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Políticas de Reconhecimento e de Redistribuição na Permanência Estudantil

Resumo:

O objetivo do texto é analisar a articulação de desigualdades decorrentes da entrada de novos sujeitos na universidade, a exemplo de classe, raça, gênero, sexualidade e deficiência. Para tal, o texto está dividido em três partes: 1) concepção de permanência estudantil como uma das dimensões de acesso, e, portanto, uma política afirmativa decorrente das políticas de acesso; 2) discussão dos conceitos correlatos de marcadores da diferença e categorias em articulação, e sua utilidade para pensar na permanência estudantil; 3) a defesa da necessidade de articular políticas de redistribuição e reconhecimento (a partir da contribuição de Nancy Fraser) na permanência estudantil.

Palavras-chave:
Permanência Estudantil; Marcadores Sociais da Diferença; Categorias em Articulação; Políticas de Reconhecimento; Políticas de Redistribuição

Abstract:

The objective of the text is to analyze the articulation of inequalities arising from the entry of new subjects into university, such as class, race, gender, sexuality and disability. To this end, the text is divided into three parts: 1) conception of student retention as one of the dimensions of access, and therefore an affirmative policy arising from access policies; 2) discussion of the correlated concepts of markers of difference and categories in articulation, and their usefulness in thinking about student retention; 3) the advocating of the need to coordinate redistribution and recognition policies (as of Nancy Fraser’s contribution) on student retention.

Keywords:
Student Retention; Social Markers of Difference; Categories in Articulation; Recognition Policies; Redistribution Policies

Introdução

A mudança significativa da universidade pública brasileira em virtude da expansão de vagas e políticas afirmativas colocou como um problema fulcral para a universidade a questão da permanência estudantil. Geralmente pensada como uma política que visa combater a evasão dos cursos, a presença de novos sujeitos na universidade tem desafiado concepções assistencialistas cristalizadas no termo “assistência estudantil”, em favor de uma concepção de permanência como direito à educação (no caso, de nível superior).

Mudar a abordagem de uma perspectiva assistencialista para a perspectiva da efetivação do direito - a ingressar, permanecer e se formar - tem desafiado visões que se limitam a pensar a permanência em termos de concessões de bolsas. A presença na instituição de novos sujeitos, ocorrida após o período de expansão recente de vagas na universidade pública brasileira, tem demonstrado a existência de múltiplas necessidades que, mesmo numa hipótese ideal de viabilizar bolsas a todos os estudantes demandantes, não enfrentaria o conjunto de problemas que levam os estudantes a abandonarem seus cursos. Questões ligadas à articulação de múltiplas desigualdades: de classe (compreendida mais amplamente do que no aspecto de renda), raciais, de gênero, sexualidade, corporalidade e capacidade têm interpelado a instituição a produzir reflexões e práticas.

Minha intenção com este texto em formato de ensaio é discutir a temática da permanência estudantil na universidade e sua relação com marcadores sociais da diferença/ categorias de articulação. Para tal, o texto está dividido em três partes: na primeira discuto a permanência estudantil como uma das dimensões de acesso, e que, portanto, a permanência é também uma política afirmativa decorrente das políticas de acesso. Na segunda parte apresento os conceitos correlatos de marcadores da diferença e categorias em articulação, bem como o paradigma interseccional, e de que forma estes conceitos podem ser úteis para pensar na permanência estudantil. Por fim, na terceira parte, trago uma leitura da necessidade de articular as políticas de redistribuição e reconhecimento, a partir da contribuição de Nancy Fraser, na permanência estudantil.

Acesso e permanência na universidade: desigualdades articuladas

O sentido de universidade como instituição possui uma ambivalência peculiar: ao mesmo tempo em que se propõe universal, ideia inscrita no próprio termo que pensa a universitas, tradicionalmente é uma instituição voltada a uma parte da sociedade, uma elite do ponto de vista econômico ou do ponto de vista intelectual. Esta tradição elitista tem sido desafiada a partir de abordagens diversas: a semântico-conceitual; abordagem do propósito da instituição, e da composição de seu alunado.

