A RELAÇÃO ENTRE CARIDADE E CONHECIMENTO
NA VIDA DE JULIANA DO MONTE CORNILLON (†1258)

 Ana Paula Lopes Pereira 1

 

Resumo: A relação entre Caridade, amor absoluto de Deus e Conhecimento místico aparece como uma constante analítica na narrativa hagiográfica produzida na diocese de Liège no século XIII. Os hagiógrafos buscando dar conta de um novo tipo de santidade, de uma piedade laica, moderna, voluntária, acabam investigando a natureza das mulheres piedosas, seus modos de sentir e de pensar. Analisando a noção de affectus na doutrina da cisterciense da Caridade e apontando alguns elementos da vida de Juliana do Monte Cornillon sobre o conhecimento místico, buscamos demonstrar que integrados no aparelho conceitual cisterciense esses clérigos, pertencentes ao início do pensamento escolástico, empreendem uma antropologia hagiográfica..

Palavras-chave:Affectus; Século XIII; Juliana do Monte Comillon; Antropologia hagiográfica.

As vitae de beguinas e monjas cistercienses da diocese de Liège, na primeira metade do século XIII, oferecem um vasto material para a pesquisa sobre o comportamento intelectual e afetivo medieval. De acordo com vários estudos recentes, a espiritualidade mística e feminina, que é revelada nas biografias espirituais produzidas na diocese de Liège, resulta de uma fusão entre a teologia cisterciense da Caridade e a resposta radical dada por essas mulheres às suas necessidades sócio-religiosas.
Ao longo do século XII vemos, por um lado, o comportamento coletivo em relação ao divino que se acha transformado ganhando uma forma mais humana, impulsionado teoricamente pela doutrina cisterciense da Caridade que leva a uma procura de conhecimento sobre a pessoa humana, sobre os elementos que a constituem, tal como as paixões da alma. Por outro lado, a experiência da beatitude, do amor de Deus, da plenitude do saber divino e do poder que decorre deste, nas mulheres piedosas, representantes de uma nova forma de espiritualidade mística, se torna um objeto de análise.  Buscando dar conta de uma piedade moderna, voluntária (o movimento beguinal), mas destinada ao controle eclesiástico (a clausura monástica), os homens da Igreja, que se tornam hagiógrafos, acabam por refletir sobre como essas mulheres simples conhecem os mistérios divinos e sentem perfeitamente a Caridade, vivida plenamente como amor do Cristo e amor do próximo. Esse comportamento místico maravilhoso permite pesquisar a alma, o intelecto, o amor, a razão, a vontade e, finalmente, a « natureza » dessas mulheres. Pensamos poder dizer que, nessa reflexão sobre os modos de conhecimento e de emoção, os textos hagiográficos, escritos por homens imbuídos pela teologia mística cisterciense, mas pertencentes à primeira escolástica, nos fornecem uma verdadeira « antropologia hagiográfica », uma antropologia da santidade.
Para mostrar a relação entre Caridade/Amor e Conhecimento na vida de Juliana do Monte-Cornillon (1258) é importante primeiramente compreendermos brevemente alguns elementos da reflexão cisterciense sobre os affectus, inserida na doutrina cisterciense da Caridade. Um dos teólogos cistercienses que mais refletiu sobre a excelência da Caridade - dom divino que permite ao homem amar perfeitamente - e sobre os sentimentos implicados nas formas desse amor (amor de si próprio, amor do próximo, amizade espiritual e amor de Deus/Cristo) foi Aelred de Rievaulx 2 (1110-1167). O conceito de Caridade desenvolvido pelo monge inglês e o lugar que a amizade ocupa no sistema da salvação implicam na criação de uma doutrina do affectus, do conhecimento do modo pelo qual o homem sente o amor, permitindo a expressão dos sentimentos e das emoções dentro de um sistema teológico coerente. O conceito de affectus levanta vários problemas de ordem doutrinária e teológica, pois está ligado à tradição negativa das teorias das paixões (pathos) e aos fenômenos sensíveis que se instalam no homem enquanto criatura dotada de livre arbítrio, mas maculada pelo pecado original, porém, no seu tratado Speculum Caritatis (1143) Aelred define o conceito de affectus positivamente e este se torna um dos temas maiores da antropologia cisterciense.
