“Os dois vizinhos. Cenas da colônia”, de Wilhelm Rotermund
recebido em 02/08/2009 e aceito em 07/10/2009
1 Introdução
2 O autor Wilhelm Rotermund
3 “Os dois vizinhos. Cenas da colônia”
4 Considerações sobre a manutenção da língua materna e a exaltação da vida simples no campo na obra de Wilhelm Rotermund
5 Considerações finais
ABSTRACT
The story “Os dois vizinhos. Cenas da Colônia” (Die beiden Nachbarn. Bilder aus der Kolonie), written by Wilhelm Rotermund, was published in 1883 and 1884 in two parts in the Kalender für die Deutschen in Brasilien. The text by Rothermund represents many relevant aspects of the immigration of German Lutherans to Brazil. This article will first give an overview on the work of Wilhelm Rotermund and than offer a critical analysis of Die beiden Nachbarn. Bilder aus der Kolonie. A third point of interest will be the importance of preserving the mother language (German) and the rural-urban relationship.
Keywords:Wilhelm Rotermund; Literature; Brazil; Germany
No Brasil, temos certas produções literárias que são de difícil classificação ou então de difícil enquadramento em algum grupo representativo. Em questão está a literatura de Wilhelm Rotermund, que chegou ao Brasil na segunda metade do século XIX, e de muitos outros escritores que produziram literatura de ficção no Brasil, mas que sempre permaneceram incógnitos, por serem considerados autores menores ou por terem escrito em uma língua que não a portuguesa. Rotermund escreveu sempre em alemão, mas atualmente já se tem acesso aos seus textos em uma versão portuguesa. O fato de ter sido traduzido, permitiu que a obra deste autor tivesse mais uma via de acesso. Mas o que ocorre com os tantos outros que ainda estão ocultos em revistas e arquivos, em língua estrangeira (muitas vezes)?
Wilhelm Rotermund está sendo disponibilzado no mundo virtual (em língua alemã, fazendo-se referência também à tradução já acessível em forma impressa) graças ao Projeto RELLIBRA - "Relações Lingüísticas e Literárias Brasil-Alemanha" – coordenado pela Profa. Dra. Celeste H. M. Ribeiro de Sousa, da USP.[1]
Neste artigo, pretende-se apresentar o autor Wilhelm Rotermund, que imigra para o Brasil com o intuito de auxiliar na estruturação da comunidade imigrante de religião protestante no Brasil, e sua obra; a seguir, destacar o conto “Os dois vizinhos. Cenas da colônia”; e por fim destacar dois aspectos que perpassam o texto: a tematização da importância de uma manutenção da língua materna por parte dos imigrantes alemães no Brasil e da exaltação da vida simples no campo.
O nome de Wilhelm Rotermund não pode ser dissociado da representação do contexto imigratório alemão luterano no Brasil. A sua figura é de suma importância para a compreensão de uma das muitas partes que compõem o universo (nada uniforme, como muito se costume fazer) da presença alemã no Brasil.
Pretende-se apresentar aqui o autor Wilhelm Rotermund, esse importante imigrante da segunda metade do século XIX.
Wilhelm Rotermund nasceu no dia 21 de novembro de 1843,[2] em Stemmen, localidade nas proximidades de Hannover. Estudou Teologia em Erlangen e Göttingen. Depois de concluídos os estudos, atuou como professor particular na região do Kurland (ou Curlândia) na atual Letônia, de onde regressou à Alemanha, depois de dois anos, acometido de tuberculose.
De volta à Alemanha, é convidado por Friedrich Fabri, inspetor da Sociedade Missionária na Renânia, para ser seu secretário, mas esta função Rotermund não exerce por muito tempo, devido à incumbência que seu chefe lhe atribui de atuar no sul do Brasil como organizador das comunidades protestantes luteranas naquela região, assumindo a função de professor particular, inspetor e secretário do Comitê para os alemães protestantes no sul do Brasil. Antes ainda de partir para o Brasil, doutorou-se na Universidade de Jena, com a tese Die Ethik Laotses mit besonderer Bezugnahme auf die budhistische Moral (A ética de Laotsé com referência especial à moral budista). Para maiores informações sobre a biografia de Rotermund, é importante a obra de Erich Fausel[4] e também os estudos de Martin Dreher.[5]
Inicialmente Rotermund não pretendia ficar por muito tempo no Brasil, mas as muitas divergências existentes nas comunidades e as várias funções que passou a assumir com o decorrer do tempo, prendiam-no cada vez mais em solo brasileiro. De 1874 (ano de sua chegada ao Brasil) a 1919, Rotermund exerceu também a função de pastor da comunidade de São Leopoldo, cidade onde permaneceria até 1925, ano de sua morte.
Chegando ao Brasil, exerceu várias funções e logo constatou que uma de suas atividades seria a de fazer frente a outro imigrante muito atuante, como ele próprio: Karl von Koseritz, difusor do iluminismo de Feuerbach e Haeckel em solo brasileiro. Desta forma, inicia a organização eclesial teuto-protestante no Brasil e já em 1886 funda o Sínodo Rio-Grandense, do qual foi presidente de 1886 a 1894 e de 1909 a 1919 (num total de 19 anos). Fundou também o Collégio Independência, que funcionou de 1880 a 1892. Mas a sua participação mais importante dá-se por meio da iniciativa jornalística, quando funda a Editora Rotermund, em 1877. Para a oposição, a ação de Rotermund abria possibilidades para ataques, caracterizando-o de “avarento e dinheirista”. Sempre existiram grupos contrários, que não apoiavam as inovações e as inicitivas dos “novos alemães”.
Com a casa editorial à disposição, Rotermund foi o responsável pela edição do jornal Deutsche Post (Correio Alemão), que tem seu início em 1880. Seu objetivo com a edição do jornal era a integração dos alemães e a manutenção de sua herança cultural. Além do Deutsche Post, Rotermund publicou o Kalender für die Deutschen in Brasilien (Anuário para os alemães no Brasil), que deveria fazer frente às idéias liberais difundidas por Karl von Koseritz e seus adeptos, no Koseritz’ deutscher Volkskalender (Anuário popular alemão de Koseritz).
