DISCUSSÃO SOBRE A QUESTÃO DO NACIONALISMO NA IDADE MÉDIA

Paula dos Santos Flores 1

 

Resumo: O presente trabalho discute o significado da figura histórica de Joana d’Arc, as manifestações políticas antes da difusão da imprensa e a pertinência do uso do conceito de nacionalismo para o período medieval. O trabalho destaca elementos da Guerra dos Cem Anos e seus antecedentes, usando como referencial metodológico a definição de nacionalismo encontrada no livro de Benedict Anderson, Comunidades Imaginadas.

Palavras-chave:Nacionalismo; Guerra dos Cem Anos; Joana d’Arc.

Esta pesquisa sobre o tema do nacionalismo na Idade Média iniciou-se a partir de questionamentos relacionados ao trabalho, apresentado no SIC/UFRGS 2007, Joana d’Arc por William Shakespeare: desconstruindo o mito nacional francês. A análise da obra de Shakespeare faz parte do projeto Imagens de Joana d’Arc: Cinema, História e Literatura. O presente artigo tem como objetivo debater problemas teórico-metodológicos que surgiram durante a pesquisa, tais como: o significado da figura histórica de Joana d’Arc, manifestações políticas antes da difusão da imprensa e a pertinência do uso do conceito de nacionalismo para o período medieval.
O conflito que serve de pano de fundo para estes questionamentos é a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). As origens do conflito remontam ao séc. XII. Devido ao modo como os reinos se expandiam, por guerras e por casamentos, alguns domínios se constituíam por vários territórios, sem necessariamente ter uma continuidade geográfica ou um vínculo cultural ou lingüístico. Exemplo disso é a formação do Império Angevino, constituído pela Inglaterra e uma significativa porção da atual França. O território sob o domínio de Henrique II, rei da Inglaterra, teve um acréscimo territorial importante devido ao casamento do monarca com Leonor de Aquitânia. Mas esta situação não foi bem aceita pela Coroa da França, que também se encontrava em processo de centralização política. E assim, com os conflitos ocorridos entre 1202 e 1204, no reinado do monarca inglês João sem Terra, ocorreu o desmembramento do Império Angevino.
Os conflitos entre os reis ingleses e franceses não cessaram a partir deste momento. A tentativa de retomar a porção continental do Império persistiu até 1259, com o tratado de Paris. Segundo este, Henrique III renunciava às terras perdidas por seu pai, mantendo apenas a Gasconha e algumas ilhas no Canal da Mancha, mediante reconhecimento do rei da França como seu suserano. A situação jurídica do rei da Inglaterra levou a fortes tensões no reino. José Roberto de Almeida Mello (1985-1988, p.200) destaca que “os meados do século XIII constituíram um momento significativo também na apreciação das lutas continentais pela população inglesa que, em principio, nada tinha a ver com as ambições de seus monarcas naquelas áreas”. As onerosas guerras causaram uma “sistemática recusa dos barões em prestar auxilio feudal no continente e da comunidade do reino em custear as guerras”. (MELO, 1985-1988, p.200). Essa tensão também se manifestou na poesia que, segundo Mello (1985-1988, p.200), na falta de imprensa e de outros meios de comunicação de massa, em seu conjunto, pode ser encarada como representativa das opiniões da comunidade do reino. A poesia inglesa do séc. XIII seria um espelho da evolução política e social do final da Idade Média, de caráter bastante variado, sendo agrupada sob a expressão “canções políticas” 2. Nesses textos pode-se acompanhar as criticas a política real e, com a evolução dos conflitos com a França e Escócia, a presença de expressões patrióticas.
