EVIDÊNCIAS DE HISTÓRIA NOS RELATOS DE VIAJANTES
SOBRE A ÁFRICA PRÉ-COLONIAL 1  

Sílvio Marcus de Souza Correa 2

 

Resumo:Os relatos de viagem têm sido uma fonte importante para (re)escrever a história da África pré-colonial. Porém, as informações dos viajantes devem passar pelo crivo de um estudo crítico para seu uso enquanto fonte à pesquisa histórica. O presente trabalho tem por objetivo tratar algumas questões epistemológicas relativas aos relatos de viagem enquanto fonte para o estudo da História da África pré-colonial.

Palavras-chave:Relatos de viagem. História da África pré-colonial. Historiografia africana.

Introdução

Até meados do século XX, os relatos de viagem foram usados como fonte privilegiada para a história da África pré-colonial sem muita preocupação epistemológica por parte dos historiadores. O recurso aos relatos de viajantes europeus se justificava, em grande parte, pela escassez (ou desconhecimento) de outras fontes escritas para o estudo das sociedades africanas 3. Após uma série de estudos críticos de renomados africanistas sobre a literatura de viagem, os relatos de viajantes têm sido publicados com certa regularidade, e novas edições acusam a existência de um público leitor ávido por memórias de testemunhas oculares de realidades pretéritas. Estes relatos são tomados por “histórias” e, por conseguinte, acabam dispensando o historiador. Este é, muitas vezes, visto como persona non grata, um intermediário entre o informante e o leitor que esteriliza as informações, desvitaliza a narrativa com suas teorias sociológicas ou antropológicas e com suas problemáticas que, em geral, não interessam ao leitor comum.
Oportuno lembrar que a história oral contribuiu muito para valorizar a testemunha. Se muitos historiadores sensatos ainda concordam que a história deve também se valer de fontes orais, outros mais incautos e afoitos pleiteiam mais que isso: ou seja, uma história oral e, nesse sentido, o risco de que um historiador passa a ser mero compilador de relatos, de versões de testemunhas oculares. É nessa confusão que o viajante, testemunha ocular, pode assumir o lugar de historiador.
Como testemunha ocular de realidades pretéritas, o viajante tem uma posição privilegiada enquanto informante. Além do que seu olhar registra, há também no relato dos viajantes compilações de outras fontes (primárias e secundárias). Material linguístico, iconográfico, cartográfico e elementos da tradição oral pululam nos relatos de viagem (Cf. GOODY, 1987). Mas numa época em que a testemunha é cada vez mais interpelada, o “retour du récit” pode privilegiar a memória em detrimento da história; aliás, o historiador pode ser dispensado pela(s) testemunhas(s) e também pelo público leitor e/ou ouvinte (HARTOG, 2005, p. 291). Ou seja, a testemunha e seu interlocutor podem dispensar o historiador.
O presente ensaio trata do relato de viagem como fonte para a pesquisa histórica sem deixar, no entanto, de relativizar a “objetividade” do viajante enquanto testemunha ocular. Escusado lembrar que alguns relatos de viagem contêm uma autopsia capaz de resistir ao rigor historiográfico de um Tucídides, embora igualmente permeados daquele exotismo tão ao gosto de um Heródoto. Assim, a literatura de viagem costura o visível ao invisível, o real ao fantástico, o crível ao incrível. Com a ressalva de que a escala de percepção varia de uma época à outra. Ou seja: o que foi real ou verdadeiro no século passado pode hoje ser fantástico ou incrível.

