A Estética realista dos filmes sobre a ditadura militar no Brasil


Cristiane Freitas Gutfreind
Helena Stigger
Guilherme Brendler


1 Introdução
2 A Subjetividade do realismo estético
3 A Representação do real
4 Realidades históricas diferentes: uma mesma estética
5 À guisa de conclusão: a ética da estética
Notas
Referências

RESUMO
Os critérios de noticiabilidade e os valores-notícia na cobertura política no Brasil foram redefinidos com o surgimento das mídias legislativas, entre outros veículos institucionais criados na década de 1990. O jornalismo produzido por essas mídias leva a informação diretamente ao cidadão, além de alimentar veículos e empresas jornalísticas. Entretanto é questionado como prática assistencialista e paternalista do Estado, que se apropria de técnicas jornalísticas para influenciar a opinião pública. O texto discute o impacto informativo desse modelo, que resultou na criação de uma nova categoria, as chamadas “mídias de fontes”, que oferecem o noticiário pronto, evitando que os fatos relacionados à sua atuação institucional passem pelos filtros da mídia privada.
PALAVRAS-CHAVE: Legislativo. Informação política. Noticiabilidade. Valor-Notícia.


1 Introdução

O cinema pode ser compreendido como uma estrutura plural que engloba produção, consumo, práticas, criatividade e diferentes valores que dizem respeito a uma sociedade específica. Nesse sentido, o cinema concerne à organização sociocultural da sua produção e, ao mesmo tempo, à experiência fílmica que aporta a uma sociedade específica; mais particularmente, podemos dizer que o cinema, assim como outras mídias, funciona como um produto de base da sociedade contemporânea, da consciência e da experiência dos indivíduos de uma determinada sociedade.

No seu livro, O super homem de massa, Umberto Eco se entretém com a possibilidade de alguém ter acessos de risos durante a projeção do filme Love Story (1970), de Arthur Hiller. Pois é evidente, para ele, o quanto é improvável essa situação, pois o filme é um clássico do cinema melodramático. O que o autor deseja ilustrar são as narrativas construídas para produzir no espectador emoções tais como medo, tristeza, riso, piedade etc. Assim como é impraticável enganar a química para comer um doce e sentir o gosto do salgado, existe também uma química das emoções que são aguçadas diante de uma narrativa com um enredo bem elaborado. Este nos parece o caso de Love Story, como de Pra frente Brasil (Roberto Farias, 1984) e Batismo de Sangue (Helvécio Ratton, 2007).

Esses filmes ilustram uma escolha estética que se utiliza de um formato fílmico não reflexivo, entendido aqui como filmes que insistem em trabalhar com enquadramento clássico, de fácil decodificação, enfatizando sempre a tortura, sobretudo em cenas que utilizam o pau de arara. Esses filmes, realizados em contextos históricos diferenciados, permitem-nos analisar a construção estética inspirada das mutações e subjetividades da realidade, a partir da idéia do realismo e da representação.


2 A Subjetividade do realismo estético

Os filmes inspirados em fatos históricos, tais como Pra Frente Brasil e Batismo de Sangue nos levam a pensar que o filme trata dos diferentes níveis da realidade , integra-se a uma representação do imaginário que fica reificada em uma obra onde a realidade física e mental resiste à passagem do tempo e às modificações que essa obra provoca na realidade na nossa maneira de ser e de pensar. Essa característica particular da imagem cinematográfica foi instaurada desde o tempo dos irmãos Lumière. O imaginário cinematográfico se manifesta através de uma obra que se coloca, então, como documento, como testemunha de uma realidade complexa e estratificada, revelada ao menos teoricamente e podendo ser revista a qualquer momento, ao longo dos anos e em qualquer país.

No entanto, esse imaginário, mostrado de acordo com as idéias, o gosto e a mentalidade do realizador em sua época, entra em interação com a mentalidade, com a maneira de viver e de pensar dos consumidores de cinema. O público ao qual o filme é dirigido, por ser formado de indivíduos histórica, cultural e socialmente determinados, apresenta diferenças entre si (de tempo e de espaço), e suas reações tornam o imaginário ainda mais complexo e rico de ressonâncias. Portanto, o filme propõe a cada indivíduo a vivência de uma experiência particular, onde cada um reage segundo a sua situação histórica e cultural, coletivamente compartilhada. Assim, analisar os filmes é uma maneira de apreender o cinema como representação da sociedade que, de maneira direta ou indireta, através de histórias mais ou menos prováveis, modelam a forma como percebemos o mundo vivido.

