OS PECADOS CAPITAIS NO TRATADO DE CONFISSOM:
A CONFISSÃO AURICULAR NA PENÍNSULA IBÉRICA DO SÉCULO XV

Bárbara Macagnan Lopes 1

 

Resumo: O IV Concílio de Latrão, realizado no ano de 1215, instituiu o modelo de confissão auricular anual e obrigatória. Para que isso ocorresse, contudo, seria necessário que o indivíduo obtivesse o perdão dos pecados, o que somente seria possível com sua revelação ao padre no confessionário. Os manuais de confessores, escritos aos padres com o intuito de orientar essa prática e aplicação das penitências, passam então a mediar a revelação e a penitência do pecado. Este trabalho, em fase inicial, tem o objetivo de analisar como os pecados capitais eram vistos e relacionados a outros pontos da doutrina católica medieval no Tratado de Confissom, um manual de confissão português composto em 1489. O estudo integra-se às atividades de um grupo de pesquisa que analisa a visão dos pecados capitais na Península Ibérica nos séculos XIV e XV..

Palavras-chave:Pecado; Manuais de confissão; Idade Média.

O presente paper se insere no projeto Os Pecados Capitais e a Tradição Ibérica Medieval, coordenado pelo prof. José Rivair Macedo, do Departamento de História da UFRGS, com a problemática voltada para as representações contidas em documentos produzidos pela cultura clerical ibérica entre os séculos XIV e XV. O propósito do trabalho aqui apresentado, vinculado à problemática do projeto, é analisar a visão e a representação dos pecados capitais no Tratado de Confissom, um manual de confissão português composto no ano de 1489. Pretende-se aqui voltar um olhar inicial à questão dos pecados capitais e de sua relação com outros pontos da doutrina católica, como os Dez Mandamentos, os Sacramentos e as Virtudes. Em estágio inicial, o trabalho tem como bases teóricas as análises de Jean Delumeau acerca da confissão e da penitência no Ocidente a partir do século XIII e a abordagem cultural e das sensibilidades. A fim de relacionar as questões referentes ao pecado às suas implicações na sociedade nos séculos finais da Idade Média, parto da leitura do documento, vinculado, primeiramente, às representações presentes na literatura didática cristã proposta pela fração da Igreja Católica responsável por sua construção e divulgação. Para isso, parece-me necessário iniciar com leituras referentes aos manuais de confissão e de como os autores caracterizam a literatura didático-moral na cristandade ocidental. Dessa forma, inicio com apontamentos sobre a ideia cristã de pecado e sobre os manuais de confissão e diferentes visões teóricas voltadas a esses documentos.
A gênese da ideia de pecado e pecado capital remonta ao monasticismo da Antiguidade, por Evagrius Pôntico (345 -399), seguidor de Basílio de Cesareia. No século V, Prudêncio, com a Psicomáquia, estabelece a imagem da luta entre o Vício e a Virtude no combate espiritual cotidiano pela alma do cristão, criando a ideia de que o vício é anterior e conduz o homem ao pecado. Entretanto, a fundação e fixação da ideia dos pecados capitais no Ocidente se deram através das representações construídas pelo papa Gregório Magno, com o tratado Moralia in Job, do século VI. A noção fundada pelo papa traz uma argumentação alegórica da alma do homem como uma fortaleza assaltada por um exército de vícios (vaidade, luxúria, acídia, ira, gula, inveja, avareza) tendo como comandante a Superbia. Esse era o pecado capital por excelência, pois se relacionava ao pecado original e ao pecado de Satã. A classificação dos pecados no Setenário, contudo, não era a única; a classificação agostiniana do Ternário – pensamentos, palavras, ações -, a diferenciação entre pecados mortais e veniais e o Decálogo – dez mandamentos -, passaram a ser mais utilizadas após o século XIII, enquanto a classificação do setenário perdeu espaço na doutrina por essa época (MACEDO, s/d). No século XIII, o conceito de pecado tem deslocamento para um âmbito mais amplo, a personificação e a psicologização (DELUMEAU, 1991), pois passou a integrar o cotidiano dos indivíduos, que deveriam conhecer a noção de pecado para não cometê-lo e salvar suas almas, através do exercício de obediência a Deus – e, portanto, contrário à soberba – que correspondia à confissão auricular.