1. A História da África pelos viajantes

Desde os primórdios do périplo africano, os viajantes europeus, notadamente os portugueses, adotaram seus parâmetros para se situar no espaço e no tempo e classificar o até então desconhecido 5. Porém, o continente africano foi sendo “descoberto” pelos europeus a partir de uma experiência de vilegiatura já desenvolvida durante a Idade Média 6. Sem serem literatos, muitos viajantes (marinheiros, comerciantes, funcionários de companhias comerciais ou de coroas europeias) acabaram escrevendo relatos de suas viagens pela África, enquanto outros viajantes compartilharam suas experiências ultramarinas a escritores “profissionais” 7.
Dos meados do século XV até o primeiro quartel do século XVI, uma copiosa documentação sobre a África foi produzida em Portugal 8. Os cronistas Gomes Eanes Zurara e Rui de Pina coletaram informações de viajantes, respectivamente sobre os reinos da Guiné e do Congo (ZURARA, 1989; RADULET, 1992). Também o cronista Damião de Góis recorreu a fontes orais, além de documentos manuscritos do arquivo real. Por sua vez, o tipógrafo alemão, mas radicado em Portugal, Valentim Fernandes, redigiu seu manuscrito a partir de fontes orais coligidas em Tomar, onde interrogou viajantes, homens que estiveram no Ultramar (FERNANDES, 1951). Também consultou manuscritos como o de Jorge Velho em relação a Serra Leoa (HENRIQUES; MARGARIDO, 1989, p. 19 e 54). Já Duarte Pacheco Pereira se valeu de suas experiências ultramarinas, da mesma forma Antonio Galvão para redigir o seu tratado dos descobrimentos (CARVALHO, 1991; GALVÃO, 1989). Essa literatura portuguesa dos “descobrimentos” revela as analogias, as perplexidades e as classificações dos portugueses diante da(s) natureza(s) desconhecida(s). Mas ao final do primeiro quartel do século XVI, os portugueses já têm um conhecimento geral sobre os confins ocidental e oriental, setentrional e meridional do globo, inclusive sobre todo o largo das costas africanas, tanto atlântica quanto índica.
Ora se valendo de uma história “herodotiana” sem pretensões nomotéticas (isso não significa que ela seja mentirosa), ora se aproximando de uma história “tucididiana”, na qual autopsia e acribia lhe garantem lastros de veracidade, as narrativas dos viajantes europeus ou dos compiladores de seus relatos apresentam certas evidências relativas à história da África pré-colonial 9. Não obstante, os viajantes também deram vazão à fantasia, ao inverossímil, ao preconceito e, em certos casos, mentiram, alguns mais que os outros 10. Escusado lembrar que, assim como os escritores profissionais, os viajantes também estavam orientados por esquemas de percepção e de representação de sua época 11. Os relatos de viagem, as descrições e as histórias de terras e gentes ultramarinas também se afinaram aos interesses do seu público alvo 12. Sob auspícios de coroas europeias ou de companhias de comércio, os viajantes produziram relatos ajustados às expectativas dos seus “protetores” e/ou leitores. Importante ressaltar ainda que a maioria dos autores de relatos de viagem publicados na Europa moderna não foi para a África ou para o Novo Mundo com objetivo primordial de relatar suas viagens, tampouco de escrever uma história ou uma descrição do que viu, ouviu e viveu 13.
Através dos relatos dos viajantes europeus, nota-se certa dificuldade em situar as sociedades africanas no tempo (cristão). Em geral, elas foram situadas numa idade pré-nomológica, ou seja, anterior à idade das leis escritas, porquanto os europeus julgaram os africanos como povos sem conhecimento de leis, de escrita. Com exceção dos povos islamizados, a África negra parecia extemporânea.
Por isso, viajar pela África era também uma viagem pelo tempo. Mas um tempo suspenso. Não era o tempo dos Antigos, tampouco aquele dos Modernos. Durante os séculos do tráfico de escravos africanos pelo Atlântico, esse deslocamento espacial chegou a ser visto como um deslocamento temporal. Um deslocamento de mão-dupla, pois, para colonos, comerciantes e mesmo padres europeus, arrancar os escravos da África era uma forma de integrá-los ao Ocidente cristão tanto em termos espacial quanto temporal. Escusado lembrar que alguns jesuítas, como Jorge Benci e Antônio Vieira, formularam justificativas morais para a escravidão africana (Cf. CASIMIRO, 2001).
No século XVIII, a noção de uma África sem história se consolida no pensamento europeu. O historiador Adam Jones (1990, p. 19) salientou certo senso-comum entre poetas e filósofos como Schiller, Voltaire e Hegel sobre sociedades sem movimento ou progresso. Sob a perspectiva iluminista, Hegel chegou a afirmar que a África não fazia parte da história mundial, não demonstrava nenhum movimento e desenvolvimento. Para Hegel, a situação atual da África sempre foi essa mesma (wie wir sie heute sehen, so sind sie immer gewesen) (JONES, 1990, p. 20). O africanista John Donnelly Fage (1971, p. 240) afirma que essa ideia de uma África em estado inercial predominou até o século XIX no pensamento ocidental. Nesse sentido, os relatos de viagem sobre a África pré-colonial tratam de acontecimentos “históricos” que, geralmente, envolvem a presença e a interferência europeias, sobretudo em sociedades litorâneas da costa africana (Cf. DELAUNAY, 1994, p. 39).