A contestação do ponto de vista semântico-conceitual se fundamenta no argumento de que o termo elite é impreciso, e deveria ser substituído por classe ou frações de classe. Quanto ao propósito da universidade (pública), a rejeição à pecha de elitista diz respeito à sua atuação relacionada ao trabalho com o conhecimento, uma instituição que é - ou ao menos é em potência - voltada aos problemas da sociedade que podem ser tratados a partir da mobilização do conhecimento, como a formação de professores, pesquisas na área da saúde, da tecnologia, intervenções sociais, bem como todo um conjunto de pesquisas básicas que não necessariamente possuem aplicação imediata no momento de sua elaboração, e que podem fundamentar novos campos do saber. Por sua vez, considerando o extrato social de seus estudantes, a universidade pública brasileira tem extensos dados empíricos (ANDIFES, 2019 ANDIFES. V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES. Uberlândia: UFU, 2019.sendo a mais recente) demonstrando que a ampla maioria dos estudantes de universidades públicas brasileiras são oriundos das classes sociais mais pobres, e, portanto, desconstruindo os argumentos da sempre revitalizada ideia de cobrança de mensalidades como suposto critério de “justiça”.

A composição social da universidade teve mudanças intensas a partir do conjunto de políticas educacionais da fase expansionista (governos Lula e Dilma), sobretudo em decorrência da conquista de cotas raciais reivindicada por anos pelo movimento negro. Estabelecida por meio da Lei Federal 12.711 de 2012, medidas semelhantes já haviam sido implementadas por universidades brasileiras desde 2002, a exemplo da UERJ, UNEB, UFBA e UnB, usualmente por meio de reserva de vagas para negros dentre o conjunto de vagas destinadas a estudantes oriundos da escola pública, que no caso brasileiro pode ser considerada uma metonímia para classe social1 1 Evidentemente, pode-se levantar inúmeros contraexemplos a esta regra, sobretudo se considerarmos as escolas públicas mais prestigiadas ou os colégios militares. No entanto, grosso modo, a desvalorização dos serviços públicos brasileiros faz com que a classe média, ao menor sinal de uma “sobra” orçamentária ou ao custo de grandes sacrifícios, matricule seus filhos nas escolas particulares com a esperança de uma “boa educação” (o que é bastante discutível, a não ser que se considere que educação de qualidade é aquela que leva à aprovação no vestibular/Enem, não importando que valores éticos ou violências simbólicas são naturalizados). .

Além da Lei de Cotas, a considerável expansão das matrículas via REUNI, que levou a um debate sobre os efeitos da democratização por meio da precarização (de infraestrutura e sobretudo do trabalho docente, conforme Leda; Mancebo, 2009LÉDA, Denise Bessa; MANCEBO, Deise. REUNI: heteronomia e precarização da universidade e do trabalho docente. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 1, 2009.), também foi responsável por esta mudança de panorama. O fato é que, chegando atualmente ao final dos anos 2010, a universidade tem uma nova composição social e racial, com mais estudantes negros, indígenas e quilombolas, e de classes populares.

As políticas de permanência estudantil ganharam status de políticas nacionais somente a partir de 2010, com a aprovação do PNAES2 2 O Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) foi instituído por meio do Decreto no. 7.234 em 19 de julho de 2010. , que indica o atendimento prioritário de estudantes oriundos da rede pública e com renda familiar per capita de até um salário mínimo e meio, critérios que correspondem aos estudantes elegíveis para as vagas reservadas por cotas no SISU. A abrangência de ações é notável: moradia estudantil; alimentação; transporte; atenção à saúde; inclusão digital; cultura; esporte; creche; apoio pedagógico; acesso, participação e aprendizagem de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades e superdotação. Considerando a histórica contenção de recursos para a educação em geral, e para a permanência em particular, parece haver uma tensão entre as ações objetivadas e a limitação do público-alvo, o que leva à uma tendência à política de “focalização”, ou de “administrar o parco dinheirinho”, focando em um reduzido número de indivíduos a já reduzida verba por meio de critérios estabelecidos por cada instituição.

