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Contra Hegemonia e Pluralidade de Saberes na Educação à Luz da Sociopoética

Resumo:

O presente artigo se propõe a apresentar fundamentos metodológicos da pesquisa Sociopoética com interfaces na educação; e mais especificamente, refletir sobre a inter e a transculturalidade em prol da descolonização dos saberes na educação, como também, descrever as cinco orientações básicas da Sociopoética. Nossos estudos apontam que a Sociopoética, ao reconhecer a pluralidade e heterogeneidade de saberes, pode contribuir para que os espaços educativos contemporâneos caracterizados pela diversidade e por indivíduos singulares, ampliem seus horizontes no sentido da transculturalidade, na medida em que acolhe perspectivas e concepções contra hegemônicas na construção do conhecimento.

Palavras-chave:
Educação; Pesquisa Sociopoética; Pluralidade de Saberes; Contra Hegemonia; Interculturalidade

Abstract:

This article aims to present methodological underpinnings of Socio-poetics research connected to education; more specifically, to rethink inter and transculturality envisioning knowledge decolonization, as well as, to describe the five Socio-poetics research methods basic orientation. Our studies point out that Socio-poetics, by acknowledging plurality and diversity of knowledge, can contribute to broaden horizons, when it refers to transculturality, of contemporary educational areas characterized by diversity as well as individuals’ singularities, as long as it embraces counter-hegemonic perspectives and conceptions in the process of knowledge development.

Keywords:
Education; Socio-Poetics Research; Plurality of Knowledges; Counter-Hegemony; Interculturality

Introdução

Quando nos deparamos com a palavra Ciência, podemos concordar que automaticamente ela nos remete a experimentos, comprovações, domínio e verdade. Acreditamos que isso ocorra porque, longe de ser novidade, a tradição científica ocidental está enraizada na cultura eurocêntrica1 1 “A perspectiva eurocêntrica de conhecimento opera como um espelho que distorce o que reflete. Quer dizer, a imagem que encontramos nesse espelho não é de todo quimérica, já que possuímos tantos e tão importantes traços históricos europeus em tantos aspectos, materiais e intersubjetivos. Mas, ao mesmo tempo, somos tão profundamente distintos. Daí que quando olhamos nosso espelho eurocêntrico, a imagem que vemos seja necessariamente parcial e distorcida. Aqui a tragédia é que todos fomos conduzidos, sabendo ou não, querendo ou não, a ver e aceitar aquela imagem como nossa e como pertencente unicamente a nós. Dessa maneira seguimos sendo o que não somos. E como resultado, dificilmente podemos identificar nossos verdadeiros problemas, muito menos resolvê-los, a não ser de uma maneira parcial e distorcida” (Quijano, 2005, p. 129-130). . Não obstante, no prefácio de O teatro e o seu duplo, Antonin Artaud (2006ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. Tradução de Monica Stahel, Teixeira Coelho. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ) desenvolve uma reflexão acerca da preocupação sobre uma cultura que é feita para reger a vida, mas que, no entanto, prossegue desgarrada desta. Aquilo “[...] que falta, certamente, não são sistemas de pensamento; sua quantidade e suas contradições caracterizam nossa velha cultura europeia e francesa; mas quando foi que a vida, a nossa vida, foi afetada por esses sistemas?” (Artaud, 2006, p. 2). Esse questionamento do poeta, dramaturgo e ator, pode ser transposto com facilidade ao campo da educação contemporânea, pois de modo geral, sistemas de pensamentos são o que não faltam às ciências da educação, porém, quantos de nós nos sentimos afetados por esses sistemas? Para que algo nos afete, precisamos estar expostos, abertos a experienciar. Para o professor e filósofo Jorge Larrosa (2014LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Tradução de Cristina Antunes, João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2014.), a experiência não é o caminho até uma meta ou objetivo previsto, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode pré-ver, pré-dizer ou simplesmente antecipar.

A questão é que o conhecimento sendo um pátheimathos - uma aprendizagem na e pela prova - foi substituído por mathema - uma acumulação progressiva de verdades objetivas e externas ao ser humano (Larrosa, 2014LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Tradução de Cristina Antunes, João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2014.). À vista disso, a conjuntura educacional conta com conhecimentos desprendidos da existência humana, possuindo “[...] uma enorme inflação de conhecimentos objetivos, uma enorme abundância de artefatos técnicos, e uma enorme pobreza dessas formas de conhecimento que atuavam na vida humana, nela inserindo-se e transformando-a” (Larrosa, 2014, p. 34). Vale ressaltar, que a defesa por conhecimentos enlaçados na vida humana, não significa depreciar os conhecimentos ditos objetivos, ou as chamadas ciências duras. Pois, de certo, estas últimas, desde tempos remotos, continuam a nos permitir aplicações em nossas realidades cotidianas. Não obstante, questionamos: Quando nos sentimos viver dentro de espaços de ensino e aprendizagem? Nesse sentido, nos indagamos, o que seria viver?

Viver não é ex-istir, mas sim in-sistir. [...] se trata de [...] intenção. As várias intensidades são as diferenças moleculares que não reconhecem nenhuma normalidade, nenhum padrão, nenhuma média. Assim é a vida, [...] esplêndida. A expansão/contração das diferenças produz singularidades, isto é, eventos que são ao mesmo tempo afetos no domínio da corporeidade e conceitos no domínio do pensamento, como a cara e a coroa de uma mesma moeda (Gauthier, 1998GAUTHIER, Jacques et al. Pesquisa em Enfermagem - novas metodologias aplicadas. Rio de Janeiro: Guanabara/Koogan, 1998. , p. 104).

Isso significa dizer que a vida não acontece somente por ordenações e sistemáticas, mas ela é, inclusive, o inesperado e o descontorno, permeada por intensidades e provocadora de afetos. Se estamos retroalimentando paradigmas educacionais cerrados exclusivamente em sistemas e “[...] vocabulário da eficácia, da avaliação, da qualidade, dos resultados, dos objetivos [...] a linguagem dos que sabem, dos que se situam em posições de poder e por meio de posições de saber” (Larrosa, 2014LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Tradução de Cristina Antunes, João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2014., p. 62), como podemos unir conhecimento e vida, experiência e afeto? À vista disso, “[...] a experiência da escola é uma experiência na qual não vivemos nossa vida, na qual o que vivemos não tem a ver conosco, é estranho a nós” (Larrosa, 2014, p. 55). Destarte, acreditamos que tal realidade não corresponde a uma totalidade, pois existem formas de saber2 2 Discussões sobre a importância da multiplicidade de saberes e possíveis barreiras que os invalidam se fazem presentes na Microfísica do poder, de Michel Foucault (2016), no qual afirma que os intelectuais descobriram que as massas não necessitam deles para saber, pois elas sabem perfeitamente e claramente, quiçá melhor que eles, de modo que elas o dizem muito bem. distintas, isso porque “[...] não há dúvida de que esse gosto infinito pela contradição e pela crítica distingue o saber científico eurodescendente3 3 Ao longo do texto, Jacques Gauthier utiliza o termo eurodescendente, todavia, adotamos o entendimento como eurocêntrico. de outras formas de saber, notadamente das enraizadas na ancestralidade” (Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012., p. 24). Nessa circunstância, entendemos que se faz necessário contemplar o saber científico de modo mais amplo, buscando reconhecer a pluralidade de saberes sem que isso signifique invalidar qualquer conhecimento.