Nesse sentido, a ficção é criada, partindo da idéia de falso ou verdadeiro, assumindo-se como tal e é através de sua difusão que ela encontra uma conexão com o real. Dessa maneira, o filme transcreveria o real através de instrumentos que lhe são próprios, ou seja, o fato de que a realidade apresentada na tela de cinema integra o aspecto apreendido pelas formas de expressão do momento, a escolha do diretor, as expectativas dos espectadores e a própria noção de cinema.

O realismo é, então, necessariamente uma construção estética e original que se esforça para dar conta de uma variedade de fenômenos subjetivos e mutantes definidos como realidade. Uma obra é realista quando resulta de certo empirismo, ou seja, quando encontramos uma organização das aparências próxima daquela que nos aporta o mundo sensível. Com diz Jean Mitry (2001), o filme realista nunca é a imagem do mundo, ele deve ser estabelecido de acordo com a imagem desse mundo.

Nas suas diferentes fases, desde a Segunda Guerra Mundial, o realismo foi marcado pelo realismo noir francês (nada a ver com o film noir americano) caracterizado pela falta de romantismo e por um pessimismo desesperado tendo como representantes diretores como Carné, Cluzot e Duvivier. Em seguida, o realismo foi influenciado pelo expressivo movimento do neo-realismo italiano, sofrendo um hiato de duas décadas e retomando a sua força nos anos 1990 através de um realismo social espalhado em diferentes cinematografias, como a inglesa, a francesa, a iraniana e a brasileira.

Para compreender o realismo e suas diferentes fases, precisamos ter em mente a idéia do que é o real. Em seu sentido etimológico, o real deve ser entendido por aquilo que existe por si mesmo e por algo que diz respeito a coisas. Por outro lado, a realidade corresponde a experiência vivida do sujeito que realiza o real. Essa experiência é da ordem do imaginário, por isso, ao fazermos referência ao cinema, nos colocamos diante de uma lógica que diz respeito à impressão de realidade, e não de impressão de real.

Esse dado sobre a realidade é relevante a partir do momento que os filmes analisados são inspirados na realidade, realidade essa histórica. Não são filmes que possam ser definidos como históricos, mas servem como documento no sentido dado por Kracauer de sintoma de uma realidade histórica em sua obra Theory of film, cujo subtítulo, Redemption of Physical Reality, descreve o intuito do autor de encarar a realidade como uma contingência que a permite intervir no mundo, além de afirmar o seu papel fundamental na construção da imagem, em detrimento de uma valoração exclusiva da técnica.

Além disso, segundo Kracauer, o que movimenta uma escrita sobre a imagem é uma obsessão pelo real, ou seja, pela história. Então, na concepção do autor, a dedicação à história possibilita perceber que o discurso sobre mundos passados alimenta aquilo que é eleito como objeto de registro cinematográfico e, assim possibilita uma redenção através das imagens e uma desmistificação de formas e sujeitos que são convenientes tanto à historia como ao cinema, através da análise da sua capacidade de escrita e registro.

Assim, o cinema possui a capacidade de escrever de forma a contrariar a historia. e é essa mesma capacidade que faz do cinema um meio suscetível de apreender estéticas, narrativas e formatos diferenciados. O cinema deve, então, aceitar sua capacidade heterogênea em que a realidade é contrariada pelo poder das fábulas, da intriga, etc., e pela capacidade de desmistificar formas e sujeitos que são convenientes tanto à historia como ao cinema, através da análise da sua escrita e do seu registro, logo da sua capacidade de representação do real.