No ano de 1215, durante o IV Concílio de Latrão, é instituída a confissão obrigatória aos católicos que passa a ser obrigatória ao menos uma vez ao ano, de modo que seja completa e exija do penitente e do confessor grandes esforços no sentido de torná-la aceitável e não-contraditória às ações do fiel – que são observadas por Deus. Para que a confissão fosse completa, se fez necessário criterioso exame de consciência por parte do penitente e, em contrapartida, a ação efetiva do confessor para guiar o pecador no ato. Dessa forma, os padres confessores - chamados ainda de “curas” e “médicos”, por curar os pecadores de suas faltas, e “juízes”, por escolher as penitências conforme as faltas – passam a contar com suportes escritos por anônimos, teólogos e monges, que explicitam a forma de proceder na confissão, concedendo a eles a incumbência de analisar os pecados confessados e aplicar a penitência necessária. Esses escritos, compostos em sua maioria entre os séculos XII-XVI, foram agrupados em diferentes categorias de textos documentais conhecidos como “Sumas de Confessores” e “Manuais de Confissão”. Esses últimos poderiam ser escritos tanto para padres com incumbência de confessar quanto para penitentes que quisessem saber em que situações cometeriam pecado e como proceder no exame de consciência (DELUMEAU, 2005, v. 1, p. 383).
Os manuais de confessores são documentos didáticos. De maneira geral, começando pelo exame de consciência do fiel, o confessor conduz o processo, perguntando ao penitente se incorreu em algum dos sete pecados capitais, se violou algum dos dez mandamentos, se pecou por algum dos cinco sentidos (e, se a pessoa que se confessa é um padre, acrescenta-se os doze artigos do clero). Alguns ainda perguntam sobre as Oito Beatitudes, seis a sete obras corporais/espirituais de misericórdia, as quatro virtudes cardeais e as três virtudes teologais. Os manuais e as sumas tornam-se bastante extensos, inserindo situações de pecado, as oito circunstâncias do pecado – quem, quê, onde, por meio de quem, quantas vezes, por que, de que modo, quando – a posição social e a profissão do pecador (aspecto interessante de analisar) para evitar a confissão sacrílega, ou seja, uma confissão incompleta que não salvaria o fiel do inferno.
Segundo Delumeau, os manuais de confissão eram baseados na lei escrita, mas principalmente na lei moral inscrita na consciência. Dessa forma, a importância do que era considerado pecado cotidianamente é mantida nos manuais e adicionada às concepções eclesiásticas. Assim, apenas a obrigação não explica a confissão: para Delumeau, as pessoas “se dirigiam ao confessor, para além de toda coerção legalista como a um ‘diretor de consciência’ amigo e confidente em quem viam um guia seguro (DELUMEAU, 1991, p.132). Para o autor, a teoria sacramental e as formas de pecar se ajustaram às demandas dos fiéis como resposta à inquietude sobre a salvação, tornando dignas do paraíso pessoas cuja devoção era pequena e a contrição incerta.
A característica didática dos manuais de confissão é vista por Michel Foucault como exercício de poder. Os padres confessores – e também a Igreja – se construíram como intermediários indispensáveis da remissão dos pecados. Segundo essa análise, a partir do século XII, a Igreja procura fazer com que o poder de remissão seja de seu âmbito, o que exigiria confissão regularmente e somente ao padre. Assim, não só é instituída como obrigatória, como é suprimida a revelação espontânea somente a si mesmo, o que passa a ser feito pelo confessor que pressiona, questiona, examina. Foi criado, dessa maneira, um “sistema codificado de interrogação” ou a “Teologia Sacramental da Penitência”, que estipularia uma formulação padrão no processo. Assim, os manuais contêm essas fórmulas comuns indispensáveis para uma confissão completa. Enunciar o erro, a falta, o pecado, passa a ser necessário para a aplicação da penitência por parte do padre. A própria vergonha (erubescentia) de contar o pecado ao confessor seria uma forma de penitência formal. No século XIII, a obrigação de confissão regular deixa claro que não apenas as faltas graves deveriam ser reveladas, mas qualquer transgressão às leis da Igreja. O confessor, que ouve e guia a confissão, também estipula as penas, tem as “chaves do reino dos céus” (FOUCAULT, 2001, p.222).
Para M. Fernandes, os manuais fazem parte da ação reformadora e catequética da Igreja, objetivando, além de controle social, a formação de clérigos e a orientação dos fiéis na busca do autoconhecimento. Dessa maneira, eram também divulgadores da doutrina do pecado, demonstrando que ideia de pecado era corrente, mas as ações pecadoras, aquilo que poderia ou não ser considerado pecado, precisaria ainda ser interiorizado. Para proceder na confissão, seria fundamental ao penitente saber que sua confissão era para Deus, não para um homem. Nesse sentido, vale lembrar que nem todos os sacerdotes poderiam ser confessores, apenas os que tinham poder de jurisdição. (FERNANDES, 1990, p. 47-80) Segundo Soto Rábanos, analisando manuais da Baixa Idade Média hispânica, os manuais aparecem em maior número no século XV na península Ibérica. Neles, o pecado é maior do que o confessor, o penitente e o sacramento. Há maneiras de pecar cotidianamente, todas ligadas aos sete pecados capitais, as raízes do pecado. (SOTO RÁBANOS, 2006, p. 411-447)
