas incondicionalmente pelo Governo Federal, sempre que se mostraram contrárias aos interesses políticos e econômicos imediatos defendidos pelas autoridades. Por outro lado, recomendações médicas desprovidas de comprovação científica foram aceitas incondicionalmente, sempre que atenderam àqueles mesmos interesses políticos e econômicos, como no caso da propaganda indiscriminada a favor do uso da Cloroquina, de sua fabricação pelo Exército brasileiro, além da difusão de desinformação quanto a outros medicamentos também desprovidos da devida comprovação científica, como vermífugos, dentre outras formas de tratamento não convencional, para o tratamento dos efeitos do vírus. Como imaginar que, sob tais condições, a população brasileira pudesse se comportar de maneira a não se expor ao risco da contaminação e da morte? Foi, portanto, num contexto em que o negacionismo como política ocupou o vazio decorrente da ausência de políticas públicas organizadas para prevenir a difusão do vírus no país, que chegamos à cifra de mais de 150 mil mortos por Covid-19, ao longo de sete meses de pandemia.

O Agravamento da Crise da Democracia Brasileira Durante a Pandemia

Como vimos, o negacionismo não é um fenômeno social historicamente recente, assim como a negação da política, enquanto estratégia de marketing e autopromoção de candidatos, tampouco é novidade entre nós. O que é novo no cenário político brasileiro recente é não apenas que a negação da política e o próprio negacionismo tenham se transformado em políticas determinadas, mas também que elas tenham se articulado e se intensificado até o ponto de se converterem em traços distintivos do governo Bolsonaro durante a pandemia do novo Coronavírus. Esta associação de estratégias políticas heterodoxas durante a pandemia também ofereceu a Bolsonaro a oportunidade de generalizar e fortalecer o conservadorismo mais focado que vinha orientando sua fabricação de inimigos internos, no contexto da deslegitimação das políticas pregressas de reconhecimento de direitos a populações historicamente marginalizadas, como pobres, negras, mulheres, LGBTI+, indígenas, populações tradicionais, etc. Durante a pandemia, Bolsonaro converteu as estratégias da negação da política e do negacionismo como política em armas eficazes de autopromoção e autopreservação políticas e, até o momento, ele parece ter levado a melhor. A despeito de suas desastrosas consequências sociais e políticas, a revolta e a indignação contra seus mandos e desmandos durante a pandemia parecem ter arrefecido ou mesmo desaparecido, em comparação com o que vinha ocorrendo até meados de junho-julho de 2020: sumiram os panelaços, bem como desapareceram as incipientes tentativas de mobilização popular contra as ações e omissões do Governo Federal. Como compreender essa situação política um tanto paradoxal?

Na conclusão deste ensaio, gostaríamos de propor a hipótese de que a associação das estratégias da negação da política e do negacionismo como política teria produzido no país certo efeito de anestesia coletiva. Ao que parece, um dos efeitos políticos da prolongada exposição da população às declarações reiteradas, pelas quais o Presidente minimizou as consequências drásticas da pandemia, bem como ignorou a dor e o luto pelas mortes, pode ter sido a extenuação e o cansaço coletivos, como se as pessoas deixassem de aguardar por cuidado e consideração, e por medidas efetivas de combate, prevenção e esclarecimento contra a pandemia, e decidissem que era chegada a hora de seguir adiante. Ao fazê-lo, e nada seria mais compreensível do que agir deste modo sob tais condições, todos nos adequamos àquela atitude que já havia sido sugerida pelo próprio chefe do Executivo quando o número de mortos beirava a casa dos 100 mil, no início de agosto: “vamos tocar a vida”19 19 Cf. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/08/06/vamos-chegar-a-100-mil-mortos-mas-vamos-tocar-a-vida-diz-bolsonaro.htm>. Acesso em: 22 set. 2020. (Vamos..., 2020VAMOS chegar a 100 mil mortos, mas vamos tocar a vida’, diz Bolsonaro. UOL , 2020. Disponível em: <Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/08/06/vamos-chegar-a-100-mil-mortos-mas-vamos-tocar-a-vida-diz-bolsonaro.htm >. Acesso em: 17 out. 2020.
https://noticias.uol.com.br/saude/ultima...
, online). Some-se a esse quadro de extenuação coletiva o fato de que a televisão baixou o tom das denúncias e das reportagens envolvendo as mortes por Covid-19, substituindo as reportagens in loco nos hospitais e cemitérios pela fria apresentação de gráficos relativos à média móvel de mortos e contaminados, apresentados de maneira sóbria e protocolar. Acrescente-se também ao quadro a tardia chegada do auxílio emergencial a mais de 60 milhões de brasileiros, aspecto que também teve seu papel na disseminação de um clima artificial de normalidade entre os brasileiros. Neste estranho contexto político e social, parece que a articulação daquelas duas estratégias logrou produzir a naturalização do absurdo, isto é, a banalização das mortes e a sedimentação da clivagem histórica que, entre nós, vem separando desde longa data as vidas que valem mais daquelas que valem menos e daquelas que podem mesmo ser descartadas por meio de sua máxima exposição ao risco de contaminação e de morte.