Wilhelm Rotermund adquiriu a cidadania brasileira e através do seu contato com o político Gaspar Silveira Martins buscou soluções para a melhoria da situação dos protestantes, no tocante à religião e à consciência. Rotermund, porém, em nenhum momento almejou e nem ocupou um cargo político. Segundo Martin Dreher,
Rotermund foi grande admirador do político Gaspar Silveira Martins, que decididamente defendeu os direitos dos acatólicos. Chegou a renunciar a um posto ministerial por ser negada a igualdade de direitos a protestantes. Silveira Martins, contudo, não foi homem que, a partir de seus pressupostos ideológicos, incentivasse os descendentes de alemães a preservar sua germanidade. [6]
Os aspectos culturais e religiosos das comunidades de imigrantes alemães, principalmente dos luteranos, seriam sua prioridade e, para deixá-los ecoar, usaria com intensidade a publicação que passou a ser chamada pelo seu nome: Rotermundkalender. Trata-se, se não da melhor referência para pesquisas sobre a vida literária do contexto imigratório alemão protestante no Brasil, certamente de uma das mais importantes. Os personagens da obra de Rotermund eram tomados do meio em que vivia e atuava como pastor: eram o vendeiro, o ilustrado, o colono, a mulher que sucumbe em meio a mundo desconhecido e brutal ou então a mulher forte, companheira do homem que trabalha a terra. A tiragem do almanaque [anuário] alcançou em 1906, 6000 exemplares e, em 1923, 30.000 exemplares.[7]
Com o anuário, Rotermund pretendia fortalecer o aspecto ético e religioso dos imigrantes e seus descendentes; além de tentar integrá-los ao meio brasileiro, mas sem perder a herança dos antepassados.
A produção bibliográfica de Rotermund, que pode ser classificada como de ficção, é aqui de 13 textos em prosa, textos de extensão variada em que o autor desenvolve uma narrativa mais apurada a partir de um ponto de vista literário, e uma poesia. O seu primeiro texto Täuschungen (Ilusões) foi publicado no Kalender für die Deutschen in Brasilien (Rotermundkalender) no primeiro número do almanaque, em 1881. Neste mesmo número publicaria também Zum Nachdenken (Para refletir). Assim seguiria publicando muitos textos, principalmente nos primeiros anos de existência do seu anuário. Cito a seguir os títulos e os anos em que os mesmos foram publicados, pois desta forma já se pode ter uma noção da temática que perpassará a obra ficcional de Rotermund, o que veremos mais detalhadamente a seguir. Em 1882, Rotermund publicou Das Glück (A sorte) e Wie einer durch einen Cipo festgehalten wurde (A história do homem que foi preso por um cipó); em 1883 e 1884 Wilhelm Rotermund publicou o conto que pode ser visto como uma de suas produções mais importantes: Die beiden Nachbarn. Bilder aus der Kolonie (Os dois vizinhos. Retratos da colônia). Em 1884 publicaria ainda Auf dem Campo (No campo), Meine Tochter braucht nicht zu dienen (Minha filha não precisa servir) e o poema Die Frösche (Os sapos).
A seguir, o autor publicaria, em 1885, o texto Meines Kindes Begräbnis (O sepultamento de minha filhinha), este, contudo, não no seu Kalender für die Deutschen in Brasilien, mas no Deutsche Post (Correio Alemão). Em 1886, publicaria O lieb, so lang du lieben kannst (Ama enquanto tu podes amar). No ano seguinte, 1887, Wilhelm Rotermund homenagearia um colega seu de profissão, Pastor Peters. Achamos que o texto merece ser citado, apesar de não ser um texto ficcional. Trata-se aqui da tentativa de Rotermund de escrever uma biografia da vida do pastor Johann Heinrich Peters, como ele próprio afirma no título Pastor Peters. Lebensbild eines evangelischen Pfarrers in Brasilien (Pastor Peters. Biografia de um pastor evangélico no Brasil). Depois disso, Rotermund demoraria a publicar novamente no Kalender für die Deutschen in Brasilien, podendo-se ler Schwabenstreiche in Brasilien (Travessuras de suábios no Brasil) somente em 1891, Der Schein trügt (A aparência engana), em 1897, e Brilhantine (Brilhantine), em 1898. Ressalto que esse levantamento restringe-se, por enquanto, basicamente à publicação de Wilhelm Rotermund no Kalender für die Deutschen in Brasilien.
Importante é mencionar aqui que Rotermund publicou todos os textos acima citados também na coleção Südamerikanische Literatur e, além disso, deu espaço a autores teuto-brasileiros para publicarem prosa e verso na mesma coleção publicada pela sua casa editorial. Foram mais de trinta os volumes publicados nesta importante série da literatura produzida em língua alemã no Brasil.
A seguir, passo à apresentação do conto Os dois vizinhos, cenas de uma colônia. Publicado no Kalender für die Deutschen in Brasilien (Rotermundkalender), em São Leopoldo, na ed. Rotermund, 1883, p. 33-69 (1. Teil); 1884, p. 33-70 (2. Teil). O mesmo conto também foi publicado como oitavo volume na série Südamerikanische Literatur, em São Leopoldo, pela Ed. Rotermund, sem indicação de ano, p. 5-124. Esse conto já foi traduzido por Martin N. Dreher e publicado em 1997. Nesse momento quero enfatizar que a intenção aqui é de, principalmente, apresentar a obra com intuito de apontar elementos que já sinalizem a aspectos de análise.
O enredo
O conto “Os dois vizinhos” se passa na Picada Isabelle, pequena comunidade localizada na parte norte da Província do Rio Grande, distante cerca de 20 léguas da cidade. Como quase todas as comunidades de imigração alemã, esta foi fincada num belo vale que se alcança após longa cavalgada Morro da Agulha acima. Do alto do morro, antes de chegar-se à comunidade, vê-se a igreja, uma escola e a venda, e as laranjeiras que escondem as casas dos colonos.
Um grupo de cinco pessoas da cidade - da Carioca - está no alto do Morro da Agulha, chegando para os festejos do Kerb de Picada Isabelle (Kerb provém da palavra alemã Kirmes, mas refere-se aqui às comemorações relativas à inauguração da igreja da comunidade). Trata-se de Jakob e de seu filho Peter, Sulmire, filha de um rico comerciante, e seu irmão, acompanhado da noiva Julie.
