RISO, LICENCIOSIDADE E IMAGINÁRIO:
UMA LEITURA DE TIRANT LO BLANC

 Elisabete Peiruque 1

 

Resumo: A novela espanhola Tirant lo Blanc de Joanot Martorell chama a atenção pela comicidade que se mescla às inúmeras e fantásticas aventuras cavaleirescas. O risível encontra-se em especial nas passagens de marcada licenciosidade vividas pelo herói e sua amada sob os auspícios de uma alcoviteira. O contexto da Espanha do século XV permite ver em tais passagens a representação de um imaginário de liberdade sexual.

Palavras-chave:riso; licenciosidade; imaginário; cavalaria.

A leitura de Tirant lo Blanc, de Joanot Martorell, entre as muitas abordagens que suscita, chama a atenção pelo erotismo explícito e, sobretudo, por passagens em que tal erotismo –, na verdade, licenciosidade – é permeado pelo riso, esse provocado ora pelos pruridos hipócritas de Carmesina, a princesa que é o amor do herói, ora pela interferência de Prazerdeminhavida, a aia-alcoviteira que, para usar das palavras de Vargas Llosa, é uma vocação celestina. É na busca do significado desse riso emanado em especial das atitudes da aia – apresentadas pelo narrador – que a presente reflexão será orientada.
Tirant lo Blanc, novela de cavalaria concluída na última quarta parte do século XV por Marti de Galbi, após a morte do autor, emerge no contexto cultural espanhol com a sua publicação em 1490 (CARPEUAX, 1978, p. 255), sendo esse um tempo marcado pela instituição político-religiosa da Inquisição pelos Reis Católicos (BOXER, 1978, p.106), pela expulsão dos mouros do reino de Granada e pelas andanças de Colombo junto à coroa espanhola para por em prática o seu projeto de chegar às Índias pelos caminhos do ocidente. A situação política do que viria a ser realmente a Espanha já aponta para um embate de ideias na medida em que os reis, conservadores e fechados nas grades de um catolicismo fanático, são os que também vem a proporcionar o alargamento do mundo europeu.
Em meio a esse século de gestação do que viria a ser chamado Renascimento, a literatura é marcada por uma pobreza lamentável, segundo Otto Maria Carpeaux (1978, v. II, p. 249). Nela, no quatrocento, não se inova quase nada. A vida longa da novela de cavalaria dá conta disso. Esse gênero, onde está o gérmen do romance, se repete à saturação. A questão que se coloca em primeiro lugar é a receptividade da novela e em que ela atende às expectativas desse mundo que se transformava. Don Pasqual Gayango, em 1857, apontava para o universo das narrativas de cavalaria e chamava a atenção para o espaço espanhol onde as novelas que desde o século XII corriam a Europa parecem não ter chegado cedo. E, acrescenta ele que, se a Espanha foi tardia nesse aspecto, foi, por sua vez, o lugar ideal para a proliferação do gênero e seu desenvolvimento (1950, p. vi). Contudo, isso não impede que a novela comece a dar sinais de esgotamento em meados do século XVI, sendo exatamente a Espanha o lugar onde recebe o seu golpe mortal com D. Quixote de Cervantes. Há naquele momento da escrita de Martorell um interesse maior pela realidade mais imediata, mais material. Tal fato será o responsável pela ausência de monstros e elementos mágicos na sua novela em oposição a outras, o que a fez ser classificada como realista, caso não se considere a mais pura fantasia a quase imortalidade de Tirant e a sua luta contra exércitos, por si só, numericamente fabulosos.
Do ponto de vista da construção literária, sem dúvida, ainda há marcas das primeiras novelas. A ausência de elementos que são criação da pura fantasia não impede a hipérbole, os números absurdos e inacreditáveis e o exagero das falas, as quais remetem o leitor para uma teatralidade. Diálogos, propriamente ditos, são mais raros, uma vez que a tônica são grandes monólogos que sugerem um tempo parado para que um personagem ouça uma longa fala de outro, ao fim da qual entra outro monólogo, também longo, como resposta. A artificialidade é gritante e, para leitores do século XXI é impensável ler tal tipo de discurso em obras escritas hoje. No entanto, com os olhos de quem quer entender a vida de quinhentos anos passados, se lê com uma certa graça, o que permite pensar no gosto do público leitor ou ouvinte nesses séculos recuados. Outra marca inconfundível da novela é a comicidade, não só nas cenas já aludidas, mas em outras, fato que não era a regra nas novelas mais difundidas.