3 A Representação do real

O cinema canaliza, portanto, em seu aporte, uma impressão de realidade baseada na experiência empírica do realizador e da sociedade ao qual ele pertence. Em sua condição de discurso, o cinema, assim como todas as formas narrativas, abrange um enunciado e um espectador. Diferentemente de um romance, a gramática cinematográfica é composta por um conjunto de elementos como a imagem, som, música entre outros que, organizados, contam uma história. Entretanto, a forma como esses componentes são gravados em imagens e ordenados numa seqüência narrativa, não é única. Renato Ortiz (2006) traça uma divisão entre duas formas de representação midiática: o realismo reflexo e o realismo reflexivo. O primeiro se ocuparia de retratar uma narrativa com elementos audiovisuais que propõem uma impressão de realidade para que o espectador experimente uma verossimilhança com o mundo que o cerca. Desse modo, a estética utilizaria elementos de fácil decodificação do espectador para criar um realismo a suas histórias. O segundo modelo de realidade seria uma representação diferenciada dos modelos da cultura de massa. Esses audiovisuais, apesar da estética incomum, também trabalham com um tipo de realismo quando, através das imagens, fazem com que o espectador reflita sobre o que se está sendo mostrado na tela. Nosso pressuposto é que estes dois filmes escolheram utilizar um código de representação audiovisual menos experimental aproximando-se da proposta de realismo reflexo, porque o propósito destas obras faz este tipo de exigência: construir uma memória nacional e oferecer elementos representativos para pensar a ética através da estética, discussão que será desenvolvida mais adiante.

Ismail Xavier, no seu livro O olhar e a cena (2003), propõe pensar a impressão de realidade do cinema no momento em que a própria vida se transformou em uma teatralização da experiência, cuja cena privada que era restrita ao âmbito familiar destinou-se ao exibicionismo do público. Para isso, ele dirige sua argumentação para a análise de como o cinema se apropriou do ideal cênico idealizado por Diderot para colocar o espectador no papel da “quarta parede”. Ou seja, como o cinema, e que tipo de cinema, propôs um formato onde há o jogo de dualidade entre o espectador voyeurista e uma arte que se impõe como objeto de desejo.

Baseado nas teorias de Diderot, Xavier salienta que o cinema ilusionista tem seus primórdios no teatro. Insatisfeito com a tradição cênica iluminista do século XVIII, que privilegiava o texto poético, Diderot idealizava um teatro mais voltado para a produção da cena, das aparências, dos detalhes visuais. Com o advento da Revolução Francesa, que ocasionou novos horizontes políticos e o desenvolvimento da ilustração, nasce um teatro popular. “Aí se consolida o gênero dramático de massas por excelência: o melodrama” (XAVIER, 2003, p.39). O cinema, com todos os seus recursos técnicos e de linguagem, se torna a mais notória arte ilusionista por promover um distanciamento entre a representação e a platéia, por trazer a vida ordinária às telas e ao mesmo tempo, garantir a esse público um espetáculo de projeções seguras e sem sofrimento real. Este cinema estaria nos moldes de um cinema clássico[¹]. Xavier analisa também os filmes que estariam às margens dessa configuração, tais como os filmes de vanguarda dos anos 1960 e os filmes políticos brasileiros produzidos na mesma época[2]. Entretanto, nas palavras do autor, “[...] esse cinema que faz pensar”, um cinema reflexivo, como definiu Ortiz, deriva de uma outra perspectiva de trabalho que não nos é conveniente neste momento. Para nossos objetivos, cabe perceber que Pra frente Brasil e Batismo de Sangue pertencem à mesma construção desse cinema da quarta parede, e as cenas de torturas estão esteticamente a serviço da observação.


4 Realidades históricas diferentes: uma mesma estética

Realizados em épocas e situações políticas extremamente distintas, ambos os filmes analisados neste trabalho ainda chamam a atenção pela ousadia de abordar as cenas de tortura da maneira que o fizeram. Pra Frente Brasil, dirigido por Roberto Farias, estreou no ano de 1982 em pleno regime militar. Mesmo que o momento do País propiciasse a abertura política, o projeto de Farias foi bastante arrojado por enfatizar naquela época a violência com que o estado agiu durante quase 20 anos. O filme venceu o prêmio C.I.C.A.E. em 1983, no Festival de Berlim, recebeu dois troféus do Festival de Gramado como Melhor Filme e Melhor Montagem e também ganhou a Margarida de Prata, congratulação cedida pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Já Batismo de Sangue foi realizado num contexto político e social bem menos tenebroso. Realizado em 2006, período em que a democracia no Brasil se encontrava mais consolidada, depois de quatro mandatos presidenciais eleitos pelo voto (um deles interrompido por um impeachment). Mesmo produzido em outro momento, o filme de Helvécio Ratton, assim como a obra de Farias, causou estranhamento[3] entre o público espectador e entre a crítica, pelo excesso de cenas de tortura reproduzidas no filme inspirado no livro homônimo de Frei Betto. A película de Ratton também foi premiada: Melhor Direção e Melhor Fotografia no Festival de Brasília, em 2006, e Melhor Fotografia do Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá, em 2007.