A pluralidade epistemológica do mundo e, com ela, o reconhecimento de conhecimentos rivais dotados de critérios diferentes de validade tornam visíveis e credíveis espectros muito mais amplos de acções e de agentes sociais. Tal pluralidade não implica o relativismo epistemológico ou cultural, mas certamente obriga a análises e avaliações mais complexas dos diferentes tipos de interpretação e de intervenção no mundo produzidos pelos diferentes tipos de conhecimento (Santos et al., 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009., p. 12).

E baseadas na pluralidade de saberes, compreendemos que Artaud (2006ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. Tradução de Monica Stahel, Teixeira Coelho. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ) infere acerca de uma cultura mágica capaz de mobilizar forças que movem a vida, nos direcionando a extrair uma ideia da cultura que é antes de tudo um protesto contra a concepção “[...] separada que se faz da cultura, como se de um lado estivesse a cultura e do outro a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meio refinado de compreender e de exercer a vida” (Artaud, 2006, p. 4-5, grifo do autor).

Bastam um conhecimento mínimo e um olhar sensível acerca dos povos tradicionais para percebermos a estrita relação entre cultura e vida, a exemplo da cura xamanística4 4 Sobre a cura xamanística, Gauthier (2012) afirma que tudo acontece com a confiança do paciente nas energias do seu corpo para entrarem em comunicação interativa com as energias múltiplas de cura da planta. Em defesa da existência de um saber inconsciente do corpo, saber de sua própria cura. No livro A queda do céu (2015), fica evidente a compreensão da cura xamânica, através de fotografias e narrações, assim, podemos compreender que através do pó de yãkoana (preparado a partir de folhas e cascas de uma árvore específica), utilizado nas sessões, os xapiri (espíritos) descem para “[...] afugentar os seres maléficos. Arrancarão deles a imagem dos doentes e as trarão de volta aos seus corpos” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 84), trazendo-lhes a cura. Nessa direção, torna-se perceptível a natureza mágico-religiosa do xamanismo e sua relação com as dimensões corporal e espiritual. . Em comparação com o campo educativo contemporâneo, não é comum nos depararmos com processos formativos que valorizem o cultivo de uma atenção para si e seu corpo em busca de saberes e autoconhecimento. Contudo, compreendemos, de acordo com Gauthier (2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012.), que apesar de existirem ciências oriundas das sociedades tradicionais, a exemplo da farmácia dos povos da bacia do rio Amazonas, o que gerou - e ainda pode gerar - conflitos, é que historicamente “[...] os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural de inferioridade, e conseqüentemente também seus traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais” (Quijano, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo. A Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais - perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales. 2005. P. 107-126., p. 118). Porém, partindo da afirmativa de que existem outras ciências que não eurocêntricas, consideramos que:

Em toda forma de saber que chamamos de científico, existem duas características comuns: a coerência em relação às hipóteses constitutivas dessa disciplina e a busca da universalidade, não no sentido de querer dar uma interpretação absoluta e definitiva do universo [...] mas no sentido de que seus resultados são válidos quaisquer que sejam as crenças e preferências de quem os examina (Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012., p. 24).

Tal afirmação corrobora para um possível reconhecimento da pluralidade e heterogeneidade de saberes, não restrito ao científico, a exemplo dos saberes indígenas e afrodescendentes, considerados tradicionais, os quais devemos sobrelevar não apenas em contextos sociais, mas fundamentalmente no cenário educacional, tendo em vista a predominância dos saberes científicos5 5 Essa predominância pode ser entendida a partir da ideia de um progresso, na qual a perspectiva cognitiva eurocentrista foi tornando-se dominante, “[...] assim todos os não-europeus puderam ser considerados, de um lado, como pré-europeus e ao mesmo tempo dispostos em certa seqüência histórica e contínua do primitivo ao civilizado, do irracional ao racional, do tradicional ao moderno, do mágico-mítico ao científico. Em outras palavras, do não europeu/pré-europeu a algo que com o tempo se europeizará ou ‘modernizará’” (Quijano, 2005, p. 129), nesse sentido, incorporou-se uma necessidade de se modernizar ou avançar, reiterando dualismos. . Quijano (2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo. A Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais - perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales. 2005. P. 107-126., p. 121), sublinha que “[...] a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento”.

Em suma, a favor de práticas educativas e modos mais integrais6 6 Estudos do educador Ferdinand Röhr (2012) defendem uma formação humana integral, considerando que o ser humano é composto por diversas dimensões, sendo as básicas: física, sensorial, emocional, mental, espiritual. de se fazer pesquisa nas ciências humanas, surge a Sociopoética, criada justamente a partir de experiências vividas7 7 Jacques Gauthier (2012), ao descrever suas experiências pessoais, salienta que teve que tentar entender como pensam, sonham e vivem os povos indígenas, compartilhar com eles suas lutas, para entender-se melhor e sobretudo dar início à uma reflexão epistemológica intercultural, onde cada um atua como olhar crítico sobre o outro e, no mesmo gesto, se transforma. “Um método que permitisse entender o pensamento como geografia mental – o que realizei na minha tese de doutorado, que defendi interculturalmente, na Universidade de Paris 8 e na Universidade Popular de Kanaky (Nova Caledônia), criada pelos indígenas de lá que lutavam pela independência socialista e se inspiraram na obra de Paulo Freire para criar o movimento das Escolas Populares Kanak” (Gauthier, 2012, p. 8). pelo seu criador Jacques Gauthier, humanamente formado por antepassados trabalhando em minas de carvão, pelo povo Kanak de Nova-Caledônia lutando contra o colonialismo e o racismo. Assim, podemos notar, que a abordagem de pesquisa em questão, tem como princípio existencial uma perspectiva não-eurocêntrica de criação epistemológica.

A abordagem de pesquisa Sociopoética criada em 1994-95, reconhece, portanto, a pluralidade e heterogeneidade de saberes, podendo contribuir para que os espaços educativos contemporâneos caracterizados pela diversidade e por indivíduos singulares, ampliem seus horizontes na medida em que acolhe perspectivas e concepções contra hegemônicas na construção do conhecimento. Nesse sentido, Dore e Souza (2018DORE, Rosemary; SOUZA, Herbert Glauco de. Gramsci Nunca Mencionou o Conceito de Contra-Hegemonia. Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 25, n. 3, jul./set. 2018.) definem o conceito de contra hegemonia8 8 Segundo Dore e Souza (2018), a concepção de contra hegemonia foi cunhada por Raymond Williams em seu livro Base e superestrutura (1973) e posteriormente revisto em Marxismo e literatura (1979). “No Brasil, o conceito de hegemonia de Gramsci não foi compreendido e são diversos os autores que adotam o conceito de contra-hegemonia, muitas vezes, atribuindo-o a Gramsci e não a Raymond Williams, sem fazer sequer referência a este último” (Dore; Souza, 2018, p. 255). com base no pensamento do sociólogo, crítico literário e escritor inglês, Raymond Williams (1921-1988):

O que seria, então, a ‘contra-hegemonia?’ Seriam experiências, significados e valores que não fazem parte da cultura dominante efetiva; formas alternativas e opositoras que variam historicamente nas circunstâncias reais; práticas humanas que ocorrem ‘fora’ ou em ‘oposição’ ao modo dominante; formas de cultura alternativa ou opositora residuais, abrangendo experiências, significados e valores que não se expressam nos termos da cultura dominante, embora sejam praticados como resíduos culturais e sociais de formações sociais anteriores; formas de cultura emergente, englobando novos valores, significados, sentidos; novas práticas e experiências que são continuamente criadas (Dore; Souza, 2018DORE, Rosemary; SOUZA, Herbert Glauco de. Gramsci Nunca Mencionou o Conceito de Contra-Hegemonia. Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 25, n. 3, jul./set. 2018., p. 254).