Por fim, pensemos também, e sobretudo, no possível efeito político implicado na privação da possibilidade de exercer o luto pela perda dos entes queridos, condição altamente estressante a que todos fomos submetidos durante a pandemia. Estimativas de estudos epidemiológicos calculam que cada morte atinja emocionalmente pelo menos até outras 6 pessoas, o que nos dá uma ideia da extensão do trauma nacional com a altíssima taxa de mortalidade pelo vírus20 20 Cf. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/01/a-cada-morte-por-coronavirus-seis-a-dez-pessoas-sao-impactadas-pela-dor-do-luto-dizem-especialistas.ghtml>. Acesso em: 19 set. 2020. (Oliveira, 2020OLIVEIRA, Elida. A Cada Morte por Coronavírus, Seis a Dez Pessoas São Impactadas pela Dor do Luto, Dizem Especialistas. G1/Globo, Rio de Janeiro, 1 maio 2020. Disponível em: <Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/01/a-cada-morte-por-coronavirus-seis-a-dez-pessoas-sao-impactadas-pela-dor-do-luto-dizem-especialistas.ghtml >. Acesso em: 20 out. 2020.
https://g1.globo.com/bemestar/coronaviru...
). Como observou argutamente Carla Rodrigues (2020RODRIGUES, Carla. Por uma Filosofia Política do Luto. O Que nos Faz Pensar, Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, v. 29, n. 46, p. 58-73, jan./jun. 2020.), refletindo sobre o significado do luto na obra de Judith Butler (2004bBUTLER, Judith. Undoing Gender. Nova York; Londres: Routledge, 2004b.), “[...] o direito ao luto se dá como forma de luta política” (p. 61). Se esta ideia faz sentido, e nos parece que faz, então talvez se possa conjecturar até que ponto a privação da possibilidade de exercer o luto não mantém relação com a nossa atual impossibilidade política de lutar contra o descaso do governo Bolsonaro durante a pandemia, quando a vida de todos foi considerada, de maneira explícita ou implícita, como descartável ou como de pouca valia, isto é, como não merecedoras de luto. E não nos esqueçamos de que, num país desigual como o Brasil, tal condição de precariedade já está imposta, desde antes do nascimento e da morte, a amplas parcelas da população.

A reflexão sobre o luto ganha maior desenvolvimento e proeminência na obra de Butler (2004aBUTLER, Judith. Precarious Life. The powers of mourning and violence. Londres; Nova York: Verso, 2004a.) em conexão com a noção de precariedade, formulada e desenvolvida a partir de Precarious Life, obra na qual a autora refletiu sobre o problema da guerra contra o terrorismo islâmico levada a cabo pelos Estados Unidos, após o ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. Este acontecimento dramático está na raiz de suas reflexões sobre a precariedade, a vulnerabilidade e a interdependência enquanto condições intrínsecas à vida humana e não-humana na Terra. Ao pensar sobre a condição da precariedade e da vulnerabilidade, bem como ao criticar a desigualdade socialmente induzida na partilha global entre as vidas passíveis de serem enlutadas e as vidas descartáveis ou desprovidas de valor, Butler deu ensejo à formulação de uma interrogação ético-política que conferiu importância política ao luto. Ela se pergunta: de que modo a clivagem entre as vidas dignas de luto e as vidas indignas de luto, as quais são consideradas como inumanas, “[...] opera de maneira a produzir e manter algumas concepções excludentes acerca de quem é humano em sentido normativo: o que conta como vida vivível e como morte que se deve velar?” (Butler, 2004a, p. xiv-xv). A partir da noção de precariedade, entendida tanto numa chave ontológico-existencial (todos estamos sujeitos à violência, à agressão, ao sofrimento, à violência e à morte), quanto numa chave sócio-política (algumas vidas estão mais sujeitas aos efeitos de violência e morte produzidos pela desigualdade no acesso às infraestruturas sociais e econômicas de proteção da vida), Butler fez de nossa capacidade para velar e chorar a morte dos outros uma instância privilegiada para a reflexão ético-política acerca do que significa viver em um mundo comum, no qual todos dependemos mutuamente de outros, de sorte que se tenha de afirmar o dever de combater o espraiamento da violência e da desigualdade.

