Pedras e emoções:

os percursos do patrimônio


Marlise Giovanaz


Notas
Referências

RESUMO
O texto propõe uma breve reflexão sobre o tema do patrimônio cultural e as bases filosóficas e históricas sobre as quais se estruturou este debate no Brasil. Procurou-se apontar as principais críticas recebidas pelo programa de preservação adotado no país e a implementação, a partir do ano 2000, da política de preservação do patrimônio imaterial, como uma tentativa de ampliar e atender aos grupos excluídos pela política cultural fundamentada na materialidade.
PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio cultural. Preservação. Memória social. Patrimônio imaterial.


As modificações que ocorrem no espaço onde habitamos afetam diretamente nossos trajetos diários e lugares referenciais. No contexto em que vivemos, onde os espaços são duramente disputados pelo mercado imobiliário, o problema da preservação do dito patrimônio histórico e cultural está na ordem do dia. Neste texto me proponho a levantar alguns elementos para discussão a partir do problema da preservação da memória tendo como base o patrimônio cultural.

A cidade guarda em sua imagem marcas de vários momentos diferentes de luta: as teimosas marcas inscritas nas pedras das calçadas, os monumentos erguidos aos sucessivos vencedores, ou seja, marcas do passado que recebem significados diversos no transcorrer do tempo. Nesse processo de construção e edificação ao longo da história, as tentativas de construção de uma memória social sempre passam por um julgamento do passado, visto como inferior ao presente. A política brasileira de preservação de patrimônio histórico deriva dessa política geral em respeito à História. Ao atribuir à História uma única voz e uma única direção, se escondem e se silenciam outras narrativas de acontecimentos passados e presentes. E essa história se torna “oficial”, a única necessária e documentável.

Cada geração relê e refaz o patrimônio de sua Nação, em uma leitura feita do presente em direção ao passado, que é lido e interpretado de acordo com os sistemas simbólicos vigentes que lhe atribuem significados. Partindo dessa premissa, resta-nos pensar qual patrimônio desejamos preservar. Como nos coloca Ulpiano Bezerra de Menezes


[...] qual cidade vamos preservar? A cidade dos antepassados, dos heróis fundadores (e dos vilões), dos donos do poder, de ontem de hoje? Ou conforme a fonte de informação, a cidade dos eruditos e dos historiadores, dos poetas oficiais, dos urbanistas, dos tecnocratas planejadores? Dos habitantes? Quais? Dos homens da rua e daqueles que com suas mãos a constrói, simples instrumento? (MENEZES ,1992)

O autor sugere que é necessário abordar o problema das cidades como um campo de forças onde se travam as lutas sociais, políticas, afetivas, identitárias e a paisagem que resulta dessas disputas é uma acumulação de tempos. (MENEZES,1992)

Porém não é este o modelo real e palpável que se nos apresenta. Nossa realidade é de destruição dos lugares de memória, de desenraizamento, de desconstrução dos suportes sociais da memória coletiva. Todos esses elementos são criadores dos sentimentos de continuidade, de preservação e com sua paulatina destruição o cidadão sente-se progressivamente excluído nos seus sentimentos coletivos em relação ao passado. Pierre Nora destaca que “os lugares de memória são antes de tudo restos”. São sobreviventes de um tempo que já não existe, em uma sociedade onde a positividade está ancorado no novo e não no antigo, no futuro e não no passado. Segundo o autor:


Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados e monumentos, santuários, são as marcas e testemunhos de uma outra época. São os rituais de uma sociedade sem rituais, sacralizações passageiras de uma sociedade que continuamente dessacraliza, sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo em uma sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos. (NORA , 1993)

Maurice Halbwachs [1] em sua obra A Memória Coletiva também levanta a questão da preservação dos espaços para a manutenção da memória coletiva dos cidadãos. O autor ressalta que a permanência e a estabilidade dos objetos materiais que nos cercam e com os quais estamos em contato diário nos propicia um equilíbrio mental, como se fosse uma sociedade silenciosa e imóvel, estranha às nossas transições e mudanças, proporcionando-nos uma sensação de ordem e de continuidade. O nosso entorno material conserva nossas marcas e a de nossos mais queridos, lembram-nos fatos importantes de nossa vida individual e estão associados à memória de nosso grupo. Todo espaço habitado recebe as marcas dos indivíduos que nele transitam. Os quarteirões no interior da cidade, bem como as casas que os constituem, estão também ligados ao solo, como as árvores, os rochedos e as montanhas.

