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Sustentar a Transferência no Ensino Remoto: docência em tempos de pandemia

Resumo:

Problematizamos a docência no ensino remoto em tempos de pandemia. A despeito das diferenças entre ensino remoto e educação a distância (EaD), apontamos que críticas a ambos recaem sobre as dificuldades de interação entendidas como inerentes a eles. Em contraposição, argumentamos que ponderações a todo modo de ensino precisam enfatizar modelos teóricos conceituais que os sustentam. Inspirados na construção do caso em psicanálise, apresentamos narrativas acerca do ensino remoto e as analisamos a partir do conceito de transferência. Apostamos que o laço transferencial entre professor, aluno e conhecimento pode ser estabelecido no ensino remoto, considerando a escuta e a palavra como representantes da presença e da corporeidade neste contexto.

Palavras-chave:
Docência; Ensino Remoto; Transferência; Psicanálise

Abstract:

We discuss teaching in remote learning in pandemic times. Despite the differences between remote learning and distance learning (EaD), we point out that criticisms of both focus on the interaction difficulties understood as inherent to them. We argue, however, that considerations on any teaching method must emphasize the theoretical-conceptual models that support them. Inspired by the clinical case construction approach, we present narratives about remote learning and analyze them based on the concept of transference. We believe that the transference between teacher, student and knowledge can be established in remote learning, considering listening and speech as representatives of presence and corporeality in this context.

Keywords:
Teaching; Remote Learning; Transference; Psychoanalysis

Ao final do ano de 2019, entramos em sinal de alerta sanitário em decorrência da descoberta de um novo vírus, cuja incidência inicial ocorreu na cidade de Wuhan, na China. Tal vírus, nomeado Covid-19, rapidamente se espalhou pela Europa e o aparecimento de novos casos no Brasil sucedeu, de forma mais prevalente, a partir do mês de março de 2020, causando impacto por seu grande poder de transmissão e pela elevada taxa de mortalidade. Foi nessa época que ganharam terreno no nosso país medidas para incentivar alguns cuidados de higiene, como lavagem frequente das mãos e uso de álcool em gel, bem como para propor distanciamento social visando conter o avanço da doença. Além disso, locais que geram aglomeração de pessoas foram rapidamente orientados a restringirem ou cancelarem suas atividades, sendo que as escolas e universidades foram alguns dos primeiros espaços a seguirem essa orientação, demonstrando preocupação com o cuidado de si e dos outros. Com a impossibilidade de habitar esses tradicionais estabelecimentos de ensino, vislumbrou-se o desafio de refletir sobre outros modos de estruturar os processos de ensinar, a fim de promovê-lo efetivamente, assim como de aprender em espaços diversos, fora do corriqueiro ambiente escolar e acadêmico.

Destaque-se que, no Brasil, esse movimento de invenção de modos alternativos para sustentar o educar tem acontecido de forma um tanto diversa e controversa, pois, desde o início da pandemia no país, não houve uma posição unânime quanto ao protocolo a seguir, seja por parte dos governos municipais, estaduais ou federal. É importante enfatizar, ainda, que as diretrizes (ou a falta destas) por parte do atual presidente Jair Bolsonaro, bem como sua posição negacionista diante da letalidade do novo vírus, fez que as medidas de distanciamento social se efetivassem de modo errante e não coordenado. No momento, estamos colhendo o resultado desse posicionamento, com o cômputo de mais de 150 mil mortes contabilizadas até o mês outubro de 2020, valendo salientar que, infelizmente, não há previsão de decréscimo significativo do contágio e do número de óbitos diários. Por outro lado, com o fechamento das escolas, contribuímos para que esse número não seja ainda maior, preservando, assim, a segurança e o cuidado com a comunidade escolar e seu entorno.

No que diz respeito, mais especificamente, aos modos de sustentar espaços para o ensino, a aprendizagem e o exercício da docência nesse contexto, uma estratégia que se disseminou no país foi a adoção de recursos remotos, principalmente o uso da internet, a fim de possibilitar aos professores dos diversos níveis de ensino o envio e compartilhamento de materiais didáticos e atividades com os alunos. Tal estratégia ocasionou uma série de críticas e resistência dos envolvidos (isto é, professores, familiares e alunos), como também da sociedade civil. Esse movimento se centrou em dois grandes focos de problematização: (i) a enorme desigualdade socioeconômica dos brasileiros e, consequentemente, a falta de acesso aos recursos necessários para o acompanhamento de aulas remotas por grande parte da população; e (ii) a contraposição entre ensino presencial e educação a distância (EaD), ou ensino remoto, e a pretensa qualidade daquele em detrimento destes.

Sem desconsiderar a complexidade do tema e a necessária crítica às desigualdades socioeconômicas enunciadas anteriormente, neste artigo enfocamos, especialmente, o debate acerca do exercício da docência quando realizado por intermédio de tecnologias digitais, o uso da internet e a elaboração do ensino remoto. Nosso objetivo central é propor a exposição e o debate de elementos que nos permitam pensar o fazer do professor e as possibilidades de encontro entre professor, aluno e conhecimento em um contexto diverso da sala de aula, gerado de forma emergencial pela instalação desta pandemia e a aderência ao ensino remoto em substituição às aulas presenciais.

Para tanto, seguimos o caminho metodológico inspirado na construção do caso, conforme proposto pela perspectiva da pesquisa psicanalítica. Nessa abordagem, é destacada a importância do traço, entendido como característica, sinal, vestígio ou marca do que não se dá imediatamente a ver, dos indícios e da escuta destes, seja nos casos clínicos (Freud, 1975FREUD, Sigmund. Construções em Análise. In: FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo, Esboço de Psicanálise e Outros Trabalhos. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1975. P. 289-304. ) ou em obras de arte (Freud, 2012a), além de outras manifestações sociais e da cultura. Sobre esse método, Dunker e Zanetti (2017DUNKER, Christian Ingo Lenz; ZANETTI, Clovis Eduardo. Construção e Formalização de Casos Clínicos. In: DUNKER, Christian; RAMIREZ, Heloisa; ASSADI, Tatiana (Org.). A Construção de Casos Clínicos em Psicanálise: método clínico e formalização discursiva. São Paulo: Annablume, 2017. P. 23-45.), inspirados em Lacan, indicam, ainda, que a construção do caso implica a leitura, identificação e organização de traços, ou signos, relevantes, da mesma maneira que o trânsito entre formas de significação e sua expressão, além da proposição de modos de escrita, denominados transliteração.

Nesse sentido, tomamos o ensino remoto e a docência nesse contexto como caso para pensarmos o fazer do professor nessa inédita forma de ensinar. Traços e indícios desse processo, tal como suas vicissitudes, são buscados em notícias colhidas na internet e relatos pessoais. Em diálogo com conceitos da psicanálise freudo-lacaniana, principalmente com o conceito de transferência, tecemos alguns aportes para pensar a docência em tempos de distanciamento social e, consequentemente, em modos possíveis para o educar.

Primeiramente, problematizamos uma falsa dicotomia entre ensino presencial e EaD, ou ensino remoto, para sustentarmos que não é a forma de ensino - seja ele presencial ou a distância, ou remoto - que garante à proposta didático-pedagógica o efeito de troca, relação e construção de aprendizagens, mas, sim, os modelos teóricos conceituais que sustentam tais formas. Em um segundo momento, apresentamos recortes de narrativas colhidas nas redes sociais e mídias digitais acerca dos modos de vivência do ensino remoto por professores, alunos e familiares. Essas narrativas nos dão indícios ou signos para problematizarmos a docência a partir do diálogo com a psicanálise, o que é proposto na sequência. Por fim, em conclusão, reunimos em síntese elementos para pensar o fazer do professor no âmbito do ensino remoto, além de lançarmos outros questionamentos necessários de serem abordados em trabalhos futuros.