Foi a partir dessa reflexão sobre o luto, tão oportuna num país que acabava de sofrer o trauma do terrorismo internacional, que Butler estabeleceu uma interessante relação entre o luto e a questão da comunidade política: “Muitas pessoas pensam que o luto é privado, que ele nos traz de volta a uma situação solitária, mas eu penso que ele expõe a socialidade constitutiva do eu, uma base para pensar uma comunidade política de ordem complexa” (Butler, 2004b, p. 19). Temos aqui uma noção sumamente importante para refletir sobre os impactos políticos envolvidos na impossibilidade de organizarmos rituais fúnebres, velarmos e chorarmos coletivamente nossos mortos. Se faz sentido pensar que o luto revela não apenas a dimensão crucial da perda do outro, mas também o fato de que há os outros que coparticipam dessa perda, além de todos os outros que nos são desconhecidos, mas sem os quais nossa vida se tornaria insustentável, impossível, então, talvez possamos supor que a privação da experiência dos rituais fúnebres e a privação da possibilidade de chorar coletivamente nossos mortos tenha forte impacto político sobre a comunidade. De fato, é difícil haver ação política sob condições que acentuam, além do suportável, a experiência do medo, da insegurança, da perda de contato consigo mesmo e com os outros? Ao mesmo tempo em que a fragilidade de cada um foi acentuada ao máximo, tornando ainda mais insuportáveis as condições de vida da maioria da população, já historicamente submetida a processos de vulneração e precarização socialmente induzidos, também se nos impôs a impossibilidade de nos reunirmos, de estarmos juntos, em júbilo, raiva ou tristeza, para lutarmos coletivamente por melhores condições de vida.

Talvez tais considerações possam esclarecer, ao menos em parte, porque, quanto mais foi aumentando o número de mortos pela pandemia do novo Coronavírus no Brasil, tanto mais silencioso e abafado foi se tornando o sentimento de indignação, assim como cada vez menos se encontraram canais abertos para a manifestação pública do sentimento de indignação. A conjugação das estratégias da negação da política e do negacionismo como política parece ter resultado na disseminação por todo o país de um misto de amargos sentimentos de impotência e de resignação. De fato, tais sentimentos têm sido estimulados desde o princípio pela reiteração da mesma gélida indiferença presidencial em relação aos mortos e à dor das famílias: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?” dissera o Presidente em abril, quando o número de mortos estava na casa dos 5 mil. Ao que parece, aquelas escandalosas declarações presidenciais revelaram agora a sua finalidade: reprimir e desconsiderar a indignação e o protesto organizado, tornar-nos familiarizados com a naturalização das mortes, trivializar a perda de tantas vidas, bem como silenciar todos aqueles que ainda permanecem por aqui, induzindo-nos a nos salvar individualmente, enquanto ainda podemos fazê-lo. Quanto tempo durará tudo isso? Ninguém o sabe, mas, não nos esqueçamos de que não há sofrimento intenso que possa se manter calado.

