“Antropologia da Biossegurança” compila pesquisas internacionais sobre doenças vetoriais, epidemias e pandemia

2020-07-20

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No novo número temático de Horizontes Antropológicos, “Antropologia da Biossegurança”, os organizadores Jean Segata e Andrea Mastrangelo abordam os diversos entendimentos de biossegurança e a multiplicidade de antropologias possíveis a partir deles. Pesquisadores do campo da antropologia e das ciências da vida, eles procuraram reunir artigos de pesquisadores que estudam as emergências sanitárias e ambientais, ressaltando doenças vetoriais e zoonoses - como Leishmaniose, Chagas, Dengue, Febre Amarela, Zika, Chikungunya, Malária e Influenza – e epidemias, pandemias, desastres e contaminações ambientais e alimentares que estão no foco de ações de Estado para o controle, a prevenção ou a vigilância de humanos, animais, artefatos e ambientes.

Jean Segata é professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Possui mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e realizou pós-doutorado na UFSC, no Centro Nacional de Diagnóstico e Investigación en Endemo-Epidemias (CEnDIE) do Ministério de Salud da Argentina e na Brown University. É líder do Grupo de Estudos Multiespécie, Microbiopolítica e Tecnossocialidade (GEMMTE) e coordenador do Núcleo de Estudos Animais, Ambientes e Tecnologias (NEAAT) do PPGAS-UFRGS. Andrea Mastrangelo é mestre e doutora em Antropologia Social pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), onde também realizou pós-doutorado. É chefe de trabalhos práticos do departamento de Humanidades Médicas da Facultad de Medicina da Universidad de Buenos Aires (UBA) e membra do Consejo Nacional de Investigaciones Cientificas y Técnicas da Argentina (CONICET).  Para os dois pesquisadores, “políticas e práticas de biossegurança têm sido produzidas a partir de infraestruturas globais da ciência, da tecnologia e de suas corporações internacionais e ao mesmo tempo envolvem relações locais entre natureza, sociedade e poderes. Em alguns casos, essas políticas atuam como experimentos de ciência estendidos ao mundo, sem dialogar com saberes e práticas locais. Na maioria das vezes, sua implantação tem sido baseada em discursos que convertem natureza em ameaça à sociedade ou na associação perversa entre pobreza, risco e vulnerabilidade”.

Com isso em vista, eles organizaram a publicação de forma que os textos compilados se inscrevessem em uma intersecção entre diferentes temas e campos que tratam de questões contemporâneas – e futuras – para a etnografia e para a teoria antropológica, como os de ambiente, risco e desastres e antropologia médica e da saúde. “A partir de uma perspectiva etnográfica, a interface com a saúde permite abordar densos enredamentos entre humanos e não-humanos, mediados por atores diversos, como mosquitos, venenos, armadilhas, antibióticos, transgênicos, vacinas entre outros, como também por modelos de diagnósticos, tratamentos, campanhas e ações de prevenção, controle e combate. A atenção antropológica orientada para a articulação entre saúde humana, animal e ambiental permite análises que atravessam e emaranham domínios de Estado-nação, fronteiras internacionais, economia, direitos e moralidades, a partir de campos de interesse diversos, como o da biopolítica e da microbiopolítica, das relações humano-animal e multiespécie, da etnologia indígena, da saúde global, da antropologia da ciência ou das novas tecnologias digitais”, destacam.

Além do debate inicial sobre a biossegurança e suas antropologias, a publicação traz oito pesquisas inéditas, entre elas a do antropólogo francês Frédéric Keck, figura central para se pensar a constituição de uma antropologia da biossegurança. A trajetória de Keck remonta ao grupo que reuniu Stephen Collier, Andrew Lakoff, Stephen Hinchliffe, Carlo Caduff, entre outros, no Laboratório de Estudos do Contemporâneo, liderado por Paul Rabinow, em Berkeley, onde uma parte importante da agenda antropológica do campo se desenhou. No texto deste volume o autor se pergunta se os seres vivos são sentinelas uns dos outros tendo em mente três formas de atuação. Uma sentinela pode ser aquele animal que dá sinais como o caso do canário da mina de carvão, comumente empregado no século XIX. A presença de gases letais muitas vezes é imperceptível para os humanos, como é o caso do acúmulo de monóxido de carbono que resultava das explosões subterrâneas. Sensível ao aumento dos seus níveis, o canário morria, alertando que era preciso que os humanos saíssem em retirada. Mas a sentinela pode ser também um animal não vacinado em uma fazenda, como um porco, uma galinha ou uma vaca, que alerta o fazendeiro para a entrada de um vírus, adoecendo ou morrendo. Finalmente, células do nosso próprio organismo que alertam o sistema imune para que ele encontre respostas adequadas à presença de um desconhecido também são descritas como uma espécie de sentinelas. O autor critica o modo romantizado de se tratar os experts versados em virologia e imunologia que operam com sentinelas como se fossem xamãs de pandemias superestimando a ideia de preparação e resposta. Em vez disso, ele traça um paralelo entre os microbiólogos, os observadores de pássaros, mas também os antropólogos que trabalham em museus, para mostrar como “os seus raciocínios e práticas cinegéticas são comuns quando constroem reservas a conservação do passado e da imaginação do futuro”.