Ideias napoleônicas e o grande inquisidor: sobre a militância comunista de Anna Seghers e Jorge Amado
recebido em 27/05/2009 e aceito em 30/08/2009
1 Introdução
2 Militância
3 Primeiras dúvidas
4 O grande inquisidor
ABSTRACT
The lifelong friendship between Anna Seghers and Jorge Amado began in the late 1940s, when both were engaged in the international comunist struggle for world peace. After becoming disillusioned with the stalinist tyranny, Amado left the PC, whereas Seghers officially continued to follow the party line. She concealed her critique of (post-) stalinist theory and practice in some essays on literature history, especially on Tolstoy, Dostoevsky and Schiller – essays which she dedicated to Amado, who would understand the problems and contradictions within her political involvement.
Keywords:Seghers; Amado; engaged literature.
Quando se encontraram pela primeira vez, no Congresso Internacional dos Intelectuais pela paz, em 1948, na cidade de Wroclaw, Polônia, Anna Seghers e Jorge Amado se tornaram amigos pela vida inteira. Entre os dois há muitas coisas em comum: oriundos de famílias abastadas, foram rapidamente reconhecidos como grandes escritores em âmbito nacional, entraram no partido comunista, exilaram-se e, dos anos 60 aos 80, foram os autores mais bem sucedidos em seus respectivos países, figurando entre os autores com o maior número de edições vendidas de suas obras. De culturas bem diferentes, os dois partilharam a mesma militância político-literária. A minha abordagem parte dos ensaios literários que Anna Seghers escreveu sobre autores russos do século XIX, principalmente dos dois trabalhos dedicados a Jorge Amado.
Em agosto de 1961, Anna Seghers e seu marido visitaram Jorge Amado e Zélia Gattai no Rio de Janeiro. Lá, eles ficam sabendo da construção do muro em Berlim, cidade onde moravam. Alguns dias mais tarde sentem na pele um conflito político brasileiro; a saber, a tentativa dos militares de impedir a posse do presidente constitucional João Goulart, conflito esse que abala o país. À bordo do navio que finalmente leva a escritora de volta à Alemanha oriental, Anna Seghers começa a escrever um longo ensaio com o título: De onde eles vêm, para onde eles vão. Sobre a origem e o desenvolvimento de algumas figuras literárias de Dostoiévski, especialmente na sua relação com figuras de Schiller e com o aditamento: Escrito no navio entre o Brasil e a Europa. Para Jorge e Zélia.[1]Sete anos antes, Anna Seghers já tinha publicado um ensaio dedicado a Jorge Amado, em forma de uma carta, sob o título: Sobre a criação de ‚Guerra e Paz’. Carta a Jorge Amado. O fato de se referir neste contexto tão explícitamente ao amigo brasileiro não deixa de ser surpreendente. Sempre que questionado em entrevistas, Jorge Amado costumava mencionar a influência dos autores russos revolucionários do século XX, mas pouco falava sobre Tolstói, Dostoiévski ou Schiller. A respeito deles, Seghers tinha interlocutores mais competentes, como, por exemplo, os amigos Georg Lukács e Ilia Ehrenburg, que eram especialistas no assunto. Por que ela se refere a Jorge Amado em tais ensaios? Como entender esses textos apesar da distância temporal que os separa dos leitores contemporâneos?
