REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS DO FEMININO NA LITERATURA EMPENHADA E NA LITERATURA DE FICÇÃO:
IDEOLOGIA E EXPRESSÃO

Cyntia Góes Lemos 1

 

Resumo: Este trabalho apresenta a literatura como importante fonte de referência para os estudos do feminino na Baixa Idade Média, pois nela encontram-se dados que marcam as intenções da Igreja e os desejos da sociedade. Destacam-se os registros de literatura empenhada, que evidenciam um caráter doutrinário, aqui ilustrado pelo clamor à Virgem na Cantiga Entre Av’ e Eva, das Cantigas de Santa Maria, e os registros de literatura de ficção, que expressam o imaginário de uma sociedade reprimida pela Igreja, que encontrava na literatura a oportunidade de expressar seus desejos e sentimentos, exemplificado aqui por O Romance de Amadis. A partir das análises desses textos e do contexto social da época, procura-se mostrar como a literatura pode trazer evidências do comportamento feminino, nem sempre captadas pelos registros históricos.

Palavras-chave:Literatura. Feminino. Igreja. Cantiga Entre Av’ e Eva. O Romance de Amadis.

A literatura da Baixa Idade Média, no seu já largo espectro, apresenta textos que, ora confirmam a postura da doutrinação da Igreja e ora se lhe opõem. Para Segismundo Spina, os textos literários produzidos nesse período podem ser classificados como literatura empenhada, semi-empenhada e literatura de ficção. Por literatura empenhada, entenda-se textos onde há uma clara "intenção pedagógica, didática, apologética, missionária, edificante", presidindo a sua elaboração. Já como literatura de ficção, Spina refere-se a textos com "evidentes intuitos estéticos, [constituindo uma] literatura desinteressada". (SPINA, 1973, p.17).
Nas reflexões que se seguem, serão examinados dois textos produzidos respectivamente no século XIII e finais do XIV, a saber, a Cantiga Entre Av' e Eva 2 e O Romance de Amadis 3, onde se leem representações do feminino, uma delas de caráter ideológico, empenhado, sendo a outra, o oposto. Tempo de domínio e repressão da Igreja, são também aqueles séculos marcados pelo desprezo às mulheres, o que origina imaginários representados na literatura como resposta ao real. (BOIA, 1998, p.27).
Falar sobre as mulheres da Idade Média não é tarefa fácil, pois os dados fornecidos pelo período são quase todos aqueles escritos pelos membros da Igreja que, em sua grande maioria, eram homens. Assim sendo, o olhar sobre o feminino é masculino e tem-se acesso muito mais ao que esses homens pensariam ou gostariam que as mulheres fossem do que o que elas realmente o eram. Ao mesmo tempo, porém, isso traz um dado muito importante da época, que é a incansável tentativa da Igreja de se impor sobre elas.
Com a implantação do cristianismo, o corpo passou a ser desvalorizado, o sistema de controle corporal e sexual teve seu ápice no século XII, e foram as mulheres que pagaram maior tributo por isso. (LE GOFF, 2006, p.52). Algumas tentavam fugir das repressões masculinas, procurando abrigo na vida monástica, mas grande parte delas terminou por ser vista como nada além de um objeto de poder da família, a princípio, e do marido, após o casamento.
A castidade que lhes era exigida ia além do físico, pois as mulheres deveriam ser virgens por excelência, ou seja, virgens de corpo, pensamento, atitudes e alma. “Deve haver castidade espiritual”, insiste João Crisóstomo, “e por castidade quero dizer não só a ausência de desejo vergonhoso e mau, a ausência de adornos e cuidados supérfluos, mas também não ser maculado pelos cuidados da vida”. (BLOCH, 1995, p.127). Metódio completa, dizendo que

 
Ao se guardar contra aquelas coisas que são intrinsecamente pecaminosas, a virgem não deve, por outro lado, ser coisas tais que se pareçam ou sejam equivalentes às mesmas, pois nesse caso, enquanto vence uma, é dominada pela outra. (BLOCH, 1995, p.128).