Em 1328, morre o rei francês Carlos IV sem deixar herdeiros masculinos diretos. O trono francês tem dois pretendentes: Eduardo III, rei da Inglaterra e sobrinho monarca francês, e Filipe VI, primo de Carlos IV, que acaba sendo coroado dando inicio à dinastia dos Valois. Do ponto de vista dinástico, Eduardo III estava perfeitamente apto para assumir o poder. No entanto, um francês é o escolhido. As tensões geradas pela questão sucessória culminam em 1337, quando se inicia a Guerra dos Cem Anos propriamente dita.
Em 1429, enquanto Inglaterra e França sofriam com o desgaste de um longo conflito, uma jovem apresenta-se como portadora de uma mensagem de Deus. Joana d’Arc foi um mito vivo, sua trajetória foi surpreendente e intrigante, entre 1429 e 1431 ela “se inscreveu concreta e visivelmente no campo político”. (BEAUNE, 2006, p.18). Segundo Beaune (2006, p.13), desde seu aparecimento em Chinon houve uma coexistência da Joana real e da mítica. A relativa falta de informações sobre sua vida e a ambiguidade que esteve presente desde a origem do mito tornou possível a apropriação de sua imagem por diversos grupos.
No processo de construção do símbolo nacional, no séc. XVII, Joana foi “eleita” a heroína da França. “A escolha do herói não é arbitrária, não é feita no vazio social. A figura do herói tem de responder a alguma necessidade ou aspiração coletiva, deve ser um modelo coletivamente valorizado”. (CARVALHO, 1990, p.55). As palavras de José Murilo de Carvalho referem-se à construção da imagem de Tiradentes como um herói nacional brasileiro. No entanto, é impossível deixar de estabelecer analogias com a trajetória de Joana d’Arc, sendo que a semelhança não está em suas vidas, mas na condição de heróis nacionais, símbolos de aspirações coletivas.
Não há uma documentação suficiente para comprovar vários aspectos da vida de Joana. Sua imagem, aqui tratada não só como sua aparência física, mas também como os ideais que defendia, foram moldados de acordo com os grupos que se apropriaram de sua figura como símbolo. O forte apego religioso, a roupa que teria vestido e sua postura diante da morte iminente também são pontos que geram controvérsias, mas que favorecem seu apelo como figura mística. A luta de Joana, assim como a de Tiradentes, foi transformada, acima de tudo, em uma luta pela pátria. Não podemos, no entanto, desprezar a existência de um personagem real, de fatos históricos que podem ser analisados, buscando uma aproximação com esses seres cobertos de mistério. Realmente existiu uma jovem camponesa que participou na Guerra dos Cem Anos. As informações podem ser buscadas nos processos, o de condenação (1431) e o de anulação (1456). Além disso, uma enorme massa de documentos, de vários gêneros, está conservada. Dentre eles, cartas da própria Joana. (BEAUNE, 2006, p.16).
Analisando estes fatos surge o questionamento: a partir de que momento Joana deixa de ser a heroína da Guerra dos Cem Anos e passa a ser símbolo da França? É certo, porém, que Joana já era reconhecida como heroína por seus contemporâneos, como é possível perceber através da leitura de autores da época. É o caso, por exemplo, de Christine de Pisan que,