Propomo-nos, portanto, neste artigo, apresentar fundamentos metodológicos da pesquisa Sociopoética com interfaces na educação; e mais especificamente, refletir sobre a inter e a transculturalidade em prol da descolonização dos saberes na educação, como também, descrever as cinco orientações básicas da Sociopoética.

Sobre Ciência e Espiritualidade em Benefício da Descolonização de Saberes

A pesquisa intercultural coaduna com a visão de que o materialismo não é um princípio substancial, mas uma hipótese propícia em dado contexto cultural e histórico. Outros povos9 9 “La sabiduría ancestral que porta el pensamiento de estos pueblos originarios, expresados por sus tradiciones, ritos, magias, hasta sus representaciones antropomórficas de la realidad, son síntomas de que el ocaso de la civilización, no muere con Occidente, sino que renace desde el Sur” (Santos, 2011, p. 17). , contrariamente, precisam do espiritualismo para produzirem saberes científicos (Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012.). As palavras de um xamã conseguem demonstrar seu empenho em defender a inteligência de seu povo, embora diferente em relação a dos brancos, mas não menos importante:

Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos antepassados. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente. Não temos que desenhá-las, como fazem com as suas. Nem por isso elas irão desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós. Por isso nossa memória é longa e forte (Kopenawa; Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. , p. 75).

Contudo, apesar da existência de estudos notáveis numa perspectiva intercultural, a exemplo de Boaventura de Sousa Santos et al. (2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.) tecendo discussões fundamentais a respeito da diversidade epistemológica e da valorização dos saberes não eurocêntricos, ainda se configura num grande desafio, tendo em vista que:

A concepção instituída da ciência é oriunda do Renascimento, fase orgulhosa, bela e ao mesmo tempo muito repressiva da história do ocidente: submissão dos povos de além dos mares, submissão das mulheres, dos judeus, intolerância para com tudo que foge dos padrões culturais - preconceituosamente assimilados a padrões racionais (Gauthier, 1998GAUTHIER, Jacques et al. Pesquisa em Enfermagem - novas metodologias aplicadas. Rio de Janeiro: Guanabara/Koogan, 1998. , p. 147).

A educação ocidental e todo seu processo de escolarização, assimilou tais padrões científico-racionalistas do Renascimento europeu, tornando-se imprescindível que os espaços educativos contemporâneos, característicos pela diversidade e por indivíduos singulares, ampliem horizontes capazes de acolher perspectivas e concepções divergentes dos padrões de aprendizagens historicamente hegemônicos.

Nessas circunstâncias, não é custoso compreendermos a visão unilateral de uma ciência de bases europeias. Sendo historicamente legível certa hegemonia no ocidente de uma ciência positivista, percebemos essa perspectiva quando:

Para todo o mundo, um civilizado culto é um homem informado sobre sistemas e que pensa em sistemas, em formas, em signos, em representações. É um monstro no qual se desenvolveu até o absurdo a faculdade que temos de extrair pensamentos de nossos atos em vez de identificar nossos atos com nossos pensamentos (Artaud, 2006ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. Tradução de Monica Stahel, Teixeira Coelho. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. , p. 2-3).

Desse modo, nossa preocupação recai sobre o fato de que trivialmente pensamos em conformidade com o legado da história da humanidade, porém, essa história não é bem coletiva, visto que os elos entre etnias, gêneros, classes e subgrupos sociais, em inúmeras circunstâncias, têm sido tecidos com base na opressão e não na colaboração (Quijano, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo. A Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais - perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales. 2005. P. 107-126.; Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012.). O que nos leva a refletir os processos de colonização, geralmente imersos em controle e subjugação, reverberantes - até os dias de hoje - nas diferentes esferas sociais, inclusive no viés formativo e da educação de modo geral. Consequências desses processos, são fatos explícitos em A queda do céu, obra singular e excepcional que exala “[...] uma defesa apaixonada do direito à existência de um povo nativo que vai sendo engolido por uma máquina civilizacional” (Kopenawa; Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. , p. 27). Portanto, contra a supremacia de determinada ciência ou contra qualquer forma de opressão, torna-se urgente nos tempos que correm:

Levar absolutamente a sério o que dizem os índios [...] e todos os demais povos ‘menores’ do planeta, as minorias extranacionais que ainda resistem à total dissolução pelo liquidificador modernizante do Ocidente. Para os brasileiros, como para as outras nacionalidades do Novo Mundo criadas às custas do genocídio americano e da escravidão africana, tal obrigação se impõe com força redobrada. Pois passamos tempo demais com o espírito voltado para nós mesmos, embrutecidos pelos mesmos velhos sonhos de cobiça e conquista e império vindos nas caravelas (Kopenawa; Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. , p.15, grifo do autor).

Nessa direção, podemos observar que tais inferências procedentes do contexto cultural também reverberam na academia, uma vez que muitas de nossas pesquisas e processos formativos, apesar de progressos significativos, aparentam trilhar percursos unilaterais, sobretudo quando priorizamos abordagens e métodos que despropositadamente verticalizam as relações entre diversos saberes das múltiplas culturas, tornando inviável um diálogo legítimo.

Se eu quiser pesquisar com meus parceiros e parceiras indígenas ou afro-descendentes, e não sobre (sentado sobre) eles, na ética de respeito e acolhimento mútuo que caracteriza a interculturalidade crítica, tenho obrigação de suspender meu julgamento (Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012., p. 9, grifo do autor).

Isso significa que devemos fundir uma abertura para a partir disso trilharmos um caminho singular. Como afirma Boaventura de Sousa Santos (2011SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologías del Sur. Utopía y Praxis Latinoamericana. Revista Internacional de Filosofía Iberoamericana y Teoría Social, v. 16, n. 54, p. 17-39, jul./set. 2011.):

Yo he venido insistiendo, por todo el mundo, que hay alternativas prácticas al actual status quo del que, no obstante, raramente nos damos cuenta, simplemente porque tales alternativas no son visibles ni creíbles para nuestras maneras de pensar. He venido reiterando, por lo tanto, que no necesitamos alternativas, sino más bien maneras alternativas de pensamiento (Santos, 2011SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologías del Sur. Utopía y Praxis Latinoamericana. Revista Internacional de Filosofía Iberoamericana y Teoría Social, v. 16, n. 54, p. 17-39, jul./set. 2011., p. 18, grifo do autor).

