TRISTÃO: UM HERÓI ROMÂNTICO?

Luísa Cavalheiro do Espírito Santo 1

 

Resumo: O mito do herói perpassa toda a história da humanidade, pois é inerente ao homem a capacidade de narrar fatos, de se identificar e se autoafirmar num grupo; assim como o desejo de superar seus limites. Contudo, para um personagem ser legitimado como herói é necessário que faça uma ação cujo sentido é considerado excepcional, implicando um sacrifício, de forma que, por essa ação, ele se torne elevado. Tristão, personagem da novela medieval “O Romance de Tristão e Isolda”, é o nobre cavaleiro que tudo vence por amor, porque esse amor é uma entidade maior que ele, à qual ele obedece. Ele não só abdica da sua condição de cavaleiro, mas também da sua moral, pois é um herói dividido entre manter a honra do Rei ou viver o seu amor: característica do imaginário de herói romântico moderno.

Palavras-chave:Herói; Tristão; Mito do Amor; Literatura medieval; “Tristão e Isolda”.

“Senhores, prazer-vos-ia saber bela história de amor e de morte? É a lenda de Tristão e da rainha Iseu. Ouvide como, ledos e tristes, eles se amaram, e disso morreram na mesma hora, ele por ela, ela por ele.” (BÉDIER, 1947, p.23)