No relato dos viajantes, a descrição da África se orienta por uma história natural. Cabe lembrar que os viajantes não estavam preocupados em coligir fontes para organizar uma narrativa de mudanças ocorridas em sociedades africanas num quadro cronológico (FAGE, 1982, p. 44). Embora os relatos de viagem acusem certas mudanças nas sociedades africanas a partir do contato com os europeus, o impacto do contato euro-africano pode ter sido exagerado pelos viajantes, porquanto os mesmos desconheciam ou ignoravam outras mudanças ocorridas por contatos intra-africanos.
O corpus documental que representa a literatura de viagem permite, no entanto, estabelecer uma cronologia de certas mudanças em determinadas regiões da costa africana do período pré-colonial. Para determinadas regiões da África ocidental, alguns estudos já comprovaram a pertinência de certas informações intrínsecas aos relatos de viagem e a outras fontes escritas europeias 14. Da mesma forma, os estudos de Adam Jones têm apontado para o acúmulo paulatino de informações de acordo com o incremento da presença europeia na costa da África ocidental (JONES, 1990; 1985).
Cabe ressaltar que os relatos de viajantes se inscrevem numa cadeia de reprodução e transmissão de informações sobre a África pré-colonial. Compilações, memórias, guias náuticos, cartografias, descrições geográficas e livros de história natural se valeram, alguns mais outros menos, dos relatos de viagem. Porém, a apropriação de informações contidas na literatura de viagem não passou por uma crítica acurada. Tanto os viajantes quanto os escritores profissionais se valeram de um corpus documental cuja totalidade escapa à análise historiográfica. Alguns especialistas têm se empenhado, no entanto, para reconstituir parcialmente as influências recíprocas sobre os relatos de viagem e sobre eventuais documentos de arquivos que poderiam ter sido usadas na reprodução e transmissão da literatura de viagem sobre a África pré-colonial 15.
Na literatura de viagem há um manancial de informações convergentes e divergentes sobre diversos temas relativos à história da África pré-colonial. Este corpus documental é, geralmente, usado com reserva pelos historiadores contemporâneos que tratam os relatos de viagem quase exclusivamente como fonte nem sempre confiáveis de informações de testemunhas oculares de outros tempos. Faz parte da precaução metodológica do historiador coevo lançar um olhar acurado para como olhou, quando olhou e de onde olhou o seu informante, isto é, o viajante. Com a ressalva, evidentemente, que nem sempre essa testemunha viu tudo o que relatou.
Mas quase todos os viajantes não confiaram apenas na autopsia, também se valeram da escuta. Mais próximos da enquete de Heródoto do que de Tucídides, muitos viajantes apresentaram não apenas o que viram sobre determinada coisa, mas o que se dizia sobre ela. Em geral, eles também não se preocuparam em analisar um acontecimento, tampouco se concentraram sobre o que de mais importante parecia em seu tempo. Curiosidades, exotismos, bizarrices e vários aspectos do cotidiano africano são relatados pelos viajantes. Escusado lembrar que, não raro, o olhar suscita a ilusão de poder ver o real. Desse modo, a autopsia dos viajantes tolheu, em muitos casos, o que viu por causa de seus esquemas de percepção, nos quais organização política, orientação religiosa, práticas econômicas e culturais europeias serviram de viseiras. Por isso, o estudo historiográfico dos relatos de viagem deve levar em conta a visão de história que subjaz na literatura de viagem 16. Nesse sentido, a noção de tempo(s) dos viajantes se mostra relevante em termos de historicidade. Afinal, os relatos de viagem permitiram uma moderna sistematização do conhecimento europeu sobre o mundo com o fito de superar a aparente desordem do “teatro da natureza universal” 17.
Alguns relatos de viagem sobre a África não apenas reproduzem a ideia de um estado inercial, sem tempo, como também são pródigos em hérodotage 18. Nesse sentido, eles estariam mais para logopoioi (no sentido atribuído por Tucídides) do que para historiographoi. Se para o viajante, a tradição prevalecia na África, repetindo hoje o que aconteceu ontem, a autopsia lhe dava a impressão de ser testemunha ocular da história africana. Vale lembrar que até meados do século XIX, a ruptura entre passado e presente, entre testemunha e historiador não tinha sido operada da forma como se faria pela historiografia da escola metódica.