Desta maneira, se as políticas afirmativas para acesso materializada pelas cotas - raciais e sociais - foi um grande avanço, tratar pontualmente acesso como ingresso é desperdiçar a oportunidade de tratar as políticas de permanência igualmente como políticas afirmativas.

Gostaria de trazer a reflexão de que abordar acesso à universidade é tratar um movimento (ir de fora da universidade para dentro) na perspectiva de uma fotografia. Se tratamos este movimento pontualmente, não compreendemos a totalidade desse processo; abstraímos o que aconteceu antes e depois do registro da fotografia. Por esta razão é tão profícua a abordagem de Veloso e Maciel (2015VELOSO, Tereza Christina Mertens Aguiar; MACIEL, Carina Elisabeth. Acesso e permanência na educação superior-análise da legislação e indicadores educacionais. Revista Educação em Questão, v. 51, n. 37, p. 224-250, 2015.), que propõem pensar o acesso em três dimensões indissociáveis: abordar o ingresso (este retrato do instante em que se passa de fora para dentro), mas que também seja captada a continuidade deste movimento por meio da dimensão da permanência, assim como a dimensão da qualidade da formação, a qual indica as condições em que o curso é concluído.

Inspirada por esta perspectiva, procuro neste texto discutir as políticas de permanência como objeto de estudo à luz dos seguintes atravessamentos: marcadores sociais da diferença ou categorias em articulação. Acredito ser especialmente urgente tratar destas questões em um contexto em que se agudizam os cortes orçamentários e se coloca em questão mesmo a relevância social da universidade pública.

Por estas razões, defendo que a educação superior pública deve ser considerada como um direito, o que esbarra atualmente na compreensão legal (constitucional, inclusive) que limita este direito às “capacidades individuais” (fundamentadas na concorrência advinda da limitação de vagas), abrindo espaço para uma compreensão meritocrática deste direito. As cotas, em especial as raciais, foram fundamentais para desafiar esta compreensão, visto que o desempenho na seleção, com variações mínimas entre cotistas e não-cotistas, não é fator determinante do desempenho acadêmico posterior3 3 Há um conjunto significativo de pesquisas sobre este tema, que confirma esta visão, a exemplo de Campos, Feres Junior e Daflon (2014), que analisam o desempenho de candidatos ao SISU, o de Velloso (2019) na UnB e Queiroz et al. (2015) na UFU. .

A admissão dos critérios raciais para a reserva de vagas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012 foi um marco histórico, visto que foi a primeira vez que o Estado brasileiro reconheceu a necessidade de políticas de reparação voltadas a negros e indígenas. A matéria do julgamento foi uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), que denunciava a reserva de vagas com critérios raciais como incompatível com o princípio de igualdade constitucional. O estabelecimento de um critério para preenchimento das vagas públicas para o ensino superior - historicamente limitadas em número - que pressupõe a igualdade formal entre aqueles que entram na competição é a operação ideológica que traduz a educação superior pública como uma recompensa ao mérito do indivíduo, ao invés de um direito.

No entanto, as diferenças abissais no sistema educacional brasileiro, sobretudo se considerada a clivagem entre escolas de formação de elite e escolas para a maior parte da população reproduzem o dualismo educacional (Nosella, 1991NOSELLA, Paolo. A escola de Gramsci. Porto Alegre: Artmed, 1991.; Mendes, 2016MENDES, Maíra Tavares. Acesso à universidade: dualismo, mérito e democratização em questão. 2016. 258f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.). Mais ainda, estas desigualdades possuem um forte componente racial, se considerarmos que legalmente a admissão de jovens negros na escolarização brasileira, inclusive aquela pensada para socializar os conhecimentos mais básicos para inserção profissional, tratados como “rudimentares”4 4 Vemos atualmente um reforço à ideia de escola para ensinar os rudimentos na fala do Presidente Bolsonaro, para quem deve “ler, escrever, contar e ensinar uma profissão”. , foi proibida até pouco menos de um século5 5 A Reforma Couto Ferraz, de 1854, estabelecia a proibição de escravos frequentarem a escola. . Portanto, tratar do acesso à universidade na defesa de uma suposta igualdade de condições é efetuar uma operação de apagamento histórico que desconsidera desigualdades sedimentadas do ponto de vista racial e de classe. Desta maneira, o discurso meritocrático que se constitui como oposição às políticas afirmativas de reserva de vagas para negros no acesso à universidade (nossa versão de política universalista colorblind) opera, conscientemente ou não, uma política de cunho racista.