O mito de Tristão e Isolda, ao contar o amor impossível de uma rainha e seu súdito, enaltece a fatalidade do sentimento amor-paixão e sublima aquele que sucumbe à sua força. Tristão subjuga-se a esse sentimento - a partir de então sacralizado - e assim, é elevado ao mito do herói, posteriormente transformado no herói romântico, figura pertencente ao imaginário do homem moderno e que perpassa toda a história do ocidente a partir do séc. XII. Nesse sentido, Tristão, além de ser herói no modelo antigo 2 por matar dragões e gigantes, torna-se herói romântico quando supera os obstáculos para viver o seu amor.
O homem busca na literatura extravasar seus sentimentos, representando aí aquilo que faz parte do imaginário e da realidade de seu tempo, sensibilidades que se mesclam a elementos de sua época e contexto social, mas também, e principalmente, elementos da sua fantasia. É aí que nasce o mito 3, cuja representação é feita por símbolos; segundo Jung (1977), arquétipos. De acordo com Feijó (1984), esses arquétipos existem devido à necessidade do homem de se identificar e se autoafirmar num grupo e o desejo de superar seus limites, faculdades expressas na figura do herói. Dessa forma, Jung afirma que “o mito universal do herói refere-se sempre a um homem ou a um homem-deus todo-poderoso e possante que vence o mal representado nas figuras de demônios”, o que sugere um clima de emoções e de identificação com o herói (FEIJÓ, 1984, p.21).
Entretanto, compreendo que a figura heróica concebida por Jung é um tanto parcial, e não dá conta de uma gama de características que, juntamente com essa definição, são fatores determinantes para a formação de arquétipos de heróis; assim, parto da ideia de Kothe de que o herói é um conceito textualizado para persuadir o leitor sobre a estrutura profunda da obra – ideologia, imaginário e posição do autor. Kothe afirma também que “na arte, tanto se pode procurar um espaço do sublime, para experimentar algo superior ao cotidiano, quanto se pode querer nela uma vazão de todo o sofrimento” (KOTHE, 1985, p.85). Assim, pode-se dizer que aquele que se destaca por seus atos de heroísmo representa o desejo da sociedade de experimentar uma força e uma história que funciona como consolo e encantamento. Partindo dos modelos do mundo grego - o herói trágico e o épico, que se diferenciam na medida em que o primeiro realiza grandes feitos e o outro é humilhado e sucumbe à força do destino -, compreendo que todo o personagem heróico necessita de um fator que o eleve e o distinga dos demais. Portanto, para ser “legitimado como herói, é necessário uma ação cujo sentido é considerado excepcional, implicando um sacrifício” (MACIEL, 1998, p.81).
Na Idade Média, inicia-se o registro da tradição oral que circulava na Europa 4, uma nova forma de narrativa, cujos personagens não se encaixam nem na epopeia nem na tragédia, pois, ao contrário desses dois subgêneros, não trata somente do alto que vence, ou do alto que declina. Na lenda em foco, Tristão vive um amor tão forte e um sofrimento tão sublime que acaba transformado em mito romântico. De acordo com Otávio Paz e Denis de Rougemont, os elementos bárbaros n’O Romance de Tristão e Isolda fazem do amor cortês 5 um amor-paixão, primeira manifestação do amor 6 no ocidente.
A lenda trata de uma camada social elevada - reis, rainhas e cavaleiros -, mas enaltece o vassalo que vive a contradição da honra versus o amor. Esse cavaleiro deve e deseja servir seu senhor; entretanto, é subjugado ao imperioso sentimento. Mas “a relação do vassalo com a sua suserana é estigmatizada pelo obstáculo, pela separação insuperável, que repercute nas metáforas do segredo e do enigma inominável” (ROSENFELD, 1992, p.26). Assim acontece com a lenda de Tristão, onde é apresentado um amor e um erotismo que são sacralizados. Béroul 7 inicia o romance enunciando: “Senhores, prazer-vos-ia saber bela história de amor e de morte?”. Atente-se que o narrador, de antemão, se posiciona através do adjetivo bela para despertar empatia nos ouvintes/leitores. Várias outras versões da lenda foram escritas, mas elas mantêm quase o mesmo fio condutor que trama para os destinos dos amantes, Tristão e Isolda, a impossibilidade de eles vivenciarem plenamente o amor que sentem um pelo outro.
Tristão é sobrinho de Marcos, rei da Cornualha. Isolda, a Loura, é princesa da Irlanda, e aprende com sua mãe as artes da manipulação de ervas. Marcos decide casar-se com ela, e Tristão é incumbido de buscá-la. Lá, ele liberta o povo de seu tormento, o dragão; e sendo reconhecido, desde então, como um exímio guerreiro por Isolda e pelo povo, a princesa apaixona-se por ele 8. Antes mesmo de voltar para a Cornualha, os dois se entregam ao amor avassalador que sentem. Entretanto, Isolda casa-se com Marcos e torna-se rainha. Tristão e Isolda vivem um intenso e secreto amor durante três anos, refugiados na floresta, sempre enganando o rei e desmoralizando os barões que os denunciavam. Depois, em vão tentam afastar-se, e por fim, devido à separação, morrem.
Tristão é conhecido desde o início da narrativa como um célebre guerreiro: ele é bonito, generoso, realiza grandes feitos e luta pelo bem coletivo, reproduzindo o modelo de herói épico. Contudo, o seu maior feito, o que o eleva à caracterização de herói, está na superação dos obstáculos para viver o amor que ele sente pela rainha. Isolda é de beleza ímpar e, sendo rainha, não poderia apaixonar-se por ninguém menor que um grande homem. Logo, ela escolhe o melhor guerreiro, mas aquele que não lhe é permitido, como mostra a seguinte passagem:

 
Isolda, a Loura, fremia de vergonha e de angústia. Tristão, tendo-a conquistado, desse modo a desprezava; o belo conto do cabelo de ouro não passava de mentira, e era a um outro que ele a entregava... 9[grifo meu].