É preciso, de fato, uma verdadeira receptividade para o novo, para o outro, para a aprendizagem mútua, tal qual sejamos capazes de transformar o nosso olhar - e pensamento - e com isso nos tornarmos mais humanos, fundamental no atual cenário pedagógico educacional e no curso de formação de professores. Torna-se mister reivindicar a descolonização dos saberes (Santos et al., 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.; Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012.) com a intenção de favorecermos uma possível revolução cultural nos espaços formativos e no ambiente acadêmico, assim sendo divergente de práticas hegemônicas. Para tal feito, se faz indispensável o entendimento de que:

A descolonização da academia - portanto, das nossas mentes - passa pelo reconhecimento de que existem vários tipos de ciências, tanto válidos como as ciências que cresceram no chão cultural europeu (que chamo de ciências eurodescendentes, para que possamos sair da imperialista pretensão à universalidade do saber acadêmico - que criou a palavra afrodescendente ou indígena, mas que se quer acima de todos esses particularismos) (Gauthier, 2015GAUTHIER, Jacques. Sociopoética e Formação do Pesquisador Integral. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, Salvador. v. 4, n. 1, p. 78-86, 2015., p. 80).

Não obstante, salientamos que não se trata de rechaçar o conhecimento eurocêntrico e suas contribuições para o legado da humanidade, dado que empenhar-se “[...] contra a colonialidade do saber não significa desprezar as conquistas da cultura europeia, por certo colonizadora, mas que não pode ser reduzida ao seu contexto político e econômico” (Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012., p. 23). Ademais, significa a possibilidade de diálogo entre a ciência acadêmica e as ciências dos povos que foram colonizados10 10 Boaventura de Sousa Santos (2006) advoga: “Subraya la búsqueda de una forma distinta de conocimiento, centrada en una dinámica enteramente nueva de conocer, de reencuentro y reapropiación de los saberes múltiples de América Latina” (Santos, 2006, p. 11). , representando a transculturalidade um lugar de reencontro entre ciência e espiritualidade, saber e sabedoria. Longe de serem apenas um obstáculo, as diferenças culturais “[...] são também a coroa de uma comunicação numa dimensão superior, precisamente transcultural e espiritual” (Gauthier, 2019GAUTHIER, Jacques. A Sociopoética Como Método de Pesquisa Instituinte e Decolonial. Capoeira - Revista de Humanidades e Letras, [s.l.], v. 5, n. 2, p. 235-256, 2019., p. 253).

Acreditamos, portanto, que a Sociopoética como abordagem de pesquisa que favorece o reencontro de saberes em seus processos interativos, contribui para o fortalecimento da dignidade humana nos contextos educacionais e acadêmicos ao unir ciência, espiritualidade e corpo, título do tópico seguinte.

Ciência, Espiritualidade e Corpo: conhecendo a abordagem Sociopoética

Estamos dispostos a defender uma nova ciência, que “[...] não poderá ignorar as danças dos corpos entregues à ancestralidade” (Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012., p. 62). Porque consideramos que os indígenas e afrodescendentes, baseados na cultura da ancestralidade, pensam com o corpo inteiro, a exemplo dos rituais de xamanismo, que utilizam vegetais como a Ayahuasca11 11 Etimologicamente, de acordo com Gauthier (2012), a palavra Ayahuasca é de origem quéchua, sendo Aya: ancestral, pessoa morta, alma, espírito; e Waska: corda, liana, cipó ou vinho. ou mesmo o pó de Yãkoana12 12 O pó de yãkoana é preparado a partir da pulverização de cascas da árvore yãkoanahi (Kopenawa; Albert, 2015). para fazer dançar os espíritos (xapiri13 13 Segundo Kopenawa e Albert (2015), na tradição indígena, Omama é o criador da terra, floresta e rios. Também criou os xapiri. No intuito de curar doenças, bebe-se o pó da yãkoana para fazer os xapiri dançarem. ) e assim cuidar dos seus.

Descobrimos [...] a potência colonizadora, pela Vó Ayahuasca e pelos vegetais em geral, do próprio cérebro da espécie humana. Não se trata somente da resistência dos indígenas à colonização de sua cultura, e sim, da resistência da Vida à destruição e colonização capitalista (Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012., p. 50).

Em um de seus memoráveis escritos, o autor de O teatro e o seu duplo, proferiu que “[...] por mais que exijamos a magia, porém, no fundo temos medo de uma vida que se desenvolvesse inteiramente sob o signo da verdadeira magia” (Artaud, 2006ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. Tradução de Monica Stahel, Teixeira Coelho. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. , p. 3). É provável que ele esteja certo, se levarmos em consideração que “[...] a tradição científica eurodescendente cortou o corpo sensível e emocional, assim como a cabeça intuitiva, da cabeça racional” (Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012., p. 13). De modo tão evidente, que as próprias práticas educativas e modos de se fazer pesquisa comumente, se não desprezam corpos e afetos, os consideram como secundários. Assim, mais uma vez nos interrogamos: como podemos falar de afeto e experiência em educação, visto que esta última prossegue pautada em grande parte numa tradição ocidental eurocêntrica?

Em contrapartida, os saberes tradicionais são integralmente vinculados ao corpo e à espiritualidade. Em O oco do vento, Gauthier (2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012.) compartilha que precisava se integrar a grupos religiosos a fim de ampliar sua “[...] visão de espiritualidade como abertura e disponibilidade total às energias vitais que atravessam os corpos e os espíritos, e como exigente criação da vacuidade, até no intelecto” (Gauthier, 2012, p. 161). Nessa direção, a abertura e disponibilidade total ao qual nos mostra Gauthier, seria compatível com um comprometimento, visto que de acordo com o educador Ferdinand Röhr (2012RÖHR, Ferdinand et al. Diálogos em Educação e Espiritualidade. 2. ed. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. ), a dimensão espiritual seria a realidade que só existe para mim na medida em que me comprometo com ela. Compreendemos que isso se dê porque, apesar da dimensão espiritual não se confundir com a religiosa, em parte pode incluí-la a partir do momento em que nos identificamos com algo, e este algo “[...] se torna apelo incondicional” para quem com ele se identifica (Röhr, 2012, p. 15).

É nessa direção que adotamos uma abordagem de pesquisa fecunda, intitulada Sociopoética, a qual, de acordo com Gauthier (1998GAUTHIER, Jacques et al. Pesquisa em Enfermagem - novas metodologias aplicadas. Rio de Janeiro: Guanabara/Koogan, 1998. ), o seu criador, se configura numa proposta simples: pesquisar com o corpo todo. “Por causa da dimensão dada pela sociopoética ao corpo, a tendência natural da sociopoética é a de encontrar aqueles que sabem mexer com o corpo a partir de outras referências culturais” (Gauthier, 1998, p. 178). Essa abordagem ou método de pesquisa, alicerçada na possibilidade de confluência de movimentos populares e comunidades urbanas e rurais, saberes eurodescendentes, tradicionais (indígenas e afrodescendentes), se traduz num caminho viável, no campo da educação, para se pensar a transculturalidade, que segundo Gauthier (2012), apoia-se na união entre saber e sabedoria, conceito e ancestralidade, na tentativa de trilhar o projeto de uma ciência espiritualizada. “Mas que integra e junta sem apagar as diferenças, sem negar as dominações, humilhações e opressões, sem homogeneizar nem globalizar o que é diferente e heterogêneo” (Gauthier, 2012, p. 11). Em defesa de práticas e processos educativos contra hegemônicos, a pesquisa sociopoética advoga que em parceria com os outros, e ainda mais com outros de fortes diferenças culturais, torna-se possível ultrapassar nossos limites e desfazer as barreiras que construímos para sustentar nosso eu desconectado e cortado das energias materiais e espirituais da natureza e da comunidade (Gauthier, 2012).