Considerações finais

Como patchwork, os relatos de viagem foram elaborados com base em várias fontes. Os viajantes e/ou seus editores e/ou compiladores se valeram, alguns mais que os outros, de fontes orais e manuscritas, documentos de arquivos e outros relatos impressos, além de fontes iconográficas e cartográficas, sendo que nestas últimas aparecem, em geral, toponímias em línguas africanas ou europeias. Material lingüístico também pulula nos relatos de viagem; mas muitas palavras africanas (como topônimos e etnônimos) foram aportuguesadas desde os primeiros contatos, depois vertidos para o holandês, francês, inglês ou alemão. Algumas palavras mandingas ou de outras línguas africanas também foram incorporadas ao léxico dos europeus que mercadejavam na costa africana e, por conseguinte, à literatura de viagem sobre a África pré-colonial.   
Nos relatos de viagem há também uma conjunção de realidade e ficção. Não raro, a autopsia do viajante foi uma ilusão de ótica. Muitos fatores conscientes ou inconscientes, sociais, culturais e religiosos, tolheram a visão do viajante. Por isso, os relatos devem ser submetidos a uma crítica historiográfica que pressupõe, entre outros requisitos, uma análise intertextual, porquanto outros relatos de viagem permitem ajustar os exageros, corrigir certas apropriações indevidas de alguns viajantes. Também o olhar de certos viajantes nos permite ver o que outros viajantes não viram, geralmente, pelas suas viseiras ideológicas.
Nos relatos de viagem, a história da África pré-colonial subjaz nas estruturas narrativas. Mas a noção de história subjacente aos relatos de alguns viajantes revela esquemas de percepção, visões de mundo que predominaram por séculos e que tiveram certa continuidade através do colonialismo. A propósito, há uma ponte de ideias ligando o término do tráfico negreiro à fase preliminar do colonialismo europeu na África (LESTRINGANT, 1997).
A metodologia crítica ao estudo historiográfico dos relatos de viagem tem contribuído para um uso mais apropriado e menos incauto dessas fontes para a história da África pré-colonial. Escusado dizer que tal procedimento metodológico não se trata de um vade mecum. Alguns historiadores que estudam os relatos de viagem adotam um aporte diferente 19. Em artigo recente, Gérard Chouin pleiteou a transposição do modelo de Bakhtin para a análise da estrutura interna dos discursos, notadamente dos relatos de viagem sobre a África pré-colonial. Nesse sentido, o princípio da intertextualidade e o conceito de unidades informativas como unidades de sentido permitem, na opinião de Chouin, melhor apreender o relato de viagem como sendo o produto de uma rede complexa de interações dialógicas (CHOUIN, 2008) 20.
As evidências de história se inscrevem nos relatos de viagem, às vezes, onde menos se espera. Em passagens pitorescas ou descrições de costumes sobre os quais a autopsia do viajante confere significados numa teia de códigos já afro-europeia. Mas para que tais evidências possam servir para um conhecimento claro e distinto da história africana, forçoso é comparar os textos, atentar para convergências, divergências, nuances, interpolações, repetições, plágios e influências que permeiam os relatos de viagem.
Além dos estudos historiográficos realizados nas últimas décadas sobre a literatura de viagem enquanto fonte para a história da África pré-colonial, o copioso material que se encontra ainda nos arquivos e que nunca foi publicado ou cuja edição foi bastante alterada em relação ao manuscrito original deve ser cotejado pelo historiador. Da mesma forma, a análise de informações cartográficas e iconográficas pode ter melhor interface com a análise (inter-) textual dos relatos de viagem. Com base nesse corpus documental, uma maior articulação dos estudos regionais africanos enseja uma melhor compreensão das idiossincrasias, mudanças e permanências na história da África pré-colonial.