 
Contrária ao crescente domínio inglês, defendia o direito à sucessão do delfim Carlos, deserdado pelo Tratado de Troyes de 1420. A preocupação de Christine de Pisan com os rumos da guerra já havia sido expressa na “Lamentation sur les maux de la guerre civile” de 1410, bem como no seu “Livre de la paix”, escrito entre os anos 1412 e 1414, que demonstram a desolação da autora com a Guerra dos Cem Anos. Mas ao tomar conhecimento, no ano de 1429, da retomada de Orléans – sitiada pelos ingleses - e da entronização do delfim, ambos feitos notáveis atribuídos à Joana d’Arc, a escritora recupera as esperanças e compõe o “Ditié de Jehanne d’Arc”, no qual glorifica Joana e saúda o novo rei, Carlos VII. (GOMES; ALMEIDA, 2009, p.1).

Em 1422, temos Le Quadrilogue Invectif, de Alain Chartier, obra analisada por Macedo (1990), onde podemos ler, assim como em Christine de Pisan, uma reflexão sobre a guerra e a defesa da legitimidade do Delfim.
Durante a análise de Henrique VI 3, drama histórico de William Shakespeare, levando-se em consideração o envolvimento político de Shakespeare e o contexto do governo de Elizabeth I 4, concluiu-se que o fato de Shakespeare retratar Joana como uma mulher de caráter duvidoso 5, tem como motivação, não sua opinião sobre a Donzela, mas sobre a sua atuação, já que esta encarnaria o povo francês. Assim, criticando sua heroína, estende sua crítica a todo um povo que tem hostilidades antigas com seu país.
Na busca por uma motivação para as ações de Joana e para os escritos de Shakespeare, inevitavelmente surge uma reposta que aponta para a questão do nacionalismo. No entanto, esse conceito apresenta problemas quando nos deparamos com vários autores, como Benedict Anderson e Eric Hobsbawm, por exemplo, que situam o surgimento do nacionalismo num período bem posterior.
A introdução de Comunidades Imaginadas (ANDERSON, 2008) chama atenção, Anderson questiona o motivo que leva as pessoas a morrerem por seu país. A questão, obviamente, se refere a conflitos do período contemporâneo. A seguir, temos a definição de Nação como uma “comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo soberana”. (ANDERSON, 2008, p.32).
Segundo Anderson (2008, p.32), “imaginada porque mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles”. Ora, uma das motivações da Donzela não teria relação com o fato da maioria dos camponeses serem assolados pelos pesados impostos e pelos saques dos soldados ingleses que transitavam em seu território? Não teria ela dito que sangue francês estava sendo derramado? A comunhão de um sofrimento não estaria presente? A nação é limitada “porque mesmo a maior delas, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais existem outras nações. Nenhuma delas imagina ter a extensão da humanidade”. (ANDERSON, 2008, p.33). Desconhecemos, tanto da parte francesa, quanto da inglesa, alguma manifestação que apresente tendência ao universal.
Para Anderson o nacionalismo não poderia existir em períodos anteriores ao século XVIII devido à existência de dois sistemas culturais: a comunidade religiosa e o reino dinástico. Segundo o autor, as grandes comunidades religiosas impediam o sentimento de pertencimento a um reino territorial. Analisando a obra de Ernst Kantorowicz (1998) podemos ter outra perspectiva sobre a situação que se encontravam os poderes laicos e religiosos no período medieval.
Kantorowicz (1998, p.155) aponta como, a partir do séc. XIII, a “lealdade à pátria territorial restrita, à pátria comum de todos os súditos da coroa, (...) [substitui] os vínculos supranacionais de um império universal fictício”. A origem desse processo se encontraria nas disputas entre o rei francês Filipe IV e o Papa Bonifácio VIII, onde pela primeira vez, encontramos o uso de argumentos patrióticos. Apesar da pertinência da questão, não poderemos nos deter, neste trabalho, numa discussão para delimitar a diferença entre nacionalismo e patriotismo. Neste especifico trabalho, pelas características apresentadas para cada um desses conceitos, tomaremos como sinônimos, sem deixar de ressaltar que o conceito de pátria sofreu um deslocamento semântico. Nas disputas entre o Papa e o rei francês, temos uma divergência entre uma autoridade religiosa e uma política. Em decorrência deste evento, temos a secularização do modelo dos impostos para as cruzadas, “uma adaptação da linguagem jurídica aos fins nacionais”. (KANTOROWICZ, 1998, p.148). A França, o reino mais querido de Deus, tanto que seus reis tinham o poder de curar doenças 6, salvaria a cristandade do seu próprio líder. Segundo Kantorowicz (1998, p.148), os valores éticos referentes à “pátria dos céus” foram transferidos para as comunidades políticas da terra. Com estes argumentos, matizamos a noção da incompatibilidade da comunidade religiosa com o sentimento nacional.
Outro ponto a ser discutido é a questão das línguas vernáculas. Para Anderson (2008, p.76) “nada sugere que existisse qualquer profundo impulso ideológico, e menos ainda protonacional, por trás dessa vernaculização, onde ela veio a ocorrer”. O autor escolhe o caso da Inglaterra para ilustrar sua afirmação, afirmando que:

 

Antes da conquista normanda, a língua da corte, literária e administrativa, era o anglo saxão. Nos 150 anos seguintes, praticamente todos os documentos régios foram redigidos em latim. Entre 1200 e 1350, esse latim foi substituído pelo franco-normando. Entrementes, uma lenta fusão entre essa língua, de uma classe dirigente estrangeira, e o anglo-saxão, da população de súditos gerou o médio-inglês. Essa fusão permitiu que a nova língua se tornasse, após 1362, a língua das cortes – e da sessão inaugural do Parlamento. (ANDERSON, 2008, p.76).