Enquanto essa imagem permanece idêntica, o grupo tem a impressão de continuidade. A vida na cidade segue com suas convulsões e transições, nesse cenário familiar e que aparentemente se conserva. Os hábitos locais resistem às forças de transformação, e é através dessa resistência que podemos perceber até que ponto a memória coletiva se ancora nas imagens espaciais.

As cidades transformam-se no curso da história. Quarteirões inteiros são postos em ruínas, velhas casas desabam lentamente, ruas outrora tranqüilas são pavimentadas e recebem cada dia maior trânsito. As obras públicas e o traçado de novas vias ocasionam demolições e mudanças espaciais. Planos urbanísticos se sobrepõem uns aos outros. Antigos arrabaldes se desenvolvem e se unem à cidade. Porém essas mudanças ocorrem não sem resistência, pois, se assim fosse, poder-se-ia fazer tábula rasa de uma cidade e reconstruí-la em todos os aspectos. Mas, entre as pedras e os indivíduos, existem relações mais profundas que as de uso.

Um grupo adaptado aos seus hábitos mantém pensamentos e movimentos que se regulam pela sucessão de imagens que lhe representam os objetos exteriores. Quando transformamos ou nos transportamos desse nosso entorno material da casa, da rua, do bairro, atravessamos um período de incerteza, como se nossa personalidade tivesse ficado para trás. A aderência de um grupo ao seu espaço se manifesta na resistência e na luta pela preservação desse espaço. Um morador para quem os velhos muros, as casas decrépitas, as passagens e becos faziam parte de seu universo, lamenta a sua destruição, pois junto com ela se vão parte de suas memórias e vivências. Contudo, enquanto esse mal-estar é individual, ele não tem efeito; para que isso ocorra, é necessário que esse tipo de manifestação de resistência surja em torno de um grupo, com toda a força de suas tradições.

Não existe memória coletiva que não se desenvolva a partir de um quadro espacial, pois o espaço é uma realidade duradoura, enquanto nossas impressões se sucedem. Para que alguma lembrança individual que possuímos reapareça, é ao espaço que ocupamos, por onde passamos e que nossa imaginação a qualquer momento é capaz de reconstruir, que devemos nos remeter.

Desde o senso comum até as políticas públicas, a questão da preservação do passado está posta e em concordância. Mesmo os mais fiéis cultores da modernidade e da religião do novo, ou aqueles que militam pela mudança, não ousam pronunciar-se pela simples destruição do passado. Márcia D’Aléssio propõe que essa seja “[...] uma necessidade identitária que parece estar compondo a existência coletiva dos homens e a identidade tem no passado seu lugar de construção.”( D’ALÉSSIO ,1995, p.39). A ameaça da perda da identidade está aí colocada, identidade não como natureza humana, mas como condição de existência de um grupo social e que se manifesta por um sentimento de referência e de pertencimento grupal. Esses chamados “lugares de memória” expressam nosso desejo de retorno a rituais e locais que definem os grupos, onde este se auto-reconhece e se auto-diferencia. Estes “lugares de memória” comportam somente restos dessa memória, são espaços onde o passado já foi reconhecido, sacralizado e celebrado. No momento em que um grupo volta o olhar para o passado, sente que ele próprio permaneceu o mesmo e se conscientiza de sua identidade, preservada ao longo do tempo. (NORA, 1993)

No desenrolar deste texto foram levantados conceitos como preservação, memória, passado, identidade, história. Porém sabe-se que destes nenhum possui um único sentido ou significado, pois formam um sistema de múltiplos sentidos oriundos de uma cultura plural. A noção de patrimônio cultural deveria ser um estuário que evocasse essas múltiplas dimensões de uma cultura como um passado vivo e significante para os cidadãos, acontecimentos, objetos e monumentos que devem ser preservados, pois são coletivamente referenciais em sua diversidade.