Para Aelred, primeiramente, o affectus é « uma inclinação mental (mentis inclinatio), uma atração, uma inclinação, espontânea e doce em direção à alguem » 3. Essa atração pode ser espiritual, racional, irracional, ligada a boas obras, natural, ou mesmo física.” Esse « spiritualis affectus » pode ser compreendido de duas maneiras : « quando a alma é estimulada por uma atração espiritual quando tocada por uma visita secreta quase fortuita do Espírito Santo e ela se deixa levar pela doçura da divina dileção ou pela suavidade da caridade fraterna » 4 implicando em desejo e ação, visando a beatitude. Nessa acepção o affectus é a atração que o homem experimenta por Deus, e o movimento que corresponde a essa atração, a capacidade de aceitar o amor comandado pela Caridade, porque a faculdade de amor é movida para o desejo e para a ação por um affectus ordenado. Mas pode ainda ser uma instigação do demônio, como um movimento egoísta de desordenado deleite. Assim, o affectus  pode ser bom ou ruim, ordenado ou desordenado, comandado pela Caridade ou pelas paixões. O exemplo dado por Aelred para explicar os dois modos de affectus é o amor que um indivíduo sente por duas pessoas: uma doce e agradável, mas menos perfeita em virtude; a outra mais virtuosa, mas com uma face mais sombria e o rosto enrugado por uma vida austera. Para amar a primeira, que apesar de não ser condenável, é a aparência do amor, o espírito é levada por uma atração espontânea, mas para amar a segunda ele faz uso da razão e da regra de uma caridade ordenada. Aelred de Rievaulx concebe então um affectus involuntário, aquele que é sentido espontaneamente em relação a alguém que pode não merecer o amor, e um affectus racional, ordenado pela Caridade, que escolhe o bem. Assim, a Vontade funciona segundo dois critérios: o da paixão e o da ação 5. De certa maneira, a vontade boa é ativa, e a vontade má se acha influenciada pelas paixões, que travam a liberdade da adesão da alma ao Espírito. Na sua reflexão agostiniana sobre a Vontade Aelred explica que a alma possui três faculdades que se movem juntas em direção à beatitude : a memória, a razão e a vontade 6. Pela memória (memorie celestem visionem), o homem é capaz de possuir a eternidade, de abraçar Deus; pela razão (rationi divinam cognitionem), o homem participa da sabedoria; e pelo amor (voluntati caritatem), o homem saboreia a doçura divina. A beatitude procede então da vontade, que deve virar-se em direção às lembranças e ao saber, para poder deleita-se na alegria. Mas a imagem de Deus no homem está corrompida: ele possui uma memória sujeita ao esquecimento, uma faculdade de conhecimento passível de erro e uma faculdade de amor inclinada à inveja. Assim, a humanidade privada de razão e de conhecimento não pode querer o que escapa à carne 7, mas deve querer, nessa forma humana, controlar a carne e buscar a perfeição na Caridade para restaurar as faculdades corrompidas da memória e do conhecimento e recuperar a imagem perdida. Pois, o amor vem da justiça divina, nada mais justo para a criatura, dotada de razão e sensibilidade, do que amar seu criador, ela que recebeu d’Ele a capacidade de amar. Mas o que é o amor  pergunta-se o cisterciense. O amor é um maravilhoso deleite da alma, tão mais justo e casto quanto mais extenso; é o lugar capaz de receber Deus 8.
Vemos que a reflexão sobre a capacidade de intelecção, própria do homem, se insere na doutrina da Caridade e da Graça, herdadas do idealismo neoplatônico agostiniano. Mas o mais significativo na obra de Aelred de Rievaulx, e o que confere a sua originalidade perante os sistemas doutrinários de Agostinho e Bernardo, é o fato de que o affectus,racional e espiritual, é aquele que anima o doce laço da amizade espiritual 9.