Mesmo diante de tempos históricos diferentes e por mais que as realidades desses períodos se diferenciem muito, pode-se afirmar que os longas-metragens Pra frente Brasil e Batismo de Sangue, antes de qualquer coisa, são filmes sobre a tortura. Exploram de forma demasiada as cenas chocantes de violência física e moral com o intuito de alertar para o que acontecia com pessoas contrárias à ideologia dos comandantes do regime militar.

O primeiro filme exibe a história de Jofre, homem apolítico que é confundido com um militante de esquerda. É seqüestrado pela polícia militar, que vê nele um possível informante. O segundo, mostra a vida dos frades dominicanos que militavam no movimento estudantil e atuavam ao lado de líderes da esquerda, principalmente com Carlos Marighella.

Em Pra frente Brasil, Jofre é casado, pai de dois filhos e tem um bom emprego. Numa viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro, cidade onde mora, não consegue um lugar no mesmo vôo que sua mulher e seu irmão para a volta ao Rio. Por isso, embarca sozinho num avião que sai antes. Na aeronave conhece um sujeito que se identifica como Sarmento. Na saída do aeroporto, divide um táxi com esse homem em direção ao centro da cidade. No meio do caminho, o carro em que estão é perseguido por uma camionete sem identificação e inicia-se uma troca de tiros entre os homens da camionete e Sarmento, que é morto no confronto. O motorista do táxi também é alvejado pelos homens da camionete para que não servisse de testemunha e Jofre é levado – capuz na cabeça – para ser interrogado.

Chegando ao local da inquirição e sem saber muito bem o que acontecia, Jofre teve que responder às perguntas do comandante do interrogatório sobre o homem que estava com ele no táxi. A cada negativa de Jofre, o homem – que exigia ser chamado de Doutor Barreto – ordenava mais pancadas. Jofre passou por diversas sessões de tortura com choques elétricos, espancamento no pau-de-arara, apanhou várias vezes com socos e pontapés desferidos pelos homens da repressão e humilhado pelos comentários maldosos dos soldados que vasculharam suas coisas e encontraram fotos da esposa dele. O líder dos torturadores exige o respeito do torturado e, em caso de desobediência, usa as próprias mãos para agredi-lo. Há entre os dois uma série de diálogos e enfrentamentos, pois Jofre não se intimida em confrontar o torturador com agressões verbais, tampouco ignora o fato de que cada vez que ofende Barreto, a intensidade dos golpes aumenta.

Em dado momento do filme, Jofre está sendo preparado para mais uma sessão de tortura quando um dos policiais informa ao grupo que faria o trabalho, e que o jogo da seleção brasileira de futebol (o filme inicia com o começo da Copa do Mundo de 1970 e acaba com o fim da mesma) estava começando. Imediatamente os policias saem da sala onde está o torturado e rumam para a frente da televisão. Depois de ouvir um conselho do Dr. Barreto – “torce para o Brasil ganhar” –, Jofre iniciou uma reflexão em voz alta sobre o que estava acontecendo com ele. Fez uma série de questionamentos sobre o que estava se passando. Jofre havia concluído que não era um militante, sempre fora apolítico, neutro, nunca tinha sido terrorista, tinha família e pagava seus impostos e, por isso, não deveria ser torturado. Apenas no final dos seus pensamentos ele chegou à conclusão de que “uma coisa dessas não se faz com ninguém”.

É fácil perceber o desconhecimento e também o desinteresse político por parte dos personagens. Miguel, irmão e colega de trabalho de Jofre, menciona em alguns momentos a existência de censura na imprensa, o que é visto com certa incredulidade pelas outras pessoas. A esposa de Jofre é extremamente alienada. Diz não saber o que acontece no País e pouco se importa com política; a única coisa de que ela quer saber é do marido dela.

Batismo de Sangue possui uma característica muito particular que ratifica gradualmente o momento que o personagem Tito passa durante a história. As cenas de tortura com ele aparecem em flash backs para atormentá-lo. As palavras de baixo calão usadas pelo delegado Fleury, as ordens dele e de seus subordinados, as ameaças – “agora você vai conhecer a sucursal do inferno” ou “quando venho pra cá, deixo o coração em casa” – voltam em visões de forma constante para aumentar a tensão psicológica do frade. Batismo de Sangue mostra uma das formas utilizadas para as torturas com mulheres e exibe como essas práticas escusas dos soldados faziam mal a frei Tito. Pouco a pouco, o espectador acompanha a derrocada psicológica do personagem cuja saúde mental vai decaindo no decorrer da película, até o suicídio. Durante a denúncia daquilo que passou na prisão, o promotor confessa diante de frei Tito e de seu advogado: “A tortura é um ato tão terrível que é melhor nem falar”.