Uma Falsa Dicotomia Entre Ensino Presencial e EaD, ou Ensino Remoto

Como já mencionamos, além da necessária crítica acerca dos aspectos socioeconômicos que impedem grande parte dos brasileiros de ter acesso aos recursos para seguir trabalhando e estudando remotamente devido à enorme desigualdade de renda entre a população, ponto este que denunciamos, mas que não será explorado neste artigo, uma falsa dicotomia entre o ensino presencial e a EaD, ou o ensino remoto, aparece como alvo dos debates sobre as alternativas encontradas para transpor as aulas dos diferentes níveis de ensino presencial para outras formas de sustentar o ensinar. Quando nos referimos a uma falsa dicotomia, não estamos afirmando a equivalência dos modos de levar a cabo o ensino, apagando as diferenças entre eles, mas indicamos o equívoco, no nosso entender, em considerar o ensino presencial como necessariamente garantidor de uma qualidade no ensinar e aprender em detrimento de uma má qualidade inerente à EaD, ou ao ensino remoto.

Antes de darmos sequência a esse debate, consideramos importante uma breve diferenciação entre EaD e ensino remoto, mesmo que ambos envolvam o uso de recursos digitais, predominantemente, para a sua implementação. Uma clássica definição de EaD é apresentada por Moore e Kearsley (2007MOORE, Michael Grahame; KEARSLEY, Greg. Educação a Distância: uma visão integrada. São Paulo: Thomson Learning, 2007.), os quais destacam que, além do uso de tecnologias e da temporalidade diferenciada do processo, um curso é considerado como EaD quando existe a presença de professores e alunos que se encontram em um espaço virtual (predominantemente) organizado a partir de pressupostos didático-pedagógicos propostos para tal fim, que orientam a proposição de atividades e sua avaliação subsequente.

Um dos importantes documentos brasileiros sobre EaD se trata do Decreto nº 9.057, de 25 de maio de 2017 (Brasil, 2017), no qual o termo educação a distância é caracterizado da seguinte forma:

Art. 1º Para os fins deste Decreto, considera-se educação a distância a modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorra com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de acesso, com acompanhamento e avaliação compatíveis, entre outros, e desenvolva atividades educativas por estudantes e profissionais da educação que estejam em lugares e tempos diversos (Brasil, 2017BRASIL. Decreto nº 9.057, de 25 de maio de 2017. Regulamenta o art. 80 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 maio 2017. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9057.htm . Acesso em: 25 mar. 2008.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

Ao lermos essas definições, destacamos que, embora mencionem o uso de recursos digitais como intermediadores na relação entre professor, aluno e conhecimento, cada curso na modalidade a distância está ancorado em pressupostos teórico-conceituais que sustentam as práticas didático-pedagógicas e estão articulados com os recursos digitais utilizados e sua forma de uso, além de orientarem as relações entre os participantes da cena educativa - característica esta explicitada principalmente no conceito abordado por Moore e Kearsley (2007MOORE, Michael Grahame; KEARSLEY, Greg. Educação a Distância: uma visão integrada. São Paulo: Thomson Learning, 2007.). Por outro lado, o ensino remoto não pode ser considerado uma modalidade educativa, mas, sim, uma ação pedagógica, na qual se processa certa transposição do ensino presencial para o ensino mediado por ferramentas digitais, predominantemente, ou pela proposição de apostilas e materiais impressos remetidos aos alunos.

Ainda, no caso do ensino remoto, não existe planejamento ou modelos teórico-conceituais específicos e prévios para sua prática; há apenas a transposição do trabalho presencial para um espaço digital ou impresso. Usam-se recursos digitais ou materiais entregues aos alunos para viabilizar o que foi planejado pedagogicamente para ser realizado presencialmente, sem a enunciação explícita de um plano didático-pedagógico articulado com as ferramentas. Tal definição se aproxima do que é apresentado por Bozkurt e Sharma (2020BOZKURT, Aras; SHARMA, Ramesh Chander. Emergency Remote Teaching in a Time of Global Crisis Due to Coronavirus Pandemic. Asian Journal of Distance Education, Nova Deli, v. 15, n. 1, p. 1-6, 2020. Disponível em: <Disponível em: http://asianjde.org/ojs/index.php/AsianJDE/article/download/447/297 >. Acesso em: 01 out. 2020.
http://asianjde.org/ojs/index.php/AsianJ...
), quando se referem ao ensino remoto de emergência, caracterizando-o como uma solução temporária para uma problemática que se instala de modo imediato. Os autores mencionam, ainda, que, embora tal solução possa se apropriar de forma original e criativa de recursos e experiências desenvolvidos no âmbito da EaD, não podemos tratá-los de forma equivalente.

Embora existam essas diferenças, que não permitem colocarmos a EaD e o ensino remoto como equivalentes, conforme mencionado acima, as críticas recebidas por essa modalidade e essa ação pedagógica são um tanto semelhantes, pois focalizam e imputam justamente uma precarização inerente ao uso de ferramentas digitais como intermediadoras nos processos de ensinar e aprender. Assim, o ensino mediado por tecnologias digitais - seja ele a modalidade EaD ou ensino remoto - é considerado a priori, pelo senso comum, como de má qualidade, porque impede o olho no olho, a espontaneidade, centrando-se no professor que apenas repassa informações para os alunos etc.

Discordamos desses posicionamentos, pois consideramos que a discussão centrada somente nas ferramentas digitais é insuficiente e empobrece a complexidade do assunto. Para pensarmos o ensino, bem como avaliarmos sua potencialidade na viabilização de processos de aprendizagem que reconheçam professores e alunos como sujeitos e autores, precisamos estar atentos principalmente aos modelos teórico-conceituais que ancoram essas práticas. Aqui, consideramos importante salientar que, mesmo não evidenciando um modelo que ampara a prática do ensino remoto de forma prévia ao planejamento dela, como apresentado anteriormente, esse modo de efetivar o ensinar guarda a marca dos modelos que sustentam o fazer do professor, ainda que este não tenha consciência de sua existência e operatividade.

Nesse sentido, consideramos pertinente uma sintética apresentação de alguns modelos teórico-conceituais para articularmos tais definições sobre a potência, ou não, das formas de ensinar. Classicamente, encontramos na literatura da área da educação a conceitualização de três formas de conceber a construção dos conhecimentos e que, consequentemente, nos dão pistas para pensar os modos de ensino, quais sejam: (i) o modelo associacionista empiricista; (ii) o modelo inatista, ou apriorista; e (iii) o modelo construtivista. No que se refere especificamente a uma abordagem epistemológica sobre a relação do sujeito com os conhecimentos, destacamos o trabalho de Jean Piaget (1988PIAGET, Jean. Où Va l’Éducation? Paris: Gallimard, 1988. (Coleção Folio Essais).), que apresenta os três modelos supracitados conforme segue: (i) o primeiro se vincula ao associacionismo empiricista e entende o conhecimento como aquisição externa, fruto da apresentação de estímulos sensoriais apresentados pelo outro ao sujeito; (ii) por sua vez, os fatores inatos e maturacionais são priorizados pelo segundo modelo, que compreende a razão como pré-formada no sujeito e os conhecimentos como expressão interna da razão; (iii) por fim, o último modelo compreende o conhecimento como processo construído por elaborações sucessivas, sendo o acento colocado sobre a atividade do sujeito e não nos mecanismos exógenos (primeiro modelo) ou endógenos (segundo modelo).