Assim, se a doutrina cisterciense da Caridade abre caminho para a reflexão e para o exercício do amor e da amizade espirituais, onde as paixões e emoções são vividas plenamente na comunidade monástica, e os sentimentos como alegria, regozijo, tristeza e dor da alma, estão expostos e são a garantia da uma verdadeira piedade e caminho para a salvação e para a beatitude, o sistema teológico cisterciense é especulativo. De base neoplatônica e agostiniana a concepção sobre o modo de conhecimento da alma intelectiva é puramente teológica, subordinado às doutrinas do amor, da obediência e da humildade monásticas. Na reflexão sobre a contemplação divina e sobre o conhecimento, a teoria da iluminação divina e da memória que o homem dissemelhante perdeu da Verdade, e que recupera através da graça e da ordenação do Amor, permanecem como os elementos centrais da investigação noética. Assim, é através da graça que o homem chega ao conhecimento das coisas criadas e à visão beatífica, pois, como diz Guillaume de Saint-Thierry, « Hoc est enim lumem cognitionis habere caritatis perfectionem» (Pois é na possessão da perfeição da Caridade que consiste a luz da intelecção). (NEF, 1993).
Assim, nas narrativas hagiográficas de que tratamos, podemos considerar, em uma primeira análise, que estão completamente inseridas na teologia mística cisterciense de matriz agostiniana, que o conhecimento infuso das beatas é fruto da plenitude da graça e da iluminação divinas, uma vez que elas possuem a perfeição da Caridade, amam perfeitamente o Esposo e recebem o Amor em troca, personificando a Esposa/Alma do Cântico dos Cânticos, segundo a paradigmática exegese de Bernardo de Claivaux. Entretanto, se os hagiógrafos permanecem em grande parte atrelados à ontologia neoplatônica, sendo o Espírito Santo a causa do saber absoluto das mulheres piedosas (a visão beatífica, o conhecimento dos mistérios divinos aqui em baixo), estamos diante de um novo tipo de santidade, radical em suas manifestações tanto afetivas quanto intelectuais, as beatas agem para que a graça divina seja infusa em seus corações e mentes. Elas amam, sofrem, se alegram, maceram seu corpo com mirabili affectu e por isso compreendem, mas também estudam, leem, copiam. Esses homens buscam compreender então um novo modo de conhecimento místico, e dessa forma não podem estar alheios à transformação do pensamento teológico da primeira metade do século XIII. Os hagiógrafos em questão são contemporâneos da introdução no Ocidente cristão dos comentários de Avicena e Averróes das obras de Aristóteles e não puderam ignorar a nova antropologia escolástica, cuja principal contribuição é a reflexão sobre a função da alma intelectiva e da matéria (que leva, através de Avicena, que integra o corpo na definição de homem, ao abandono do dualismo platônico corpo-alma) na constituição do composto humano. Assim, se Jacques de Vitry, faz figura de precursor e inaugura um método hagiográfico, para dar conta dessa nova forma de santidade, Thomas de Cantimpré, que é autor de três vitae de mulheres piedosas, por exemplo, foi aluno de Alberto, o Magno em Colônia e escreve um De Natura Rerum. E justamente uma das primeiras e principais obras sobre o problema da intelecção e da função da alma intelectiva é a Suma sobre o homem, de Alberto, o Magno, obra onde desenvolve seus estudos de bacharel sentenciário professados entre 1240 e 1243, inspirados nos comentários de Avicena sobre Aristóteles. (WEBER, 1991). Alberto, tendo tratado da essência da alma e das potências vegetativas e sensitivas, estuda a potência intelectiva própria à alma humana. E devemos considerar, primeiramente, que os esforços de teólogos como Alberto, o Magno, Boaventura e Thomas de Aquino foi o de precisar uma terminologia noética fluida, legada pelo agostianismo.