Nas primeiras décadas do século XX, Tolstói e Dostoiévski eram, de fato, autores populares na Alemanha e influenciaram a jovem Netty Reiling (nome verdadeiro de Anna Seghers); evidentemente, o mesmo pode ser dito de Friedrich Schiller. Em seu exílio no México, Seghers tomou contato pela primeira vez com os dois russos no ensaio Príncipe Andrej e Raskolnikow. Lá, ela estabelece a seguinte analogia entre Guerra e Paz e Crime e Castigo: se, por um lado, Tolstói descreve, em sua obra gigantesca, sobre a luta de todas as camadas da sociedade russa contra a invasão francesa, bem como o fracasso de Napoleão que dali se desdobrou; por outro lado, Dostoiévski trata da luta no interior do homem. Décadas após a invasão, o seu protagonista Raskólnikov está corrompido por ideias napoleônicas, contaminado de “ideologias de poder, do super-homem, do ‘tudo-é-permitido’ (...) causadas pela invasão napoleônica, passada há muito tempo, na mentalidade da juventude”.[2] Por causa desta ideologia, Raskolnikov comete o seu famosso assassinato e roubo:
Raskólnikov acha, ele pode ganhar poder e riqueza matando a velha usurária, uma creatura miserável, suja e inútil, e fazendo isso sem remorsos, tão pouco adequados a um gênio e sem sentidos. Ele pensa mais ou menos como hoje em dia pensa um menino da juventude hitlerista relativamente a uma creatura desdenhosa de uma ‘raça inferior’, que para ele não é um ser humano verdadeiro e não passa de um piolho[3]
Como se sabe, o protagonista deve resolver os conflitos resultantes desse pensamento consigo mesmo, antes de se entregar para receber seu castigo. A ideia de que a intelligentsia russa na segunda metade do século XIX estava fortemente influenciada por uma ideologia do “Tudo-é-permitido” e, além disso, que esta ideologia tivesse uma origem napoleônica, é uma noção proveniente do próprio Dostoiévski e é discutível.[4] Para nós interessa, porém, um outro aspecto: para Anna Seghers, a analogia literária Tolstói – Dostoiévski serve para estabelecer a analogia política Napoleão – Hitler. Esta última relação estava óbvia após a invasão da União Soviética pelo exército alemão. Como Napoleão, que chegou a dominar a Europa continental, mas fracassou em sua campanha contra a Rússia; Hitler também iria malograr na vastidão da Rússia soviética. Esta, pelo menos, era a esperança dos antifascistas,[5] que se cumpriu durante o ano do ensaio, 1944. Nos seus pensamentos, a autora já se preocupava com a situação do pós-guerra. Como curar os alemães envenenados pela ideologia do super-homem e do ‘tudo-é-permitido’? Seghers termina então o seu ensaio com a seguinte frase: “A questão talvez mais difícil da nossa geração é como a juventude alemã pode tomar consciência da noção de crime e castigo”.[6]
Em 1947 Seghers voltou do México para uma Berlim destruída, cidade que ela havia deixado 14 anos antes. Outros sobreviventes judeus nunca mais pisaram em solo alemão depois do holocausto, ou fracassaram na tentativa de voltar a viver no seu país de origem. Para Seghers, a decisão de voltar era um ato de cumprir o seu dever; a cultura judaica-alemã da sua cidade Mainz estava exterminada, a sua mãe e muitos conhecidos de infância, assassinados pelos nazistas. Neste instante, a missão da escritora engajada consistiu em combater a devastação nos corações e nas cabeças dos alemães, e ajudar na construção de uma sociedade melhor. A partir daí, sua obra ganha um traço pedagógico decisivo, apesar de não poder ser reduzida a isso.
Junto com colegas como Bertolt Brecht e Walter Benjamin, que a admiravam muito, a jovem autora fazia parte da vanguarda artística e política da Alemanha no final dos anos vinte. Diferentemente dos dois, porém, Anna Seghers se comprometeu com o Partido Comunista da Alemanha, que era na época a segunda maior organização comunista do mundo, perdendo apenas para o partido russo. Entrou no partidão em 1928 e ali permaneceu por 55 anos até a sua morte. Essa militância conferiu “à vida de Seghers o sentido muito ansiado [...], comprometendo a pessoa e a escritora com a transformação fundamental [da sociedade]”.[7] As raízes da sua militância política se encontram na esperança messiânica de uma parte da intelligentsia da Europa Central nas primeiras décadas do século XX. Um exemplo disso é a ligação contínua de Anna Seghers com Georg Lukács; nos textos da escritora datados de antes do exílio encontramos facilmente a mesma expectativa utópica da revolução mundial, que serve de pano de fundo para a famosa obra de Lukács, “História e Consciência de Classe”. Durante toda sua vida, a autora não abdicou do projeto de unir a produção literária à mudança revolucionária das condições sociais. “Pois não escrevemos para descrever, descrevemos para promover mudança”.[8]