O grupo chega no dia anterior aos festejos e aloja-se na casa do vendeiro, homem pequeno e gordo, integrante da maçonaria. Interessa-lhe muito o lucro que terá com os festejos do Kerb. O salão de festas está bem organizado, belos produtos estão expostos nas prateleiras, há um bom estoque de cerveja nacional e importada e muitas garrafas de vinho da região do Mosel - Geisenheimer ou Deidesheimer - mas contendo vinho nacional. O vendeiro, interessado em lucrar muito, comprava barris de vinho nacional, acrescentava algum produto para alterar um pouco o sabor e vendia as garrafas aos colonos, que bebiam saudosamente o vinho. O vendeiro é uma pessoa de poucos amigos, autodenominando-se referência cultural da comunidade entre os “colonos burros”.
Christian é o único filho do vendeiro, um moço de dezenove anos, forte e vigoroso, que faz, para o pai, o transporte de produtos da colônia para a cidade. Estudou pouco, mas sabe lidar muito bem com animais, muitas vezes até de forma bastante bruta, reflexo da herança paterna, segundo o narrador. Christian está na idade de cumprir os deveres militares, mas soube numa de suas viagens à cidade que, caso casasse, estaria liberado das funções. Também Peter, filho de Jakob, está participando dos festejos de Picada Isabelle com o objetivo de encontrar uma possível noiva para fugir do compromisso militar.
Os moços da colônia, porém, não têm muitas opções. Christian interessa-se pela filha do vizinho, Peter Lip. O interesse parece ser recíproco, tanto que os dois chegam a se encontrar pouco antes dos festejos. Mas há um grande problema: como em muitas comunidades alemãs, os pais dos dois não se falam, sendo o motivo principal da briga questões de limite de terras. O vendeiro por muitas vezes espantara, a tiros, animais de Lip que haviam entrado nas suas terras pelos buracos existentes nas cercas que aquele não fechava. Christian chegou a conversar com o pai de Luíse sobre a possibilidade de os dois assumirem um namoro, mas a resposta não foi animadora e ainda viu sua última esperança de tê-la como possível esposa desvanecer-se quando ele próprio derrubou o boi mais bonito de Lip com uma machadada, ao tentar espantá-lo das terras de seu pai.
Com a chegada das cinco pessoas da cidade, percebe-se o início da agitação que os festejos trazem. Na venda, trava-se longa conversa entre o dono da casa e os visitantes. O rico vendeiro tenta sobressair-se a todos, demonstrando a sua condição de homem culto e a de sua família, mas inicia um confronto com Peter, quando critica os padres e a igreja, assim como a simplicidade das pessoas do local. Para o vendeiro, os colonos são pobres burros, animais sem cultura, que reproduzem o que os “padrecos” propõem.
No dia do Kerb, um domingo, Peter e seu pai deixam a casa do vendeiro, depois que o filho transfere seus animais de montaria para os estábulos de Lip por terem saído do cercado durante a noite. O vendeiro ofende-se pelo fato de Peter ter transferido seus animais justamente para as terras do seu grande inimigo, e expulsa pai e filho da pensão. Assim, estes acabam permanecendo na casa simples de Peter Lip.
Desde o dia anterior, quando chegou o grupo da Carioca, Christian (o filho do vendeiro) sente-se atraído por Sulmire. Já que o casamento com a Luíse se distanciava cada vez mais, a moça da Carioca talvez pudesse tornar-se a sua futura noiva depois dos festejos. Durante uma dança com a Sulmire, já nos festejos do Kerb, Christian acaba brigando com Peter, acertando-lhe uma garrafada, e abrindo um profundo corte na sua cabeça. Levado à casa de Lip, Peter permanece aí por alguns dias, até se recuperar.
Como após os festejos sempre são definidas muitas propostas para o ano, Christian assume um noivado com Sulmire, e Peter, depois de recuperado, deseja não mais deixar a casa que tão bem o acolheu, acertando seu noivado com Luíse.
Os casamentos são marcados para o mesmo dia. Primeiro acontece o de Christian e Sulmire, celebrado com grande pompa. Depois da cerimônia há muita dança na casa do vendeiro. Já o casamento de Peter e Luíse foi simples, mas dentro do modo de vida do colono: muita fé e simplicidade, sem arrogância.
Neste mesmo período, viaja pelo Rio Grande o ex-ministro do Império, Gaspar de Silveira Martins, defensor de causas dos imigrantes. Ele também visita Picada Isabelle, sendo recebido com grande festa. Silveira Martins, um estadista muito querido pelos imigrantes do Rio Grande, consegue, com sua visita à comunidade, algo que os próprios imigrantes não alcançavam: a união em torno de uma liderança. Não há união entre eles e desta forma também não conseguem representação nos centros urbanos e muito menos entre as comunidades. No final da visita do estadista, os imigrantes, entre gritos de vivas, e envolvidos pelo sentimento de unidade que Silveira Martins transmitira, gritam “eu sou rio-grandense!”.[10]
Uma vez casados, Sulmire e Christian moram na casa dos pais dele. Depois de um ano, contudo, vendo que a nora não dominava as lidas do lar, coisa que toda mulher da colônia deveria saber, o rico vendeiro dá ao jovem casal uma casa que tinha na comunidade, dizendo que o casal deveria aprender a crescer sozinho. Os dois mudam-se, mas também Christian perde a paciência com sua esposa, que não sabia cozinhar, ordenhar, reparar roupas, ou seja, definitivamente não dominava as tarefas do lar. Como Christian comercializava gado no planalto, ficava pouco em casa. Dessa forma, o casamento dos dois, que já não andava bem, não teve grandes chances de recuperar-se.
O de Peter e Luíse, entretanto, ia muito bem. Ele abrira uma ferraria que crescia e ela o auxiliava em tudo. O casamento havia estruturado uma bela família dentro dos princípios da religião protestante luterana, mantendo a simplicidade e dedicando-se muito ao trabalho e à família.
Os negócios de Christian não andavam muito bem e havia suspeitas de ele estar envolvido com roubo de gado. Isso era muito grave e perigoso, pois os negociantes do planalto gaúcho eram conhecidos por não usarem os lentos caminhos processuais nesses casos, tendo, porém, paciência para executarem atos de justiça pelas próprias mãos. Christian corria risco de ser morto por esses negociantes de gado do planalto. Num desses dias, o cavalo de Christian voltara sozinho para casa, sinalizando que algo grave acontecera. Ele havia sido baleado e encontrado, ainda com vida, num descampado próximo à comunidade, mas viria a morrer dias depois. Com a morte do filho, o pai enlouquece, digladiando-se com Deus por ter-lhe tirado seu único filho.