De fato, nas biografias espirituais, que formam o corpus por nós analisado, uma vez que o conhecimento que essas mulheres têm dos corações, das coisas divinas (os êxtases, as visões celestiais, dos anjos, santos, evangelistas, do inferno, do purgatório, do Cristo [Crucificado, lactente], da Virgem em glória, maternal...) provam para esses homens que o tipo de amor e de intelecção que devem narrar necessita de esforços especulativos. Sem, obviamente, prenunciar a teoria tomista do conhecimento, sobre a visão das ideias em Deus que os anjos têm por natureza e que os eleitos têm pela graça, esses hagiógrafos abrem caminho para o problema do conhecimento infuso.
Procederemos agora à demonstração de alguns elementos do relato hagiográfico escolhido para demonstrar nossa pesquisa. Primeiramente devemos considerar que a vida de Maria d'Oignies (+1213) 10, escrita por Jacques de Vitry (1160 - 1240) 11, constitui um documento capital no que diz  respeito as evidências históricas que ela traz sobre o movimento voluntário de mulheres piedosas. É o primeiro relato que fornece os elementos temáticos e semânticos para a composição das outras vitae de mulheres piedosas da diocèse de Liège, o caráter excepcional desta vita vem sobretudo do fato de que Jacques de Vitry cria um modelo narrativo, fazendo aparecer novas estruturas de pensamento. Jacques de Vitry, para quem Maria d'Oignies teve um papel fundamental na conversão, pois em suas pregações se sentia iluminado pelo saber divino da sua diretora de consciência, divide a vita em dois livros. O primeiro é consagrado ao “homem exterior”: os temas são tradicionais, relacionados às práticas ascéticas, aos seus modos e hábitos salutares, onde descreve a compunção e as lágrimas, a confissão, penitências, jejuns, orações, vigílias e sono da beata. Ainda são considerados suas vestimentas, seu trabalho manual e seus gestos. O livro dois é consagrado ao “homem interior”, e Jacques de Vitry enumera particularmente os dons do espírito na beata: temor, ciência, fortaleza, conselho, intelecto e sabedoria, ainda escreve um capítulo sobre seu spiritu intellectus, que compõem 5 parágrafos, e sobre seu spiritu sapientiae com sete paragrafos, são dois pequenos tratados sobre o conhecimento infuso.
Seguindo o modelo de Jacques de Vitry, o autor anônimo escreve a vida de Santa Juliana do Monte-Cornillon (1197- +5 abril 1258) 12. Orfã, aos cinco anos de idade é colocada com sua irmã no leprosário de Cornillon. Eleita superiora da comunidade, luta pela instauração da regra de santo Agostinho, assim como pela instituição da Festa do Corpus-Christi. Expulsa de seu priorado, esconde-se com a reclusa Eva de Saint- Martin; exilada, se junta às beguinas de Namur e segue para a abadia de Salzinnes, onde é acolhida. Morre em Fosses e é inumada em Villers. A Vita é dividida em dois livros, ambos precedidos de um prólogo. O primeiro mostra o progresso espiritual de Juliana na infância e adolescência, assim como suas virtudes e dons carismáticos (dom de profecia, visões, êxtases). O segundo livro é o relato do “martírio” de Juliana, perseguida pelos patriciado de Liège, sua luta para impor a disciplina na comunidade e para instituir a festa do Santo-Sacramento, seu exílio e sua morte.
No segundo parágrafo do Livro dois, para exemplificar a atitude de Juliana enquanto superiora, o biógrafo mostra que Juliana admoestava o rebanho de irmãs que lhe foi confiado, a fim de que elas agissem de acordo com suas capacidades e inteligência particulares: “Toto affectu caritatem Christi, ubi erat, studuit augmentare ; ubi non erat, curavit salutaribus monitis provocare” 13. As melhores se compraziam na sua doutrina e na sua admoestação, submetendo-se de bom grado ao jugo do ensino afetuoso da superiora; acreditavam nas suas palavras, guardavam seu conselho e não esqueciam as obras. Trabalhando pela salvação das irmãs do leprosário, a beata as convidava a progredir em direção à Caridade, não se mostrando como uma professora, mas como serva e mãe nutridora. Assim, atraía a afeição das irmãs, que buscavam seus conselhos e seu consolo: “ela tendia seu seio materno, seio que espalha o maná que vem do Céu” 14. De fato, para o hagiógrafo,