Tirant lo blanc, ao longo de suas oitocentos e tantas páginas, conta as aventuras guerreiras de Tirant e seu amor por Carmesina, filha do imperador por quem cai apaixonado ao primeiro olhar. Amor correspondido, entretanto, é impedido na sua realização pelo medo da princesa de perder sua virgindade que usa como bandeira, constituindo sua negação a outra guerra de Tirant. Em relação à expressão clara do desejo sexual na obra de Martorell, lê-se aí a sugestão de mudanças nos costumes e valores no mundo dos 1400, transformações que seriam reais ou talvez apenas estivessem no nível da aspiração. O final do século marca-se pelo humanismo a abrir caminho para o Renascimento do século XVI. Por um lado, a pressão da Igreja se faz sentir menos, por conta das ideias novas postas em circulação pelos homens da cultura, embora seja um fato que nesses primeiros tempos não houvesse da parte deles uma negação dos preceitos cristãos. Muito pelo contrário, o que se vê é uma tentativa de ligar o cristianismo com o saber da antiguidade, resultando em um sincretismo religioso anotado por Delumeau, o qual registra também “um anarquismo [...] nas crenças religiosas” (1981, p. 111). Igualmente Hale chama a atenção para práticas religiosas como batismo, confissão, por exemplo, tornadas mero hábito social, com a ausência de conhecimento teológico (1983, p. 271). Por outro lado, sabe-se que começa a fechar-se o cerco à luxúria bem como qualquer manifestação considerada como tal, passando os pecados da carne ao primeiro lugar entre aqueles que não merecem perdão. Ainda para Delumeau, em obra mais recente, a pregação sobre o pecado da luxúria no início dos tempos modernos constitui um retorno ao cristianismo dos monges do deserto nos primeiros séculos onde ela deveria ser combatida como vício mais grave. O historiador afirma que, no presente dos quatrocentos e dos quinhentos, a luxúria passa a ser considerada como algo “mais detestável que o homicídio e o roubo”, referindo-se a um penitencial da época em que se lê a afirmação de que nenhum pecado desagrada tanto a Jesus Cristo como o pecado da carne (2003, p. 403).
A erotização da sexualidade separa-a da mera reprodução da espécie, sem dúvida o fim primeiro na natureza. Ao elaborar formas que levem a um prazer maior o contato sexual, o homem cria o erotismo, “sexualidade transfigurada”, “invenção, variação incessante”, nas palavras de Octávio Paz. “A imaginação é o agente que move o ato erótico. É a potência que transfigura o sexo em cerimônia e rito” (p. 12-4). Por outro lado, a licenciosidade já se encontra no terreno da moral ou da falta dela e pode ser visto como libertinagem. Ainda para Octavio Paz, “o libertino afirma o prazer como único fim diante de qualquer valor” (p. 24).
Desejos expressos sem pudor, é o que se lê na novela, seja nos atos ou nas palavras dos personagens, homens ou mulheres. Da parte de Tirant que deseja Carmesina, declara ele o que quer sem rodeios. “Quero vê-la de camisola ou nuinha, na cama”. Ela diz sem meias palavras que não lhe dá virgindade, enquanto tudo mais lhe é permitido: “Para meu consolo e teu sossego, beija-me os seios”, o que Tirant se apressa a fazer “sem se fazer de rogado” (p. 389). Carmesina, nessa passagem, encontra-se acamada, e em seus aposentos há outras pessoas, tal situação representada levando a que se pense que, além da ausência de privacidade, todos acham naturalíssima a falta do que seria um pudor mínimo. O narrador põe também na boca desses outros o ardor sexual buscando realização porque os corpos são intensamente desejados. “Asseguro-vos que nada de minha pessoa lhe seria negado: se me erguesse a fímbria de minha túnica, eu lhe levantaria minha blusa para que apreciasse e procuraria satisfazê-lo ao máximo” (p. 274). Essas são palavras de uma das personagens femininas dirigindo-se à princesa. Em relação ao amor de Estefânia e Diafébus, Tirant deixa claro o que interessa no casamento: “E por que a necessidade de festas nas bodas se não as houve nos esponsais? A festa e a alegria deixai-as para o leito onde não existirão receios nem apreensões” (p. 444).