Escritos de Jan Masschelein e Maarten Simons (2014MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. A Pedagogia, a Democracia, a Escola. Tradução de Alain François et al. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2014.) defendem que a pesquisa em educação se caracteriza por um trabalho do pesquisador sobre si, de modo que, uma pesquisa é educacional porque coloca em questão, primeiramente, o próprio pesquisador. Não obstante, a pesquisa educacional trata de tornar algo público, atenta ao mundo em sua verdade, e disponível para qualquer um. O método da sociopoética adotado, em muito, se aproxima dessa visão de confluência em se tratando de educadores como participantes da pesquisa e com clareza manifesta a originalidade de “[...] sempre mexer, ao mesmo tempo, com o racional e o afeto, já que mobilizamos o corpo inteiro como fonte de conhecimento” (Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012., p. 77). Assim, a Sociopoética afirma que o corpo também produz conhecimentos, mas talvez diferentes: transpassados de afeto.

Em suma, acreditamos que a abordagem de pesquisa Sociopoética oferece sua contribuição em processos formativos e para

Reinventar a pesquisa educativa; de fazer, através dela, escola como skholé, ou seja, de parar um pouco o tempo vertiginoso da produtividade acadêmica à qual alguns pretendem submetê-la para experimentar nela algo de tempo livre a partir de deslocamentos (Kohan, 2017KOHAN, Walter Omar. Em Defesa de uma Defesa: Elogio De Uma Vida Feita Escola. In: LARROSA, Jorge. (Org.). Elogio da escola. Tradução de Fernando Coelho. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2017. P. 65-85., p. 72, grifo do autor).

E essa reinvenção através de skholé pode ser possível ao considerarmos que:

O sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. Se escutamos em francês, em que a experiência é ce que nousarrive, o sujeito da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar (Larrosa, 2014LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Tradução de Cristina Antunes, João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2014., p. 25, grifo do autor).

Essa citação de Jorge Larrosa (2014LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Tradução de Cristina Antunes, João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2014.), é suficientemente clara para expor a conexão entre experiência e afeto, posto que o sujeito da experiência é aquele que está receptivo aos afetos, está exposto a ser afetado, e é como um território de passagem. Daí a pretensão de pensar junto experiência e afeto como um rizoma14 14 A metáfora do rizoma subverte a ordem da metáfora arbórea. Para exemplificar o rizoma, tomemos a imagem de um tipo de caule radiciforme de alguns vegetais, formado por uma miríade de pequenas raízes emaranhadas que se entrelaçam formando um complexo conjunto no qual os elementos remetem uns aos outros e mesmo para fora do próprio conjunto (Gallo, 2016). no terreno da educação.

Ao criar essa abordagem ou método, o filósofo e pedagogo francês, que reside na Bahia, Brasil, Jacques Gauthier, expõe o seu intento de que:

Confluíssem na mesma corrente criadora o rigor científico herdado das minhas raízes europeias, a imaginação poética e artística e a atenção às energias do corpo e da natureza, particularmente presente nos povos que foram colonizados, seja no Pacífico, seja no Oriente, seja na África ou nas Américas. Não aceitava ruptura alguma entre as sabedorias populares, tradicionais, ancestrais ou adquiridas nas lutas cotidianas contra o imperialismo, e a ciência. (Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012., p. 73).

Nessa perspectiva, torna-se relevante compreendermos mais detalhadamente de que modo surge essa confluência e quais são os princípios norteadores da Sociopoética.

A Pesquisa Sociopoética: cinco orientações básicas

A Sociopoética consiste em um método de pesquisa criado aproximadamente em 1994, pelo filósofo e pedagogo Jacques Gauthier, cuja fonte de inspiração foi o desenvolvimento de sua tese de doutorado em Ciências da Educação, junto à comunidade Kanak, da Nova Caledônia, em 1993, à época ainda uma possessão francesa. Tal abordagem se constitui com base numa combinação de diversas orientações metodológicas e teóricas “[...] que marcaram as décadas de 60 e 70 e continuam inspirando pesquisas inovadoras: análise institucional, pesquisa-ação e pesquisa participante, pedagogia do oprimido, grupos operativos, arte-educação, pedagogia simbólica etc.” (Gauthier, 2012, p. 75).

Gauthier et al. (2001GAUTHIER, Jacques et al. Uma Pesquisa Sociopoética: o índio, o negro e o branco no imaginário de pesquisadores da área de educação. Florianópolis: UFSC, 2001. ), alerta que “[...] a sociopoética não é um novo referencial teórico, e sim um ‘método’ (no sentido amplo de caminho, dispositivo, metodologia aberta ao inesperado) de pesquisar, educar, cuidar... isto é, agir”. (Gauthier et al., 2001, p. 22, grifo do autor). Destarte, a Sociopoética é um caminho que se faz caminhando, atento à experiência radical que a poesia propõe, por isso, mais aberto para o imprevisto do que seria uma metodologia. Em lugar de descrever o que é dado, como faz o uso positivista e utilitarista da linguagem, ela se afasta do julgamento comum e pretende ir até o limite da potência de criar o mundo.

Compreendemos que a Sociopoética se caracteriza por sua proximidade com a poética e a imprevisibilidade, sendo desnecessário compará-la a métodos de pesquisa utilizados em ciências naturais, como pesquisas na área de física ou química. Por outro lado, no âmbito educacional e nas ciências humanas em geral, a Sociopoética pode contribuir alternativamente para um modo de fazer pesquisa e para um processo formativo que contemple a multidimensionalidade do ser - física, sensorial, emocional, mental, espiritual (Röhr, 2012RÖHR, Ferdinand et al. Diálogos em Educação e Espiritualidade. 2. ed. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. ).

Para além de uma abordagem de pesquisa, a Sociopoética possibilita sua aplicação no ensino e na aprendizagem, seguindo cinco orientações básicas: a primeira orientação diz respeito à instituição do grupo-pesquisador como dispositivo. Segundo Gauthier (2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012.), o hífen da palavra faz-se necessário porque não se trata de um grupo que pesquisa, mas de um ser coletivo, grupo-sujeito do seu devir e produtor de conhecimentos, pois sua preocupação estava em permitir “[...] que os grupos ‘objetos’ das pesquisas acadêmicas se tornassem ‘grupos sujeitos’” (Gauthier, 2015, p. 79).

A posição do pesquisador (a) como facilitador (a), segundo Gauthier (2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012.), é um membro de destaque do grupo-pesquisador, ou, um (a) pesquisador (a) profissional, acadêmico (a) ou oficial, podendo ser denominado (a) como quiser. Seu papel é importante pois envolve a discrição, precisando interferir o mínimo possível e de maneira metódica, de modo que saiba propiciar as condições para que se institua um coletivo responsável. Dentre suas atribuições encontramos: implantar técnicas artísticas de produção de dados, estudar os dados produzidos procurando o inconsciente do grupo-pesquisador, organizar a análise crítica, tanto do estudo elaborado por ele (a) próprio (a) como no seio do grupo etc. Uma das exigências do criador da Sociopoética é de elaborar cooperativamente a crítica não apenas do concebido mas inclusive do vivido, com a participação ativa e dialógica de todos os participantes da pesquisa mobilizando potentes afetos (Gauthier et al., 2001).