 
o Pai de todo consolo colocara na boca de Juliana a palavra da consolação espiritual, para que ela pudesse atender aquelas aprisionadas pela tristeza e pelos tormentos, pela graça que lhe havia sido dada. Juliana confortava as fracas, aplaudia as que progrediam e se regozijava com as perfeitas 15..

O biógrafo anônimo mostra, seguindo a tradição, que a perfeição da atividade de Juliana como superiora era resultado da perfeição de sua virgindade, "santa de corpo e espírito" 16.  
Mas, como Jacques de Vitry, o biógrafo anônimo assume a importância e a novidade da santidade moderna, laica e feminina 17. No seu relato fica evidente o exemplo salutar que as beatas oferecem. Em uma perspectiva apocalíptica, considera que a esperança da salvação repousa sobre a renovação espiritual trazida pelas mulheres religiosas de Liège: Deus julga digno manifestar sua glória pelo intermédio dessas mulheres imbuídas de um saber novo e eficaz. Finalmente, Jacques de Vitry e Tomas de Cantimpré distinguem duas categorias de saber: o saber infuso das mulheres e o saber adquirido pelos homens 18. Nesse sentido, podemos considerar que os contemporâneos afirmavam a especificidade da espiritualidade feminina. Repetindo a Primeira Epístola de João, Bernardo de Claraval, no De Diligendo Deo, afirma que a possessão da Caridade é a condição necessária para todo conhecimento, pois a similitude do homem à Deus é condição do conhecimento de Deus e esta similitude é obra da Caridade que é Deus: “Qui non diligit, non novit Deum, quoniam Deus caritas est” 19.
O desejo de Caritas é, assim, um desejo de conhecimento: a Caridade é fonte da sabedoria e da participação nos mistérios divinos, garantia da salvação. Reformadas pela Graça, essas mulheres simples contemplam em êxtase os mistérios divinos, transmitem–nos àqueles que as amam e garante através de sua palavra, seus conselhos e suas admoestações, a sua salvação, permitindo que a Caridade/Amor nos indivíduos imperfeitos seja ordenada e que reencontrem a semelhança, a forma-Dei. Porém, ao escrutarmos o texto hagiográfico comparando-os com os textos monásticos cistercienses e tendo em consideração a evolução filosófica oferecida pela antropologia escolástica contemporânea, vemos a influência e os limites do aparelho conceitual cisterciense da doutrina da Caridade e, particularmente, da noção de affectus nesses relatos hagiográficos, assim como todo o material para uma reflexão sobre os modos de intelecção. Buscamos mostrar que nessa antropologia do comportamento feminino místico de caráter heterodoxo, os hagiógrafos têm um material mais complexo, o que a abre possibilidade para a especulação sobre o conceito de pessoa.