Delumeau (1981, p. 100) sublinha o fato de que foi essa uma época marcada por representações artísticas onde se via ou lia a exacerbação do erotismo. Entretanto, na Espanha, terra de nascimento de Martorell, havia, em princípio, uma repressão religiosa que, além das preocupações com a suposta pureza da fé, vigiava as ofensas sexuais (BOXER, 1978, p. 112). Nesse sentido, é o historiador espanhol Américo Castro que contribui para a compreensão do aparente paradoxo. Reconhece ele, nesse mesmo espaço fechado, porém em tempo bem anterior, a mescla de erotismo e contenção por conta das interdições da sexualidade na obra de Ibn Hazm, El collar de la paloma. Afirma ele a importância do poeta de Al-Andaluz na literatura espanhola e seus ecos na obra do Arcipreste de Hita com a presença de elementos opostos da erótica árabe: “el motivo central del libro, la experiência erótica em doble vertiente: impulso sensual e freno ascético” (p. 423). Na sequência de ideias, o historiador vê tal herança em Lulio e em Martorell, classificando suas obras como “ramificaciones divergentes de un mismo tronco” (p. 423).
O capítulo CCXXXVI mostra as artes alcoviteiras de Prazerdeminhavida, ao colocar Tirant na cama de uma Carmesina despida para o gozo do herói e semi-adormecida. Simulando ser ela, a aia, que se deita ao lado da princesa – o que remete ao que se sabe dos hábitos medievais – permite a Tirant explorar o corpo da amada que a certa altura diz, em meio ao sono: “toca quanto quiseres mas não leves a mão tão abaixo como estás fazendo”. Acordada de fato, ao sentir que não se tratava de uma mulher, começa a gritar provocando um alvoroço que desperta pai e mãe os quais ouvem da alcoviteira que uma ratazana passara sobre a princesa. Frustrado no intento de roubar à jovem o seu segredo – é assim que é referida a virgindade –, Tirant, ao fugir por uma janela, quebrou uma perna. Os muitos detalhes grotescos da cena, as mentiras para encobrir o fato, a cumplicidade de outro par amoroso remetem para os sentidos do riso.
Verena Alberti em O riso e o risível na história do pensamento (1999), chama a atenção para a questão terminológica implicada no estudo sobre o riso: “São muitas as categorias ligadas ao nosso objeto de estudo: humor, ironia, comédia, piada, dito espirituoso, brincadeira, sátira, grotesco, nonsense, farsa, humor negro, palhaçada, jogo de palavras ou simplesmente jogo” (p. 25).
Frente ao absurdo – caricatural, ridículo – da situação criada pela alcoviteira, e como humanos que somos, rimos, sendo que o riso constitui uma reação mental, psíquica, física, mas rimos também da atitude da princesa. Cohen (apud ALBERTI, p. 28) classifica o riso como “uma conjunção, no seio de uma mesma unidade de duas significações opostas que se neutralizam reciprocamente”. Poder-se-ia pensar que, sendo o amor algo sério e, portanto, não comportando o riso, teríamos aí, como em outras passagens, a incompatibilidade entre o sério e o não-sério, motivo do riso. Há uma inegável atração entre os dois personagens, a qual não permite ver ausência de seriedade que dê lugar à incompatibilidade. A seriedade, no entanto, não seria incompatível com a licenciosidade que parece predominar, ou seja, mero desejo pelo corpo, o que não é impossível numa sociedade altamente repressiva que foi aquela em que se originou a obra. “A libertinagem”, afirma Octavio Paz, “faz fronteira com a blasfêmia, o sacrilégio e a profanação” (1994, p. 24) Nesse caso, a afirmação de Cohen, então, não daria conta do motivo de riso que existe ainda para os leitores de hoje e possivelmente para os dos anos quinhentos. Tal ambiguidade mantém-se ao longo das aventuras amorosas, o que configura uma das características de vitalidade das obras literárias que atravessam os séculos que é a sua abertura para uma plurissignificação.
Uma grande loquacidade dos personagens – sublinhada por Vargas Llosa no prefácio da edição de 1998 –, por si só já digna de riso ou pelo menos de um sorriso –, aparece mais adiante quando Carmesina consente que Tirant vá ao seu leito, o que ocorre entre os capítulos CCLXXVII e CCLXXXI, com a conivência e o estímulo de Prazerdeminhavida. Observa aquele autor que todos falam desabaladamente na novela, o que é cômico, principalmente quando se trata de amor. Pelas palavras do narrador, numa cena de marcada plasticidade, fica-se novamente a saber que a privacidade inexiste. A alcoviteira está presente em tudo. E após uma atitude que pareceria no primeiro momento cabível no amor cortês, Tirant, ansioso, é obrigado a ouvir, se é que ouve, a princesa falando sem parar.