Por isso, qualquer Ser Humano, e especificamente negros e indígenas, por mais que tenham sofrido açoites resultantes dos ultrajantes processos de colonização, podem, através do ato de emancipação promovido pela Sociopoética, experienciar afetivamente no campo da educação, a igualdade dos saberes.

No que diz respeito ao tema-gerador, Gauthier (2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012.), indica que se refere ao tema da pesquisa, ou seja, uma noção. Podendo ser elaborado coletivamente ou proposto pelo pesquisador (a) como problema de uma pesquisa acadêmica. Cada participante da pesquisa está ativo em todas as suas etapas, podendo inclusive interferir no devir da pesquisa - isso possibilita que outras fontes de conhecimento, não racionais e sim emocionais, intuitivas, sensíveis, imaginativas e motrizes, entrem em jogo.

Para atendermos a essa assertiva, se faz essencial ouvidos para ouvir tudo e todos, em especial aqueles(as) silenciados histórica e cotidianamente pela opressão, conforme nos lembra o memorável educador brasileiro Paulo Freire (1987FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1987.), quando afirma ser necessário que os que assim se encontram negados do direito basilar de dizer a palavra reconquistem esse direito. Na literatura, bem lembrou o escritor Eduardo Galeano:

Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada (Galeano, 2002GALEANO, Eduardo. O Livro dos Abraços. Tradução de Eric Nepomuceno. 9. ed. Porto Alegre: L&PM, 2002., p. 15-16).

E não poderíamos mobilizar afetos sem considerar o corpo como potência criadora, dado que:

O corpo é o lugar [...] em que as entonações, os gritos e sussurros expressam o que escapa da ordem semântica: da intencionalidade racional, das classificações políticas impostas entre o que pode ser dito e como, e o que não pode ser expresso. Nossas pesquisas não podem perder essa dimensão, particularmente explícita nas classes populares, da constituição do sentido das práticas sociais pelos sujeitos das pesquisas educacionais (Gauthier, 2004GAUTHIER, Jacques. A Questão da Metáfora, da Referência e do Sentido em Pesquisas Qualitativas: o aporte da sociopoética. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 25, p. 127-142, 2004. , p. 131).

Partimos do pressuposto de que o corpo fala, ele não deixa de ser a voz, o grito e o sussurro nosso.

Nessa ótica, como segunda orientação, a sociopoética defende a valorização das culturas dominadas e de resistência que foram marginalizadas tanto pela colonização como pelo capitalismo (Quijano, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo. A Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais - perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales. 2005. P. 107-126.), assim, apontando para outras maneiras de interpretar o mundo, não eurocêntrico e que inclusive possuem modos diferentes de conceber os dados de pesquisa, produzindo esses dados nas próprias formas dessas culturas, onde o corpo é primordial. “Isso não significa abandonar a razão, mas trata-se de acrescentar elementos do corpo a essa razão que não consegue dar conta de tudo em todo o processo de produção do conhecimento” (Silveira et al. 2008SILVEIRA, Lia Carneiro et al. A Sociopoética como Dispositivo para Produção de Conhecimento. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, São Paulo, v. 12, n. 27, p. 873-81, out./dez. 2008., p. 877). Por conseguinte, não se trata de substituir um pelo outro, mas sim considerar possível desvelar saberes até então desconhecidos.

No que concerne ao conceito de cientificidade, Gauthier (1998GAUTHIER, Jacques et al. Pesquisa em Enfermagem - novas metodologias aplicadas. Rio de Janeiro: Guanabara/Koogan, 1998. ) intuiu que não podia continuar a ser produzido apenas pela cultura acadêmica ocidental, mas devia tornar-se o tema de uma pesquisa dialógica envolvendo todas as culturas humanas, inclusive, as dominadas e de resistência, quer colonizadas, quer desprezadas como culturas dos trabalhadores no dia-a-dia das suas práticas.

A terceira orientação afirma que os sociopoetas pretendem conhecer, pensar, pesquisar, aprender com o corpo por inteiro. Em relação aos indígenas por exemplo,

Trata-se de uma racionalidade por certo diferente da racionalidade das ciências eurodescendentes, mas não inferior, por ser complexa e eficiente. [...] aí, o racional nunca é cortado do corpo - e geralmente, do corpo coletivo dos dançarinos (Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012., p. 36).

Se compreendermos que é possível e enriquecedor produzir conhecimentos não apenas com a cabeça, mas sim com o corpo de maneira integral, combinando a racionalidade com a imaginação, gestualidade, emoção, etc. assim como os indígenas em seus rituais, os processos formativos, de ensino-aprendizagem e a educação como um todo estarão contribuindo para o fortalecimento de uma visão global do ser humano e sua implicação na prática educativa.

Nessa perspectiva, compreendemos que o corpo é uma potência criativa que a Sociopoética realça como indispensável nos dispositivos para produção do conhecimento. É assim que “[...] a sociopoética atua ao mesmo tempo como dispositivo pedagógico de aprendizagem coletiva através da atenção para com o corpo e como dispositivo de pesquisa” (Gauthier, 1998GAUTHIER, Jacques et al. Pesquisa em Enfermagem - novas metodologias aplicadas. Rio de Janeiro: Guanabara/Koogan, 1998. , p. 146). Sendo o relaxamento um passo imprescindível na produção de dados quando se trata de desenvolver uma pesquisa Sociopoética. “Acontecendo no início de todas as sessões, [...] o relaxamento favorece que não se trabalhe somente com o lado racional e que se abra para fontes mais amplas de crítica e criatividade” (Gauthier, 2012, p. 81). Em vista de liberar o corpo, a realização de um relaxamento dinâmico corporal ao início de cada oficina possibilita fluir a expressão sem amarras ou barreiras.

Muitos saberes por terem sido reprimidos nos nossos nervos e músculos por opressões diversas ou por pertencerem à ordem do sagrado, da dança ou do silêncio, não se expressam por palavras.

Corpos dançando, cantando, rodando, festejando apesar de marcados pelo açoite físico ou moral. De vários componentes populares da sociedade brasileira, principalmente de origem africana e indígena. Muitas vezes, a pele, os nervos, os músculos, as pernas, o útero, a ginga… sabem o que o cérebro esquerdo ainda não sabe simbolizar (Gauthier, 2004GAUTHIER, Jacques. A Questão da Metáfora, da Referência e do Sentido em Pesquisas Qualitativas: o aporte da sociopoética. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 25, p. 127-142, 2004. , p. 136).

Diante disso, entendemos que somente a linguagem verbal não é capaz de expressar aquilo que ficou retraído e que, portanto, a utilização exclusiva de entrevistas para obter dados torna-se impraticável posto que “[...] melhoramentos estão muito presentes dentro, e, sobretudo, entre as falas dos entrevistados” (Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012., p. 82, grifo do autor). À vista disso, é possível surgir o questionamento: como podemos, então, abranger o corpo e seus saberes numa pesquisa acadêmica, e por que não, nos espaços formativos?

A quarta orientação consegue responder ao declarar que os sociopoetas privilegiam formas artísticas de produção dos dados - e, por conseguinte, de saberes - assim, colocam em movimento capacidades criadoras que provocam o corpo inteiro e revelam fontes não conscientes de conhecimento. Fontes essas que não poderiam emergir em formas mais convencionais de pesquisa, como dito anteriormente, através de entrevistas, as quais são mais significativas após o estudo coletivo das produções artísticas, no sentido de precisar, aprofundar ou ampliar os problemas construídos. Bem como, essas fontes também não poderiam aflorar em condições educacionais pautadas em paradigmas que privilegiam exclusivamente o cognitivo-racional. Nessa direção, Gauthier (2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012.) destaca a importância de as pessoas se deixarem afetar; parar de racionalizar tudo e se entregar totalmente ao momento presente e à pesquisa, deixando surgir os conteúdos sem censura, sem ter tempo para refletir ou avaliar o que vai surgindo.