Traços culturais que formam os laços sociais no País e já foram amplamente discutidos por teóricos como Roberto DaMatta aparecem em ambas as histórias. Em Pra Frente Brasil, Jofre e seu irmão trabalham na mesma empresa e têm como colega um homem cujo tio é general do Exército. Através desse colega, o irmão do desaparecido tenta saber do paradeiro de Jofre, mas não obtém êxito. O amigo não quer usar a influência que possui (por motivos que não ficam muito claros) e, por isso, é repreendido pela esposa. Em Batismo de Sangue, Frei Betto é preso, mas não torturado. Ele tem um tio general e, portanto, está imune de qualquer ato bárbaro por ser familiar de um militar costas largas. Os valores familiares e de amizade são determinantes nas ações dos personagens. O irmão de Jofre busca a qualquer custo uma intervenção do amigo, sobrinho de um general e frei Betto não apanha e, além disso, recebe tratamento VIP por ter relações familiares com membros da ditadura.

Outra característica que denota essa afirmativa é o fato de a família de Jofre (principalmente sua mulher) ter acordado para o que acontecia no Brasil naquele momento só com o desaparecimento dele e com os indícios de que Jofre teria sido seqüestrado pela própria polícia. Só assim ela decidiu encarar a realidade e buscar informações sobre o que realmente estava acontecendo no País. Isso não ocorre em Batismo de Sangue, porque os frades militantes já sabiam como era o funcionamento das técnicas de interrogatório. Nenhum deles ousou desafiar os torturadores com palavras ofensivas, muito menos o seu líder, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que também se utiliza da própria força braçal para amedrontar os torturados. No primeiro filme, o desconhecimento das regras do jogo, a alienação e o desinteresse provocam interesse, bravura e contestação. Por outro lado, na segunda película, conhecimento, engajamento e luta resultam em assentimento, medo e silêncio.

A falta de informações precisas que os familiares de Jofre enfrentam, não existe em Batismo de Sangue. Os frades e outros membros da igreja católica estão cientes do que acontece, possuem advogados que trabalham na defesa dos presos, com raras exceções, todos sabem onde estão os prisioneiros e há o engajamento político que inexiste em Pra frente Brasil. Os atos horrendos do governo são apenas uma suspeita em Pra frente Brasil. Comenta-se, sem muita certeza, que os jornais estão censurados e que não se falam notícias contrárias ao governo. Em Batismo de Sangue isso é claro para os personagens, que sabem onde e com quem estão envolvidos.

Enquanto Jofre é levado para o que parece ser um campo de treinamento militar distante da zona urbana do Rio de Janeiro, os frades de Batismo de Sanguesão torturados dentro das dependências do Ministério da Marinha. Por mais que existam relatos que confirmem esse dado, as cenas de tortura dentro das dependências do Ministério chocam mais ainda, por se tratar da sede de um órgão governamental. Quer dizer, o fato de um aparelho do Estado ser utilizado como sala de tortura provoca ainda mais asco ao espectador. A figura do torturador Barreto parece ser menos imponente que a de Fleury (um personagem real, assim como os frades de Batismo de Sangue), sem a mesma ambição e prestígio perante os outros órgãos do governo que o seu equivalente no filme de 2007. Deve-se lembrar que Fleury dá telefonemas e tem prestígios com os generais e ministros de Estado.

Portanto, essas duas filmografias exploram a tortura sob a mesma estética cinematográfica, apesar da diferença cronológica de produção que existe entre as duas. Pra frente Brasil e Batismo de Sangue são filmes que transportam para a tela os horrores praticados e vividos durante a ditadura militar, com a missão de atrair um grande público.