Após quase duas décadas de implementação das cotas raciais e sociais em universidades brasileiras, o fato é que se pode verificar não apenas uma mudança na composição social de estudantes da universidade brasileira, mas também nas problemáticas abordadas academicamente, nas atividades-fim e na gestão. Novas questões do ponto de vista pedagógico precisaram ser equacionadas, novos objetos e sujeitos de pesquisa entraram em cena, o que também influenciou a relação da universidade com a comunidade na forma de extensão. Quanto à gestão, o desafio de viabilizar a permanência de estudantes que são frequentemente os primeiros de suas famílias a acessar este nível de estudo se mostra um foco de preocupação que deve transcender a individualização do problema.

Estes aspectos ampliam a necessidade de pensar a instituição a partir de abordagens que levam em conta mais de um eixo de desigualdade. Se tradicionalmente na universidade a preocupação em abordar desigualdades, quando existente, voltou-se à temática das classes sociais, a articulação com a categoria raça, denunciada por sua ausência física e simbólica neste espaço de poder, tornou-se foco de denúncia. Os esforços do recém-constituído campo de pesquisa “acesso à universidade”, em franco desenvolvimento a partir da primeira década do milênio, foram um dos principais responsáveis por colocar a tônica na categoria raça como fundamental para os estudos sobre universidade. A forma de implementação das cotas nas universidades, combinando critérios de escola de origem a critérios raciais, também levou a um refinamento no modo de pensar a produção destas desigualdades na fruição do direito à educação.

Se raça e classe como categorias articuladas levam a produção de desigualdades que se expressam no acesso à universidade pública no Brasil, é de se esperar que, pensando em trajetórias de sujeitos concretos, haja uma continuidade de desigualdades vivenciadas após o seu ingresso. As pesquisas sobre a permanência estudantil (aqui considerada como o oposto da evasão), sobretudo na área do Serviço Social, campo de formação profissional daquelas/es que trabalham diretamente com a operacionalização institucional deste tipo de política, têm sido pródigas em discutir os aspectos de classe que impactam nas condições de realização dos cursos para estudantes pobres. Pode-se dizer que há um interesse recente de pesquisas que procuram articular a dimensão de raça à de classe para melhor compreender - e propor políticas - para viabilizar o efetivo direito à educação superior.

Se a recente produção acadêmica do campo sobre permanência estudantil explicitou que a articulação das diferenças de classe e raciais têm produzido desigualdades particulares entre estudantes no interior da universidade, é razoável esperar que a articulação de outras diferenças, como gênero, sexualidade e deficiência produzam desigualdades singulares. Retirar estas desigualdades da invisibilidade não consiste de exercício acadêmico especulativo, mas sim de uma exigência de sujeitos que vivem em uma situação de limiaridade em relação à evasão, ou seja, de vulnerabilidade em múltiplas articulações possíveis da sua condição de sujeito (mulher pobre, jovem indígena, lésbica cadeirante, trans negra, para citar alguns exemplos hipotéticos). Portanto, pensar como tais sujeitos conseguem (ou não) percorrer sua trajetória na universidade e que políticas institucionais lhes são destinadas é um desafio urgente que se coloca a uma universidade que se pense democrática.