No final, a esposa do vendeiro e Sulmire assumem a venda, que depois é administrada pelo irmão de Peter, Eduard, que anos mais tarde se casa com Sulmire.Peter e Luíse vivem harmoniosamente, têm filhos e são felizes.
A partir da observação do contexto atual das comunidades no interior do Rio Grande do Sul, onde ainda se fala a língua alemã padrão e muitos dialetos, podemos nos perguntar se a língua teria servido como elemento principal para manutenção de uma identidade cultural e nacional do imigrante alemão e seus descendentes no Brasil.
A obra de Rotermund oferece-nos uma possibilidade de interpretação dessa questão a partir da leitura do conto acima em que a importância da língua materna, a Muttersprache, passa a desempenhar um papel fundamental para a manutenção da identidade cultural por parte dos descendentes, já brasileiros, em contato com a nova cultura.
Nos anos iniciais da colonização alemã efetiva no Brasil, a partir de 1824, não houve maiores problemas quanto a possibilidades de perda da língua dos antepassados. Isso deu-se pelo fato de os imigrantes terem sido encaminhados para a região sul do Brasil, praticamente inabitada e, além disso, de eles serem orientados à estruturação de comunidades compostas por elementos da mesma origem. A função dos imigrantes seria de abrir clareiras na densa mata dos vales e consequentemente demarcar terras brasileiras frente ao perigo de invasões castelhanas. Eles permaneciam em comunidades fechadas por uma questão de sobrevivência na mata; depois, pelo fato de apenas poucos dominarem um parco português, tornava-se impraticável um contato mais intenso com falantes de outras línguas, o que então pdoeria constituir uma ameaça à prática e manutenção do idioma alemão. Nesse primeiro momento, a língua materna é praticada entre os imigrantes sem a percepção de qualquer interferência exterior, de outra cultura. No início, a língua alemã padrão, o Hochdeutsch, serve também de meio de comunicação entre os próprios imigrantes, visto que praticamente todos usavam como primeira língua algum dialeto regional.
Contudo, a partir da necessidade de contato com o habitante nativo, faz-se necessária uma percepção do idioma local, o português. Com o passar do tempo, o domínio da língua portuguesa toma uma posição de destaque, sendo vista como status. Aquele que dominasse este idioma poderia considerar-se culturalmente mais avançado em relação aos conterrâneos falantes somente do alemão. Esse fato deu-se principalmente entre os jovens nascidos no Brasil, pois estes não mais queriam ser tomados como estrangeiros. Nessa segunda fase, muitas famílias passaram a praticar a língua portuguesa em casa e enaltecia-se os centros urbanos - lugar da cultura, onde não se trabalha pesado e onde se fala bem o português - em oposição ao campo, onde prevalecia a cultura alemã do colono, trabalhador da enxada, que fala mal o português.
É nesse momento que chega ao Brasil o pastor Wilhelm Rotermund, com a função de reorganizar culturalmente as famílias luteranas nas comunidades de falantes de alemão no Brasil. Como já vimos acima, o seu trabalho dá-se basicamente a partir da atividade tipográfica. Ele chega ao Brasil em 1874; em 1877 já funda a Tipografia Rotermund e o conto que trabalhamos data de 1883/84, extraído do também publicado em sua casa, do Kalender für die Deutschen in Brasilien.
No conto “Os dois vizinhos - cenas da colônia”, Rotermund enfatiza a prática da língua materna no lar, onde não é necessário haver luxo nem riquezas, mas a paz e a simplicidade cristã. Conforme o texto, não é preciso correr às cidades para se ser feliz, mas sim, ficar junto às belezas do campo, onde a natureza oferece tudo. O luterano, para praticar com determinação a sua fé, deve viver na simplicidade do seu ser, manter um bom relacionamento com as pessoas da comunidade, conservar a prática da língua materna; assim, ele estará preservando a igreja de Lutero. A esse contexto pertence o conto de Rotermund.
Rotermund também ataca a ideologia liberal e anti-religiosa de Karl von Kaseritz. Nesse sentido, aliás, as duas linhas religiosas – tanto a protestante como a católica - se empenharam com muito fervor.
* * *
O que os olhos são para o amante - aqueles olhos comuns especiais com que ele, ou ela, nasceu - a língua é para o patriota - qualquer que seja a língua que a história tenha feito sua língua materna. Por meio dessa língua, que se encontra no colo da mãe e se abandona apenas no túmulo, reconstituem-se os passados, imaginam-se solidariedades, sonham-se futuros.[11]
A língua materna (Muttersprache) é a herança recebida da mãe, e a ela cabe, num primeiro momento, passar e narrar aos filhos tudo o que acompanha essa herança recebida, por consequência a identidade com a cultura e a continuidade a que ela pertence. Do poema “Frauenlob” (Louvor às Mulheres), de Hellmut Culmann, publicado em 1932, no Rotermundkalender, citado do estudo de Bonow, partimos para observarmos como essa importância é apresentada na comunidade em questão – a dos teuto-brasileiros do RS:
Mulher alemã, o sol e o relicário da alma,
Protege nossos costumes, pedra preciosa das tradições de nosso povo!
Tu, mulher e mãe alemã, fala nossa língua,
Canta para nós as velhas canções desde a infância familiares
Tu, mulher e mãe alemã, educa a estirpe
Em disciplina e amor alemães, de acordo com o
Costume e as leis dos antepassados:[12]
Segundo o poema de Culmann, é no lar, junto à mãe que a criança aprende os primeiros termos na língua dos pais, herança passada de geração a geração. A professora Valburga Huber, citando os “hinos teuto-brasileiros”, afirma que estes ilustram “simbolicamente o aprendizado da língua materna – o alemão – na nova pátria: a pátria de origem é a mãe, à (sic) qual se deve amor, e o Brasil a noiva, à qual se deve fidelidade porque ela representa o futuro (ex: Arno Phillip).”[13] As palavras de Balduíno Rambo reiteram o que se afirma acima. Na sua segunda de suas cartas abertas, “A herança dos antepassados e a língua materna”, ele afirma que “a força da língua materna acha-se reservada aos primeiros anos da infância, portanto a uma fase anterior à do primeiro dia de aula.”[14] A Rambo interssava aqui a defesa do direito que havia sido proibido aos imigrantes alemães e seus descendentes, no Brasil, em virtude da entrada do país na Segunda Guerra Mundial contra a Alemanha.