Esta frase do ano 1932 revela uma visão de arte “que é, por um lado, operativa, e por outro lado está radicada nas expectativas artísticas e principalmente literárias que o idealismo alemão costumava postular.”[9] Visto assim, a literatura tem a nítida missão de mudar o homem e, através dele, a sociedade. Essa mulher intelectual e ao mesmo tempo bela e charmosa que era Anna Seghers, de origem burguesa e protegida, com doutorado em história de arte na Universidade de Heidelberg, não tem qualquer interesse por si mesma em sua obra, pelas contradições do sujeito moderno, pela situação da mulher burguesa ou ainda pela juventude acadêmica etc. – ela narra o destino do Outro sob a figura dos camponeses na roça, desempregados na cidade, artesãos, empregadas domésticas, trabalhadores e os espoliados em geral. Um ciclo de contos dos anos sessenta se chama “O poder dos fracos” – este título é programático. No centro da sua obra, Seghers coloca rebeldes ou revolucionários alemães, austríacos, franceses, chineses, húngaros, russos, poloneses, mexicanos, caribenhos etc. Teria existido no século XX outro romancista tão internacionalista como Anna Seghers? No cerne do seu engajamento com o Outro, bem como do seu internacionalismo, está presente um forte compromisso moral em combinação com uma filosofia da história de tendência teleológica.
Os começos de Jorge Amado são parecidos. Ainda bem jovem, ele faz as primeiras tentativas literárias na casa dos pais, no interior, depois escreve com amigos um romance folhetinesco, muda para o Rio a fim de começar o curso de direito e, no ano de 1932, ainda no Rio de Janeiro, entra em contato com o pequeno partido comunista, através de Rachel de Queiroz.[10] O país do carnaval, seu primeiro romance, ainda mostra forte influência católica e pode ser considerado uma espécie de biografia da sua geração jovem,[11] com o protagonista à procura de um propósito na vida. Em seguida, semelhante à Seghers, Jorge Amado não rompe com a família, mas com sua classe de origem; e passa a se dedicar, junto aos explorados e marginais do campo e da cidade, com o outro, no sentido étnico e social. Em Cacau, ele trata da vida dos trabalhadores numa fazenda de cacau no sul da Bahia. Em Suor, Amado desenha um protagonista coletivo, que são os moradores de um cortiço na cidade de Salvador e, com Antônio Balduíno de Jubiabá, Amado cria o primeiro herói afrobrasileiro positivo na literatura brasileira. É bom lembrar que, em meados dos anos trinta, época marcada por um discurso arianista e racista também junto ao público brasileiro, o livro começa com o negro derrotando no boxe exatamente um campeão alemão. Seguem-se romances sobre crianças de rua e pescadores na Bahia, sobre os camponeses nordestinos etc. Amado e Seghers partilham o mesmo talento narrativo, aquele de saber contar histórias, ainda que o jovem brasileiro se preocupe menos com o valor estético dos seus textos. “Escrever para promover mudança”, essa frase de Seghers também poderia ser igualmente um lema amadiano. Ao contrário da colega alemã, porém, Amado combina o romance social com a linguagem romanesca da tradição brasileira, quer dizer, ele une denúncia social com elementos melodramáticos (cf. Eduardo de Assis Duarte). Isso levou boa parte da crítica universitária brasileira a depreciar sua obra, por conta das características folhetinescas de seus textos, bem como a idealização da pobreza e dos marginalizados. Jorge Amado não foi o único representante do romance social no Brasil, mas certamente o mais bem sucedido. A sua importância na época lembra Gilberto Freyre: ambos “fizeram o esforço de olhar para além dos limites da sua própria classe e integraram à cultura letrada brasileira elementos até aqueles momentos tidos como bastardos ou nitidamente inferiores”.[12] Visto de hoje, poucos escritores influenciaram tanto o imaginário social e cultural brasileiro, assim como o olhar estrangeiro sobre o país, como o fez Amado.