Marcadores da diferença, interseccionalidade e desigualdades articuladas na permanência estudantil

Tratar de diferenças na discussão sobre os sujeitos que ingressam e permanecem (ou não) na universidade implica em assumir que existem determinadas condições de assimetria em jogo. O conceito de “marcadores sociais da diferença” se propõe a “designar como diferenças são socialmente instituídas e podem conter implicações em termos de hierarquia, assimetria, discriminação e desigualdade” (Almeida et al., 2018ALMEIDA, Heloísa Buarque de; SIMÕES, Júlio Assis; MOUTINHO, Laura; SCHWARCZ, Lília Moritz. Numas, 10 anos: um exercício de memória coletiva. In: SAGGESE, Gustavo Santa Roza; MARINI, Marisol; LORENZO, Rocío Alonso; SIMÕES, Júlio Assis; CANCELA, Cristina Donza (Org.). Marcadores Sociais da Diferença: gênero, sexualidade, raça e classe em perspectiva antropológica. São Paulo: Terceiro Nome; Editora Gramma, 2018., p. 19). Essa “instituição social da diferença” toma certas classificações e os sentidos produzidos a partir delas como “naturais”, enquanto outros são subestimados ou circunstancialmente esquecidos.

Nessa perspectiva, a ideia de um “marcador” salienta determinado atributo lido socialmente como distinto/diferente de outro, que passa por um processo de naturalização/normalização, e constitui o “diferente” como o seu “Outro”. Se tratamos da universidade pública, o processo de ampliação da presença de sujeitos das classes populares, negros e indígenas pode ser lido como o afluxo desses “Outros” antes ausentes física e/ou simbolicamente da universidade. Dito de outra forma: pobres, negros e indígenas eram majoritariamente objetos de pesquisa ao invés de sujeitos pesquisadores/produtores de conhecimento.

Avtar Brah (2006BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 329-376, jun. 2006.) propõe um conjunto de questões que busca dar conta de uma variedade de significados para diferença. Trago aqui a discussão apresentada por Brah sobre o conceito de diferença como relação social, que “se refere à maneira como a diferença é constituída e organizada em relações sistemáticas através de discursos econômicos, culturais e políticos e práticas institucionais” e que “sublinha a articulação historicamente variável de micro e macro regimes de poder, dentro dos quais modos de diferenciação tais como gênero, classe ou racismo são instituídos em termos de formações estruturadas” (Brah, 2006, p. 362-3). A grande questão é, de acordo com a autora, saber como a diferença é definida: trata-se de uma diferença como meio de afirmação de diversidade ou de mecanismos de discriminação? Contribuem para políticas emancipadoras ou opressivas?

No âmbito da universidade, o acesso desses novos sujeitos pode articular essas duas matrizes discursivas (e suas práticas correspondentes): a celebração da diversidade racial e/ou cultural como um valor afirmado pela instituição que passa a admitir este “Outro”, convivendo ao mesmo tempo com discursos e práticas de deslegitimação e discriminação, pelo fato de este “Outro” ser alguém que até pouco tempo sequer era pensado pela universidade como sujeito epistemológico.

Ainda que em potência a universidade possa se constituir como uma instituição que celebre a diversidade, a atual situação de estudantes que se constituem como “Outro” em relação à raça (negros, indígenas, quilombolas), gênero (mães estudantes), sexualidade (pessoas trans) e corporalidade (estudantes deficientes) é a de inscrição da diferença como desigualdade na fruição do direito à educação.

Ao tratarmos da permanência, estamos ainda cruzando (ou interseccionando) estas diferenças à diferença de classe. A ideia de interseccionalidade remete à produção do coletivo de mulheres negras e lésbicas Combahee River Collective, em Boston, que publicou um manifesto em 1977 (Collective, 1977COMBAHEE RIVER COLLECTIVE. The Combahee River Collective Statement. 1977. Disponível em: <Disponível em: http://circuitous.org/scraps/combahee.html >. Acesso em: 29 maio 2019.
http://circuitous.org/scraps/combahee.ht...
), afirmando seu compromisso com a luta contra a opressão racial, sexual, heterossexual, e de classe, sistemas de opressão que estão entrelaçados. Crenshaw (1989CRENSHAW, Kimberlé Williams. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. In: AÇÃO EDUCATIVA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004., 1991CRENSHAW, Kimberlé Williams. Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, n. 6, p. 1241-99, 1991. ) utiliza a metáfora de um cruzamento de vias representando o racismo e o sexismo, ilustrando que mulheres negras estão atravessadas por estes dois eixos de opressão. A autora constata que isto levou a uma marginalização da mulher negra tanto nos movimentos antirracistas quanto feministas, defendendo o paradigma interseccional como uma abordagem que considere as particularidades da mulher negra, retirando-a dessa invisibilidade que abrange questões estruturais, representacionais e políticas.