A língua alemã como a temos hoje - o que pode ser chamado de língua franca, o que é o alemão-padrão - começa a formar-se na época medieval, e, no século XVI, Lutero luta pela liberdade de interpretação de textos religiosos, todos escritos em Latim, e acessíveis, portanto, somente a um restrito grupo. Boesch, na sua História da Literatura Alemã, comentando a atividade de Lutero, afirma que “foi ele (sic) quem despertou e libertou a língua alemã, um gigante adormecido.”[15] Giralda Seyferth, quando aborda “A problemática do nacionalismo alemão,” no seu livro Nacionalismo e identidade étnica, afirma que, para muitos, até princípios do século XIX, “Lutero teria sido o primeiro nacionalista a falar em uma ‘nação alemã.’”[16] Mas Lutero não teve relação e envolvimento com ideais nacionais e nem de formação de Estado. Com Lutero, a partir da Reforma, a língua alemã demarcou uma nova fronteira, uma nova comunidade imaginada,[17] com uma língua falada e escrita, diversa da até então, tomada por única no contexto da prática religiosa, o latim. E com a tradução da Bíblia, o alto alemão também passaria a ser adotado como referência no contexto político e linguístico.
Houve, porém, posteriormente, o aproveitamento ideológico de sua iniciativa com a finalidade de construir uma unidade nacional alemã. Durante o Romantismo alemão (1798 - 1835), surgem os primeiros nacionalistas idealizadores de uma unidade cultural e nacional. Seyferth, comentando a obra de Ernst Moritz Arndt, um dos idealizadores do nacionalismo romântico alemão, diz que ele “coloca a língua como o elemento primordial da nação e, neste caso, todos aqueles que falam alemão devem ser reunidos numa única pátria.”[18]Também para Hegel a “língua é encarada como a forma de expressão de um modo particular de ver a vida e o mundo”, é o princípio do Weltanschauung. E, completando as palavras do filósofo alemão, citado por Montserrat Guibernau, no livro Nacionalismos - O estado nacional e o nacionalismo no século XX, “ao lado de um interesse pela língua, emerge ainda um interesse específico pela história - o passado glorioso, mitos de origem, costumes, estilos de vida e idéias de um povo específico.” [19]O Romantismo alemão fortificou um sentimento de pertencimento nacional, acrescentando ao sentimento étnico a “língua”, as relações de sangue e o solo comuns.
A emigração alemã para o Brasil iniciou-se efetivamente (com apoio oficial do governo brasileiro) em 1824, portanto, no auge do período romântico, mas nesse momento ainda não havia sido consolidada a unidade cultural e nacional da Alemanha. Também em 1848, quando ocorre a Märzrevolution (a Revolução de Março), ainda não ocorrera a consolidação de uma nação alemã, sendo que muitos dos revolucionários derrotados deixaram a pátria, optando por um reinício em solo brasileiro. São os chamados Brummer, que entraram no Brasil a partir de 1850. Dessa forma, tomando como base as reflexões em torno do conceito de língua, podemos perceber que, para os alemães, que só tiveram um estado nacional unido a partir de 1871, esse conceito possui uma carga simbólica muito grande. Constata-se, portanto, que para os imigrantes alemães instalados nas remotas comunidades do sul do Brasil, a língua significava, em primeira instância, uma identificação cultural com o Vaterland (terra pátria/natal). Como afirma Guibernau a respeito, “a consciência nacional é proveniente de valores, tradições, lembranças do passado e planos para o futuro compartilhados”,[20] portanto, fronteiras imaginadas e não limites físicos estabelecidos.[21]
Para os emigrantes alemães em geral, o hamburguês Felix Dahn escreveu um poema, “Alemães no Exterior”, citado no estudo de Carlos Fouquet, O imigrante alemão e seus descendentes no Brasil, que pode ser visto como paradigmático dessa atitude com relação à língua:
A língua materna não deveis esquecer
Vergonha para aquele que a esquecer!
O idioma de Shakespeare, o inglês leva-o para todo o mundo
Louvo-o por manter-se fiel em terras estranhas!
Por que haveria Schiller de ser esquecido?[22]
Observe-se, contudo, que entre os imigrantes alemães não existia uma homogeneidade cultural. Ela certamente também não existiu entre os ingleses. Os alemães traziam diferenças regionais - dialetos, vestimentas, alimentação - que impossibilitavam uma amena identificação cultural desse grupo em solo brasileiro. Portanto, o idioma a que o poema se refere era o Hochdeutsch (o alto alemão - o alemão-padrão), que constituía o único elemento comum, através do qual todos buscavam uma identificação com relação à terra natal.
Para os imigrantes alemães não havia dúvida quanto à necessidade de aprender-se o idioma local, o português, mas eles estavam seguros de que não poderiam esquecer a Muttersprache (língua materna), através da qual manteriam a herança dos antepassados. Rambo, na sua defesa em prol do direito de expressar-se na língua dos antepassados, entra numa questão que Ernest Renan já havia comentado no final do século XIX, no seu Qu’est-ce qu’une nation?. Segundo Renan,
Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas que para dizer a verdade não formam mais que uma constituem esta alma, este princípio espiritual. Uma está no passado, a outra no presente. Uma é a possessão em comum de um rico legado de lembranças; outra é o consentimento atual, o desejo de viver em conjunto, a vontade de continuar a fazer valer a herança que receberam esses indivíduos. O homem [...] não se improvisa. A nação, como o indivíduo, é o resultado de um longo processo de esforços, de sacrifícios e de devotamentos. O culto dos ancestrais é de todos o mais legítimo; os ancestrais nos fizeram o que nós somos[23]
O texto de Renan foi levado a público em 1882, na França; ele foi um discurso proferido após e como consequência das resoluções tomadas em seguida à Guerra Franco-Prussiana. Em disputa sempre esteve a Alsácia-Lorena, região limítrofe entre a França e a Alemanha e motivo de muitos confrontos entre os dois países. Após a guerra, os franceses perderam o domínio da referida região e, por isso, Renan argumenta que não faz sentido impor uma nova identidade cultural e nacional a quem já as possui.