5 À guisa de conclusão: a ética da estética

Após a análise podemos constar, fundamentados pelas formulações de Aristóteles em duas obras a Poética (2003) e a Retórica (2007), que o caminho para a construção de um bom filme ou romance popular ainda carece dos pressupostos aristotélicos. Como elucidou Eco, que Aristóteles tenha arquitetado sua teoria pensando somente na tragédia, isso é irrelevante, pois a mesma pode ser aplicada a outras formas narrativas. Na Poética, o autor aponta duas características essenciais da poesia: a imitação e o ritmo. A primeira refere-se a uma propriedade inata do homem, a imitação, e que, através dela, o indivíduo adquire seus primeiros conhecimentos e experimenta o prazer. (ARISTÓTELES, 2003, p.30) Daí resulta a explicação de Aristóteles para nosso deleite diante de uma representação de dor. Assistir na arte uma cena que nos causaria repugnância na vida real nos instrui, pois o sofrimento mediado se torna uma ferramenta passiva propícia para o aprendizado. Ainda coerente com os pressupostos aristotélicos, entendemos que melhor será a representação, que ousar nos detalhes e nas cores. A segunda característica da poesia também é algo natural do homem e, da mesma forma, lhe causa prazer. Ela se refere ao ritmo e a harmonia. Como já vimos, o cinema tem uma linguagem própria composta por elementos heterogêneos que, comparada a outras formas narrativas, devido ao privilégio da junção da imagem, som e movimento, nos parece ser a arte que melhor se apresenta como realidade. Fiel aos ensinamentos aristotélicos, o cinema clássico favorece os detalhes dos objetos e dos atores e orienta com precisão o ritmo através de uma cuidadosa montagem, cujas trocas de planos são imperceptíveis ao espectador.

Retomando aos filmes em estudo, Pra frente Brasil e Batismo de Sangue, percebemos que neles são correntes as cenas de tortura. Assim, concluímos, que tais elementos cênicos não são gratuitos, e estão compostos de forma que o compartilhamento da dor e da humilhação são inevitáveis: “Todas as coisas dolorosas e desagradáveis estimulam a compaixão” (ARISTÓTELES, 2007, p.102-103). No caso do Pra frente Brasil, nossa compaixão com o personagem nos parece maior, pois Jofre é um homem casado, pai de dois filhos, trabalhador, não luta contra o governo e não tem inclinações para a esquerda, ou seja, ele é o protótipo do homem ideal para a sua época. Entretanto, por um engano, ele acaba vítima de fortes torturas. Posto dessa maneira, ele nos inspira compaixão, uma vez que representa qualquer sujeito sem culpa que, ao acaso, é acusado injustamente de ser um militante de esquerda: “Deste modo, sentimo-nos piedosos quando o perigo nos circunda. Também somos piedosos com aqueles que se assemelham a nós, seja na idade, no caráter, na disposição, na posição social ou no nascimento, pois, em todos esses casos, é mais provável que venhamos a sofrer os mesmos infortúnios” (ARISTÓTELES, 2007, p.102-103). No caso de Batismo de Sangue, trata-se de personagens inspirados na vida real que eram militantes de esquerda e arriscaram suas vidas pelas causas que consideram justas. Diante deles, a projeção de um espectador apolítico ou de um jovem que não vivenciou os anos de ditadura militar no Brasil, pode não provocar compaixão, mas medo. Hoje está clara a nossa liberdade de escolha política, afinal de contas vivemos numa democracia, mas nada nos protege quanto ao infortúnio de um dia sermos torturados por alguém. O exercício dessa possibilidade nos causa arrepios, e por essa lógica, aqueles personagens que sofrem castigos físicos, e principalmente aqueles que conseguem sobreviver a eles, tornam-se uma espécie de heróis. E para aqueles que não resistem, como é o caso do Frei Tito, sobrevém nossa compaixão.

Compreende-se que existe um crescente número de produções cinematográficas brasileiras cujas historias fazem reiteradas referências à ditadura militar. De forma variada, podemos entender que a leitura dessas imagens nos remete a pensar o castigo físico como o acontecimento mais marcante da negatividade do regime militar. Podemos ainda observar que a maioria desses filmes[4], tais como Pra frente Brasil e Batismo de Sangue, optou por um tipo de cinema que utiliza recursos estéticos amplamente reconhecidos por um grande público para caracterizar o sofrimento. Assim, nos parece evidente que penalidades físicas não são toleradas na nossa sociedade. Procuramos debater sobre a escolha estética destes filmes, o porquê de utilizar um formato fílmico não reflexivo.