Hirata (2014HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo social, v. 26, n. 1, p. 61-73, 2014.), a partir das contribuições de Danièle Kergoat, procura trabalhar o conceito correlato de consubstancialidade das relações sociais, a partir da crítica da noção “geométrica” de intersecção que privilegia dois termos da relação (a exemplo de raça e gênero), ou então tratam analiticamente as diferenças em termos de categorias, mais do que em termos de relações sociais historicizadas. A autora identifica como um dos principais problemas decorrentes das categorias interseccionalidade/consubstancialidade a “interseccionalidade de geometria variável”:

[...] se para Danièle Kergoat existem três relações sociais fundamentais que se imbricam, e são transversais, o gênero, a classe e a raça, para outros [...] a intersecção é de geometria variável, podendo incluir, além das relações sociais de gênero, de classe e de raça, outras relações sociais, como a de sexualidade, de idade, de religião etc. (Hirata, 2014HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo social, v. 26, n. 1, p. 61-73, 2014., p. 66).

Piscitelli (2008PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e cultura, v. 11, n. 2, 2008.), por sua vez, destaca a ideia de categorias de articulação como sinônimo de interseccionalidades, ao analisar como se imbricam sexualidade, gênero, raça, etnicidade e nacionalidade em brasileiras migrantes. A autora destaca que na história do feminismo tais ferramentas analíticas foram desenvolvidas para compreender “distribuições diferenciadas de poder que situam as mulheres em posições desiguais e, com base no conhecimento, modificar essas posições” (Piscitelli, 2008, p. 10).

O que essas autoras têm em comum é a preocupação em levar em consideração para a análise de uma dada “diferença” as interações com outras, ou, nos termos de Piscitelli (2008PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e cultura, v. 11, n. 2, 2008.), suas articulações. Aplicando estas preocupações ao meu foco de interesse, compreender as estratégias de permanência mobilizadas por estudantes de classes subalternas na universidade implica em considerar elementos diversos que influenciam na sua capacidade de evitar a evasão, ou de resiliência6 6 Tenho restrições ao uso deste termo para se referir aos estudantes que mobilizam estratégias de permanência. Trata-se de um termo que é bastante adequado para se referir a propriedades materiais ou ecológicas: um determinado tipo de material que não se deforma quando submetido a uma força ou um determinado ambiente que tem a capacidade de se recuperar de perturbações. Entretanto, é justamente a existência dessa analogia com o mundo material que fundamenta minha resistência a transpor este termo para tratar de estudantes pressionados pelas suas condições de vida a desistir de seus cursos. O termo parece supor que é esperado ou mesmo valorizado que estes sujeitos suportem e superem as violências em seu percurso acadêmico como sacrifício que justifica o merecimento a seu diploma. .

Estas reflexões apontam a necessidade de complexificar análises que pressupõem uma relação direta entre a evasão e problemas econômicos, no sentido de dificuldades financeiras, propondo como políticas de permanência um quantitativo de bolsas reduzido (tanto em número quanto em valor). É importante compreender as desigualdades de classe de maneira mais ampla do que a necessidade de complementação de renda, a exemplo da reduzida disponibilidade de tempo de estudo na conciliação com o mundo do trabalho (produtivo e reprodutivo), da violência simbólica no processo de estranhamento com as dinâmicas institucionais, de como é ignorada a dimensão feminilizada do trabalho reprodutivo que implica em uma invisibilização da estudante mãe ou o componente racial dos trabalhos precários que podem levar uma inserção adiada de trabalhadores negros no ensino superior.

Sem desprezar a importância das bolsas como políticas de apoio que viabilizam algum auxílio para garantir o mínimo de subsistência, analisar quais outras políticas seriam capazes de viabilizar a permanência e a conclusão do curso desses novos sujeitos implica em compreender os mecanismos institucionais (estruturais) que levam a seu abandono. Trabalho com a hipótese de que racismo, sexismo, capacitismo e LGBTfobia são responsáveis por processos que levam a mais do que a evasão (cuja agência recai no sujeito evadido), e sim à expulsão institucionalizada (a agência aqui recai na instituição, não no estudante) destes sujeitos da universidade. Isto exige analisar não apenas cada uma destas dimensões de maneira separada, mas suas formas de articulação, no intuito de produzir reflexões sobre como viabilizar políticas de permanência para os sujeitos concretos que dela necessitam.