Naquela situação politicamente enfurecida na Europa dos anos 30 e 40, a alternativa muitas vezes se chamava Stalin ou Hitler, “as forças do bem” contra “as forças do mal”. O engajamento político de Amado e Seghers coincide com a hegemonia do stalinismo no movimento operário radical, e o jovem Jorge Amado se torna um stalinista tão convicto, que não consegue separar política partidária e literatura. Bem mais tarde, ele comenta numa entrevista: “Stalin para nós era um deus! Quem me dissesse que Stalin não era um deus eu me revoltava com ele...”[13] Anna Seghers, que costumava usar recursos narrativos mais diferenciados, passava da mesma forma por uma fase um tanto que stalinista, escrevendo coletâneas de contos tais como A Linha (Die Linie) e O primeiro passo (Der erste Schritt). Não podemos esquecer que o antifascismo, através do Exército Vermelho, chegou à parte oriental da Alemanha logo depois de uma guerra de extermínio por parte dos alemães na Rússia, o que dificultou bastante uma perspectiva mais realista do líder soviético, um dos piores tiranos do século XX.
No mesmo ano, em 1951, Seghers e Amado receberam em Moscou o importantíssimo “Prêmio Stalin da Paz”. Contudo, aos poucos começaram a surgir suas primeiras dúvidas. Em países socialistas sob influência soviética tinham surgido ações persecutórias contra opositores imaginários, praxe na Rússia stalinista nos anos antes da Grande Guerra, desta vez com a função de impedir qualquer tipo de socialismo independente, tal como o que se desenvolvia na antiga Iugoslávia. Morando próximo à Praga – depois da sua expulsão da França – Jorge Amado assistiu ao processo contra o secretário-geral do PC da Checoslováquia, em 1952. Uma dúzia de militantes comunistas, a maioria deles de descendência judia e que ocupavam altos postos no governo, foram acusados de espionagem contra-revolucionária, de trotskismo, titoísmo, sionismo etc; julgados e assassinados rapidamente. Entre eles estava Otto Katz, um companheiro e amigo de Anna Seghers e seu marido, ainda dos tempos do exílio na França e no México; o que significava obviamente uma ameaça ao casal Seghers/Radvanyi, ambos militantes antigos e também de descendência judia, mas que a partir de então passaram a viver na República Democrática Alemã. Zélia Gattai descreve a reação de Jorge Amado na época: “O processo Slansky o abalou profundamente. Creio que foi a partir daquele momento que se iniciou a longa crise de consciência cujo desfecho resultou em seu afastamento da militância partidária.”[14]
Quando Anna Seghers escreveu o seu ensaio sobre Tolstói, em 1954, Stalin já estava morto; o stalinismo, porém, ainda estava bem vivo. A autora relata sua visita ao museu Tolstói, em Iásnaia Poliana, além dos seus estudos no arquivo lá estabelecido, fala do assunto histórico em Guerra e Paz e dos problemas essenciais ao escrever um romance histórico. O ensaio se apresenta em forma de carta, começando com „Lieber Jorge“ (caro Jorge), usando o tratamento direto etc. Várias vezes, a autora se refere à discussão político-literária contemporânea, investindo contra o stalinismo literário prevalecente nas últimas duas décadas e conhecido sob o rótulo de “realismo socialista”. Com toda a devida cautela, Seghers argumenta contra o conceito de “formalismo”[15] ; naqueles dias usavam a palavra chave da ortodoxia stalinista, e em favor do amigo Ilya Ehrenburg, que tinha reclamado pela liberdade autoral.[16] A discussão dos conceitos tanto de missão social (“Auftrag”), quanto de intuição de um escritor, trata de um problema básico de todos os autores engajados, certamente também de Jorge Amado. Este havia acabado de publicar o ciclo Os subterrâneos da liberdade, uma obra sem nenhuma inspiração estética, mas bastante zelo missionário partidiário. Na verdade, depois de Subterrâneos, Amado enfrentaria uma crise de criatividade que consegue superar somente com Gabriela, cravo e canela.