Esses e tantos outros teólogos da época pregavam que as mulheres deveriam ficar longe das vistas dos homens, pois essa seria a única forma de não serem desejadas e assim, de não terem sua castidade corrompida. Tertuliano insiste que “toda exposição pública de uma virgem honrada é [para ela] o equivalente a sofrer um estupro”. (BLOCH, 1995, p.128-129). Tais exigências, devidas à incompreensão do feminino, eram absurdas, pois implicavam que as mulheres negassem sua feminilidade para atingir um ideal impossível, em qualquer instância. Mas, apesar do distanciamento, a imagem feminina estimulou a fantasia masculina que podia imaginar o corpo velado mais sedutor do que realmente era. Por um lado, esses ortodoxos preocupavam-se com a preservação da imagem feminina; por outro, e talvez esse o mais forte, isolavam-na para mantê-la fora de suas vistas e não correrem o risco de serem tentados e então cair nas garras do Diabo. Essas ideias arrastaram-se por muitos séculos, pois é sabido que São Tomás de Aquino, já no século XIII, ainda conservava traços misóginos.
Entretanto, não era tarefa fácil convencer as mulheres de que a castidade era o melhor caminho, pois nas religiões pagãs cultuava-se o corpo e sua feminilidade, além das deusas que os representavam. A Igreja, percebendo que tais deusas ocupavam um lugar maternal e necessário na mentalidade medieval e que não havia forma de eliminá-lo, escolheu a figura da Virgem Maria para fornecer-lhes esse amparo dentro do cristianismo. Nela, recuperou algumas das características admiradas nas antigas deusas, mas também incutiu tantas outras relativas aos ideais cristãos, como a pureza, a simplicidade, a inocência moral, a beleza interior, a devoção altruísta e, principalmente, a castidade física.
Nas seitas cristãs primitivas, Maria foi cultuada como as deusas pagãs para quem as sacerdotisas ofereciam “o sacrifício dos pães ou dos doces”.  Séculos mais tarde, a Igreja, incapaz de extirpar o culto dessas deusas, aceitou Maria no magistério cristão, abrindo uma “brecha para que [sua] veneração, como mediadora de todas as graças, pudesse se manifestar” (BARROS, 2001, p.156), mas proibiu que ela fosse objeto de adoração, uma vez que não era divina. A Virgem não deveria ter a mesma força de Deus como representação superior, já que, antes de tudo, ela era uma mulher e não fazia parte da santíssima trindade. Mas, para aqueles que a admiravam, isso não importava, pois puderam encontrar em sua figura mediadora amparo, esperança e uma sensibilidade maior que aquela do Pai, muitas vezes autoritário em demasia. Assim, os homens passaram a vê-la como mãe protetora, e as mulheres, a adorá-la como ideal de beleza e conduta. O espaço da Virgem cresceu, ganhando um reconhecimento cada vez maior, porém, sempre dentro das barreiras impostas pela Igreja, pois essa era a sua forma de dar à sociedade medieval o que ela queria e, ao mesmo tempo, de manter a supremacia, pois ainda controlava as atitudes dessa.
Para ressaltar ainda mais a boa imagem da Virgem, a Igreja trouxe a figura de Eva à tona, ressaltando ao máximo a sua conduta negativa para com a humanidade. Denegrida, temida como inimiga, adjetivada pejorativamente e acusada como a responsável pela queda dos homens, deixou de ter seu nome citado e acabou transformando-se em “Inominável”. (BARROS, 2001, p.162). Suas filhas, as mulheres, seriam vistas da mesma forma, a menos que tomassem outro caminho, o caminho da nova Mãe. O título de “Mãe da Humanidade” transferiu-se de Eva para Maria, de modo que a primeira foi extremamente negativada, enquanto a segunda, a “Nova Eva”, a redentora dos povos, crescia e se fortificava. A imagem de ambas atingiu assim, uma projeção além do real, pois era fruto do imaginário masculino e tais mulheres, “inacessíveis” (BARROS, 2001, p.163), seriam a reprodução feminino, calcado de diversas características concernentes ao pensamento misógino, que enalteciam tanto o lado casto da Virgem, quando o perverso de Eva.
A exemplo disso, temos as Cantigas de Santa Maria do século XIII, que são uma representação da religiosidade popular, captadas para uma forma estética. Sua autoria gera discussões, mas acredita-se que o rei Afonso X, o Sábio, tenha tido participação direta como compositor de muitas delas. Como era um homem associado à Igreja, sabe-se que suas palavras representavam as ideias desse poder, e suas cantigas de louvor à Maria lhe garantirão o título de “trovador da Virgem”. (MARTINEZ, 1991, p.31). A Cantiga de nº 60, intitulada “Entre Av’ e Eva” ilustra bem os contrastes entre essas duas figuras femininas tão marcantes e mostra como a Virgem se sobrepõe a Eva: aparecendo como a grande salvadora, recupera o amor divino, além de resgatar a humanidade da condenação infernal e mostrar aos homens o bom caminho para o céu.
Pode-se observar que, nesta cantiga, existe um espelhamento não casual entre essa grafia latina Ave e Eva. As palavras, que podem ser lidas em seus dois sentidos, remetem à dupla natureza feminina: ressaltam os aspectos positivos e vivificadores da Virgem, que contrastam com os aspectos negativos e mortais de Eva, num oscilante jogo de palavras entre o bem e o mal. Mas, apesar das diferenças, uma parece necessitar da imagem da outra para ser completa. Talvez Eva, assimilada ao vae, que significa infelicidade, não fosse vista de forma tão perversa se não houvesse a Virgem, tão pura. Da mesma forma, talvez a Virgem, designada pelo ave, que quer dizer vida, não tivesse conseguido atingir seu estado de divindade suprema, se não fosse Eva para condenar a humanidade, tornando-a frágil e dependente de uma figura salvadora. Assim, em determinados momentos, as duas puderam ser vistas como mães e exemplos, sejam esses bons ou maus, pois mostraram as duas faces opostas de um único personagem: a mulher. E o feminino localizava-se exatamente no centro dessas variações, oscilando entre “Eva e Maria, pecadora e redentora, megera conjugal e a dama cortês” (LE GOFF, 2006, p.55) e, porque não dizer, entre a “Porta do Diabo” e a “Esposa de Cristo” (BLOCH, 1995, p.89; BARROS, 2001, p.150).