 
Os dois subiram à alcova e ficaram aguardando até que Prazedeminhavida chegou mais feliz e contente do que Paris quando carregou Helena [...] Tirant ajoelhou-se [...] Depois de algum tempo nessa postura, beijaram-se, e tão saboroso e intenso foi esse beijo que se pudera percorrer um quilômetro antes que as bocas se descolassem. Vendo o perigo que essa demora poderia provocar, Prazerdeminhavida aproximou-se e disse-lhes: – Declaro-vos bons e leais enamorados, por isso gostaria que houvesse uma trégua nessa batalha até que estivésseis deitados na cama. E não vos terei por cavaleiro se declarardes paz antes que o sangue tenha corrido (p. 544).

Se essa cena por si já está marcada pelo risível – a aia toma as decisões e acompanha tudo todo o tempo, aparentemente, como já observado –, o que se segue está atravessado por uma grande comicidade. Carmesina faz uma longa oração, lamentando-se porque Tirant não a respeita. “Não aguentando mais as lamúrias da princesa, com rosto amável e rindo, replicou-lhe Tirant”, que já esperara demais para realizar seus desejos. O narrador mostra um herói apaixonado, também loquaz, a quem, porém, “as palavras não impediam que se apressasse a tirar a roupa de Carmesina”. A atitude maliciosa de Prazerdeminhavida é de uma total falta de escrúpulos, mas também permeada pelo senso de realidade. Empurra-os para a cama porque estão ali para isso com a conivência dela. “Realísima em su alegria, em su malicia, em su irrefrenable y amoral naturalismo”, é como a classifica Dámaso Alonso (1962, p. 5). Apenas o fato de participar do momento de amor já é cômico a nossos olhos.

 
A essa altura, Tirant acabara de despi-la e levou-a nos braços para a cama. Vendo-se em situação tão apertada e que Tirant, nu, estava ao seu lado e trabalhava com a artilharia para entrar no castelo, e sentindo que não poderia defendê-lo pela força das armas, refletiu que talvez pudesse preservá-lo com as armas próprias das mulheres – derramando vivas lágrimas pôs-se a lamentar-se (p. 548).

Segue-se um longo monólogo que os leitores de hoje e possivelmente os leitores-ouvintes da época classificariam de ridículo pela inadequação.

 
Enxugarei com mãos trêmulas meus tristes olhos, antes de dizer-te qualquer coisa. Oh, quantas palavras piedosas te ofereci e recusas aceitar. Movam-te à piedade meu erro e a nova vergonha de culpa infinita [...] É grave a ofensa que me queres fazer e afirmo-te que, se o fizeres, será tão grande o menoscabo de meu amor por ti que haverás de te espantar tanto quanto Lúcifer ao despencar de seu trono (p. 548)..

O narrador acrescenta que “diante de tantas lágrimas e das palavras sensatas e sensíveis de sua senhora Tirant decidiu contentá-la e fazer-lhe a vontade nessa noite, ainda que ao longo dela tenha sido pequeno o descanso dos amantes” (p. 548). O risível perpassa as palavras do próprio narrador quando acrescenta que “se ficaram afagando e divertindo, ora na cabeceira, ora nos pés da cama” com tudo que tal afirmação sugere.
Carmesina sai pura, inviolada mais uma vez, o que leva a pensar na hipocrisia de uma sociedade regida por uma Igreja fanática, feita de homens frustrados por se imporem atos impossíveis de serem cumpridos por um ser humano. Tirant quer o corpo da mulher amada, respeita-a, mas é absolutamente claro nas suas palavras. Para Jean Delumeau, nesse tempo histórico chamado Renascimento – na verdade, um processo de transição (MARAVALL, 1984, p. 21) –, verifica-se um conjunto de contrastes maior que em qualquer outra época. “Foi sorriso e ódio, delicadeza e grosseria, truculência e austeridade” (DELUMEAU, 1981, p. 128).
Delicadas, pois, são as palavras de Tirant nas suas declarações de amor a Carmesina. Há uma cortesia extrema, elogios à beleza da princesa e palavras redundantes de um amor como não há outro igual.