Stuart Hall, na sua obra Identidade Cultural, cita a argumentação de Anthony Giddens, quando estão em discussão “sociedades modernas e tradicionais.” Em sintonia com Renan, tratando das sociedades tradicionais, Giddens afirma que
em sociedades tradicionais, o passado é honrado e os símbolos são valorizados porque eles contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de manejar tempo e espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, do presente e do futuro. [24]
E Montserrat Guibernau, na obra antes citada, afirma que
os indivíduos que ingressam numa cultura carregam emocionalmente certos símbolos, valores, crenças e costumes, interiorizando-os e concebendo-os como parte deles próprios. (...) [Esses] símbolos e rituais são fatores decisivos na criação da identidade nacional. A nação, como uma forma de comunidade, implica tanto a semelhança entre seus membros quanto a diferença em relação aos estranhos. [25]
Esses símbolos, no entanto, necessitam de constantes reinterpretações e recriações pelo fato de processar-se a assimilação e a adaptação desse elemento que está ingressando no novo meio. Nesse caso, há uma junção do passado, do presente e do futuro para permitir que se efetue uma continuidade transcendente da nação. Stuart Hall vê a nação como “uma comunidade simbólica e é isto que explica seu ‘poder de gerar um senso de identidade e fidelidade." [26]
Quase no mesmo ano do texto de Renan, em 1883/84, Wilhelm Rotermund publicou, no Kalender für die Deutschen in Brasilien, o conto “Os dois vizinhos”, onde lemos a discussão de dois vizinhos, imigrantes alemães, habitantes da Picada Isabelle, comunidade no interior do Rio Grande do Sul, em torno da importância da língua materna, certamente o símbolo de maior relevância para o elemento alemão inserido numa nova cultura.
Paul visita seu amigo Peter Lip e, durante a conversa, entram na questão escolar, como podemos ler:
Paul visita seu amigo Peter Lip e, durante a conversa, entram na questão escolar, como podemos ler:
“Mas as crianças têm que aprender português; é esta a língua do país.”
“E vão aprendê-lo; mas não devem perder a língua materna. Nem sei que insistência e pressão é essa, até entre muitos alemães, para que os colonos falem todos eles o português. Sou da opinião que nossos filhos e netos o aprendem depressa demais e com a mesma pressa esquecem o alemão. Muitos alemães aqui nascidos, se possível, não falam sequer uma palavra em alemão e fazem de conta que toda a cultura se resume em falar português. (...) Nosso espírito está em nossa língua.
(...)
“Mas temos que conhecer a língua do país”, interveio Paul.
“Depende, compadre. Eu não a conheço e você também não, e vivemos muito felizes. Sob certas circunstâncias é bom que nós colonos saibamos o português, mas não vejo necessidade. Em todos os casos, é muito mais necessário que nossas crianças aprendam primeiro o alemão. Esta é a língua, na qual pensam e essa língua é que precisam entender para que possam se expressar bem nela. Caso depois ainda sobre tempo para o aprendizado do português, nada tenho contra. De que me serve que aprendam a língua estranha, sem terem conhecimentos, não aprendendo a fazer cálculos, nada sabendo de história, de catecismo e de geografia?[...]
[27]
Na literatura produzida pelos imigrantes alemães no Brasil, o “culto dos antepassados” é um elemento marcante. Marion Fleischer, no seu estudo sobre a lírica teuto-brasileira, Elos e Anelos, comenta que,
mesmo nos momentos em que essa literatura procurou fixar-se na realidade presente, no ambiente brasileiro, o discurso literário - com poucas exceções - não conseguiu romper o esquema de formas tradicionais, observável nas numerosas configurações do tema especificamente teuto-brasileiro, ou seja, o da imigração e das vivências que a ela se vinculam.
Como vimos acima, Rotermund chegou ao Brasil em 1874 com a função de reorganizar as comunidades luteranas no estado gaúcho, por estas estarem perdendo a sua identidade cultural diante das expectativas da Igreja Protestante. Seu grande aliado nessa luta foi o trabalho tipográfico, possível a partir da compra de uma tipografia que estava desativada. Os resultados foram expressivos, com a publicação de diversos manuais didáticos, jornais e anuários, além de textos como esses, que apresentamos mais especificamente no presente trabalho, direcionados diretamente às comunidades de origem alemã. Conforme Dreher, no artigo “Wilhelm Rotermund. Pastor luterano - Pensador teuto-brasileiro”, “a tendência é clara: fortalecimento ético e religioso, integração ao meio brasileiro, sem descuidar da herança dos antepassados imigrantes.”[28]
Para alcançar os seus objetivos, Rotermund difundiu um fechamento das comunidades alemãs às influências exteriores que pudessem abalar a identidade cultural alemã. Na citação acima, de Rotermund, é possível percebermos a intenção do autor, quando expressa, através do personagem Peter Lip, que assume a posição contrária à inserção mais intensa das crianças, principalmente, nas escolas públicas e, desta forma, assumirem um convívio mais aberto na comunidade, e não ficando limitada sua convivência ao meio alemão, dos imigrantes. Conforme Montserrat Guibernau, no seu livro acima mencioando, “o principal estratagema utilizado para preservar a identidade é o isolamento.”[29]Para as comunidades alemãs no Brasil, a língua é o elemento cultural mais importante a ser preservado, pois, somente através dela, é possível preservar o Deutschtum - o patrimônio cultural alemão. Sobre o assunto, Huber acrescenta que “a religião, ao lado da língua, da família e outros fatores, manteve o fechamento das comunidades, ‘sobretudo as protestantes’, uma vez que no protestantismo alemão, a concepção étnico-nacional está inseparavelmente ligada à concepção religiosa, aos costumes e à língua.”[30]Acerca dessa questão, Seyferth afirma que “o elo que liga um povo e sua nação é o que os alemães chamam de Volksgemeinschaft e Deutschtum, o que quer dizer, uma comunidade de interesse e uma cultura, raça e língua comuns - referenciadas como a "consciência nacional alemã.”[31]
No conto de Rotermund, é possível percebermos que a idéia de um “insulamento” está presente, ou uma independência, uma autonomia da comunidade para não haver necessidade de contato com o meio “brasileiro”. O principal temor das lideranças comunitárias era que, com o contato, ocorresse a perda da identidade cultural com o Mutterland.