Compreendemos ser de fundamental importância, para quem pretende romper com mecanismos opressores e hegemônicos15 15 “La realidad no puede ser reducida a lo que existe. Se trata de una versión amplia del realismo, que incluye las realidades ausentes por la vía del silenciamiento, de la supresión y de la marginalización, esto es, las realidades que son activamente producidas como no existentes” (Santos, 2006, p. 82). , possibilitar minimamente que o inconsciente, através da arte, habite tanto as práticas pedagógicas e processos formativos quanto as pesquisas em educação. Portanto, a arte é uma importante dimensão na Sociopoética, por possibilitar a expressão daquilo que ficou recalcado no corpo.

Essa preocupação epistemológica e metodológica com a mobilização do inconsciente como fonte fundamental de dados ecoa diretamente como uma exigência nossa: dar vez e voz aos oprimidos e marginalizados, não somente como produtores de dados cuja experiência da vida e prática social merecem todo nosso cuidado, e sim como atores e atrizes na aventura científica (Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012., p. 75).

Isso retrata o cuidado que a abordagem Sociopoética tem com a integralidade do ser humano, independentemente de suas origens. Consequentemente, a quinta orientação assegura que os sociopoetas insistem na responsabilidade espiritual, ética, noética e política do grupo-pesquisador, que não é posse dos pesquisadores profissionais, que não é somente voltada para o mundo acadêmico, e sim deve se envolver com os desejos e necessidades dos grupos que acolhem as pesquisas.

Desse modo, os princípios da Sociopoética deixam claro que a pesquisa acadêmica pode ser também formativa, possibilitando a transformação não apenas do pesquisador, mas de todos os envolvidos participantes. Concluímos, portanto, a necessidade dos espaços acadêmicos e da educação como um todo acolher perspectivas teórico-metodológicas que incentivem a produção de conhecimentos para além dos padrões de aprendizagens historicamente estabelecidos univocamente sob o aspecto cognitivo-racional, de modo a ampliar práticas educacionais que contemplem o corpo por inteiro, possibilitando o alargamento das fronteiras do pensamento.

Considerações Finais

Entendemos que a Sociopoética, longe de restringir o pensamento ocidental aos parâmetros exclusivamente eurocêntricos, considera a multiplicidade de saberes sob a ótica da pluralidade epistemológica em defesa da descolonização dos saberes (Santos et al., 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.; Gauthier, 2012GAUTHIER, Jacques. O Oco do Vento: metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais. Curitiba, PR: CRV; 2012.).

De certa forma, tal abordagem de pesquisa vem de encontro ao pensamento de Jan Masschelein e Maarten Simons (2014MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. A Pedagogia, a Democracia, a Escola. Tradução de Alain François et al. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2014.) acerca da pesquisa pedagógica formativa. Considerando que os autores belgas defendem uma tradição de pesquisa distinta da tradição dominante, ou seja, hegemônica, para a qual o pesquisador é aquele quem gera e acumula conhecimentos, sendo o significado educativo ou formativo da pesquisa pedagógica uma transformação constante do conhecimento16 16 De acordo com os autores belgas, “[...] segundo essa tradição [dominante], o pesquisador é quem gera e acumula esses conhecimentos. Para ele, o significado formativo ou educativo da pesquisa pedagógica é justamente enriquecer-se em conhecimentos. [...] sobre a base de um progresso infinito ou de uma transformação constante do conhecimento” (Masschelein; Simons, 2014, p. 59). . A tradição não dominante, contra hegemônica, por sua vez, tem estado à margem e à sombra, dado que seu papel central não está tanto no acesso à verdade a partir do conhecimento, mas sim no acesso à verdade a partir da transformação do eu. Dito de outro modo,

Nesta tradição [não dominante], a pesquisa e o estudo têm a ver, em primeiro lugar, com a mudança de uma condição de existência do pesquisador, isto é, são uma questão existencial. Em segundo lugar, nesta outra tradição, não é apenas a relação entre conhecimento e verdade que desempenha um papel básico, a relação entre ética e verdade também o faz (Masschelein; Simons, 2014MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. A Pedagogia, a Democracia, a Escola. Tradução de Alain François et al. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2014., p. 61).

Destarte, consideramos que pesquisar a partir do olhar sociopoético favorece a desconstrução dos corpos, assim como a eclosão de devires e desejos imprevisíveis, não obstante, pode suscitar a emergência de um pensamento enlaçado no saber e ser, gerando novos contornos ao nos fazer sair do lugar, algo como deslocamentos inéditos. Todo esse processo de transformação, para Masschelein e Simons (2014MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. A Pedagogia, a Democracia, a Escola. Tradução de Alain François et al. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2014.), possui íntima relação com a ética, uma vez que:

A relação de cuidado é primordial, e só em função dela o conhecimento pode desempenhar um papel. Pode tratar-se de conhecimento de si próprio ou de conhecimento do mundo, mas, sempre, que este conhecimento esteja orientado a cuidar de si. O importante é uma espécie de transformação do eu direcionada ao domínio do eu, na qual o conhecimento verdadeiro se assimilou ou incorporou no princípio da ação (Masschelein; Simons, 2014MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. A Pedagogia, a Democracia, a Escola. Tradução de Alain François et al. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2014., p. 64).

Isso em defesa de um processo criativo não apenas no sentido da produção do conhecimento como um exercício coletivo de pensamento, mas, inclusive, de vida, de voltar-se para si, o que implica olhar não apenas para suas virtudes, mas para suas desarmonias. E assim, transformando o ato de pesquisar em poiesis17 17 Poiesis possui mais do que apenas um significado, todavia aqui entendemos que poiesis advém do grego no sentido de criação. .

Em suma, a abordagem de pesquisa Sociopoética exprime, em sua essência, a defesa de saberes plurais e práticas não hegemônicas no campo educacional contemporâneo, bem como, um olhar integral direcionado ao ser humano, pois, assim como os povos tradicionais em seus rituais, em especial os indígenas, como foi ressaltado no texto, consideram o corpo como um todo. Desse modo, reivindicamos práticas e pesquisas educacionais capazes de superar óticas centradas exclusivamente em concepções eurocêntricas de ciência e contemplar aspectos que fomentem a inter e a transculturalidade.