Isso não é o que se vislumbra atualmente, quando a manutenção das estruturas preservadas está dissociada de sua significação coletiva. E o resgate histórico que se empreende quando do seu tombamento não contribui para que essa concepção se modifique. Como nos mostra Maria Célia Paoli (1992), a política de preservação do patrimônio cultural deveria apoiar-se na possibilidade de recriar a memória não só dos que estiveram no poder, mas também dos que o perderam, a visibilidade de suas ações, resistências e projetos. A tarefa principal de uma política de preservação e produção de patrimônio coletivo que veja o passado como um direito do cidadão é resgatar aquelas ações e até mesmo as utopias não realizadas, fazendo-as emergir ao lado da memória do poder e em contestação ao seu triunfalismo. É preciso apostar na existência de uma pluralidade de memórias coletivas, que, mesmo heterogêneas, possuem fortes referências de grupo, mesmo não possuindo espaço nas páginas escritas da História. Para tanto, é necessário assimilar que o patrimônio cultural de um país são todas as suas culturas, os produtos culturais e sua simbolização.

Walter Benjamin[2] destaca que é necessário resgatar do esquecimento aquilo que poderia fazer de nossa história outra história. É necessário que tomemos a memória e tudo aquilo que foi esquecido como armas na luta para tirar do silêncio um passado que a “história oficial” enterrou, que celebra apenas os triunfos, os grandes homens, os grandes feitos, ou seja, é a vitória do vencedor sobre a tradição dos vencidos. Como diz o autor, a história é sempre um olhar do presente em direção ao passado, e é também o presente que ilumina o passado, pois os acontecimentos do passado ou os seus fragmentos só ascendem a uma legibilidade em um espaço e um tempo determinados. Benjamin nos propõe a possibilidade de abrir o passado reingressando nos dados esparsos, nos fragmentos remanescentes para reconstituí-los segundo uma interpretação só tornada possível no presente. Esse olhar que vem do presente busca a preservação da memória, e surge principalmente quando ela se encontra em perigo. Os momentos de memória resgatam identidades que estão de alguma forma ameaçadas de esquecimento.

Em uma tentativa clara de ampliar e complexificar o campo do patrimônio, foi promulgado, em 2000, o Decreto 3551 (BRASIL , 2000) [3] , que instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial, e que insere a possibilidade de registro e salvaguarda do chamado patrimônio intangível. Essa nova problemática surge como resposta às críticas apresentadas pelos países de cultura não-européia ao quadro conceitual sobre o qual são tradicionalmente desenvolvidas as políticas de patrimônio cultural, centradas nas noções de monumento histórico e de preservação.

Com essa iniciativa, o País procurou estabelecer um conceito de memória e de história que transcendam os tradicionais conceitos de patrimônio e principalmente, que incluam em seus discursos as experiências dos grupos sociais marginalizados pela antiquada concepção de patrimônio fundamentada em imóveis herdados do período colonial e representativos de uma minoria social elitizada.

Nesse contexto, as ações voltadas para garantir a integridade física dos bens protegidos – conservação, restauração – polarizam atenções e recursos, contribuindo, assim, para que valores como monumentalidade, autenticidade e imutabilidade se convertam quase que “naturalmente” nos critérios de orientação dessas ações, em que a documentação – já produzida ou a produzir - ocupa uma função essencial no processo.