Passamos agora ao exercício de articular tais modelos teóricos-conceituais com os modos de ensino. Quando pensamos esses modelos articulados com o ensino presencial, podemos destacar a clássica abordagem proposta por Becker (2001BECKER, Fernando. Modelos Pedagógicos e Modelos Epistemológicos. In: BECKER, Fernando. Educação e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: Artmed, 2001. P. 15-32.) quando o autor apresenta três modelos pedagógicos da forma que segue: (a) o primeiro, denominado pedagogia diretiva, está ancorado no modelo teórico conceitual empiricista, cujo pressuposto central é a noção de que o conhecimento deve ser transmitido do professor para o aluno; (b) o segundo, a pedagogia não diretiva, apoia-se no modelo teórico-conceitual inatista, ou apriorista, que entende o conhecimento como pré-formado no aluno, bastando que este o traga à consciência com a facilitação do professor, que pouco tem ingerência sobre o processo; (c) por fim, o autor refere à pedagogia relacional, que se constitui a partir do modelo teórico conceitual construtivista, compreendendo a aprendizagem como construção, a partir da ação do aluno e de sua relação com o professor.

Para pensarmos as implicações dos modelos teórico-conceituais na EaD, recorremos ao trabalho de Preti (2009PRETI, Oreste. Bases Epistemológicas e Teorias em Construção na Educação a Distância. Cuiabá: Universidade Federal do Mato Grosso, 2009.), o qual indica que uma prática empiricista na EaD, ou no ensino remoto, compreende aqueles cursos oferecidos massivamente como pacotes educacionais cujos objetivos consistem na instrução e no treinamento dos cursistas por meio da oferta de informação massiva e conteudista. A ênfase recai, portanto, na distribuição de conteúdo na web ou na forma de apostilas; no cumprimento de uma agenda de atividades previamente estabelecidas e avaliações cumulativas. Em uma abordagem inatista, é enfatizada a independência do aluno, que aprende sozinho, ao seu tempo, por meio de consultas a materiais disponíveis, com predomínio da autoavaliação; já nos cursos elaborados a partir de uma abordagem construtivista, o que é priorizado é a interação entre professor, aluno e conhecimento e são enfatizados os recursos digitais, que possibilitam a troca e a aprendizagem compartilhada (tais como fóruns de discussão, wikis para elaboração de textos coletivos etc.), sendo pertinente frisar que os recursos são compreendidos como ferramentas de autoria e não mais como fins em si mesmos. Apoiando-nos nas abordagens de Piaget (1988PIAGET, Jean. Où Va l’Éducation? Paris: Gallimard, 1988. (Coleção Folio Essais).), Becker (2001BECKER, Fernando. Modelos Pedagógicos e Modelos Epistemológicos. In: BECKER, Fernando. Educação e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: Artmed, 2001. P. 15-32.) e Preti (2009), se deslocamos o acento de análise nas tecnologias digitais em si para os modelos teóricos-conceituais que ancoram os diversos modos de ensino - presencial, a distância ou remoto -, podemos perceber que todos estão sujeitos a práticas transmissivas (quando se aproximam do modelo empiricista), autodidatas e individualistas (quando a proximidade é com o modelo inatista, ou apriorista), ou à prevalência da relação entre professor, aluno e conhecimento (sustentadas em pressupostos construtivistas).

Mesmo que a teoria psicanalítica freudo-lacaniana não seja apresentada por Piaget (1988PIAGET, Jean. Où Va l’Éducation? Paris: Gallimard, 1988. (Coleção Folio Essais).), Becker (2001BECKER, Fernando. Modelos Pedagógicos e Modelos Epistemológicos. In: BECKER, Fernando. Educação e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: Artmed, 2001. P. 15-32.) e Preti (2009PRETI, Oreste. Bases Epistemológicas e Teorias em Construção na Educação a Distância. Cuiabá: Universidade Federal do Mato Grosso, 2009.) na caracterização desses modelos teórico-conceituais, sustentamos aqui sua aproximação com os modelos construtivistas pela crítica, ou pelo afastamento, ao conceito de realidade proposto pelo behaviorismo (escola psicológica que se apoia no empiricismo) e pelo idealismo (próximo às teorias inatistas, ou aprioristas). Em vez de conceber a relação com a realidade como cópia, Lacan (2008aLACAN, Jacques. Seminário 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008a., p. 62) expõe que “[…] a realidade só é entrevista pelo homem, pelo menos no estado natural, espontâneo, de uma forma escolhida”, sendo que “[...] o homem lida com peças escolhidas da realidade1 1 É importante enfatizar que a noção de escolha para a psicanálise não remete a um processo deliberado racionalmente, mas segue determinações do funcionamento inconsciente. Para uma discussão pormenorizada sobre a noção de escolha em psicanálise, indicamos a consulta ao artigo de Costa e Gomes (2017). ”. Sobre o idealismo, o autor diz que “[…] consiste em dizer que somos nós que damos a medida da realidade, e que não se deve buscar para além disso. É uma posição reconfortante. A de Freud, aliás como o de todo homem sensato, é coisa bem diferente” (Lacan, 2008a, p. 42). Além disso, a importância que essa abordagem outorga à relação com o outro como sujeito falante que produz intermediação nos processos de pensamento e constituição da subjetividade e, consequentemente, dos processos de aprendizagem (Lacan, 2008a) também nos permitem aproximá-la das abordagens construtivistas. Especificamente sobre o conceito de aprendizagem para a psicanálise, D’Agord (2010D’AGORD, Marta Regina de Leão. Aprendizagem e Método Psicanalítico. Educação em Revista, Curitiba, n. 36, p. 147-161, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602010000100011&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: 12 set. 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 148) afirma que

Uma direção de aprendizagem fundada no método psicanalítico envolve, em primeiro lugar, a suposição de sujeito de um saber inconsciente. Isto é, o professor, como aquele que dirige aprendizagens, supõe um saber naqueles que se encontram em situação de aprendizagem (os estudantes). Na situação de aprendizagem, um saber inconsciente é o que determina nossas escolhas conscientes por tópicos do conhecimento.

Afirmamos nossa aproximação com a psicanálise freudo-lacaniana, pois consideramos que são os conceitos dessa teoria que melhor subsidiam a proposição de um ensino que reconheça professor e aluno como sujeitos, tanto do processo de ensinar quanto do processo de aprender. Igualmente, ancorados nessa abordagem, propomos nossa análise da docência em tempos de isolamento. Na sequência, pontuamos as contribuições da psicanálise para pensar a docência no contexto do ensino remoto, sendo apresentadas e articuladas com reflexões acerca de cenas do ensino remoto colhidas das redes sociais e da mídia digital. Por ora, compartilhamos algumas cenas de ensino e algumas articulações destas com o debate teórico até aqui desenvolvido.

Cenas do Ensino Remoto na Pandemia

Muitos são os relatos, depoimentos e narrativas que podem ser acompanhados, principalmente pelos meios digitais, que tratam de impasses, desafios, sofrimento e invenções das famílias, crianças e professores nesses meses de confinamento e afastamento da escola. Em uma consulta à web (dados secundários) e depoimentos enviados por familiares (dados primários), foi possível colher alguns relatos que nos inspiram a problematizar a docência em tempos de ensino remoto, sendo que resgatamos algumas narrativas, organizadas adiante em sete cenas.

Na Cena 1, Ceila Sodré de Carvalho, que tem duas filhas adolescentes na rede estadual de ensino na cidade de Vila Rica, Mato Grosso, diz o seguinte:

Apesar de estar achando bom, acho o sistema limitante. Na escola, sei que a metodologia é um pouco mais rígida. Eu valorizo os dois meios por conta das circunstâncias de agora, da pandemia, mas sei que a convivência das minhas filhas com os outros e com os professores em sala de aula, por exemplo, é muito importante, e agora elas estão sem isso (Sampaio, 2020SAMPAIO, Cristiane. Professores, Pais e Alunos Apontam Dificuldades e Limitações do Ensino a Distância. Brasil de Fato, Brasília, 4 maio 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/04/professores-pais-e-alunos-apontam-dificuldades-e-limitacoes-no-ensino-a-distancia >. Acesso em: 23 maio 2020.
https://www.brasildefato.com.br/2020/05/...
).