As palavras de defesa de Peter Lip, na citação acima, são direcionadas principalmente aos pais das famílias. A intenção do autor é sensibilizar os pais a retomar a prática da língua materna nos lares, visto que uma das primeiras constatações de Rotermund, ao chegar em São Leopoldo, foi a de que os jovens não falavam mais a língua dos seus antepassados e, como afirma Seyferth, com certeza, se “o teuto-brasileiro que não souber falar alemão perderá o principal elemento da sua identidade.”[32]
Rotermund e muitas outras lideranças do contexto de língua alemã no Brasil esqueceram, porém, que no ato de falar a língua portuguesa por parte dos descendentes já nascidos no Brasil – portanto, brasileiros de origem alemã e que em muitos textos se definiram como teuto-brasileiros - está a busca por uma aproximação identitária em relação ao seu país, o Brasil. Com a iniciativa de Rotermund, teoricamente, não se buscava deixar de lado o aprendizado do protuguês, mas sim, revalorizar a prática da língua alemã. As palavras de Peter Lip, no entanto, não deixam muito clara essa postura em relação ao aprendizado do português, que, segundo ele, deve ser aprendido caso sobre tempo.[33]Reenfatizamos, a partir dessa constatação, que as palavras de Lip espelham às de Rotermund, em cujo Lesebuch für Schule und Haus (Livro de leitura para escola e lar), de sua autoria, lemos:
É certo que nossas crianças venham a conhecer, nas escolas, a língua e a história do país, mas antes de tudo devem conhecer a língua e a história do próprio clã: e o que lhes deve ser ensinado de história, de doutrina e afirmações de fé pode ocorrer em língua alemã.[34]
O uso e o aprendizado da língua portuguesa eram encarados de forma prática. Para os imigrantes e seus descendentes, a língua nativa era vista como elemento necessário ao cidadão brasileiro, exatamente no período em que a identidade dos alemães e descendentes no Brasil foi mais questionada - de 1910 até o auge da Primeira Guerra Mundial, a 1918 - como Seyferth afirma a seguir: ela é
a ‘língua comercial’. Aprender a portuguesa tinha por finalidade ‘não ser enganado nas atividades comerciais e na política’ (...) é a língua oficial do país, e por isso torna-se necessário aprendê-la como das obrigações de cidadãos brasileiros, mas não usá-la em comunidade porque traria prejuízos irreparáveis ao Deutschtum.[35]
Mas língua portuguesa simbolizava diferença social, principalmente para os mais jovens. Primeiro, do campo para a cidade. As pessoas do campo eram vistas como colonos, de fala ruim, de usos e costumes pobres, enquanto que as da cidade não tinham uma profissão em que se usasse a enxada, podiam optar por diversas atividades de lazer e, um fator de grande importância, falavam um português correto.[36]
Neste momento, entramos no segundo ponto que pretendemos abordar na obra de Rotermund, quando a importância da língua – materna e a da nova pátria – entra em questão e desempenha importantes funções.
As diferenças do imigrante do campo para o da cidade é outro aspecto abordado no conto de Rotermund, onde novamente Peter Lip faz a defesa do campo, criticando o descaso com que é tratado o imigrante alemão rural pelos seus compatriotas da cidade. São essas as palavras de Peter Lip: “... não é por acaso que se fala do ‘colono bobo’. Os camundongos se pega com toicinho. Escreve-se bastante; o papel é paciente; e também se promete bastante, pois não custa dinheiro...”[37] Seu posicionamento chega a ser radical, quando se trata dos filhos que procuram as cidades: “Até é quase preferível levar um filho à cova do que mandá-lo à cidade.”[38]
Mas a afirmação de uma identidade brasileira com ascendência alemã por parte do já nascido no Brasil, portanto brasileiro pelos direitos do ius [sic] soli,[39] visava também à fuga da rotulação de “estrangeiro.” Para não ser tomado como tal, o jovem deveria, em primeiro lugar, como afirma Guibernau em termos técnicos atuais, ser capaz “de compreender e ser compreendido”, pois, esse “processo de identificação com os elementos de uma cultura específica implica um forte investimento emocional.” E continua: “O principal problema de ser ‘estrangeiro’ é a inabilidade de se comunicar.”[40] No artigo “Identidade nacional e sociedade multicultural”, Silvano Peloso[41] afirma que, para a definição de uma identidade própria, é necessário não só uma língua própria, mas também o olhar do outro. No caso dos imigrantes alemães, existia um sentimento de menosprezo muitas vezes recíproco. Guibernau ilustra muito bem o aspecto teórico no que diz respeito aos conceitos de identidade nacional e nacionalismo, afirmando que “a diferenciação [em relação ao outro] provém da consciência de formar uma comunidade com uma cultura partilhada, ligada a um território determinado, elementos que levam à distinção entre membros e ‘estrangeiros’, ‘o resto’ e ‘os diferentes.’”[42] Também Sturat Hall define a identidade como
algo formado através de processos inconscientes ao longo do tempo, mais do que algo inato à consciência, desde o nascimento. Há sempre algo ‘imaginário’ ou fantasiado sobre essa unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre ‘em processo’, sempre ‘sendo formada.[43]
Procuramos trazer, portanto, a público um autor que teve um relevante papel no contexto da imigração alemã luterana no Brasil. Seu trabalho literário merece uma revisão com vistas à questão relativa à identidade cultural e nacional desse grupo imigrante.
Os conceitos e discussões mais diversos em torno da importância da língua materna para qualquer grupo inserido num contexto estranho ao seu são ainda hoje de grande relevância. Mais e mais críticos poderiam e podem ser citados no presente trabalho e o constante reescrever dos conceitos em questão torna essa discussão sempre atual e, por consequência, sempre mais rica.
Tivemos, de 1874 à década de vinte do nosso século, na figura de Wilhelm Rotermund, um rearticulador e reorganizador da identidade alemã dos imigrantes e seus descendentes protestantes no Brasil. Sua atividade teve êxito (se isso pode ser tomado como positivo ou negativo não entra no mérito aqui), tanto que por longo tempo - e até hoje temos reflexos das influências rotermundianas no contexto alemão-luterano - a língua alemã foi preservada como elemento de manutenção de uma identidade cultural (principalmente) e nacional.