 
Sinto-me mais glorioso do que nunca, ao pensar que vossa majestade é tão generosa que houve por bem aceitar as minhas realizações; ainda que eu servisse vossa excelsitude por toda a minha vida, minha submissão não teria tanto valor quanto vossa nobre e prendada pessoa (p. 540).

Em outra passagem, Tirant é mais enfático que um trovador do século XII: “Quando penso em morrer por semelhante senhora, não me dói a morte, pois, morrendo neste mundo, reviverei pela fama gloriosa porque dirão as gentes que Tirant lo Blanc morreu de amores pela mais bela e virtuosa senhora jamais havida no mundo” (p. 246). Entretanto, tais sentimentos – a nossos olhos ridículos pelo exagero – aparecem mesclados à crua revelação, às vezes grosseira, dos desejos pelo corpo: “brincando com vossa alteza e não alcançando com as mãos, vali-me de minha perna e coloquei-a entre vossas coxas: meu pé tocou um pouco mais acima no ponto onde meu amor deseja atingir a plena felicidade” (p. 414). São palavras de Tirant recordando um episódio cômico em que quase foi descoberto nos aposentos da princesa Carmesina.
O amor do herói pode ser enquadrado no que René Nelli, citado por Graça Videira Lopes (1994, p. 80), classifica de amor cavaleiresco, não identificado com o amor cortês, embora com alguns traços remanescentes dele cujas doutrina e prática já estavam ultrapassadas porque datavam de mais de três séculos. Enquanto o amor cortês acentua, como é sabido, a noção de amizade amorosa mais ou menos platônica, “na erótica cavaleiresca, o corpo não está ausente nem é negado”, embora esteja lado a lado com a exaltação da virilidade e coragem e de noções de honra e lealdade corteses. No conjunto, pode-se ver aí um retrato do herói de Martorell, uma vez que, em meio à sua retórica de modelo trovadoresco, há uma sensualidade que chega às raias do grosseiro, sensualidade essa brutal que faria corar muitos autores contemporâneos, nas palavras de Carpeaux, talvez com um pouco de exagero (p. 256, v. II). A contradição entre os dois modelos configura uma situação ambígua que remete ao riso. De acordo com Plessner (apud ALBERTI, p. 29), “rimos porque não conseguimos lidar com isso”. De quem ou do que como leitores, rimos em passagens como essas? Do que parece apenas um jogo de palavras de Tirant para alcançar o que lhe é negado por Carmesina? Ou rimos pelo fato de que o desejo seja expresso através de situações ridículas?
Igualmente atravessada pelo riso, agora por conta da falta de privacidade dos amores – e rir-se dessa situação é, como diz Mauss (apud ALBERTI, p. 30), relaxar as tensões que provavelmente marcariam vida das pessoas – é atitude de brabeza de Prazerdeminhavida quando, na companhia da princesa e da donzela de Montblanc, fica sabendo de tudo que aconteceu ou deixou de acontecer durante a noite.

 
Com os diabos. Vossa Alteza tem o prazer, Tirant, o deleite e eu o pecado. Mas dói-me tanto não ter acontecido nada que receio morrer de raiva. Deixa aquele fraco e insignificante cavaleiro aparecer-me pela frente e vereis o que lhe direi. Jamais farei nada por ele (p. 549).

E é o que acontece no decorrer dessa passagem, num clima de comicidade quando Prazerdeminhavida repreende o cavaleiro, reafirmando sua desistência do papel de alcoviteira:

 
O prêmio que com tanto esforço e tantas vezes buscastes, senhor, não foi sem razão que o perdestes ou fingistes ter recebido, graças a vossa negligência e falta de determinação: não tendes, pois, mais direito a ser premiado posto que renunciastes por vontade própria [...] no que depender de mim, ficai certo de que não tereis nova oportunidade [...] se ela virgem se deitou, virgem foi vista sair para vossa grande vergonha e vexame (p. 551).