Na Cena 2, Barbara Lehmkul, mãe de Arthur, de 4 anos, moradores de Ituporanga, Santa Catarina, aponta que as atividades em casa são “[…] uma forma de os pais participarem do dia a dia das crianças, ajudar a educar. Com o Arthur mais próximo da gente, eu descobri que ele já sabe até separar as palavras com sílabas. Está sendo muito bom” (Szenczuk, 2020SZENCZUK, Gabriela. Aulas Online Dividem Opinião de Pais na Região. Diário do Alto Vale, Rio do Sul, 16 abr. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://diarioav.com.br/aulas-online-dividem-opiniao-de-pais-na-regiao/ >. Acesso em: 16 abr. 2020.
https://diarioav.com.br/aulas-online-div...
).

Na Cena 3, Ana, mãe de Lucas, de 4 anos, e Ricardo2 2 Os nomes apresentados na Cena 3 são fictícios. , de 9 anos, que são moradores de Curitiba, Paraná, compartilhou o seguinte relato, por Whatsapp, em conversa informal:

Mandaram um vídeo da professora do Lucas dançando música de festa junina, como se estivesse ensaiando as crianças… A orientação para os pais é que vestíssemos as crianças com roupas típicas e gravássemos eles dançando a coreografia proposta pela professora. Resultado na prática: Lucas chorando porque não queria dançar em casa e sim na escola ‘de máscara pro vírus não pegar’. Em outros momentos, tentei dar as aulas seguindo os temas… Ele só faz o que está a fim, diz ‘você não é minha profe!’.

O Ricardo usa camiseta da escola para assistir às aulas… foi uma forma que criamos (eu e as outras mães da turma) para manter essas ‘manias de escola’. Ele desenvolveu autonomia, se organiza em torno da rotina estabelecida, faz as lições, se envolve… apronta (às vezes fica desenhando no caderno ou vendo o celular embaixo da ‘carteira’) leva bronca… Ele reclama, acho muito tempo para a aula online, mas funciona… a falta de interação humana pesa, sinto ele tenso e às vezes se desorganiza emocionalmente…

A Cena 4 consiste em uma transcrição do áudio de Whatsapp, enviado por João Vitor dos Santos, de 6 anos, morador de Lagoa Vermelha, Rio Grande do Sul, para a sua professora, Benice Ávila Matos, conforme segue:

[...] sem você, professora, eu não consigo aprender bem. A mãe não é igual a você. Você tem as ‘manias’ de ‘prô’. A minha mãe não tem. Ela trabalha num restaurante, ela só tem a ‘mania’ de fazer comida. Desculpe te incomodar agora, só que eu queria falar pra senhora isso (Padilha, 2020PADILHA, Débora. Com Aulas Suspensas, Menino de Lagoa Vermelha Manda Áudio à Professora: ‘sem você eu não consigo aprender’. G1 - RBS TV, Porto Alegre, 20 maio 2020. Disponível em: <Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/05/20/com-aulas-suspensas-menino-de-lagoa-vermelha-manda-audio-a-professora-sem-voce-eu-nao-consigo-aprender.ghtml >. Acesso em: 23 maio 2020.
https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-su...
).

Na Cena 5, apresenta-se Pedro Daniel, de 18 anos, aluno da rede pública do Paraná, que argumenta o que segue:

Sinceramente, eu estou achando bem ruim, pois a comunicação e a interação com os professores são bem difíceis, e é difícil acompanhar o que eles passam pela TV ou pelo computador. Esse método de ensino parece mais complicado de entender, e é ruim porque não temos como tirar dúvidas no momento em que elas surgem. Caso você não entenda algo, não é como no colégio, onde os professores repetem até você entender (Sampaio, 2020SAMPAIO, Cristiane. Professores, Pais e Alunos Apontam Dificuldades e Limitações do Ensino a Distância. Brasil de Fato, Brasília, 4 maio 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/04/professores-pais-e-alunos-apontam-dificuldades-e-limitacoes-no-ensino-a-distancia >. Acesso em: 23 maio 2020.
https://www.brasildefato.com.br/2020/05/...
).

A Cena 6 manifesta a fala de Débora Meneghetti, professora, residente em Recife, Pernambuco:

O olhar do aluno na sala diz muito. Ele pode sacudir a cabeça afirmando que compreendeu, mas o olho diz que não. Com a aula remota, as câmeras da turma ficam desligadas enquanto explico o assunto. Tenho então que ser mais detalhista, repetir, ensinar mais devagar para ter certeza de que entenderam. É bom porque antes da pandemia alguns alunos comentavam que eu era muito apressadinha. Fui forçada a desacelerar e estou achando bom (Azevedo, 2020AZEVEDO, Margarida. Professores aprendem, na marra, a usar tecnologia para dar aula remota. JC, São Paulo, 31 maio 2020. Disponível em: <Disponível em: https://jc.ne10.uol.com.br/colunas/enem-e-educacao/2020/05/5610966-professores-aprendem--na-marra--a-usar-tecnologia-para-dar-aula-remota.html >. Acesso em: 31 maio 2020.
https://jc.ne10.uol.com.br/colunas/enem-...
).

Por último, a Cena 7 expõe a impressão de Elisa, professora da rede pública de ensino do Estado do Paraná:

Eles têm tentado nos convencer de que nós somos protagonistas nesse processo […]. A gente é protagonista, mas eles dizem que você pode mexer nos conteúdos que a sede está mandando, mas dizem que não deve mexer muito, não é aconselhável. Dizem que você pode tirar as atividades, mas aí o aconselhável depois é não tirar. Então, é uma coisa muito complicada. Nunca na vida quis trabalhar com EAD, e agora estou metida nessa encrenca (Sampaio, 2020SAMPAIO, Cristiane. Professores, Pais e Alunos Apontam Dificuldades e Limitações do Ensino a Distância. Brasil de Fato, Brasília, 4 maio 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/04/professores-pais-e-alunos-apontam-dificuldades-e-limitacoes-no-ensino-a-distancia >. Acesso em: 23 maio 2020.
https://www.brasildefato.com.br/2020/05/...
).

Na busca por essas cenas, não foi nosso objetivo propor uma sistematicidade ou critérios específicos e rígidos de consulta. Priorizamos apenas sites que traziam notícias do cenário brasileiro ou relatos recebidos por Whatsapp3 3 O uso destes relatos neste trabalho foi devidamente autorizado. . Interessou-nos, em algumas cenas que foram apresentadas, seu valor de traço, daquilo que não se dá imediatamente a ver, que precisa ser, de certa forma, interpretado.

Freud (2012aFREUD, Sigmund. O Moisés de Michelangelo. In: FREUD, Sigmund. Obras Completas, Volume 11. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012a. P. 373-412.), no texto O Moisés de Michelangelo, de 1914, apresenta a construção da análise da escultura do artista, movimento este que nos permite afirmar que a construção em psicanálise não se refere ao desvelamento de um sentido puramente oculto, mas como algo inédito, criado a partir do trabalho do analista no encontro com o material analisado (fala do analisando, obra de arte etc.). No texto Construções em Análise, Freud (1975) aproxima o trabalho da psicanálise com a pesquisa arqueológica. Tal comparação se apoia no fato de que o analista “[...] extrai suas inferências a partir dos fragmentos de lembranças, das associações e do comportamento do sujeito da análise” (Freud, 1975, p. 293), ou do material a ser analisado, acrescentamos.