Evidentemente, Anna Seghers não pôde abordar diretamente o maior problema do mundo socialista, a saber: o estalinismo não somente na literatura, mas como sistema de terror ideológico e político, que dominava a União Soviética há 25 anos. Porém, várias vezes a autora se refere a Napoleão e a ideologia do “Tudo-é-permitido”, combatida por Tolstói e Dostoiévski. Neste ensaio histórico-literário falta a referência ao nazismo alemão, tão presente no ensaio de dez anos antes. Considerando, no entanto, a já mencionada crítica de certos fenômenos stalinistas, pode-se concluir que a crítica antinapoleônica tem a ver com a situação política nos países socialistas. “Napoleão com seu culto à personalidade, obcecado por fama e poder”[17] ... A expressão “culto à personalidade” foi o conceito chave na discussão oficial sobre Stalin poucos meses mais tarde. Um leitor atento, tanto naquela época quanto hoje em dia, poderia facilmente concluir que a analogia aqui estabelecida não é mais Napoleão – Hitler, mas Napoleão – Stalin.
Intelectuais da esquerda e autores como Bertolt Brecht partilhavam esse ponto de vista. Napoleão tinha sido o herdeiro da grande revolução francesa e, ao mesmo tempo, seu coveiro. Tinha exportado progressos básicos da revolução para os países vizinhos, mas se tornara imperador coroado; sob sua pressão, muitos países modernizaram a jurisprudência, contudo, a abolição da escravidão nas colônias francesas foi anulada. Sobre a traição napoleônica ao movimento libertador haitiano e especialmente ao seu lider negro Toussaint L’Ouverture, Anna Seghers escreveu dois contos importantes. Semelhante a isso, Stalin conseguiu acabar com o impulso da revolução russa, estabelecer um poder autocrático e, finalmente, exportar a revolução burocratizada, introduzindo o socialismo autoritário nos países orientais da Europa, em consequência da vitória na Segunda Guerra Mundial.
Dois anos depois da carta a Jorge Amado, nesses países fala-se de um “tempo de degelo“. No seu famoso discurso secreto durante o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, Khrushchov faz críticas duras ao regime stalinista. Começa o processo de desestalinização, que mais tarde seria interrompido. O ano de 1956 foi um choque para Amado, Seghers e muitos outros militantes da fé comunista. Críticas e dúvidas sempre existiram, agora, no entanto, foi a liderança do partido que admitiu os maiores crimes políticos cometidos pela cúpula do movimento até pouco tempo atrás. Em vários trechos de suas memórias, Jorge Amado faz comentários a respeito do stalinismo, p. ex. observa a respeito de Carlos Marighela (mais tarde assassinado pela ditatura militar brasileira): “eu o vi chorar ao escutar o relato dos crimes de Stalin, perderamos nosso pai”.[18]
Logo depois da sua primeira visita ao Brasil em 1961, Seghers escreve o seu já mencionado grande ensaio De onde eles vêm, para onde eles vão, acompanhado de uma “carta ao Brasil” a Jorge Amado, onde ela se refere ao amigo nos seguintes termos: “Penso, porém, uma parte da inquietação dentro de nós encontra-se também no meu tema. Faz com que a gente se mantenha unido.”[19]Depois da mudança política na União Soviética, a inquietação dos dois autores militantes se manifesta então nesse ensaio histórico-literário sobre Schiller e Dostoiévski e a relação intertextual do autor russo com o alemão. Seghers denuncia novamente no seu texto o que ela chama de ideologia napoleônica: “Tudo é permitido – para alcançar o estado abençoado de maneira mais rápida possível”, isto é, de acordo com a autora, “uma conclusão napoleônica que Raskólnikov também tirou”,[20] uma formulação que no contexto poderia ser entendida como julgamento da política bolchevista voluntarista. Isto já indica: comparando com o seu ensaio de sete anos atrás, a autora radicaliza agora a crítica política implícita, contudo, mantém seu discurso no campo literário-histórico, isto é: não muda para o campo da política. No centro do seu texto está a figura do Grande Inquisidor, tal como surgiu na peça Don Carlos de Friedrich Schiller e, mais tarde, reapareceu no último romance de Dostoiévski, precisamente no quinto livro d’Os Irmãos Karamazov. Os princípios dessa figura são: o homem não suporta a liberdade e os fins justificam os meios. O Grande Inquisidor de Schiller “foi uma mente todo-poderosa, má, e cega, que não acreditava em Deus nem no homem. Somente no seu poder.” Além disso foi um burocrata, achando que “a liberdade não faz sentido e o mundo deve ser regulamentado e dominado por um esquema. Para ele, até o melhor no homem é registrável.”