Carmesina é risível ao reservar-se uma virgindade apenas física e, portanto, destituída de lógica, já que importa somente dizer-se virgem. Rimos e concordamos com Dámaso Alonso que a vê como uma semivirgem do início do século XX (1962, p. 5).
Nesse contexto, a licenciosidade que é refreada merece a condenação, o que é motivo de riso porque se trata de uma transgressão de acordo com a moral religiosa. É um mundo às avessas o que Tirant lo blanc representa nesse terreno. Delumeau lembra que o cristianismo implantou-se nas culturas do mundo antigo onde, por exemplo, neoplatonismo, estoicismo e outras tradições já opunham carne e espírito e acrescenta “de um lado aceitava ou até deificava o prazer, mas, de outro, e de maneira contraditória, o desprezava e o denunciava opondo-lhe a renúncia sexual ou pelo menos o dever absoluto de procriação” (2003, p. 404).
Quando Tirant realmente alcança o que quer – depois de longo tempo decorrido –, e novamente com a intervenção de Prazerdeminhavida, o consegue debaixo de um longo discurso de lamentações da princesa.
O que significa ou significou em seu tempo a representação de uma licenciosidade exacerbada em nível de discurso na novela? Contrapor-lhe atitudes de recusa, como as da princesa, constituiria uma realidade ou uma real intenção de não pecar? Carmesina representa a tentação entre o querer e o proibir-se em consequência de ideias que estão incrustadas no contexto social, mesmo que não se acredite nelas e que se tenha consciência de sua inutilidade. “A Igreja sempre julgou de maneira severa os pecados sexuais fora do casamento”, afirma Delumeau (2003, p. 404), o que permite entender as hesitações que Carmesina representa como mulher de seu tempo, mulher nobre, é evidente, porque as camponesas certamente não teriam tais pruridos, fora que estariam do âmbito mais cerrado das pregações da Igreja.
Ler, ver ou ouvir aquilo que era proibido seria uma liberação? Traria o prazer não vivido na realidade porque, se o fosse, seria com o medo da obrigação de confessar e ser ameaçado com o inferno? Como diz Mello, o que a camisa de força da realidade impede de se realizar, vai para a arte (1992, p. 7). Uma Espanha fanática, exceção no cenário europeu, segundo Delumeau, (1981, p. 100), constituiria a camisa de força, visível ou reconhecida na ausência de representações eróticas nas artes.
Os restos da culpa introjetada estão presentes na confissão de Carmesina antes de morrer, quando confessa publicamente seus pecados: “pequei gravemente porque permiti que Tirant, meu marido e esposo, tomasse os despojos de minha virgindade antes do tempo permitido pela Santa Madre Igreja” (p. 828).
Eis como a exaltada virgindade foi tornada em despojos. Troféu perdido finalmente para glória de Tirant, tal feito ainda é resultado das artes de Prazerdeminhavida, agora feita rainha depois de mil aventuras. É a mesma jovem brincalhona decidida a viver e gozar os prazeres da vida e do corpo. O tempo não passa, observa Vargas Llosa (1999, p. 36), já que todos estão sempre jovens e belos. É uma aia alcoviteira, ainda cheia de alegria e malícia que resolve a situação, levando Carmesina para seus aposentos e ordenando a Tirant que se dispa e deite-se ao lado:

 
daquela que vos ama mais que a própria vida; atacai violentamente com as esporas, como é próprio de cavaleiro, afastando toda a piedade. E não me vinde com explicações, que não as quero ouvir; e nem vos façais de rogado, pois eu vos juro, pela palavra de rainha, que, se não fizerdes o que vos digo, não tornareis a ter favor semelhante em toda a vossa vida (p. 774).

E ainda, sabiamente, recomenda: “apressai-vos que não se recupera o tempo perdido” (p. 774).
Hilariante a passagem porque Carmesina sente-se traída e diz confiar na grande virtude de Tirant. Um grande discurso da princesa não impede que as mãos de Tirant “cumpram o seu dever”.

 
Então a princesa se pôs a falar com Tirant empenhado num duro combate: – Meu senhor, não transformeis em penoso sofrimento minha esperança gloriosa de ter vossa visão tão desejada. Repousai, senhor, e não useis de vossa força guerreira, que as forças de uma donzela delicada não bastam para enfrentar semelhante cavaleiro. [...] Ponde de lado a sofreguidão, senhor. Nada de crueldade. [...] não vos exibais como cavaleiro em cima de uma donzela vencida. [...] Ai, senhor como vos pode dar prazer algo tão violento [...] Ah, cavaleiro cruel e falso. Vou gritar! Cuidado que vou gritar! Não tereis misericórdia de mim, senhor Tirant? (p. 775).