Nadja Hermann escreveu o livro Ética e estética: a relação quase esquecida. Nele, a autora retrata, sob o ponto de vista da Educação, o momento histórico em que estamos. Hermann verifica que na atualidade estamos vivendo uma crise dos valores morais consumados pela modernidade, uma vez que os projetos racionais baseados na crença iluminista estão em descrença, frente a um passado trágico de guerras, preconceitos, genocídios etc. Autores como Nietzsche e Foucault, entre outros, já mostraram que os valores morais não são universais nem transcendentes, mas o seu oposto. Diante dessa crise, a autora constata que a formação moral não pode mais ser constituída somente por elementos racionais: “As normas morais universais, apoiadas na metafísica, resultam em meras abstrações, incapazes de articular a diferença e a pluralidade” (HERMANN, 2005, p.13-14). Assim, ela propõe um aprendizado da ética através da estética: “A estética aparece sempre associada à possibilidade de reter possibilidades que são irredutíveis ao pensamento racional” (HERMANN, 2005, p.29).

Com o auxílio dos estudos da autora, compreendemos que a escolha estética de Pra frente Brasil e Batismo de Sangueé coerente com uma atitude educacional: mostrar aos espectadores as atrocidades políticas de um passado não tão distante. Por isso, eles batem sempre na mesma tecla da tortura. Em relação ao cinema da quarta parede e sua capacidade educacional, Xavier salienta:


Sua otimização do ‘olhar dramático’é o ponto-limite de um projeto de expressão total da natureza na representação. Reflete um ideal de domínio e controle da aparência como sinal de ‘conhecimento da natureza’, um ideal que inscreve a arte como espelho pedagógico que requer a competência tecnológica de ‘criar ilusão’ e, por essa via, atingir a sensibilidade: a passagem das trevas à luz se faz de efeitos sobre o olhar (XAVIER, 2003, p.39).

Esses filmes desaparecem como obra em função da homogeneidade da representação padronizada, mas se tornam um conjunto que pode ser definido como filmes sobre a ditadura militar brasileira. Entretanto, hoje, através de uma função ética, essas obras promovem um maior conhecimento sobre a tortura. Parafraseando Kracauer: tais obras evidenciam os sintomas sociais e, inevitavelmente, alteram o nosso imaginário histórico, como, por exemplo, Pra frente Brasil, que exibe algo muito corriqueiro nos porões dos regimes autoritários. O policial Barreto faz a tradução simultânea de um treinamento de tortura ministrado por um oficial americano. Quem assiste à aula são funcionários do governo, captadores de recursos para o combate aos movimentos de esquerda, e empresários, financiadores da repressão. Como instrumento de análise, está um preso que serve de cobaia para as demonstrações orientadas pelo norte-americano que diz: “o problema do cassetete é que muitos gostam”. A prática humilhante de conotação sexual gera risadas da platéia animada. Devido a cenas assim, é que o cinema promove esse diálogo entre o presente e o passado, possibilitando uma reconstrução da História.

Mas esses filmes, dentro de suas escolhas estéticas, ainda têm mais um obstáculo para vencer: precisam resistir ao tempo e, ao tempo, só sobrevivem as obras de arte.


The Realistic aesthetic in the films on brazilian military dictatorship
ABSTRACT
Cinema directs, on its input, an impression of reality based on empirical experience of the director and the society to which he belongs. In its condition of discourse, the cinema, as well as narrative forms, covers a statement and a spectator. Unlike a novel, the “movie grammar” is composed by a number of factors such as image, sound, music, among others that are organized to tell a story. However, the way these components are recorded in pictures and ordered on a narrative sequence is not unique. Therefore, we can think about what the purpose of an aesthetic choice is usual in the movies Pra Frente, Brasil and Batismo de Sangue to represent the Brazilian military dictatorship.
KEYWORDS: Brazilian cinema. Military dictatorship. Aesthetics.


La Estética realistica de las películas sobre la dictadura militar en Brasil
RESUMEN
El cine canaliza en su aporte una impresión de realidad basada en la experiencia empírica del realizador y de la sociedad a la cual él pertenece. En su condición de discurso, el cine, así como todas las formas narrativas, abarca un enunciado y un espectador. A diferencia de una novela, la “gramática” cinematográfica está compuesta por un conjunto de elementos como imagen, sonido, música, entre otros que, organizados, cuentan una historia. Sin embargo, la forma como estos componentes son grabados en imágenes y ordenados en una secuencia narrativa no es única. De esta forma, podemos pensar cuál es el propósito de una elección estética usual en las películas Pra frente Brasil y Batismo de Sangue para representar la Dictadura Militar Brasileña.
PALABRAS CLAVE: Cinema brasileño. Dictadura militar. Estética.