Apesar de quase nenhuma aproximação entre as comunidades protestantes e católicas na época, ambas buscaram um objetivo comum: a manutenção do único elemento que pudesse manter viva a identidade cultural dos antepassados emigrados da Alemanha, a língua materna e isso geralmente com a manutenção do imigrante nas atividades do campo. Até hoje existem comunidades, principalmente interioranas, que ainda mantêm viva a prática da língua materna (e não estamos questionando aqui o valor dessa manutenção, enfatizamos novamente) e isso deveu-se a essa atividade “literária”, em grande parte, devida a representantes como Rotermund.
[1] Ver a página na internet: http://www.rellibra.com.br/pesquisas.html e www.martiusstaden.org.br/files/Rellibra/Rellibra_Apresentacao.pdf
[2] Ver DREHER, Martin N. Igreja e germanidade. Estudo crítico da história da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Sao Leopoldo: Ed. Sinodal; Caxias do Sul: Ed. UCS, 1984, p. 89s.
[3] Essa foto de Wilhelm Rotermund foi retirada da internet e é aproveitada pelo autor deste artigo como ilustração para que o leitor tenha uma representação de quem foi Rotermund.
[4] FAUSEL, Erich. Literatura Rio-Grandense em língua alemã. Enciclopédia Rio-Grandense. Vol II - O Rio Grande Antigo. Canoas: Ed. Regional, 1956, p. 222-239 e do mesmo autor Deutsche Stimmen in der Riograndenser Literatur. Intercâmbio. n. 4/6, 1957, p. 82-88.
[5] DREHER, Martin N. Wilhelm Rotermund. Pastor luterano - pensador teuto-brasileiro. Anuário Evangélico. São Leopoldo: Sinodal, 1998, p. 117-127.
[6] DREHER, M. 1984, p. 90-91.
[7] Idem, p. 90.
[8] Foto de Gerson Roberto Neumann. .
[9] Venda, nas comunidades alemães siginifica armazém. Na venda, o vendeiro é quem comercializa os produtos vendidos pelos imigrantes e revende outros comprados na cidade. Na venda geralmente há também um salão onde se realizam os bailes e as festas da comunidade.
[10] Ver “Os dois vizinhos”, 1997, p. 68.
[11] ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Ática, 1989, p. 168.
[12] CULMANN, H Apud BONOW, I. Imgart. Onde o sabiá canta e a palmeira farfalha: a poesia em língua alemã publicada nos anuários (1874-1941) sul-rio-grandenses. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica - PUC-RS, 1991, Dissertação (Mestrado em Letras). PUC-RS, 1991, p. 74.Du deutsche Frau, des Hauses Sonne und Seelenschrein,
Behüte unsre Sitte, des Volkstums [sic] Edelstein!
Du deutsche Frau und Mutter, sprich unser Sprache Laut
Sing’ uns die alten Lieder, von Kinheit an vertraut!
du deutsche Frau und Mutter, erziehe das Geschlecht
[13] HUBER, Valburga. Saudade e Esperança - o dualismo do imigrante alemão refletido em sua literatura. Blumenau: Ed. FURB, 1993, p. 29. Os “hinos teuto-brasileiros” acima referidos são as poesias produzidas por imigrantes alemães e descendentes acerca do dualismo identitário teuto-brasileiro.
[14] RAMBO, Balduíno. Em busca da grande síntese. Trad. e org. Arthur Rabuske. São Leopoldo: Unisinos, 1998, p. 99..
[15] BOESCH, Bruno (Org). História da Literatura Alemã. São Paulo: USP, 1967, p. 233..
[16] SEYFERTH. Giralda. Nacionalismo e identidade étnica. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1981, p. 19. Os grifos são da autora. Ver também GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismos - o estado nacional e o nacionalismo no século XX. Trad. Mauro Gama e Cláudia M. Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.. 1997, p. 76.
[17] Ver ANDERSON, B. 1989.
[18] SEYFERTH, G. 1981, p. 23
[19] HEGEL, G. Apud GUIBERNAU, M. 1997, p. 65.
[20] GUIBERNAU, M. 1997, p. 77.
[21] Guibernau define nação como “um grupo humano consciente de formar uma comunidade, partilhando de uma cultura comum, ligado a um territótio claramente demarcado, tendo um passado e um projeto comuns para o futuro, e exigindo o direito de se governar”. p. 110.
[22] DAHN, F. Apud FOUQUET, Carlos. O imigrante alemão e seus descendentes no Brasil: 1808 - 1824 - 1974. Trad. Guido F. J. Pabst. São Paulo: Instituto Hans Staden; São Leopoldo: Federação dos Centros Culturais 25 de Julho, 1974, p. 86.
[23] RENAN, Ernest. Qu’est-ce qu’une nation? Toronto: Tapir Press, 1996, p. 18. Traduzido por Glaydson José da Silva. In: Revista Aulas., p. 18, http://www.unicamp.br/~aulas/VOLUME01/ernest.pdf.
[24] GIDDENS, A. Apud HALL, Stuart. Identidade Cultural. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, Col. Memo, s. d.. 1997, p. 11-12.
[25] GUIBERNAU, M. 1997, p. 86 e 91.
[26] HALL, S. 1997, p. 54.
[27] ROTERMUND, W. 1997, p. 56-57.
[28] DREHER, M. 1998, p. 123.
[29] GUIBERNAU, M. 1997, p. 145.
[30] HUBER, V. 1993, p. 37.
[31] SEYFERTH, G. 1981, p. 45.
[32] Idem, p. 113.
[33] ROTERMUND, W. 1997, p. 57.
[34] ROTERMUND, W. Lesebuch für Schule und Haus 1922, I.
[35] SEYFERTH, G. 1981, p. 83.
[36] Ver WILLEMS, Emílio. Assimilação e populações marginais no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1940, cap. XI.
[37] ROTERMUND, W. 1997, p. 34.
[38] Idem, 1997, p. 33.
[39] SEYFERTH, G. 1994, p. 18.
[40] GUIBERNAU, M. 1997, p. 77 e 85. Os grifos são do autor.
[41] PELOSO, S. 1991, p. 167. In: REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARADA. N. 1 (1991) - Rio de Janeiro: Abralic, 1991.
[42] GUIBERNAU, M. 1997, p. 83.
[43] HALL, S. 1997, p. 41-42. Os grifos são do autor.
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