Essa dupla postura das mulheres foi uma marca de que a Igreja não conseguiu controlar suas condutas por completo, por mais repressivas que fossem suas investidas, pois, embora muitas vezes elas se sentissem temerosas pelo julgamento de suas atitudes por não seguirem o ideal de conduta estabelecido, suas vontades, fruto de seus sentimentos, falavam mais. Assim, amar e desejar um homem, por exemplo, seria algo natural e não deveria ser condenado, mesmo que aos olhos da Igreja isso fosse visto como pecado; aos olhos de Deus, acreditavam, não seria. Esse pensamento evidencia que muitas das mulheres já começavam a contestar o que a Igreja pregava, acreditando que a sua visão seria apenas uma das que se poderia ter sobre o poder divino, o que não as impedia que tivessem suas próprias crenças.
Não demorou para que essas manifestações surgissem representadas na literatura ficcional: na transição do século XIV para o XV, a obra O Romance de Amadis, tratará bem dessa mudança da visão durante o período e mostrará, através das atitudes das personagens, como a Igreja estava perdendo forças para um ser humano que já não mais aceitava tudo calado e começava a se descobrir capaz de pensar e de argumentar sobre seus próprios sentimentos. A postura das duas principais figuras femininas do romance, Elisena, mãe de Amadis de Gaula e Oriana, eterna amada do donzel, aponta para essas mudanças, significativas de uma resistência à realidade imposta pela Igreja. (BOIA, 1998, p.27).
Quando muito jovem, Elisena escolhera viver para Deus, não porque concordasse plenamente com o pensamento cristão, mas para preservar seu corpo de ter que servir um homem escolhido por seu pai, de acordo com interesses políticos e econômicos. Isso fica bem evidente quando a jovem conhece el-rei Perion, pois no exato momento em que seus olhares se cruzam, ela sente que ele substituiu o lugar divino em seu coração. Com o despertar da paixão, fica claro para o leitor que Elisena não era uma verdadeira devota de Deus, pois deixara que seus instintos tivessem voz e se manifestassem. Permitindo-se amar um homem além do Senhor, a jovem quis crer que fora o próprio Deus quem colocara el-rei em seu caminho, a fim de que ela pudesse conhecer o amor terreno e ser feliz sem culpa, ao lado de um homem para quem seus sentimentos eram os mais puros e ternos.
A partir dessa lógica de pensamento, o próprio narrador também assumirá uma visão a favor dos amantes, pois representa a voz da sociedade e reflete assim, as expectativas dessa, sobre o que gostaria de ler e ouvir: uma literatura que falava dos homens e de seus desejos, que representasse amor e erotismo, sem dar espaço aos temores enunciados pelos religiosos. Vale lembrar aqui que O Romance de Amadis, exatamente por apresentar essa mudança significativa na percepção ideológica do amor e do erotismo, ganhou extrema popularidade durante o Renascimento, recebendo mais de vinte impressões antes de 1588.
Apesar de as mulheres já terem certo domínio sobre si, ainda era comum que houvesse oscilação de alguns sentimentos, uma vez que sempre estavam sob olhares alheios. Elisena, mesmo acreditando que Deus estava ao seu lado, por muitas vezes mostra-se insegura quanto ao seu perdão, pois a pressão exercida pela Igreja era muito forte e ela é então obrigada a conviver com a dualidade dos sentimentos de culpa e auto-absolvição dentro de si. É perceptível, através de registros como o do romance, que muitas mulheres já começavam a desconfiar de que a repressão a elas imposta era baseada em princípios traçados pelos membros da Igreja, não por Deus, porque acreditavam ser Ele misericordioso, jamais seria rígido a ponto de punir seus filhos por amar. Não havia, porém, como provar isso aos ortodoxos, uma vez que esses pensamentos ainda não tinham voz suficientemente alta para sobressair-se sobre o gigante que era a Igreja.
Já na segunda parte do romance, que se passa vinte anos após a primeira, percebe-se nítida mudança, expressa pela conduta de sua principal figura feminina. As atitudes de Oriana serão bem mais confiantes do que as de Elisena, pois, segura de si, ela agirá sem temores, fiel a seus sentimentos. Uma passagem que ilustra isso é quando a jovem se entrega ao donzel: ela o faz naturalmente, sem hesitar ou pensar que sua atitude pudesse ser pecaminosa. É exatamente essa sua maneira de sentir e agir, de colocar o amor sempre à frente, que lhe afasta a culpa.
A cumplicidade aos seus sentimentos e desejos é tamanha, que ela permitirá que até mesmo o pensamento no amado lhe desperte sensações físicas, mostrando assim que as noções de pecado não conseguiam penetrar em sua conduta. Com essa valorização do humano, a Igreja torna-se impotente frente à força do querer daqueles que se amam e se desejam. Capazes de pensar, de questionar e de buscar respostas para si e para o mundo em que vivem, os seres humanos ganham espaço enfraquecendo o poder da Igreja, cuja força estava no discurso do medo.
Os registros literários, portanto, mostram-se de suma importância para a compreensão desse período, pois fornecem dados da realidade que muitas vezes não são captados pelos registros históricos. A cantiga de Santa Maria, pelo seu caráter ideológico, remete para a postura de obediência exigida das mulheres. Os exemplos opostos de Maria e de Eva constituem modelos para uma conduta que leve à elevação ou à condenação. Já no caso do romance, como obra de ficção, não há uma intenção doutrinária. As manifestações do feminino, tão reprimido, conquistam nesse território o seu espaço. Um dado significativo é que Amadis ficou sendo um dos livros prediletos de fantasia, tanto em cortes, palácios e solares, como em casas burguesas, hospedarias e celas de frades e freiras, lido e relido pelos reis, fidalgos, letrados, artistas e santos 4, o que mostra que a liberdade representada em suas linhas satisfaria os anseios até mesmo dos religiosos.