Anderson (2008, p.77) explica que “a escolha da língua aparece como fruto de um desenvolvimento gradual, inconsciente, pragmático, para não dizer aleatório”. Ao afirmar isto, o autor ignora um fator de extrema relevância: a Guerra dos Cem Anos. Em 1362, a Inglaterra esta em guerra contra a França há 25 anos! Não pode ser aleatória a escolha de não falar mais a língua de um país inimigo.
Este trabalho não tem como seu objetivo criticar a obra de Benedict Anderson, ou desmerecer seu trabalho. Comunidades Imaginadas foi escolhido como um exemplo, como uma amostra da opinião vigente na maioria dos trabalhos sobre nacionalismo.
O conflito, iniciado em 1337, decorre da resistência francesa em aceitar um inglês como seu monarca. No período que queremos destacar, a última fase da guerra, a disputa dinástica se transformou em uma disputa que, por suas características, poderia ser chamada de nacional. No entanto, ao pesquisar a bibliografia referente ao tema do nacionalismo, encontramos uma grande discussão em torno da definição do conceito. Não se busca, com este texto, provar a existência ou não de um nacionalismo medieval. Seu objetivo é destacar determinados aspectos, dentre eles as motivações dos personagens analisados. Provocar a reflexão sobre o tema do nacionalismo, que aparece tão fechado para o período medieval, mas que não apresenta consenso quanto a sua definição.
É clara a importância da definição dos conceitos usados nos trabalhos de História. Então, mesmo que a palavra nacionalismo não possa ser aplicada integralmente para o período medieval, é importante levantar as características e elementos presentes no período, tentando definir as motivações de determinadas ações e acontecimentos. Apenas afirmar que não se pode nomear o que acontecia no período medieval, por uma limitação conceitual seria demasiado pobre. Sem poder apresentar uma conclusão definitiva sobre o tema, espera-se que este trabalho desperte a reflexão sobre o assunto.

 

Nationalism during the Middle Ages: A discussion

Abstract:This paper discusses the meaning of Joan of Arc, political manifestations before widespread use of the printing press, and the relevance of nationalism as a concept to the medieval period. The paper emphasizes elements of the Hundred Years' War and events leading up to the conflict, employing to Benedict Anderson's definition of Nationalism in its analysis, Imagined Communities.

Keywords:Nationalism. Hundred Years' War. Joan of Arc.

 

1 Graduanda em História, bolsista BIC/PROPESQ. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Endereço eletrônico: paulaflrs@gmail.com.

2 Mello (1985-1988, p.200) argumenta que apresenta dificuldades na hora de ser classificada apesar de cômoda, a expressão “political song” peca por ser muito restritiva.

3 Obra publicada no Fólio de 1623.

4 Barbara Heliodora (2001) destaca a função pedagógica do teatro no período elizabetano. Vinculando os grupos de atores a nobres e utilizando-se de um aparelho de censura, a rainha tinha o controle do conteúdo das peças. Elizabeth I estimulou a produção cultural, e as peças tinham um vasto alcance, sendo representadas na corte e no interior, onde grupos de atores ambulantes representavam as peças já vistas pela aristocracia. Sobre o tema do teatro no reinado de Elizabeth I, ver também: RESENDE, s/d.

5 No inicio da peça, Joana só consegue o apoio de Carlos VII porque consegue conquistá-lo com sua beleza. Joana aparece como guerreira valente durante a peça, mas se revela prostituta e feiticeira quando é capturada pelos ingleses.

6 A taumaturgia real, poder de cura atribuído aos reis ingleses e franceses desde o séc, XII, é estudada por Marc Bloch. Cf. BLOCH, 2005.

Referências:

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

BEAUNE, Colette. Joana d’Arc. Uma Biografia. São Paulo: Editora Globo, 2006.

BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. O caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. São Paulo: Cia das Letras, 2005.

Carvalho, José Murilo. A Formação das Almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1990.

GOMES, Luciano; AMEIDA, Cybele Crossetti. Política e gênero no “Ditié de Jehanne d’Arc” de Christine de Pisan. 2009. (no prelo).

HELIODORA, Barbara.   Falando de Shakespeare.  São Paulo: Perspectiva, 2001.

KANTOROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do rei. Um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

MACEDO, José Rivair. O problema do patriotismo e do nacionalismo francês na Idade Média e Quadrilogue Invectif de Alain Chartier. Revista UMC, v.2, n.1, p. 50-56, 1990.

MELLO, José Roberto de Almeida. Poesia política e relações anglo-francesa no século XIII Revista de História, USP, n. 119, jul.- set. 1985-1988.

RESENDE, Aimara da Cunha. Entre nobres e aldeões. Revista Entre Clássicos n.2 – William Shakespeare. São Paulo: Ed. Duetto, s/d. p. 6-13.