Referências

  • 1
    Cf. Disponível em: <https://epoca.globo.com/as-ideias-os-valores-de-bolsonaro-em-100-frases-23353141>. Acesso em: 23 set. 2020.
  • 2
    Cf. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-25-frases-polemicas/>. Acesso em: 23 set. 2020.
  • 3
    Cf. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-25-frases-polemicas/>. Acesso em: 23 set. 2020.
  • 4
    Cf. Disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2019-08-07/declaracoes-polemicas-bolsonaro.html>. Acesso em: 23 set. 2020.
  • 5
    Cf. Disponível em: <https://folhasul.com.br/site/2020/04/19/nos-nao-vamos-negociar-nada-chega-de-patifaria-diz-bolsonaro-em-discurso-a-apoiadores/>. Acesso em: 23 set. 2020.
  • 6
    Cf. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/09/vice-hamilton-mourao-diz-que-governo-lidou-muito-bem-com-a-pandemia.ghtml>. Acesso em: 23 set. 2020.
  • 7
    No Brasil, Tatiana Roque tem promovido uma importante discussão acerca do negacionismo climático em sua relação com a ascensão ao poder de governantes vinculados à extrema-direita. Veja-se o seu artigo O negacionismo no poder. Revista Piauí, fev. 2020b. Mais recentemente, já no âmbito da pandemia do novo Coronavírus, ela foi uma das primeiras teóricas a compreender a importância que Bolsonaro atribuiu ao negacionismo como forma de governamento. Cf. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=52wP-CPFIOs>. Acesso em: 23 set. 2020.
  • 8
    Pesquisa Ibope divulgada em 24 de setembro de 2020 indica que 40% da população aprovam o governo de Bolsonaro. Cf. Disponível em: <https://jovempan.com.br/noticias/brasil/popularidade-jair-bolsonaro-maior-percentual-desde-o-inicio-do-mandato.html>. Acesso em: 23 set. 2020.
  • 9
    Cf. O Negacionismo no Poder, op.cit.
  • 10
    Swako, José. O Que Nega o Negacionismo?. In: A Terra é Redonda, 2020. Cf. Disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/o-que-nega-o-negacionismo/#_edn4>. Acesso em: 21 set. 2020.
  • 11
    Giacoia, Oswaldo. E se o erro, a fabulação, o engano revelarem-se tão essenciais quanto a verdade? In Jornal Folha de São Paulo, Caderno Ilustríssima de 19.02.2017. Cf. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/02/1859994-e-se-o-erro-a-fabulacao-o-engano-revelarem-se-tao-essenciais-quanto-a-verdade.shtml>. Acesso em: 21 set. 2020.
  • 12
    Cf. Disponível em: <https://www.aosfatos.org/noticias/bolsonaro-deu-656-declaracoes-falsas-ou-distorcidas-sobre-covid-19-em-seis-meses-de-pandemia/>. Acesso em: 17 set. 2020.
  • 13
    Cf.ESTEVES, Eduarda. Veja Cem Momentos em que Jair Bolsonaro Minimizou a Covid-19. IG, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2020-08-08/veja-cem-momentos-em-que-jair-bolsonaro-minimizou-a-covid-19.html >. Acesso em: 18 out. 2020.
    https://ultimosegundo.ig.com.br/politica...
    Disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2020-08-08/veja-cem-momentos-em-que-jair-bolsonaro-minimizou-a-covid-19.html>. Acesso em: 17 set. 2020.
  • 14
    Cf. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/08/19/bolsonaro-mascara-eficacia.htm>. Acesso em: 17 set. 2020.
  • 15
    Cf. Disponível em: <https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/bolsonaro-diz-que-cloroquina-teria-salvado-vidas-perdidas-na-pandemia-1.469793>. Acesso em: 17 set. 2020.
  • 16
    Cf. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/09/04/125-mil-mortos-bolsonaro-desestimula-uso-de-mascara-de-protecao-contra-a-covid>. Acesso em: 17 set. 2020.
  • 17
    Cf. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/10/nao-sera-obrigatoria-esta-vacina-e-ponto-final-afirma-bolsonaro-sobre-coronavac.shtml>. Acesso em: 21 set. 2020.
  • 18
    Cf. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/10/21/bolsonaro-cancela-acordo-por-coronavac-nao-abro-mao-da-minha-autoridade.htm?utm_source=facebook&utm_medium=social-media&utm_campaign=noticias&utm_content=geral&fbclid=IwAR0ZvwyhP5Nce6dFzPAbWNk05JSszGMidFgB49EUxIngdIH7ujZMO0qfYGU>. Acesso em: 22 set. 2020.
  • 19
    Cf. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/08/06/vamos-chegar-a-100-mil-mortos-mas-vamos-tocar-a-vida-diz-bolsonaro.htm>. Acesso em: 22 set. 2020.
  • 20
    Cf. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/01/a-cada-morte-por-coronavirus-seis-a-dez-pessoas-sao-impactadas-pela-dor-do-luto-dizem-especialistas.ghtml>. Acesso em: 19 set. 2020.
  • Editor-responsável: Carla Vasques

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2020
  • Aceito
    19 Nov 2020
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