Podemos acompanhar alguns traços que se repetem nas cenas apresentadas, como falta ou dificuldade de interação (Cenas 1, 3, 5 e 6), diferença entre professora e mãe (Cenas 3 e 4) e deslocamentos da prática (Cenas 3, 6 e 7). No que se refere à falta ou à dificuldade de interação, na Cena 1 a mãe entrevistada enfatiza a questão da ausência de convivência das filhas adolescentes com colegas e professores quando indica que: “[...] agora elas estão sem isso” (Sampaio, 2020SAMPAIO, Cristiane. Professores, Pais e Alunos Apontam Dificuldades e Limitações do Ensino a Distância. Brasil de Fato, Brasília, 4 maio 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/04/professores-pais-e-alunos-apontam-dificuldades-e-limitacoes-no-ensino-a-distancia >. Acesso em: 23 maio 2020.
https://www.brasildefato.com.br/2020/05/...
), o que também é evidenciado na cena 3, haja vista que a mãe diz que “[...] a falta de interação humana pesa”. O aluno da cena 5 enfatiza que “[…] a comunicação e a interação com os professores são bem difíceis, e é difícil acompanhar o que eles passam […]” e a professora na cena 6 afirma que “[...] o olhar do aluno na sala diz muito. Ele pode sacudir a cabeça afirmando que compreendeu, mas o olho diz que não. Com a aula remota, as câmeras da turma ficam desligadas enquanto explico o assunto” (Azevedo, 2020AZEVEDO, Margarida. Professores aprendem, na marra, a usar tecnologia para dar aula remota. JC, São Paulo, 31 maio 2020. Disponível em: <Disponível em: https://jc.ne10.uol.com.br/colunas/enem-e-educacao/2020/05/5610966-professores-aprendem--na-marra--a-usar-tecnologia-para-dar-aula-remota.html >. Acesso em: 31 maio 2020.
https://jc.ne10.uol.com.br/colunas/enem-...
; Sampaio, 2020).

Ao nos debruçarmos sobre essas narrativas, podemos conjecturar que a interação mencionada se refere a estar junto com os outros colegas e professores, compartilhando um mesmo espaço físico presencial, devendo-se observar que outras formas de interação, mediadas pelas tecnologias digitais, parecem não ganhar espaço de reconhecimento possível. Nesse sentido, não queremos fazer equivaler interação presencial, que implica a presencialidade do corpo físico, e interação virtual, pois compreendemos que consistem em modos diferentes de estar com o outro; porém, não podemos desconsiderar que os espaços mediados por dispositivos digitais também podem produzir encontros. Quando não reconhecemos essa possibilidade, corremos o risco de dicotomizar interação presencial e interação virtual, de forma semelhante ao que se faz com ensino presencial e EaD, ou ensino remoto, conforme apontamos anteriormente.

O aluno da Cena 5, ao falar de interação, destaca um outro aspecto: a dificuldade na interação não está necessariamente na ausência da presença física, mas “[…] em acompanhar o que eles [professores] passam […]”. Aqui, o aluno parece denunciar muito mais um modelo teórico-conceitual empiricista do que o fato de as aulas acontecerem remotamente. Contudo, a crítica que, em um primeiro momento, pode estar dirigida ao ensino remoto camufla uma questão de fundamento: como abordamos na seção anterior, tanto o ensino presencial pode ser diretivo (Becker, 2001BECKER, Fernando. Modelos Pedagógicos e Modelos Epistemológicos. In: BECKER, Fernando. Educação e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: Artmed, 2001. P. 15-32.) quanto a EaD, ou o ensino remoto (Preti, 2009PRETI, Oreste. Bases Epistemológicas e Teorias em Construção na Educação a Distância. Cuiabá: Universidade Federal do Mato Grosso, 2009.). Na mesma direção, quando a professora da Cena 6 diz que “[...] o olhar do aluno na sala diz muito […]. Com a aula remota, as câmeras da turma ficam desligadas enquanto explico o assunto”, questionamo-nos: e se as câmeras fossem ligadas, não seria possível acompanhar o olhar do aluno? Ambas as cenas nos permitem identificar que a problemática da interação diz muito mais sobre a forma como ela pode se estabelecer, ou não, bem como quanto aos fundamentos teórico-conceituais que a balizam do que sobre o espaço (presencial, a distância, ou remoto) que a suporta.

Outro traço interessante que é possível decantar das narrativas reside na diferença que as crianças pequenas, vinculadas à educação infantil, pontuam entre ser mãe e ser professora. Na Cena 3, Lucas, de 4 anos, diz para sua mãe “[...] você não é minha profe!”; João Vitor, de 6 anos, na Cena 4, fala para a professora “[...] sem você, professora, eu não consigo aprender bem. A mãe não é igual a você. Você tem as ‘manias’ de ‘prô’. A minha mãe não tem”. Nesse sentido, considera-se de suma importância destacar a escola como lugar terceiro, que faz borda em relação ao espaço privado da família e o espaço público da sociedade. Sobre esse ponto, Kupfer e Bernardino (2009KUPFER, Maria Cristina Machado; BERNARDINO, Leda Mariza Fischer. Apresentação. In: MARIOTTO, Rosa Maria. Cuidar, Educar e Prevenir: as funções da creche na subjetivação de bebês. São Paulo: Escuta, 2009. P. 11-14., p. 12) destacam que “[...] é fundamental que as crianças possam fazer bons encontros - não apenas com seus pais, fundadores de suas marcas primordiais, mas também com todos aqueles que vão representar para elas esse campo simbólico mais amplo, ao plano social”. Com suas falas, essas crianças parecem distinguir o papel da professora do papel da mãe, reconhecendo aquela como alguém que as sustenta no lugar de aluno, lugar terceiro que se coloca entre a díade mãe (ou família) - filho. Em relação a esse aspecto, observamos que o ensino remoto tende a borrar esses lugares, exigindo das mães, predominantemente, a função de sustentar a proposta da escola e, principalmente, o lugar da professora, o que é rechaçado pelo menino da Cena 3; a diferença entre uma e outra é também denunciada pelo menino da Cena 4, “[...] você tem as ‘mania’ de profe, a minha mãe não tem”. Mais adiante, na seção seguinte abordaremos outros aspectos envolvendo o lugar de aluno da educação infantil no contexto do ensino remoto.

Em relação ao traço deslocamentos da prática, somos convocados a refletir sobre o que se conserva e o que promove torção nessa passagem do ensino presencial para o ensino remoto. Na Cena 3, a mãe relata que o filho de 9 anos veste a camiseta da escola no horário da aula, ato simbólico apoiado por ela (e as outras mães dos colegas) como representante de um lugar, marca da escola em casa. O lugar-escola se conserva no espaço-casa. De acordo com a fala da mãe, isso tem auxiliado na organização e autonomia do filho, mesmo que momentos de angústia se inscrevam. A professora da Cena 6 manifesta que “[...] antes da pandemia alguns alunos comentavam que eu era muito apressadinha” e que agora tem modificado seu modo de compartilhar o conteúdo, “[...] fui forçada a desacelerar e estou achando bom”, o que denota possibilidades de aprender e construir outros modos de ser professora, promovendo uma torção no fazer docente que, quiçá, possa inspirar mudanças no retorno ao ensino presencial. Por outro lado, a professora da Cena 7 denuncia que, apesar de outorgar protagonismo aos professores, a rede de ensino, ao mesmo tempo que indica a possibilidade de modificação do conteúdo e das atividades no ensino remoto, nega esse movimento ao professor. Assim, embora haja a sinalização de uma abertura para a invenção do professor, este se vê convocado a uma transposição do ensino presencial para o remoto sem possibilidade de autoria.