 

Literary representations of female in committed literature and in fictional literature: ideology and expression

Abstract:This work presents the literature as an important source of reference for the studies of female at Late Middle Ages, because data are found in it that mark the Church’s intention and the desires of society. It focus the registrations of committed literature, that evidences a doctrinaire nature, here illustrated by cry for Virgin in Entre Av’ e Eva song, from Cantigas de Santa Maria and the registrations of fictional literature, that express the imaginary of a society repressed by the Church, that found in literature the opportunity to express their feelings and desires, exemplified by O Romance de Amadis. By this texts and the social context time analysis, it looks to show how the literature can bring evidences from female behaviour, not always captured by historical registrations.

Keywords:Literature. Female. Church. Entre Av’ e Eva song. O Romance de Amadis.

 

1 Graduanda em Letras na UFRGS. Orientação: Profª. Drª. Elisabete Carvalho Peiruque. Email: cy.goes@hotmail.com. Bolsista voluntária.

2   Do Cancioneiro de Dom Afonso X – Cantigas de Santa Maria

3   Restauração feita por Afonso Lopes Vieira de “Amadis de Gaula”, nos fins do século XIV e início do século XV.

4 Nota de Carolina de Michelis em MONTALVO, 1984, p.12.

 

Referências:

BARROS, M. N. A. de. As Deusas, as Bruxas e a Igreja: séculos de perseguição. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos tempos, 2001.

BLOCH, R. H. Misoginia Medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

BOIA, Lucien. Pour une histoire de l’imaginaire. Paris: Lês Belles Lettres, 1998.

LE GOFF, J. Uma História do Corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

MARTÍNEZ, J. M. O Cancioneiro Marial de Afonso X, o Sabio. Santiago de Compostela: Universidade. Servicio de Publicacións e Intercambio Científico, 1991.

MONTALVO, G. R. de. Amadis de Gaulla. Lisboa: Edições 70, 1984.

SPINA, S. Iniciação na Cultura Literária Medieval. Rio de Janeiro: Grifo, 1973.