Entendo a doutrina dos Sete Pecados Capitais na Península Ibérica do século XV como permanência simbólica no imaginário da cristandade. Mesmo com a menor utilização formal nas cerimônias eclesiásticas, parece-me que a presença da classificação do Setenário nos manuais de confissão ibéricos – literatura que ao menos uma vez ao ano entra em contato com a maior parte dos católicos, em tese – revela a permanência e a eficácia simbólica que essa classificação encontrou na sociedade mesmo depois da Idade Média. Dessa forma, parece importante perceber as peculiaridades históricas da utilização do conceito de pecado capital em dado lugar e dado tempo - no caso, as representações na Península Ibérica do século XV. Por essa razão, os manuais ibéricos apresentam questões semelhantes e especificidades próprias. Os estudados por Soto Rábanos apresentam a noção do pecado e do pecado mortal como semelhança recorrente. Com relação às particularidades, o Libro de las confesiones de Martín Pérez (1312-1317) apresenta o longo alcance do pecado (mandamentos, virtudes, artigos da fé); o Libro de confesión de Bartolomé Talayero (1474) é dirigido aos penitentes e possui apenas conselhos aos confessores; o Speculum peccatoris, confessoris et praedicatoris (c.1431-1435) apresenta o pecado como uma dívida que é necessário satisfazer (não há perdão sem restituição) (SOTO RÁBANOS, 2006, p. 411-447).
O Tratado de Confissom (1489), manual anônimo que analiso, é uma obra para confessores e penitentes, escrita para o ambiente da vida em comunidade, vista como uma obra singular: se assemelha a muitas, mas se diferencia de todas, segundo Soto Rábanos. Para J. B. Machado, que faz um estudo linguístico do manual, este foi escrito no fim do século XIV e início do XV, sendo o primeiro livro impresso em Portugal e de grande semelhança com obras hispânicas (MACHADO, 2004, p. 241-249). O manual contém análise exaustiva de cada um dos pecados capitais e das penitências a cada uma das formas de pecar, interrogações aos religiosos e aos clérigos. Além disso, questiona sobre os sentidos e pecados do corpo. Na maior parte do documento, a vinculação entre os pecados capitais, os sacramentos e, principalmente os mandamentos, fica entrelaçada: violar o mandamento de amar a Deus sobre todas as coisas é pecado de soberba, por exemplo. Essa ação, como nas mais antigas formas de tratar os pecados, é a falta por excelência, e no Tratado possui vários “ramos”: a desobediência, a hipocrisia, a vaidade, etc., são os filhos da soberba, representada pela vontade e ação de levantar-se sobre os outros no coração (e não apenas na ação) por obra ou palavra. A avareza aparece como a cobiça, a venda de conselhos aos pobres, a não-assistência aos necessitados. A luxúria é o pecado que mais espaço ocupa na análise do tratadista. A acídia aparece como mais do que falta de vontade, a má-vontade de agir, especialmente em aspectos religiosos. A ira é o rancor, em ação e pensamento. A gula mostra proibições à confraternização com indivíduos de outra religião (os “mouros” e judeus). A inveja é alegria com o mal dos outros e a discórdia.
A confissão, para o tratadista, é uma forma de confortar e espantar o fiel, mostrando assim, o que o impede de chegar ao paraíso e como chegar nele. Entretanto, pessoas de diferentes posições na sociedade chegam ao paraíso de forma diferente: o confessor deve questionar quem o penitente é e o que faz para perguntar-lhe sobre pecados e enganos que são mais chegados ao ofício e ao modo de viver de cada um. Ignorar aspectos do pecado pode livrar alguém do inferno, a menos que faça a penitência. Para os ricos, é melhor fazer a penitência do que dar esmolas; para os pobres, é melhor ser obediente. A breve análise exposta tem como objetivo posterior prosseguir na caracterização dos pecados por posição social e as implicações na sociedade, vinculando-os ao imaginário cristão. A título de conclusão preliminar, observo que os pecados capitais na península ibérica do século XV, vistos através do Tratado de Confissom, muito mais do que fazer parte de uma doutrina de controle, fizeram parte do cotidiano e das ações dos indivíduos como símbolo de comportamento ideal e modo de vida que permitisse encontrar o reino dos céus. A confissão, após inquietar o pecador, o confortou (DELUMEAU, 1991, p.10) tirou a serpente (o pecado) da toca (o homem). E se o pecado, como afirmado no Tratado de Confissom “pode ser chamado rede, que quanto o homem nele anda mais tanto se mais envolve” (TRATADO DE CONFISSOM, 1973, p. 208, c.I, l.33-36), o caminho para a salvação era o próprio caminho da vida do homem medieval.