Sílvio Marcus de Souza CORREA
Membro do Centre de Recherche sur la Littérature des Voyages (CRLV).

Entre seus artigos publicados sobre relatos de viagem, destacam-se os seguintes:

CORREA, Sílvio M. de S. A antropofagia no interior da África equatorial: etnohistória e a realidade do(s) discurso(s) sobre o real. Afro-Ásia (FFCH/UFBA), Salvador, n. 37, p. 09-42, 2008.

CORREA, Sílvio M. de S.; SILVEIRA, Éder. Viajantes brancos na África negra do século XV. In: MACEDO, José Rivair (Org.). Descobrindo a história da África.Porto Alegre: UFRGS, 2008 (no prelo).

CORREA, Sílvio M. de S. Narrativas sobre o Brasil alemão ou a Alemanha brasileira: etnicidade e alteridade através da literatura de viagem. Anos 90, Porto Alegre: UFRGS, p. 227-270, 2005.

CORREA, Sílvio M. de S. Antropofagia e exotismo. Métis, Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, p. 83-98, 2004.

CORREA, Sílvio M. de S. A imagem do negro no relato de viagem de Alvise Cadamostro (1455-1456). Politéia (UESB), Vitória da Conquista, p. 99-129, 2002.

Artigo recebido em 08/12/2008. Autor convidado.

1 O presente artigo é uma versão atualizada do texto apresentado em “O olhar dos viajantes: relatos de viagem e análise histórica”, mesa-redonda composta pelos historiadores Susani Silveira Lemos (UNESP), Temístocles Cezar (UFRGS) e Sílvio M. de S. Correa (UNISC) e realizada no quadro de atividades do PPG em História da UFRGS no dia 30 de maio de 2008.

2 Professor do departamento de história da Universidade de Santa Cruz do Sul e membro do Centre de Recherche sur la Littérature des Voyages (CRLV). Endereço de correio eletrônico: scorrea@unisc.br.

3 Escusado lembrar que a escola metódica ainda em voga na Europa do início do século passado não levava em consideração outras fontes que não fossem escritas. Os historiadores Langlois e Seignobos afirmaram que «la tradition orale est par sa nature une altération continue ; aussi dans les sciences constituées, n’acceptera-t-on jamais que la transmission écrite.» (Cf. LANGLOIS; SEIGNOBOS, [1898] 1992, p. 151). Sobre a posição defendida por muitos pesquisadores europeus do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX de que a África não possuía nenhuma história antes da chegada dos europeus, cf. FAGE, 1982.

4 Para um recenseamento crítico de outras fontes para a história da África pré-colonial, além dos relatos de viagem, cf. JOHNSON, 1987.

5 Sobre as maneiras de ver e escrever “o teatro da natureza universal” pelos portugueses, cf. HENRIQUES; MARGARIDO, 1989.

6 Os relatos de Giovanni Caprini à Mongólia (1245-1247), de Marco Polo à China (1298), e de Odorico Poderdone à China e à Índia (1314/18-1330) se inscrevem nesta vilegiatura medieval que, muitas vezes, é reduzida às cruzadas e às peregrinações. Destaca-se ainda o Livro das Maravilhas do Mundo (1357),de Jean de Mandeville, um dos livros mais populares na Europa do final do século XIV. Mais de 200 manuscritos em diversas línguas europeias e 80 edições realizadas a partir do final do século XV atestam o sucesso do relato de Mandeville. Cf. FRANCA, 2007.  Cabe lembrar ainda que, durante a Baixa Idade Média, as rotas comerciais já (re)ligavam os três continentes: Europa, Ásia e África. Cf. DEVISSE, 1972; VERDON, 2007.Porém, as representações europeias da África negra eram ainda profundamente marcadas pelos cânones medievais. Cf. MACEDO, 2001.