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  • SILVEIRA, Lia Carneiro et al. A Sociopoética como Dispositivo para Produção de Conhecimento. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, São Paulo, v. 12, n. 27, p. 873-81, out./dez. 2008.
  • WILLIAMS, Raymond. Base and Superstructure in Marxist Cultural Theory. New Left Review, v. 1, n. 82, p. 3-16, nov./dec. 1973.
  • WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
  • 1
    “A perspectiva eurocêntrica de conhecimento opera como um espelho que distorce o que reflete. Quer dizer, a imagem que encontramos nesse espelho não é de todo quimérica, já que possuímos tantos e tão importantes traços históricos europeus em tantos aspectos, materiais e intersubjetivos. Mas, ao mesmo tempo, somos tão profundamente distintos. Daí que quando olhamos nosso espelho eurocêntrico, a imagem que vemos seja necessariamente parcial e distorcida. Aqui a tragédia é que todos fomos conduzidos, sabendo ou não, querendo ou não, a ver e aceitar aquela imagem como nossa e como pertencente unicamente a nós. Dessa maneira seguimos sendo o que não somos. E como resultado, dificilmente podemos identificar nossos verdadeiros problemas, muito menos resolvê-los, a não ser de uma maneira parcial e distorcida” (Quijano, 2005, p. 129-130).
  • 2
    Discussões sobre a importância da multiplicidade de saberes e possíveis barreiras que os invalidam se fazem presentes na Microfísica do poder, de Michel Foucault (2016FOUCAULT, Michel. Os Intelectuais e o Poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016. P. 129-142.), no qual afirma que os intelectuais descobriram que as massas não necessitam deles para saber, pois elas sabem perfeitamente e claramente, quiçá melhor que eles, de modo que elas o dizem muito bem.
  • 3
    Ao longo do texto, Jacques Gauthier utiliza o termo eurodescendente, todavia, adotamos o entendimento como eurocêntrico.
  • 4
    Sobre a cura xamanística, Gauthier (2012) afirma que tudo acontece com a confiança do paciente nas energias do seu corpo para entrarem em comunicação interativa com as energias múltiplas de cura da planta. Em defesa da existência de um saber inconsciente do corpo, saber de sua própria cura. No livro A queda do céu (2015), fica evidente a compreensão da cura xamânica, através de fotografias e narrações, assim, podemos compreender que através do pó de yãkoana (preparado a partir de folhas e cascas de uma árvore específica), utilizado nas sessões, os xapiri (espíritos) descem para “[...] afugentar os seres maléficos. Arrancarão deles a imagem dos doentes e as trarão de volta aos seus corpos” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 84), trazendo-lhes a cura. Nessa direção, torna-se perceptível a natureza mágico-religiosa do xamanismo e sua relação com as dimensões corporal e espiritual.
  • 5
    Essa predominância pode ser entendida a partir da ideia de um progresso, na qual a perspectiva cognitiva eurocentrista foi tornando-se dominante, “[...] assim todos os não-europeus puderam ser considerados, de um lado, como pré-europeus e ao mesmo tempo dispostos em certa seqüência histórica e contínua do primitivo ao civilizado, do irracional ao racional, do tradicional ao moderno, do mágico-mítico ao científico. Em outras palavras, do não europeu/pré-europeu a algo que com o tempo se europeizará ou ‘modernizará’” (Quijano, 2005, p. 129), nesse sentido, incorporou-se uma necessidade de se modernizar ou avançar, reiterando dualismos.
  • 6
    Estudos do educador Ferdinand Röhr (2012) defendem uma formação humana integral, considerando que o ser humano é composto por diversas dimensões, sendo as básicas: física, sensorial, emocional, mental, espiritual.
  • 7
    Jacques Gauthier (2012), ao descrever suas experiências pessoais, salienta que teve que tentar entender como pensam, sonham e vivem os povos indígenas, compartilhar com eles suas lutas, para entender-se melhor e sobretudo dar início à uma reflexão epistemológica intercultural, onde cada um atua como olhar crítico sobre o outro e, no mesmo gesto, se transforma. “Um método que permitisse entender o pensamento como geografia mental – o que realizei na minha tese de doutorado, que defendi interculturalmente, na Universidade de Paris 8 e na Universidade Popular de Kanaky (Nova Caledônia), criada pelos indígenas de lá que lutavam pela independência socialista e se inspiraram na obra de Paulo Freire para criar o movimento das Escolas Populares Kanak” (Gauthier, 2012, p. 8).
  • 8
    Segundo Dore e Souza (2018), a concepção de contra hegemonia foi cunhada por Raymond Williams em seu livro Base e superestrutura (1973WILLIAMS, Raymond. Base and Superstructure in Marxist Cultural Theory. New Left Review, v. 1, n. 82, p. 3-16, nov./dec. 1973. ) e posteriormente revisto em Marxismo e literatura (1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.). “No Brasil, o conceito de hegemonia de Gramsci não foi compreendido e são diversos os autores que adotam o conceito de contra-hegemonia, muitas vezes, atribuindo-o a Gramsci e não a Raymond Williams, sem fazer sequer referência a este último” (Dore; Souza, 2018, p. 255).
  • 9
    “La sabiduría ancestral que porta el pensamiento de estos pueblos originarios, expresados por sus tradiciones, ritos, magias, hasta sus representaciones antropomórficas de la realidad, son síntomas de que el ocaso de la civilización, no muere con Occidente, sino que renace desde el Sur” (Santos, 2011, p. 17).
  • 10
    Boaventura de Sousa Santos (2006) advoga: “Subraya la búsqueda de una forma distinta de conocimiento, centrada en una dinámica enteramente nueva de conocer, de reencuentro y reapropiación de los saberes múltiples de América Latina” (Santos, 2006SANTOS, Boaventura de Sousa. Conocer desde el Sur: para una cultura política emancipatoria. Lima: Fondo Editorial de la Facultad de Ciencias Sociales - UNMSM, Programa de Estudios sobre Democracia y Transformación Global, 2006., p. 11).
  • 11
    Etimologicamente, de acordo com Gauthier (2012), a palavra Ayahuasca é de origem quéchua, sendo Aya: ancestral, pessoa morta, alma, espírito; e Waska: corda, liana, cipó ou vinho.
  • 12
    O pó de yãkoana é preparado a partir da pulverização de cascas da árvore yãkoanahi (Kopenawa; Albert, 2015).
  • 13
    Segundo Kopenawa e Albert (2015), na tradição indígena, Omama é o criador da terra, floresta e rios. Também criou os xapiri. No intuito de curar doenças, bebe-se o pó da yãkoana para fazer os xapiri dançarem.
  • 14
    A metáfora do rizoma subverte a ordem da metáfora arbórea. Para exemplificar o rizoma, tomemos a imagem de um tipo de caule radiciforme de alguns vegetais, formado por uma miríade de pequenas raízes emaranhadas que se entrelaçam formando um complexo conjunto no qual os elementos remetem uns aos outros e mesmo para fora do próprio conjunto (Gallo, 2016GALLO, Sílvio. Deleuze & a Educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.).
  • 15
    “La realidad no puede ser reducida a lo que existe. Se trata de una versión amplia del realismo, que incluye las realidades ausentes por la vía del silenciamiento, de la supresión y de la marginalización, esto es, las realidades que son activamente producidas como no existentes” (Santos, 2006, p. 82).
  • 16
    De acordo com os autores belgas, “[...] segundo essa tradição [dominante], o pesquisador é quem gera e acumula esses conhecimentos. Para ele, o significado formativo ou educativo da pesquisa pedagógica é justamente enriquecer-se em conhecimentos. [...] sobre a base de um progresso infinito ou de uma transformação constante do conhecimento” (Masschelein; Simons, 2014, p. 59).
  • 17
    Poiesis possui mais do que apenas um significado, todavia aqui entendemos que poiesis advém do grego no sentido de criação.
  • Editor-responsável: Luís Armando Gandin

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2019
  • Aceito
    08 Set 2020
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