Texto publicado sem revisão da autora.

 

 

Resumé: La relation entre la Charité, amour absolut de Dieu, et la Conaissance mystique apparaît, dans la narrative hagiographique produite au diocèse de Liège au XIIIéme siècle, comme une constante analytique. Les hagiographes en cherchant à rendre compte d’une forme nouvelle de sainteté, d’une piété, laïque, moderne, volontaire, finissent par proceder à une recherche sur la nature des femmes pieuses, leurs modes de sentir et penser. En analysant, la notion d’affectus selon la doctrine cistercienne de la Charité et en mettant en évidence quelques éléments narratifs de la vie de sainte Julienne du Mont-Cornillon sur la connaissance mystique, nous cherchons à montrer qu’intégrés dans l’appareil conceptuel cistercien, les hagiographes, qui appartiennent aux débuts de la pensée scolastique, entreprennent une anthropologie hagiographique.

Mots-cles: Affectus. XIIIème siècle. Julianne de Comillon. Anthropologie hagiographique..

 

1 Professor Assistente em História Antiga e Medieval – Faculdade de Formação de Professores (FFP) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Texto, Imaginário, Sociedade – Universidade de Saint Denis – Paris VIII. Email: anaplopespereira@gmail.com.

2 Aelred de Rievaulx nasceu por volta de 1109 em Hexham, na Nortúmbria. Educado na corte de David, rei da Escócia, conhece a literatura clássica, sobretudo Cícero. Ocupando a função de dispensator, tinha a responsabilidade de cuidar da mesa e do tesouro reais.  Em 1134 é enviado para atender ao arcebispo de York e conhece a comunidade cisterciense de Rievaulx, fundada em 1132. Decide aí permanecer e é recebido por Guilherme, secretário de Bernardo de Clairvaux. Em 1141 é mestre dos noviços, em 1143 torna-se abade de Rewsby e em 1147 abade de Rievaulx, filha de Cîteaux, até sua morte, em 1167. Dictionnaire de Spiritualité, t.I, 1937, col. 226.

3 Para Aelred de Rievaulx Affectus "est, ut michi videtur, spontanea quedam mentis inclinatio ad aliquem cum delectatione. Hec mentis inclinatio aliquando sit in mente contra hominis voluntatem, ratione ei per omnia resistente; provocat tamen et voluntatem et rationem ut consentiant, et sic affectio transit in amorem."(TALBOT, 1952, p. 48, linhas 16-18).

4   "Est igitur affectus spontanea quaedam ac dulcis ipsius animi ad aliquem inclinatio. Affectus autem aut spiritualis est, aut rationalis, aut irrationalis, aut officialis, aut naturalis, vel certe carnalis. Spiritualis affectus dupliciter potest intelligi. Nam spirituali quidem affectu animus excidatur, cum occulta et quasi improvista Spiritus sancti visitatione in divinae dilectionis dulcedinem, vel fraternae charitatis suavitatem mens compuncta resolvitur." Speculum Caritatis., PL, 195, iii, xi, col., 587.

5   Spec.Carit., op.cit., ii, xviii, col., 566.

6 "Hujus beatitudinis sola rationalis creatura capax est. Ipsa quippe ad imaginem sui Creatoris condita, idonea est illi adhaerere, cujus est imago: quod solum rationalis creaturae bonum est, ut ait sanctus David  (Ps., lxxii). Adhaesio plane ista non carnis, sed mentis est, in qua tria quaedam naturarum auctor inseruit, quibus divinae aeternitatis compos efficitur, particeps sapientiae, dulcedinis degustator. Tria haec memoriam dico, scientiam, amorem, sive voluntatem. Aeternitatis quippe capax est memoria, sapientiae, scientia, dulcedinis amor. In his tribus ad imaginem Trinitatis conditus homo, Deum quem memoria retinebat sine oblivione, scientia agnoscebat sine errore; amore complectebatur sine alterius rei cupiditate. Hinc beatus." Spec. Carit. op.cit. i, III, col., 508.