A UNESCO define como Patrimônio Cultural Imaterial as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas e também os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados. Destaca que ele é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. (UNESCO , 2006). [4]

A ênfase fundamental dessa nova política situa-se na diversidade cultural. E tem como seu foco não apenas os bens, mas também os processos, procurando identificar como, nos diferentes contextos culturais, é produzido, valorado e preservado o que seria o patrimônio cultural de cada comunidade. Nesse sentido, as ações de identificação, documentação, referenciamento e valorização adquirem importância estratégica nas políticas de patrimônio cultural, e só podem ser conduzidas com a participação daqueles que criam, não só objetos e edificações, como também formas menos perenes e visíveis, mas não menos significativas, como referências identitárias, de manifestação cultural.

Ficam, no entanto os desafios: como abordar esses “novos patrimônios”? Como intervir sem comprometer a sua dinâmica própria, como tratar com eqüidade o que se caracteriza pela diversidade? Como registrar e não produzir um “congelamento” desses processos? De qualquer maneira, espera-se que essa nova perspectiva contribua para que as políticas culturais se tornem socialmente mais inclusivas, integrando-se ao esforço coletivo de países e da humanidade para a afirmação de direitos e para a melhoria da qualidade de vida de todos os seres humanos.


Rocks and emotions: the courses of patrimony
ABSTRACT
The text proposes a brief reflection on the theme of the cultural heritage and historical and philosophical foundations on which we framed this debate in Brazil. It was pointing the main criticism received by the preservation program adopted in the country and the implementation, from 2000 on, the policy of preservation of intangible heritage, as an attempt to expand and attend the excluded groups by the cultural policy based on materiality.
KEYWORDS: Cultural heritage. Preservation. Social memory. Intangible heritage.


Piedras y emociones: los recorridos del patrimonio
RESUMEN
El texto propone una breve reflexión sobre el tema del patrimonio cultural y las bases filosóficas e históricas sobre las que se estructuró este debate en Brasil. Se buscó señalar las principales críticas recibidas por el programa de preservación adoptado en el país y la implementación, a partir del año 2000, de la política de preservación del patrimonio inmaterial, como una tentativa de ampliar y atender a los grupos excluidos por la política cultural fundamentada en la materialidad.
PALABRAS CLAVE: Patrimonio cultural. Preservación. Memoria social. Patrimonio inmaterial.



Notas

[1]Utilizo neste texto em especial o capítulo 4 da obra.

[2] A leitura de Benjamim foi feita em Direito à Memória. No capítulo Memória e História em Walter Benjamim, escrito por Olgária Mattos.

[3]Documento eletrônico.

[4] Documento eletrônico.


Referências

[<] BRASIL. Ministério da Cultura. Decreto 3551 de 4 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/legislacao/docs/D-003551.htm Acesso em: dez. 2007

[<] D’ALESSIO, Marcia. Estudos de Memória e Transformações na Historiografia. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 18., 1995, Recife. Mesa redonda. Recife: ANPUH, 1995.

[<] HALBWACHS, Maurice. A Memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

MATTOS, Olgária. Memória e História em Walter Benjamin. In: O DIREITO à Memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, Secretaria Municipal da Cultura, 1992.

[<] MENEZES, Ulpiano. O Patrimônio Cultural entre o Público e o Privado. In: O DIREITO à Memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, Secretaria Municipal da Cultura, 1992.

[<] NORA, P. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. In: PROJETO História 10. São Paulo: EDUC, 1993.

[<] PAOLI, Maria C. Memória, espaço e cidadania. In: O DIREITO à Memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, Secretaria Municipal da Cultura, 1992. P.25

[<] UNESCO. Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial:Paris, 17 de outubro de 2003. Paris, 2006. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540POR.pdf Acesso em: dez. 2007


Marlize Giovanaz
Mestre e Doutoranda em PPG História / UFRGS Professora Assistente do DCI/FABICO/UFRGS.
E-mail: mgiovanaz@terra.com.br
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