Todavia, a multiplicidade de sujeitos - e consequentemente de demandas que exigem reconhecimento coexistindo com a persistente desigualdade de renda - segue interpelando políticas redistributivas, coloca o desafio de um quadro analítico que não trate dessas questões como incompatíveis entre si. Como defender o reconhecimento sem abrir mão de políticas de redistribuição?

Reconhecimento e redistribuição na universidade brasileira

Nancy Fraser (2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 07-20, 2002.), ao analisar os efeitos da globalização nas políticas que defendem justiça social, destaca a proeminência da cultura nessa ordem emergente. A autora chama atenção para o processo de transição de uma economia fordista a uma pós-fordista, no qual produção em massa, sindicatos fortes, e salário familiar como norma tem dado lugar a uma produção voltada a nichos de mercado, declínio da sindicalização e aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho. A maior visibilidade de trabalhadores “simbólicos”, o deslocamento da centralidade do trabalho para religião ou etnicidade na constituição de identidades coletivas, a intensificação da hibridação cultural, são alguns dos elementos que constituem esta nova condição.

Interessada nos efeitos desta proeminência para a política, e portanto com as perspectivas de justiça social, Fraser (2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 07-20, 2002.) caracteriza a globalização como politização generalizada da cultura, especialmente nas lutas por identidade e diferença, que a autora trata como lutas por reconhecimento. Este processo ocorre em paralelo ao declínio de políticas de classe, retração das lutas por igualdade econômica, avanço do neoliberalismo com ataque aos direitos sociais e redução do horizonte de partilha de recursos (ou política redistributiva). Além disso, as lutas por redistribuição frequentemente se colocam de maneira antitética às lutas por reconhecimento, sendo que atualmente as últimas têm sido enfatizadas em detrimento das primeiras.

Esta viragem na perspectiva de justiça social leva a perspectivas ambivalentes. Por um lado, houve um alargamento da contestação política e um novo entendimento da justiça social para além do eixo da classe, incluindo a diferença sexual, a raça, a etnicidade, a sexualidade, a religião e a nacionalidade - questões de representação, identidade e diferença. Por outro lado, no contexto do neoliberalismo em ascensão, estas lutas têm sido colocadas como antítese de lutas por redistribuição igualitária, levando ao que Fraser (2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 07-20, 2002., p. 9-10) caracteriza de troca de um economicismo truncado a um culturalismo truncado: “o resultado seria um exemplo clássico de desenvolvimento combinado e desigual: as recentes conquistas notáveis no eixo do reconhecimento corresponderiam a um progresso paralisado, se não mesmo a francas perdas, no eixo da distribuição”. A autora propõe então a existência de três riscos inerentes à trajetória da globalização, com propostas visando a superá-los.

O primeiro risco, que Fraser denomina problema da substituição, diz respeito ao processo em que, num neoliberalismo que deseja acima de tudo reprimir a ideia do igualitarismo socialista, exacerbando as desigualdades econômicas, os conflitos identitários assumiram caráter paradigmático. “Neste contexto, as lutas pelo reconhecimento estão a contribuir menos para suplementar, tornar mais complexas e enriquecer as lutas pela redistribuição do que para as marginalizar, eclipsar e substituir” (Fraser, 2002, p. 6-7).