A inegável graça da cena que leva inevitavelmente ao riso é marcada pela presença da aia a quem o cavaleiro pede socorro por temer que a princesa tenha morrido depois da “prazerosa batalha” vencida por ele. Se rimos dos falsos pudores de Carmesina, das atitudes e palavras da aia, também é risível que o cavaleiro – herói nas lutas contra exércitos fantásticos – precise ser empurrado para o amor e que o prazer seja marcado pela fala incessante da princesa. O risível nessa passagem poderia ser explicado pela teoria de Morreal (apud ALBERTI, p. 27). Esse autor – não aceito totalmente pela autora que o cita –, entretanto, explica o riso de maneira que, no presente caso, é coerente. Ele o vê como reação intelectual a algo inesperado e ilógico. É o que aparece na recepção da obra. O amor que Carmesina diz sentir e a maneira pela qual se entrega.
Prazerdeminhavida, dona de um nome nada inocente como escolha do autor, constitui o veículo para liberação de sentimentos reprimidos. Ao criar cenas cômicas onde o cômico não cabe, Martorell veicula um saber teorizado por Bakhtin (1987, p. 65) a respeito do riso. Observe-se antes que Bakhtin fala do riso no Renascimento e que o riso era tido como pecaminoso na teologia medieval por não haver indícios de que Cristo houvesse rido. Observe-se ainda a impossibilidade de demarcar com certeza o que já seria renascentista num tempo anterior ao século XVI bem como o conceito de uma Idade Média alongando-a por mais dois séculos. Bakhtin sublinha, pois, que o riso “é um ponto de vista particular e universal sobre o mundo” e “pode captar aspectos excepcionais” desse mesmo mundo. A atitude brincalhona que o narrador descreve como a de Prazerdeminhavida sugere um olhar crítico sobre convenções sem fundamento – porque baseadas na noção de pecado –, verbaliza-o e age como tal. Ela vê a hipocrisia das relações e o diz. Quando percebe a demora para a realização do ato amoroso, toma uma atitude: frente a um Tirant que diz ansioso que “uma hora me parece um ano até estarmos na cama”, Prazerdeminhavida se apressa a fim de que a consumação do amor não seja interrompida pelo falso pudor da princesa: “Ai, senhor, por que esperar a cama?” Para Bakhtin (1987, p. 65) o homem expressa, através do riso, uma concepção do mundo. A aia alcoviteira é a representação de uma nova maneira de ver a vida, tentando libertar-se das amarras da Igreja, ao rir delas. Talvez se as cenas fossem mostradas de maneira séria não teriam o efeito que tem e que talvez tenham tido sobre os leitores e ouvintes da época.
O riso da aia é liberador; ela ri da repressão sexual, ri das ideias que impedem a realização do amor, encarna as ideias de um sexo prazeroso e sem culpa. Se o riso é transgressor, (ALBERTI, p. 30), “destruidor de verdades” (p. 202), nesse caso pode sê-lo nos dois sentidos. Prazerdeminhavida transgride os códigos, e os leitores com ela, ao aprovarem-na. Riem de suas atitudes e riem com ela e assim retiram o sentido de pecado que a Igreja imprimia à sexualidade. Seu nome, malicioso como ela o é, remete para o seu próprio prazer como também para o que ela representa para os dois amantes a quem ajuda, instiga e empurra para o amor vivido. Sua alegria não é casual. Amoral, suas atitudes e palavras apontam para uma vida contrária ao modelo teológico de sofrimento cristão como caminho para a salvação e, portanto para um imaginário.
O mundo medieval, na sua preocupação com o riso como manifestação não cristã, pela ausência do modelo de riso na Bíblia, de acordo com Delumeau, estaria ainda presente no que seria a Espanha de finais do século XV (1981, p. 100). O historiador refere, entre outras, uma obra em que o ascetismo é recusado. Trata-se de De Voluptae, de Lorenzo Valla (p. 99). A data – 1431 – permite comprovar que as transformações e contestações à Igreja já vinham de longe, certamente sendo esse o motivo que a levou, através de seus teólogos, a teorizar sobre a luxúria como o pior pecado: “Ninguém pode fornicar conscientemente sem cometer um pecado mortal”, dizia um penitencial anônimo de 1490 (DELUMEAU, 2003, p. 404). Tal maneira de conceber a existência está presente em todas as produções que saem dos quadros da Igreja, inclusive na novela A demanda do Santo Graal, forma cristianizada das novelas do ciclo arturiano, onde os cavaleiros em busca do cálice sagrado que significa a salvação, matam sem problemas de consciência, enquanto são considerados pecados mortais aqueles que envolvem a figura feminina e os desejos que ela desperta.