[21]A analogia com os apparatchiks do socialismo burocratizado, embora seja óbvia, não é formulada.[22]
Ancião, cínico e ávido por dominar, o Grande Inquisidor no romance de Dostoiévski personifica o domínio e o controle da máquina burocrática sobre o povo. Na lenda de Ivã Karamazov, o próprio Cristo é confrontado com o poder da igreja, que depois de 1500 anos perverteu a mensagem humanista original; capaz, inclusive, de mandar seres humanos à fogueira, a fim de garantir os seus privilégios, bem como está disposta a queimar o fundador da religião cristã, caso seja necessário. “O poder secular da igreja presta serviços ao diabo”[23] que, por seu turno, entra em cena mais tarde no romance. Ou seja: Anna Seghers aborda as experiências catastróficas com o stalinismo, fazendo um desvio pelos colegas consagrados do século XIX, principalmente pelo ex-revolucionário Dostoiévski – que mal sobrevivera ao terror do regime czarista e teve que abdicar às ideias da sua juventude, voltando ao regaço da igreja ortodoxa para poder continuar publicando. “A propósito, estou usando a oportunidade para expor a minha opinião”,[24]assim escreve a autora a uma amiga, a respeito do seu ensaio. Obviamente, isso não poderia ser feito abertamente e, depois do fim do degelo, as alusões, conotações, comparações e analogias implícitas também não poderiam ser discutidas em públicoA presidente do Sindicato dos Escritores da Alemanha oriental Anna Seghers não podia e não queria tirar as mesmas conclusões políticas que o seu amigo brasileiro; ela ficou fiel ao partidão e ao experimento socialista em solo alemão. Criticava o chamado “socialismo real” do ponto de vista da utopia comunista, do “poder dos fracos”, da “fé no terrestre”; uma fórmula que tomou de empréstimo de Pablo Neruda. Tinha eleito e desenvolvido essa perspectiva nos anos vinte, em Heidelberg e Berlim, e nunca mais a abandonou. “Respeitar os sonhos da própria juventude” (“Achtung haben vor den Träumen seiner Jugend”), esta citação de Don Carlos aparece em vários trechos do seu texto como se fosse um tema literário (final cap. II, último cap XI). Certamente, Seghers teria concordado com a seguinte observação de Boris Groys:
A principal insolência do socialismo stalinista tem sido o seu anti-utopismo, quer dizer, a sua afirmação, que na União Soviêtica a utopia já estava realizada. […] Nenhum esforço ou conhecimento especial foi – e continua a ser – necessário para provar, que essa afirmação contraria à realidade, que o idílio oficial é manipulado pelo estado, que a luta continua […].[25]
O que chama ainda mais a atenção do leitor, porém, é a frequência das palavras Zweifel/dúvida e Zwiespalt/dilema no seu ensaio. “O dilema dentro do homem”, “homens atormentados pelas dúvidas terríveis”, “a dúvida terrivelmente tentadora, que hoje em dia confunde as pessoas”[26] etc. Escreve a autora: “Ivã Karamazov é atormentado pelo mesmo dilema que atormenta Dostoiévski”[27] , e não seria exagerado acrescentar: oito décadas mais tarde, Anna Seghers sofreria da mesma angústia. Outrossim, Jorge Amado também pertenceu a essa espécie de homens atormentados por dúvidas terríveis. Na sua autobiografia Navegação de cabotagem, que data do início dos anos noventa, encontram-se muitos trechos onde o autor faz um comentário ou uma curta alusão a respeito da sua antiga fé política, assim como das incertezas crescentes no decorrer dos anos 50. Citamos, por exemplo, as primeiras e últimas frases do parágrafo da sua autobiografia intitulado “Praga, 1951/1952 – o medo” sobre os efeitos do processo Slansky:
Posso tocar o medo com a mão. Erguido em nossa frente o muro da devassa na visitação do Santo Ofício comunista. Separa vida e morte, a morte infamante dos traidores, ninguém está salvo das ameaças, [...] As dúvidas crescem, não devemos duvidar, não queremos duvidar, queremos continuar com a crença intacta, a certeza, o ideal. Nas noites insones, nos contemplamos, Zélia e eu, um nó na garganta, vontade de chorar.[28]
Amado usa a expressão “Santo Ofício comunista” remetendo à mesma instituição, a Inquisação, que a sua companheira alemã já havia relembrado no seu ensaio. Quase sessenta anos depois do ensaio de Seghers, o espaço de tempo que nos separa de palavras como essas está mais do que claro. Hoje em dia, as dimensões quase religiosas e eclesiásticas da militância política dos nossos dois autores parecem estranhas. Já é revelador o fato de Seghers colocar no centro de seu maior ensaio a figura do Grande Inquisidor e, além disso, discutir a perversão dos ideais socialistas através da corrupção das ideias cristãs. Jorge Amado estava perdendo sua fé a partir de 1956, enquanto Anna Seghers se atormentou até o fim da vida com aquelas dúvidas terríveis, sem abandonar a convicção. Trata-se de “um ato de fé extremamente forte, pois custava muito”[29] , portanto um ato paradoxal à maneira credo quia absurdum. Neste contexto, é interessante observar que no seu ensaio Das kommunistische Postskriptum (O postscriptum comunista), o filósofo russo Boris Groys, naturalizado na Alemanha, chega a analisar as posições filosóficas do comunismo/do materialismo dialético como ponto de vista da razão paradoxal, sucedendo à lógica total do dogmatismo cristão, sempre à procura da contradição perfeita, cf. GROYS 2006.
Distanciados dos conflitos históricos do “breve século XX” (Hobsbawm), para nós é fácil atualmente opinar, mas difícil imaginar intelectuais que dedicaram sua integridade física e psíquica a uma missão política; pessoas que colocaram o coração, a alma e o corpo à disposição para construir uma sociedade diferente, justa, solidária com todo seu “eros político”.[30] A situação atual se distingue com um mercado supostamente democrático de opiniões relativizadas, de igualdade principal. Quase todas as ideias e quase todos os discursos têm validade. O que atormenta os intelectuais hoje em dia não são dúvidas terríveis, mas um possível fracasso por não conseguir vender opinião nenhuma. Tanto Jorge Amado quanto Anna Seghers viveram em épocas diferentes; Amado adaptou sua obra ao mercado somente mais tarde, nos anos 70 e 80. Para usar uma expressão da própria Anna Seghers no final do seu ensaio sobre Schiller e Dostoiévski: com o seu engajamento, Seghers e Amado viram-se metidos em conflitos e contradições sociais, dos quais não tinham como escapar: “Alle müssen jagen und jagen, durch das Schicksal miteinander verbunden, durch alle gesellschaftlichen Widersprüche hindurch in Konflikte, vor denen es kein Entrinnen gibt.”[31]
[1] “Woher sie kommen, wohin sie gehen. Über den Ursprung und die Weiterentwicklung einiger Romangestalten Dostojewskijs, besonders über ihre Beziehungen zu Gestalten Schiller. Geschrieben auf dem Schiff zwischen Brasilien und Europa. Für Jorge und Celia.” Este como os outros ensaios aqui mencionados encontram-se em: SEGHERS, Anna: Glauben an Irdisches. Essays aus vier Jahrzehnten. Leipzig: Reclam ,1974. Todas as traduções de K.E.
[2] SEGHERS, Anna: Glauben an Irdisches. Essays aus vier Jahrzehnten. Leipzig: Reclam ,1974, p. 66.
[3] SEGHERS, 1974, p. 67.
[4] O contexto literário-filosófico da crítica dostoievskiana ao niilismo é esboçado em: ULLMANN, Wolfgang: Der Nihilismus und seine Religionen. Über die religionsgeschichtlichen Zusammenhänge von Fundamentalismus, Totalitarismus und Nihilismus. In: JÄGER, Michael / ROEDIG, Andrea / TREUSCH-DIETER, Gerburg (ed.): Gott und die Katastrophen. Eine Debatte über Religion, Gewalt und Säkularisierung. Berlin: Edition Freitag, 2003, p. 174-181.