Em suma, as cenas compartilhadas parecem nos dar subsídios que permitem um deslocamento da crítica e da problemática do ensino remoto, dos aspectos tecnológicos em direção aos laços estabelecidos por intermédio das tecnologias. Se o modo de ensino, por si só, não sustenta uma prática autoral que reconheça professor e aluno como sujeitos do processo de ensino e aprendizagem, resta-nos questionar, nesse momento de exceção em que vivemos, como sustentar um espaço de transmissão que não seja necessariamente o espaço físico da escola, bem como de que modo constituir e sustentar uma relação entre professor, aluno e conhecimento no contexto de distanciamento social. Na seção seguinte, propomos alguns outros traços inspirados nas cenas compartilhadas que nos permitam pensar o fazer do professor e o encontro com o aluno no ensino remoto.

Docência e Ensino Remoto: sustentar a transferência

A demanda emergente da passagem de uma forma de trabalho docente presencial para a oferta do ensino remoto produziu nos professores uma urgência em adaptar os modos de encontro com os alunos e a partilha dos conteúdos didáticos. Nesse sentido, podemos conjeturar que os professores, em um primeiro momento, (pre)ocuparam-se em pensar recursos técnicos (áudio, vídeo, apostilas) que subsidiassem o ensino, fazendo com que o estabelecimento de um outro laço possível com o conhecimento e com os alunos ficasse frágil ou fosse colocado em segundo plano. A impossibilidade de compartilhamento da escola como espaço físico tradicional exige que a sustentação do laço possa se dar de outras maneiras e tendo que contar com o intermédio das tecnologias digitais. Mais do que centrarmos no debate sobre os recursos tecnológicos em si, propomos que o questionamento acerca dos modos de sustentar a interação no ensino remoto inscreve-se como grande desafio.

Conforme argumentamos anteriormente, apostamos que é justamente o laço entre professor, aluno e conhecimento que produz efeitos de reconhecimento dos sujeitos e de autoria nos processos de ensino e aprendizagem, aproximando-nos dos modelos teóricos construtivistas e da abordagem psicanalítica. As cenas apresentadas acima nos indicaram que a interação, ou falta desta, se destaca como um dos signos importantes que se dá a ler no processo de análise das narrativas e aparece como grande preocupação de familiares, alunos e professores. Quando pensamos na interação a partir da psicanálise, somos remetidos ao conceito de transferência e no modo como esta opera no contexto educativo.

Tal conceito está estreitamente vinculado com o método de tratamento proposto pela psicanálise. Conforme destaca Maurano (2006MAURANO, Denise. A Transferência. Rio de Janeiro: Zahar , 2006.), o termo remete ao laço afetivo estabelecido entre o médico e o paciente, sendo que tal laço permite a expressão e reatualização das conflitivas inconscientes na cena analítica. Lacan (2010LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Zahar , 2010.) dedicou um dos seus seminários ao trabalho com o conceito de transferência, resgatando os apontamentos freudianos sobre o tema e incluindo a dimensão da fala como central no processo transferencial. Segundo Lacan (2010, p. 221), “[…] parece-me impossível eliminar do fenômeno da transferência o fato de que ela se manifesta na relação com alguém a quem se fala”.

A transferência pode estar presente em outros contextos de encontro, nos quais um sujeito remete sua fala a outro(s), como é o caso da educação, e se apresenta como um dos fenômenos principais quando tratamos da relação entre professor, aluno e conhecimento a partir da perspectiva psicanalítica. Aqui, podemos resgatar a fala do menino João Vitor, na Cena 4, pois, quando ele comenta sobre o seu processo de aprendizagem no ensino remoto, coloca o acento na professora e não necessariamente no espaço escolar, afirmando o que segue: “[...] sem você, professora, eu não consigo aprender bem”. Em seu clássico texto Sobre a Psicologia do Colegial, publicado em 1913, Freud (2012bFREUD, Sigmund. Sobre a Psicologia do Colegial. In: FREUD, Sigmund. Obras Completas, Volume 11 . Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2012b. P. 418-423.) comenta que a personalidade dos professores mobiliza e constrói laço com os estudantes tanto quanto, ou mais que, os conteúdos, pois entende que o acesso ao conhecimento é realizado através da pessoa do mestre. Podemos considerar que é a transferência que possibilita ao aluno se valer do professor e extrair dessa relação um saber próprio que se torna base para a construção de novos saberes e conhecimentos (Kupfer, 1995KUPFER, Maria Cristina Machado. Freud e a Educação. São Paulo: Scipione, 1995.).

Com essa reflexão, os autores nos convocam a pensar sobre o efeito que tal laço provoca tanto nos alunos quanto nos professores. Para Speller (2004SPELLER, Maria Augusta Rondas. Psicanálise e Educação: caminhos cruzáveis. Brasília, DF: Plano, 2004.), é de suma importância que o professor se aproxime desse conceito no exercício da docência, pois, ao trabalhar com pessoas, a profissão exige dele que se ocupe das relações estabelecidas com essas pessoas e não somente conhecer o conteúdo a ser ensinado, elegendo uma proposta metodológica para transmitir conhecimento. Nesse sentido, pode-se questionar de que modo inscrever uma presença e estabelecer um laço transferencial, mesmo que estes sejam mediados pelas tecnologias, em espaços outros que não a escola.

Em vez de apenas repassar materiais (textos, áudios ou vídeos) prontos aos alunos com o auxílio dos meios digitais ou impressos, consideramos que um elemento fundamental para o estabelecimento e a sustentação do laço transferencial entre professor, aluno e conhecimento no contexto do ensino remoto reside na possibilidade de o professor se apresentar como sujeito-autor desses materiais, podendo deixar neles marcas da forma como lida com o conhecimento. Nesse sentido, a palavra do professor, seja por vídeo, áudio ou escrita, torna-se marca de sua presença; faz-se corporeidade na ausência de um corpo ocupante da materialidade de um espaço físico. Como menciona Lajonquière (2011LAJONQUIÈRE, Leandro de. Mestria da Palavra e Formação de Professores. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 36, n. 3, p. 849-865, set./dez. 2011. Disponível em: <Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/13316/14337 >. Acesso em: 23 maio 2020.
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), a educação não pode estar distanciada da palavra do mestre, pois, se assim se coloca, não pode ser considerada como processo formativo, mas apenas repasse de informações.

No que se refere especificamente à possibilidade da palavra e presença do professor no contexto de educação a distância, destacamos o trabalho de Silva (2010SILVA, Iranice Carvalho da. Da Presença Virtual: um estudo sobre a transferência em contexto de educação a distância. 2010. 133 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. Disponível em: <Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/37381 >. Acesso em: 23 maio 2020.
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), no qual a autora afirma que “[...] estar próximo ou distante de alguém, presente ou ausente, no contexto atual de desenvolvimento tecnológico que dispomos, não é mais uma questão geográfica, é mais uma posição do sujeito na linguagem” (p. 118). Apostamos que as reflexões trazidas pela autora também são válidas para o ensino remoto.

Ainda nesse sentido, afirmamos a importância da palavra e do encontro entre corporeidades, como pontua a professora na Cena 6. Mesmo na ausência do olhar devido ao desligamento das câmeras, a professora modula a voz, desacelera, pois, a partir da escuta do aluno, já instaurada desde antes da pandemia, desloca-se de uma posição docente acelerada para ocupar outra diante desse novo cenário. A escuta se faz presença e a palavra da professora também se inscreve produzindo o efeito que dá corpo ao encontro; assim, as tecnologias, sejam elas digitais, analógicas ou impressas, ganham terreno como novo espaço a ser ocupado de forma inédita, tanto pelo docente quanto pelos alunos, como lugar de laço entre professor, aluno e conhecimento.

Além disso, consideramos que os materiais e as propostas de atividades remetidas pelo professor precisam constituir também lugar para a inscrição de cada aluno como sujeito de seu processo de aprender. Portanto, apostamos nas propostas que visem mobilizar as perguntas e a pesquisa, pois estas se mostram mais potentes tanto para o ensino quanto para a aprendizagem quando comparadas com atividades que visem respostas prontas ou mera aferição de conhecimentos.