7 Sobre a distinção entre autores escritores (auteurs-écrivains)  e viajantes (auteurs-voyageurs), cf. DELAUNAY, 1994.

8 Organizada pelo Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), Portugaliae Monumenta Africana reúne, em dois volumes, mais de quatrocentos documentos de arquivos portugueses relativos à África do século XV (1443-1499). IICT. Portugaliae Monumenta Africana. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993. 2 v.

9 Para os diferentes paradigmas da historiografia antiga, especialmente no que tange à história em Heródoto e Tucídides, cf. HARTOG, 2005.

10 Sobre as mentiras nos relatos de viagem e/ou informações etnográficas, cf. ADAMS, 1962; DUERR, 1987.

11 Sobre a influência na historiografia francesa dos esquemas de percepção e representação do real tanto em termos sincrônico quanto diacrônico, cf. CARBONNEL, 1976.

12 Cabe lembrar que muitos relatos de viagem trazem no título o termo história. Para uma análise do conceito de história que subjaz na literatura de viagem, especialmente em francês, cf. FURET, 1970.

13 Para uma análise das circunstâncias e das etapas de elaboração dos relatos de viagem, cf. DELAUNAY, 1994,p. 21-31.

14 Entre outros trabalhos, destacam-se os seguintes: JONES, 1983; FAGE, 1987; JONES; LAW, 1992.

15 Para a região litorânea da Costa do Marfim à Costa do Ouro, a pesquisa bibliográfica de referência é a do historiador A. Jones. Semper aliquid versis: Printed sources for the history of the Ivory and Gold Coasts: 1500-1750. Journal of African History, 27 (2), p. 215-235. Para a Costa dos Escravos, cf. LAW, 1987.

16 Nos relatos de viagem pela África e também pela América aparece com frequência referência ao mundo antigo como se o tempo dos africanos ou dos americanos fosse um tempo de repetição, de estagnação. Esse tempo contrastava com o tempo cristão, acumulativo e progressivo. No imaginário moderno europeu havia um centro civilizado (Europa), do tempo acumulativo e progressivo, e uma periferia de barbárie (África e/ou América), do tempo inercial. Uma analogia ou uma atualização daquela distinção (temporal e espacial) entre gregos e bárbaros parece sugestiva para o estudo da visão histórica de mundo dos viajantes europeus que estiveram na África pré-colonial.

17 Em seu estudo historiográfico sobre os relatos de viagem à Costa do Ouro (1500-1750), Delaunay sugere uma influência da obra de André Thevet (1557) sobre P. de Marees (1602). DELAUNAY, 1994., p.42.

18 Talvez seja nessa questão que a obra André Thevet tenha exercido maior influência em outros autores a incorporar em seus textos as “singularidades” do Novo Mundo. Sobre héredotage, colaboração de “escravo literário” e plágio nos textos de André Thevet, cf. LESTRINGANT, 1997.

19 A pesquisa de Karine Delaunay (1994), por exemplo, se filia à metodologia crítica introduzida por Jones, Dantzing e Law, entre outros, na década de 1980. As recentes pesquisas de Gérard Chouin diferem de Delaunay et al. ao buscar transpor o modelo analítico de Bakhtin para o estudo historiográfico dos relatos de viagem.

20 Em trabalhos anteriores, o historiador ganaense não se valeu do approach bakhtiano, embora tenha realizado minuciosa crítica historiográfica das fontes escritas europeias do século XVII, especialmente sobre a Costa d’Ouro. Através de documentação europeia, principalmente francesa e holandesa, Chouin logrou uma história das relações internas e externas dos reinos africanos da área costeira do atual Gana. Cf. CHOUIN, 1998; 1996.

 

Referências:

 

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