[5] Cf. como exemplo brasileiro dessa esperança, os artigos publicados por Jorge Amado, na sua coluna “Hora da Guerra” no jornal O Imparcial , de Salvador: AMADO, Jorge: Hora da guerra. A Segunda Guerra mundial vista da Bahia. Crônicas (1942-1944). São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
[6] SEGHERS 1974, p. 70.
[7] ZEHL-ROMERO, Christiane: Anna Seghers. Eine Biographie 1900-1947. Berlin: Aufbau, 2000, p. 221.
[8] SEGHERS 1974, p. 334: “Denn wir schreiben ja nicht, um zu beschreiben, sondern um beschreibend zu verändern.” É do texto: Kleiner Bericht aus meiner Werkstatt, de 1932.
[9] ZEHL-ROMERO 2000, p. 245.
[10] Ainda não há nenhuma biografia científica sobre Jorge Amado; se ele já tinha ingressado no Partido Comunista em 1932 é algo que permanece em aberto. Cf. a entrevista em: DUARTE, Eduardo de Assis: Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Natal, UFRN, Editora Universitária, 1995, p. 340s.
[11] BUENO, Luís. Uma História do Romance de 30. São Paulo, Edusp / Campinas, ed. Unicamp, 2006, p. 112.
[12] BUENO 2006, p. 270.[13] DUARTE 1995, p. 344. .
[14] GATTAI, Zélia. Jardim de Inverno. 9a edição. Rio de Janeiro, São Paulo: Record 2005, p. 136.
[15] SEGHERS 1974, p. 96.
[16] SEGHERS 1974, p. 102..
[17] SEGHERS 1974, p. 106..
[18] AMADO, Jorge: Navegação de cabotagem. Apontamentos de um livro de memórias que jamais escreverei. São Paulo: Círculo do Livro, 1992, p. 118.
[19] ALBRECHTt, Friedrich: Die Unruhe, die in uns steckt – Anna Seghers in ihren Gestalten. In: Argonautenschiff 10/2001, p. 90-107, aqui p. 90.
[20] SEGHERS 1974, p. 131.
[21] SEGHERS 1974, p. 125 e 129f.
[22] Isso acontece numa discussão pessoal entre Christa Wolf e um amigo, cf. a anotação de Wolf no seu diário, 01.10. 1966: “Er erinnert an das Gespräch zwischen Teufel und Großinquisitor bei Dostojewski, wie interessant es sei, dass Dostojewski nicht über die Feststellung hinauskomme, dass eben jede Bürokratie die einstmals reine Idee verfälscht. Das Polit.-Büro also als kollektiver Großinquisitor, das Marx sofort umbringen würde, wenn er auf die Erde zurückkäme, genau wie der Papst Christus umbringen müsste…” In: WOLF, Christa: Ein Tag im Jahr. 1960 - 2000. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2008, p. 99-100. Anna Seghers era para Christa Wolf exemplo literário e ídolo ao mesmo tempo.
[23] SEGHERS 1974, p. 132.
[24] Apud WAGNER, Frank: Anna Seghers’ Aufsatz zu Dostojewskijs “Großinquisitor” und ihr Erzählungsentwurf “Der gerechte Richter”. Gewissensfragen im Sozialismus. In: Argonautenschiff 13/2004, 57-69, aqui p. 62.
[25] GROYS, Boris. Das kommunistische Postskriptum. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2006, p. 95
[26] SEGHERS 1974, p. 136, 164, 145.
[27] SEGHERS 1974, p. 131.
[28] AMADO 1992, p. 241 e 244.
[29] ZEHL-ROMERO, Christiane: Anna Seghers. Eine Biographie 1900-1947. Berlin: Aufbau, 2003, p. 192.
[30] Cf. VEERKAMP, Ton. Die Liebe zu Gott oder: Vom Politischen Eros. In: Das Argument 273 (2007), p. 74-83.
[31] SEGHERS 1974, p. 164..