Em qualquer das versões, o nobre cavaleiro de Isolda é elevado à qualidade de herói, não só por ser nobre, mas por sofrer os tolhimentos da sociedade e superá-los para poder vivenciar seu amor. Toda a trama funciona impondo entraves a essa união. E não poderia ser diferente. Esses, na lenda, trabalham para sublimar e sacralizar esse sentimento, como mostra a passagem em que o rei pediu para Tristão se retirar do reino devido às acusações dos barões traidores: “Não. Tristão não teve forças para partir e, quando passou a cerca e os valos do castelo, reconheceu que não poderia ir mais além; [...] Mas, sem trégua, no ardor da febre, o desejo o arrastava, como um corcel sem freios, para as torres fechadas que prendiam a Rainha” (BÉROUL, 1947, p.98-99) [grifo meu].
Durante a narrativa, ocorre uma transformação no caráter dos amantes, tornados mais fortes e nobres – sagrados – à medida que vão se apresentando os impedimentos ao seu amor 10. Assim acontece quando, por exemplo, Tristão é delatado ao rei Marcos e o narrador julga inocente o seu amor, chegando a dizer que até Deus está de acordo com a lei dos amantes e, inspirando mais uma vez empatia ao público leitor/ouvinte, que não só deseja um amor igual como deseja a felicidade do casal. Flori assinala que “o amor nem sempre existiu, é uma invenção do século XII” (LAGRANHA, 2006, p.37), ideia corroborada por Bloch (1995), tornando-se um ideal de vida e o impulsor para o nobre cavaleiro tornar-se herói:

 
Quando jurava que jamais tinha amado a Rainha de amor culpado, os felões riam da insolente postura. Mas eu vos lembro, senhores, que vós sabeis a verdade do filtro bebido sobre o mar, e que o compreendeis, dizia ele mentira? Não é a ação que comprova o crime, mas a intenção. Os homens veem o feito, mas Deus vê os sentimentos e, por isso, só ele é o inteiro juiz (BÉROUL, 1947, p.122).

Também pode ser vista, nesta mesma passagem, a sacralização do amor e a consequente elevação dos personagens na fala de Isolda, quando os dois, após o termino do efeito do filtro, decidem separar-se para que ela retome a sua condição de rainha e ele de cavaleiro:

 
Não digo que me arrependa de ter amado, ou de amar ainda, a Tristão; ainda e sempre; amor não olha razão nem direito; o Senhor Deus ama o amor... mas nossos corpos, ao menos, serão doravante separados. E será ainda amor esse sacrifício.(BÉROUL, 1947, p.162) [grifo meu].

O amor-paixão é um amor transgressor 11, e caracteriza-se idealização do amor 12 e pelo imenso sofrimento dos amantes, o que gera um alto grau de tensão no romance. Apesar de realização do erotismo 13, existe a impossibilidade deles viverem juntos e em harmonia com as leis morais e sociais, pelo fato de essas funcionarem como obstáculos indissolúveis. Se o herói é aquele que supera os obstáculos, Tristão o é quando esses surgem, sendo o meio do jovem provar a coragem e bravura, sujeitando-se a tudo em nome da paixão. No trágico romance, a culminância é a morte dos dois amantes; assim, nesse momento, Tristão é elevado a herói, quando encontra a única maneira de dissolver o que impede a realização do seu amor – o destino, cuja vida e as leis determinaram que eles não se poderiam unir -, através da morte. Na lenda é representada essa ideologia na figura da roseira e do cepo, que crescem juntos e são inseparáveis, configurando o mito do amor eterno.
Dessa forma é representado o amor na obra e é esse o perfil do herói Tristão. Conforme Kothe, “Todo personagem que apenas corporifique qualidades positivas ou negativas é um personagem trivial, pois foge à natureza contraditória das pessoas e não questiona os próprios valores” (KOTHE, 1985, p.58). Tristão vai além disso: ele é o nobre cavaleiro o qual, entretanto, tudo transgride por amor, abdicando não só da sua condição de cavaleiro, mas da sua moral. É um herói dividido entre manter a honra do rei ou viver o seu amor, características do imaginário de herói romântico que é permeado pelo amor-paixão, o qual “revela uma superioridade” do sentimento que “o eleva acima de todas as leis” (LAGRANHA, 2006, p.40). Conforme diz Jean-Pierre Bayard (1957), “O Romance de Tristão e Isolda é a epopeia do amor”, onde o herói sucumbe à força do destino e subjuga-se à entidade Amor, que enfim vence (p.96). Dessa lenda, em que se inspiraram inúmeros romances amplamente conhecidos como o de Romeu e Julieta, nasceu a figura do herói que morre por amor, mais tarde vista, por exemplo, em Os sofrimentos do jovem Werther.
Tristão é fundador do mito de herói romântico que conhecemos, como também o casal o é do amor eterno, posteriormente institucionalizado pelo gênero romance. De acordo com Lagranha, “a morte vem como a redenção, e os amantes vivem seu amor na eternidade. Amor eterno, união para sempre: nascimento de um imaginário de eternidade do amor que ainda persiste entre nós.” (LAGRANHA, 2006, p.47) O mito do herói Tristão é o espaço sublime que nos consola a realidade; afinal, quem não deseja viver um amor que vence tudo?