 

 

Abstract: The IV Lateran Council, in 1215, found the model of annual and compulsory auricular confession. To that happens, however, would be necessary that the individual had obtained the pardon of the sins, which only would be possible with his revelation to a priest in the confession. The confessors' manuals, written to the priests in order to guide this practice and the application of the penitence, starts to mediate the revelation and the penitence of the sin. This work, in initial phase, has the objective to analyze how the capital sins were seen and related to another points of the medieval catholic’s doctrine in the Tratado de Confissom, a Portuguese manual of confession composed in 1489. The study is a part of the activities of a research group who analyses the sights of the capital sins in the Iberian Peninsula in the XIV and XV centuries.

Keywords:Sin. Manuals of confession. Middle Ages.

 


1 Graduanda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail para contato: barbaramacagnan@hotmail.com.

Referências:

DELUMEAU, J. O pecado e o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos XIII-XVIII). São Paulo, EDUSC, 2005.

______. A confissão e o perdão. São Paulo: Cia das Letras, 1991.

FERNANDES, M.L.C. “As Artes da Confissão. Em torno dos Manuais de Confessores do século XVI em Portugal”. Humanística e Teologia, Lisboa, v.11, pp. 47-80, 1990.

FOUCAULT, M. Os Anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo, Martins Fontes, 2001.

MACEDO, J. R. Os pecados capitais e a tradição ibérica medieval – Projeto de Pesquisa, s/d.

MACHADO, J. B. “Os dois primeiros livros impressos em língua portuguesa”. Revista Portuguesa de Humanidades, Lisboa, vol.8, Fasc. 1 e 2, pp. 241-249, 2004. 

SOTO RABANOS, J. M. “Visión y tratamiento del pecado em los manuales de confesión de la Baja Edad Media Hispana”. Hispania Sacra, Vol. 58, n. 118, pp. 411-447, 2006.

TRATADO DE CONFISSOM. Impresso em Chaves, 8 de agosto de 1489.  Leitura Diplomática e Estudo Bibliográfico por José V. de Pina Martins. Portugaliae Monumenta Tipográfica. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1973.