Quando o aluno é convidado a construir conhecimentos a partir de suas perguntas, torna-se possível inscrever nestas um tanto de si, de suas inquietações e angústias nesse processo de construção. Freud (2016FREUD, Sigmund. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. In: FREUD, Sigmund. Obras Completas, Volume 6. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2016. P. 13-172. [1905]), em 1905, frisa que é por meio das perguntas dirigidas ao adulto que a criança tece suas teorias sexuais infantis, precursoras do desejo de saber e mobilizadoras dos processos sublimatórios que sustentam as futuras aprendizagens. Já no texto O pequeno Hans, de 1909, Freud (2015) apresenta o percurso de investigação do menino acerca da sexualidade, afirmando que “[...] ânsia de saber e curiosidade sexual são inseparáveis” (p. 129). Consideramos que esse aporte teórico nos auxilia a pensar no efeito da pergunta como mobilizadora de saberes e conhecimentos, podendo nos auxiliar também a pensar na proposição de atividades aos alunos, mesmo no contexto remoto. Nessa direção, apostamos em proposições de atividades tais como os projetos de aprendizagens, nos quais os alunos são convidados a tecer uma pesquisa apoiada nas perguntas que podem formular a respeito de determinados conteúdos, compartilhando seus achados e construções com o professor e os colegas (Longo, 2012LONGO, José Luis. A Aprendizagem por Projeto e a Pesquisa Psicanalítica. 2012. 84 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e Institucional) - Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/53160 >. Acesso em: 23 maio 2020.
https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/5...
; Fagundes; Sato; Maçada, 1999FAGUNDES, Léa da Cruz; SATO, Luciane Sayuri; MAÇADA, Débora Laurino. Aprendizes do Futuro: as inovações começaram! Brasília: Ministério da Educação, 1999. (Coleção Informática para a Mudança na Educação). Disponível em: <Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me003153.pdf >. Acesso em: 5 dez. 2009.
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).

Algumas breves considerações restam a serem feitas quando levamos em consideração o processo de constituição subjetiva do aluno e sua relação com o ensino remoto. As crianças pequenas, vinculadas especialmente ao contexto da educação infantil, que vivenciam um tempo constitutivo que as coloca fortemente alienadas no corpo do outro (Lacan, 2008bLACAN, Jacques. Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar , 2008b.), e aquelas que se encontram com algum impasse no seu processo de constituição como sujeito, tendem a necessitar da presença física e material do corpo de um outro adulto no percurso do ensino remoto. Assim, considera-se que o adulto que divide o espaço físico com a criança precisa operar como suporte para a palavra do professor, o que pode causar impasses nesse processo.

Por um lado, como acompanhamos na Cena 2, embora possa ocorrer um estreitamento de laço entre a criança e a família, pode ocorrer, igualmente, o risco de que a diferença entre mãe e professora, como também entre casa e escola, não se inscreva, ou apareça dificultada. Assim, opera-se um engolfamento do espaço público terceiro pelo espaço privado-doméstico que dificulta o encontro da criança com outras abordagens do social possíveis, além da familiar. Cabe destacar que a escola se configura para as crianças como um lugar próprio e de encontro com outras crianças, ao contrário da casa, lugar compartilhado com a família. Conforme já apontamos neste trabalho, a escola como espaço terceiro entre a criança e a família é de suma importância na constituição do pequeno ser como sujeito e sua inserção na cultura (Kupfer; Bernardino, 2009KUPFER, Maria Cristina Machado; BERNARDINO, Leda Mariza Fischer. Apresentação. In: MARIOTTO, Rosa Maria. Cuidar, Educar e Prevenir: as funções da creche na subjetivação de bebês. São Paulo: Escuta, 2009. P. 11-14.), a qual também se constitui em espaço protetivo para situações de violências domésticas de toda ordem - casos estes que tendem a ficar ainda mais invisibilizados no atual contexto, principalmente quando envolvem crianças bem pequenas.

Em contrapartida, como vimos na Cena 3, quando a criança afirma que há diferença entre casa e escola, denotando um movimento promotor de sua constituição subjetiva, o que pode se tornar difícil no processo é justamente o adulto familiar fazer valer a palavra da professora, na ausência física do corpo desta, tendo em vista a fala do menino Lucas: “[...] tu não é minha professora!”. Nessas situações, talvez o recurso possível para sustentar algo de escolarização para essas crianças e suas famílias seja a proposição de atividades que possam ser feitas em conjunto por adultos e crianças, encontrando na professora e na escola um espaço que possa receber os relatos, fotos e vídeos dessas experiências vivenciadas em casa. Possibilitar espaço de escuta das aprendizagens que se fazem nesse tempo, em companhia da família, parece ser de suma importância nesse momento de isolamento social e pode se constituir como lugar privilegiado de inscrição da escola como lugar terceiro partícipe no processo de subjetivação da criança.

Quando colhemos narrativas sobre o percurso de crianças mais velhas, nos anos iniciais da escola - principalmente após o processo de alfabetização - e adolescentes do ensino médio, no ensino remoto, observamos que estes já atravessaram o processo de separação (Lacan, 2008bLACAN, Jacques. Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar , 2008b.), evidenciando-se um movimento de constituição subjetiva que permite a elas o investimento em objetos para além do corpo e da morada familiar; o estatuto da palavra já apresenta certa independência do objeto e adquire consistência simbólica, além de a criança poder se afirmar como sujeito de desejo. Embora não seja suficiente para garantir um percurso no ensino remoto sem dificuldades e angústias, o processo pode ocorrer de forma mais tranquila e independentemente da família. Esse aspecto pode ser acompanhado no relato da mãe de Ricardo, na Cena 3, quando compartilha que:

[...] ele desenvolveu autonomia, se organiza em torno da rotina estabelecida, faz as lições, se envolve… apronta (às vezes fica desenhando no caderno ou vendo o celular embaixo da ‘carteira’) leva bronca… Ele reclama, acho muito tempo para a aula online, mas funciona…

Em suma, o contexto do ensino remoto se coloca como emergência e desafio para todos os participantes da cena educativa nesse contexto de pandemia. Nesta seção, apresentamos algumas análises e reflexões que nos possibilitam problematizar esse percurso inédito nos processos de ensinar e aprender, pontuando, principalmente, o conceito de transferência como laço entre professor, aluno e conhecimento, o qual pode também ser estabelecido no ensino remoto, mesmo que nesse novo espaço educativo se instaurem novas formas de mal-estar que ainda precisam ser escutadas e para as quais ainda precisaremos construir instrumentos de acompanhamento e intervenção. Um tempo a posteriori será necessário para a elaboração dessa experiência que vivemos no presente e que tanto nos desacomoda, tencionando modos clássicos de pensar o ensinar e o aprender, mobilizando-nos a criar outros modos possíveis.

Considerações Finais

Não é nossa tarefa ‘entender’ logo um caso clínico, isso talvez aconteça mais tarde, quando tivermos recebido impressões suficientes dele. Provisoriamente deixamos nosso juízo em suspenso e acolhemos com igual atenção tudo o que se oferece à observação (Freud, 2015FREUD, Sigmund. Análise da Fobia de um Garoto de Cinco Anos (“O pequeno Hans”, 1909). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas, Volume 8. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2015. P. 123-284.).