7   Spec. Car., op.cit. I, xxi, col., 525.

8   Spec. Carit., op.cit., iii, xii, col., 588.

9 Speculum Caritatis,  III, 12.

10 Morta em 1213, Maria d'Oignies que era casada decidiu de "seguir nua o Cristo nu", mendigando e se ocupando dos leprosos na pequena cidade de Willambrok. Ela foi o primeiro modelo da espiritualidade beguinal, mas principalmente, foi o primeiro relato biográfico de uma pessoa comum, que não estava ligada à Igreja ou à realeza, e mulher. Se pensarmos na idade avançada com que morreu e no conteúdo da sua espiritualidade é uma precursora de são Francisco de Assis.

11 Jacques de Vitry (1160-1240) era cônego regular de São Nicolau d'Oignies (1211-1216) antes de ser consagrado bispo de Acre (1216-1227), depois reintegra a diocese de Liège para se tornar auxiliar do príncipe-bispo (1227-1229). Morre em 1240 como cardeal de Tusculum.

12 Vita S. Julianae.Acta Sanctorum, abril, t.I, Ed. G. Henschenio, D. Papebrochio, Antuérpia,  1675. p.437-475

13 Vita S. Julianae. op.cit. §2, p.456.

14 Vita S. Julianae. op.cit. §2, p.456.

15 “Posuerat enim Patre totius consolationis in ore Julianae verbum solatii spiritualis ut eas quae vel in tristitia vel in tribulatione erant, posset pr datam sibi gratiam consolari. Pusillamines confortabat, proficientibus applaudebat, perfectis congaudebat” Idem.

16 I Cor., 7, 34.

17 “Sed licet Sanctorum Sanctarumque temporis antiqui gesta, auribus inculcata fidelium, virtutum semper esse debeant incentiva ; scio tamem quod exempla Santcorum  nostri temporibus, quanto recentiora tanto magis sunt motiva.” Prol. Vita Juliana Corneliensi, op.cit. p.442.

18 Thomas de Cantimpré faz eco à afirmação de Jacques de Vitry que diz ter recebido a graça da predicação pelas orações de Maria. Vita Lutgardis II,chap.1,§3 ; Vita Mariae Oignac., §69,p. 562. Em sua Historia OccidentalisJacques de Vitry critica o saber dos mestres de Paris inflados de vã glória. “Theologie doctores, supra cathedram Moysi sedentes, scientia inflabat, quos caritas non edificabat”. (MEERSSEMAN, 1972, p. 93).

19 I, Jn, IV, 8

 

Referências:

 

Bibliografia:

MEERSSEMAN, G.G. Historia Occidentalis, A critical Edition. The University Press Fribourg Switzerland. 1972.

NEF, Frédéric, “Caritas dat caritatem”. La méthaphysique de la charité dans les Sermons  sur le Cantique des Cantiques et l’ontologie de la contemplation. In: BRAGUE, Remi (Dir.). Saint Bernard et la Philosophie Paris: PUF, 1993.

WEBER, E.H. La personne humaine au XIIIéme siècle. Paris: Vrin, 1991.

TALBOT, C.H. (Ed.),  Sermones. Inediti B. Aelredi Abbatis Rievallensis. Series Scriptorum S.Ordinis Cisterciensis. Vol 1. Roma, 1952.

 

Fontes:

AELRED DE RIEVAULX Speculum Caritatis, Migne, Patrologie Latine, 195 col.580-658

______. Le Miroir de la Charité. trad., introduction, notes et index par Charles Dumont, o.c.s.o. et Gaëtane de Briey, o.c.s.o., ed. Vie Monastique, n. 27, Abbaye de Bellefontaine, 1992.

AA SS. Vita Mariae Oignacensis., éd. G.Henschenio, D.Papebrochio, Acta Sanct., junii, t.v, Paris, 1867, p.547-572

AA SS. Vita S. Julianae.Acta Sanctorum, abril, t.I, Ed. G. Henschenio, D. Papebrochio, Antuérpia,  1675, p.437-475.