Mundo fechado pelo fanatismo religioso, o contexto de onde emerge a novela cria seus próprios imaginários como resposta. Em Tirant lo Blanc, leem-se as aventuras licenciosas como representação de um imaginário de liberdade sexual, ou pelo menos de uma vida sexual sem culpa, já que até no casamento havia pecado. Note-se que a repressão exacerba as sensibilidades, dando origem à licenciosidade, quase pornográfica, quando seria aspiração apenas o erotismo. A válvula de escape necessária deforma-se porque deformado está o mundo que a cria. “A noção de prazer culpado é difícil de definir. Onde se situa a derrapagem entre o desejo de fazer amor para evitar a concupiscência e o de sentir prazer no ato sexual?” (DELUMEAU, 2003, p. 412).
O que sentiram, pensaram, desejaram ou temeram as pessoas contemporâneas de Martorell ficamos sabendo pela literatura, sua obra e outras contemporâneas, porque as obras literárias são a concretização do que diz Michel Pastoureau. Referindo-se especificamente à Idade Média, ele chama a atenção para a importância dos textos de ficção para se conhecer o mundo medieval: “quando se busca atingir as verdades da alma e do coração, os documentos tornam-se mudos. Nesse domínio, é ainda a literatura que fornece as melhores hipóteses”. (1989, p. 151). Contudo, o autor adverte que não passam de hipóteses. Em Tirant lo Blanc, não temos exatamente o retrato da sociedade em mudança porque tais mudanças existiriam somente em nível de expectativas e não seria literatura se fosse mera reprodução do real.
A inventividade intrínseca à ficção está na aventura heróica grandiosa impossível e na liberdade sexual de toda uma sociedade reprimida. Tanto uma quanto outra significam o não mais existente, porque ultrapassado, ou ainda não alcançado. Assim é com a figura do cavaleiro de que Maravall fala (1984, p. 25) e com os amores impedidos.
Lucien Boia, em Pour une histoire de l’imaginaire, aponta para a literatura como a maior fonte para o estudo dos imaginários, não importando a qualidade das obras, o que quer dizer que a intitulada sub-literatura também é documento para o estudo do imaginário de uma época. Ele vê o imaginário como um produto do espírito e deixa claro que “sua concordância ou discordância com o que se encontra 'fora' é secundária, embora não negada pelo historiador” (1998, p. 17). Se esse cavaleiro fabuloso não existiu como realidade, importa é que ele tenha existido como ideal. De igual maneira, se a liberdade de amar e se dar prazer aos corpos não foi a realidade naquele contexto, foi-o no imaginário. A licenciosidade entre os dois apaixonados sob a proteção vigilante de Prazerdeminhavida – e aqui proteção tem outro sentido –, e mais do que isso, a visão dessa última de um sexo para ser vivido, remetem para a força do imaginário em diálogo com o real. Numa Espanha que estava fora da onda de erotismo reinante nesse tempo, a sua representação em nível de imaginário seria a válvula de escape. Duby afirma que o imaginário “forçosamente não se afasta tanto do real” (1988, p. 159). Tal dado permite pensar que a permissividade no sexo seria uma realidade no mundo que a Igreja queria moldar pelo avesso. Contudo, estaria escondida sob o véu das aparências e, sobretudo, seria vivida com o sentimento de culpa num contexto em que Igreja tinha todo o apoio do Estado para punir. A novela de Martorell aponta para as consequências das distorções causadas pela repressão do que é humano.

 

Laughter, licentiouness and imaginary: a lecture of Tirant lo Blanc.

Abstract:Joanot Martorell's spanish novel is marked by humour combined with innumerable fantastic chevalry adventures. The cause of laughter can be found by vivid licentiouness enacted by the hero and his beloved with the help of lady's nursemaid. The spanish context of the of XV century allows one to observe a representation imaginary of sexual freedom.

Keywords:laughter – licentiouness – imaginary – chevalry.

 

1 Doutora em História. Professora de Literatura Portuguesa no Instituto de Letras da UFRGS. Pesquisa iniciada em março de 2007. peiruque@yahoo.com.br.

 

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