A incidência mundial da pandemia causada pela Covid-19 desvelou a fragilidade humana com a exposição a um vírus, contra o qual ainda estudamos formas de combate. Por outro lado, deparamo-nos com a importância de estarmos com os outros e de sustentarmos outras formas possíveis de laço, valendo-nos predominantemente dos meios digitais para encontros, festejos e despedidas a fim de tentarmos diminuir a distância física provocada pela necessidade do distanciamento social. Com os contextos educativos não foi diferente. Professoras e professores, de todos os níveis educacionais ao redor do mundo se defrontaram com o desafio de operar o educar sem contar com o espaço físico da escola. Nesse sentido, embora controverso e alvo de críticas, o ensino remoto, das diversas formas que está sendo levado a cabo, vem sustentando o ensinar e o aprender em muitos países.

Valendo-nos da afirmação de Freud (2015FREUD, Sigmund. Análise da Fobia de um Garoto de Cinco Anos (“O pequeno Hans”, 1909). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas, Volume 8. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2015. P. 123-284.), que abre esta última sessão como epígrafe, quando consideramos a docência no ensino remoto como caso, podemos pensar que ainda não extraímos informações mais consistentes sobre essa forma de ensino. Como nos coloca o mestre vienense (Freud, 2015), precisamos, momentaneamente, deixar nossas leituras inacabadas, o juízo suspenso, para que possamos extrair dessa experiência novos elementos que nos possibilitem pensá-la, e também vivê-la. Por ora, o percurso realizado ao longo deste artigo nos permite algumas considerações provisórias sobre o ensino remoto e o exercício da docência nessa inédita forma de ensinar e aprender.

Tivemos a oportunidade de argumentar que as críticas dirigidas ao ensino remoto e à EaD tendem a enfocar o uso das tecnologias tomadas como prejudiciais ao laço, impossibilitando-o ou produzindo-o de maneira deficitária. Porém, consideramos que, embora reconheçamos diferenças entre o laço presencial e o laço remoto, as críticas deveriam ser dirigidas muito mais para as bases teórico-conceituais que podem sustentar esse modo de ensino do que ao modo em si. Conforme abordamos, embora o ensino remoto careça de bases conceituais prévias ao seu planejamento e proposição, elemento este que pode diferenciá-lo da EaD, ele se ancora em conceitos que suportam, consciente ou inconscientemente, o fazer dos professores. É esse aspecto que, apostamos, precisa ser considerado nas críticas e avaliações a serem produzidas acerca dessa forma de propor o ensino. Nesse sentido, a oposição entre ensino presencial e EaD, ou ensino remoto, se mostra superficial e insuficiente, pois quaisquer das formas podem assumir uma abordagem diretiva, não diretiva ou relacional (Becker, 2001BECKER, Fernando. Modelos Pedagógicos e Modelos Epistemológicos. In: BECKER, Fernando. Educação e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: Artmed, 2001. P. 15-32.; Preti, 2009PRETI, Oreste. Bases Epistemológicas e Teorias em Construção na Educação a Distância. Cuiabá: Universidade Federal do Mato Grosso, 2009.).

Outro elemento que despontou como de suma importância para a nossa análise, intimamente ligado à discussão precedente, foi o debate em torno da questão da interação. Percorremos algumas narrativas de familiares, alunos e professores que versaram sobre suas experiências com o ensino remoto. Nelas, direta ou indiretamente, a interação entre professor, aluno e os conhecimentos compartilhados apareceu como elemento importante nas percepções e avaliações feitas até o momento sobre esse modo de ensino. A fim de problematizarmos teoricamente sua potencialidade, analisamos esse novo modo de ensino a partir do conceito de transferência conforme proposto pela psicanálise freudo-lacaniana, devendo-se considerar que o laço transferencial entre professor, aluno e conhecimento pode ser estabelecido no ensino remoto por meio da escuta do aluno e da palavra do professor remetida àquele junto aos materiais e às atividades compartilhados nos diversos ambientes virtuais ou enviados por meio impresso. Nesse sentido, a escuta do aluno e a palavra do professor, e vice-versa, seriam elementos indispensáveis para a construção de um laço e a sustentação de uma corporeidade na impossibilidade de encontro físico dos corpos. Assim, as tecnologias passam a suportar um espaço possível de encontro, de palavra e não somente de reposição e divulgação de materiais didático-pedagógicos.

Pontuamos, também, algumas singularidades quando pensamos nas diferenças no processo de ensino remoto quando envolve alunos pequenos, da educação infantil, de anos iniciais e finais, além do ensino médio. Destacamos que os alunos menores, especialmente aqueles de educação infantil e dos primeiros tempos nos anos iniciais, requerem a participação de um adulto para dar suporte à palavra do professor no ensino remoto. Tal presença pode acarretar diversas vicissitudes, tais como dificuldade na afirmação da diferença entre mãe e professora, além da distinção entre casa e escola, ou ainda o desafio dos pais em sustentar a palavra da professora na ausência física desta. Os alunos maiores, apesar das dificuldades e angústias geradas por esse modo de ensino, parecem demonstrar possibilidades de engajamento e laço com a proposta dos professores, dependendo da forma como elas são lançadas. Evidencia-se que consideramos o processo de professores e alunos que dispõem de recursos socioeconômicos e técnicos que permitam o acesso ao ensino remoto. Muito resta a ser discutido, principalmente em termos políticos e socioeconômicos, sobre a exclusão de professores e alunos desse processo justamente por desigualdades sociais que não são exclusivas desse tempo de pandemia, mas que nesse contexto se mostram exacerbadas.

Reconhecemos a complexidade do atual momento em que vivemos, seja ela subjetiva, política, econômica ou social. No contexto do ensino remoto, precisamos recolocar o desafio e o compromisso social, ético e político com a equidade de acesso de todas e todos a uma educação genuinamente inclusiva. Por ora, apostamos que as reflexões tecidas em torno da docência em tempos de distanciamento social são necessárias e contribuem para reconhecer a função do professor e reafirmar a inscrição da educação como laço imprescindível entre sujeitos. Nesse sentido, afirmamos a potência da abordagem psicanalítica para apoiar e analisar uma prática docente que reconheça professores e alunos como sujeitos-autores dos processos de ensinar e aprender, mantendo uma ética da relação por meio da transferência, reconhecendo e auxiliando a nomear invenções e angústias nesse momento singular e emergencial que caracteriza o encontro educativo no ensino remoto.

Referências

  • AZEVEDO, Margarida. Professores aprendem, na marra, a usar tecnologia para dar aula remota. JC, São Paulo, 31 maio 2020. Disponível em: <Disponível em: https://jc.ne10.uol.com.br/colunas/enem-e-educacao/2020/05/5610966-professores-aprendem--na-marra--a-usar-tecnologia-para-dar-aula-remota.html >. Acesso em: 31 maio 2020.
    » https://jc.ne10.uol.com.br/colunas/enem-e-educacao/2020/05/5610966-professores-aprendem--na-marra--a-usar-tecnologia-para-dar-aula-remota.html
  • BECKER, Fernando. Modelos Pedagógicos e Modelos Epistemológicos. In: BECKER, Fernando. Educação e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: Artmed, 2001. P. 15-32.
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    » https://diarioav.com.br/aulas-online-dividem-opiniao-de-pais-na-regiao/
  • 1
    É importante enfatizar que a noção de escolha para a psicanálise não remete a um processo deliberado racionalmente, mas segue determinações do funcionamento inconsciente. Para uma discussão pormenorizada sobre a noção de escolha em psicanálise, indicamos a consulta ao artigo de Costa e Gomes (2017COSTA, Germano Quintanilha; GOMES, Gilberto. Considerações Sobre a Causalidade Psíquica e a Escolha na Psicanálise. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 33, e33418, p. 1-9, 30 nov. 2017. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722017000100416&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: 12 set. 2020.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    ).
  • 2
    Os nomes apresentados na Cena 3 são fictícios.
  • 3
    O uso destes relatos neste trabalho foi devidamente autorizado.
  • Editor-responsável: Carla Vasques

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2020
  • Aceito
    12 Nov 2020
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