Notas
[1] Compreendemos cinema clássico como uma obra cinematográfica que procura recriar uma impressão de realidade utilizando elementos estéticos padronizados pelo cinema industrial americano: “montagem em continuidade, centralização figurativa no plano, convenções em relação ao espaço e ao ponto de vista, montagem paralela de várias ações, unidade cênica e princípios de decupagem” (AUMONT; MARIE, 2003, p.54-55). Neste sentido, estas obras têm como objetivo facilitar a decodificação para o espectador, ou seja,“comunicar uma história com eficácia” (AUMONT; MARIE, 2003, p. 54-55).
[2] De acordo com Xavier, nos anos 60, na América Latina, eclodem movimentos cinematográficos preocupados em fazer de suas obras uma discussão para se pensar os problemas sociais. No Brasil, temos o Cinema Novo, um movimento que documenta e discute em suas obras os contrastes e as precariedades da realidade social brasileira urbana e, principalmente, agreste. A partir dos meados dos anos 60, o Cinema Novo trouxe um novo tema, que se tornaria assíduo na produção das duas décadas seguintes: o golpe militar e a denúncia de seus impactos sobre a população tais como as agressões aos direitos humanos, o cerceamento da imprensa, do movimento sindical, etc. Na sua análise, Xavier também trabalha com filmes estrangeiros, tais como A história oficial (Luis Puenzo, 1985). Segundo o mesmo autor, estes filmes procuravam uma forma de representação distinta da naturalista, pois os padrões culturais do cinema de grande público procuravam, em sua maioria, uma reprodução estética das aparências e este formato “estabelece limites muito claros para a discussão da experiência social” (XAVIER, 2003, p.129).
[3] Como exemplo, pode-se citar duas matérias publicadas na imprensa nacional: “Batismo de Sangue peca pelo didatismo”, crítica de Pedro Butcher publicada em 20 de abril de 2007 no jornal Folha de S. Paulo e “Criticar cenas de tortura no ‘Tropa’ é censura, diz diretor”, em que o autor da reportagem publicada em 23 de outubro de 2007 no jornal O Estado de S. Paulo, Alexandre Rodrigues, comenta que Pra Frente Brasil e Batismo de Sangue também foram muito criticados por expor a tortura de forma escancarada, como acontece em Tropa de Elite.
[4] Tais como: Que Bom Te Ver Viva (Lúcia Murat, 1989), Lamarca (Sérgio Resende, 1994), O Que é Isso Companheiro? (Bruno Barreto, 1997), Caminho dos Sonhos (Lucas Amberg, 1998), Ação Entre Amigos (Beto Brant, 1998), Dois Córregos (Carlos Reichenbach, 1999) Araguaya - A Conspiração do Silêncio (Ronaldo Duque, 2004), Tempo de Resistência (André Ristum, 2004), Cabra-Cega (Toni Venturi, 2005), Vlado — 30 anos Depois (João Batista Andrade, 2005), Quase Dois Irmãos (Lúcia Murat, 2005); Dom Helder Câmara - O Santo Rebelde(Erika Bauer, 2006), Zuzu Angel (Sérgio Resende, 2006), Sonhos e Desejos (Marcelo Santiago, 2006), Batismo de Sangue (Helvécio Ratton, 2007).

Referências

[<]ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martin Claret, 2003.

[<]_____. Retórica. São Paulo: Rideel, 2007.

AUMONT, Jacques ; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. São Paulo: Papirus, 2007.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

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Doutora em Sociologia / PUCRS.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação / PUCRS
Coordenadora do projeto A Representação fílmica da ditadura militar no Brasil
E-mail: cristianefreitas@pucrs.br
Curriculo Lattes

Mestre em Comunicação / PUCRS.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação / PUCRS.
Bolsista do CNPq, no projeto A Representação fílmica da ditadura militar no Brasil
E-mail: lenastigger@hotmail.com
Curriculo Lattes

Jornalista
Graduando em Jornalismo / PUCRS
Bolsista BPA / PUCRS integrante do projeto A Representação fílmica da ditadura militar no Brasil
E-mail: guilhermebrendler@gmail.com
Curriculo Lattes