 

Tristan: a romantic hero?

Abstract:The Myth of the Hero has been presented throughout the history of humanity, because it is inherent for men the ability to tell what happens, to identify themselves and to place themselves in a group, as is also the need to go above his limits. However, for a character to be legitimized as a hero, it is necessary that he does an exceptional action, implying it be a sacrifice, therefore, because of this action he reaches a higher position. Tristan, character of the medieval novel “Tristan and Isold”, is a nobleman wins  everything because of love, because this love is a institution higher than he himself, which he obeys. He does not just abdicate from his condition as a nobleman, but also to morality, for he is a hero in doubt between conserving the king’s honor or living for his love: characteristic of the romantic hero.

Keywords:Hero; Tristan; Myth of Love; Medieval Literature; “Tristan and Isold”.

 

1 Discente do Bacharelado em Letras, Tradução Português-Inglês, sob orientação de Elisabete Carvalho Peiruque. peiruque@ yahoo.com.br

2 Tomando por base o herói épico e o trágico.

3 Conjunto de crenças e desejos de um povo para explicar e extravasar uma realidade que lhes foge a compreensão.

4 Principia a tradição literária.

5 Conceito de amor sublimado pelos trovadores provençais, que significava um amor refinado, vivido por um jovem que fazia a corte a uma dama aristocrata.

6 Ideia de Amor moderno ocidental.

7 Autor de um dos primeiros manuscritos que compilou a fragmentária lenda.

8 De acordo com Rougemont, Isolda teria se apaixonado já antes de beber o filtro.

9 Essa versão da passagem, que enfatiza a paixão de Isolda e o desprezo de Tristão, encontra-se em BÉDIER, Joseph. O Romance de Tristão e Isolda. São Paulo: Martins Fontes, 1994: 27.

10 Opinião que sustento a partir de Rougemont, que diz que “Tristão e Isolda não se amam, eles o dizem e tudo confirma. O que eles amam é o amor e o próprio fato de amar. E agem como se tivessem compreendido que tudo que se opõe ao amor o garante e consagra em seus corações, para o exaltar até o infinito no instante do obstáculo absoluto, que é a morte”.

11 Segundo Rougemont, é um amor que nunca está em harmonia com as leis morais e sociais, questão exposta no adultério.

12 Aproximação do amor cortês.

13 Aproximação do amor cavalheiresco, onde o trovador expressa somente uma relação carnal com a dama, conceito de R. Howard Bloch, em seu livro Misoginia Medieval

Referências

BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1957.

BEDIER, Joseph; COSTA, Luis Claudio de Castro E. Tristão e Iseu. Trad Afrânio Peixoto. Rio de Janeiro: Jackson, 1947

BLOCH, Howard R. Misoginia Medieval: e a invenção do amor romântico ocidental. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.

FEIJÓ, Martin Cezar. O que é herói? São Paulo: Brasiliense, 1984.

JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.

KOTHE. Flávio René. O Herói. São Paulo: Ática, 1985.

LAGRANHA, Karine Queiroz. Ficção e realidade na Literatura Medieval: Uma leitura do imaginário amoroso em “Tristão e Isolda”. Porto Alegre, 2006. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

MACIEL. Maria Eunice. Procurando o imaginário social. In: FÉLIX, Loiva Otero; ELMIR, Cláudio P. Mitos e Heróis: Construção de Imaginários. Porto Alegre: UFRGS, 1998.

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Figuras do amor medieval. In:Coordenação do Livro e Literatura da secretaria Municipal de Porto Alegre. O amor na Literatura. Porto Alegre: UFRGS, 1992.