Este processo exige revisitar o conceito de justiça, o que Fraser (2009FRASER, Nancy. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. Lua Nova, São Paulo, vol. 77, p. 11-39, 2009.) propõe como “concepção tridimensional de justiça social”, que contemple distribuição, reconhecimento e representação. Ao tratarmos da permanência estudantil, estas preocupações são bastante relevantes. Se considerarmos o conjunto de injustiças distributivas, Fraser (2002) indica que sua quintessência é a má distribuição, que engloba não só a desigualdade de renda, mas também a exploração, a privação e a marginalização ou exclusão dos mercados de trabalho. Portanto pensar em distribuição no âmbito da universidade exige pensar em políticas de transferência de renda, como é o caso das bolsas, que têm sido alvo de constantes reduções em número e valor, mas também em questões mais amplas, como o próprio direito à conclusão do curso como estratégia para melhorar as condições de acesso ao mercado de trabalho, visto que um grande contingente de estudantes de classes populares são os primeiros de suas famílias a aceder ao ensino superior.

Poderíamos ainda levantar como questões de políticas distributivas na universidade aquelas relativas ao salário indireto, como os subsídios para alimentação, financiamento de moradia ou auxílio-aluguel, políticas voltadas à saúde do estudante, auxílio-transporte, dentre outras que se situam na esfera da reprodução das condições de vida.

Quanto a injustiças no âmbito do reconhecimento, estas são geradas a partir da subordinação de status fundamentadas nas hierarquias institucionalizadas de valor cultural. A situação paradigmática da injustiça neste eixo é o falso reconhecimento, abarcando a dominação cultural, o não-reconhecimento e o desrespeito.

O remédio é, portanto, o reconhecimento, igualmente em sentido lato, de forma a abarcar não só as reformas que visam revalorizar as identidades desrespeitadas e os produtos culturais de grupos discriminados, mas também os esforços de reconhecimento e valorização da diversidade, por um lado, e, por outro, os esforços de transformação da ordem simbólica e de desconstrução dos termos que estão subjacentes às diferenciações de estatuto existentes, de forma a mudar a identidade social de todos (Fraser, 2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 07-20, 2002., p. 12).

A história da instituição universitária, cujo trabalho de produção de conhecimento conviveu, quando não abertamente produziu justificativas de exploração colonialistas, reforçando a subordinação da população negra e indígena, exige um profundo processo de reexame para caminhar no sentido da justiça de reconhecimento. Para além da dominação cultural, a instituição convive ainda com situações sistemáticas de não-reconhecimento (como no caso de pessoas trans) e desrespeito (de pessoas com deficiência, de estudantes mães). Há ainda que se destacar as violências simbólicas, mais difíceis de serem nomeadas e portanto combatidas, direcionadas a estes “corpos desviantes” na instituição, subjacente a estas diferenciações de status entre estudantes categorizados como “normais” e os “Outros”.

A revalorização das identidades, reconhecimento e valorização da diversidade, mudanças na ordem simbólica e desconstrução das diferenciações de status implicam em profundas mudanças institucionais que levam à problematização da universidade em todas as suas atividades-fins. Não à toa, é comum que um conjunto significativo de motivações para a evasão recaiam em ditos “problemas pedagógicos”, que para além de dificuldades de acompanhar conteúdos de disciplinas, possivelmente dizem respeito à relação professor-aluno como momento de encontro/conflito cultural, em que essas violências se expressam de maneira sistemática.

Se de modo geral estudantes são colocados como categoria subordinada na universidade, seja pelo seu reduzido tempo na instituição em comparação aos outros segmentos, seja por sua infantilização em virtude de diferenças geracionais, fatores que se combinam à ampliação da presença de negros e indígenas no corpo estudantil ainda não acompanhada no quadro de professores, significa que têm reduzida capacidade de intervenção institucional nestas situações de injustiça que descrevo. Estes processos de dominação cultural, não-reconhecimento e desrespeito estão, a meu ver, na base de mecanismos que limitam a participação de estudantes nos processos de tomada de decisão e, portanto, de mudança institucional.

Assim, a transformação institucional em favor de um maior reconhecimento acaba se dando na forma de rupturas abruptas (alguns diriam violentas), por meio de lutas radicalizadas como único meio encontrado para fazer suas vozes serem ouvidas (a exemplo de manifestações no campus, ou de ocupações de reitorias como método de luta sistemático nas décadas de 2000 e 2010). Estas ações radicalizadas, entretanto, não se restringem à defesa de justiça como políticas de reconhecimento (dirigida a ações racistas/misóginas de dado docente, endossadas aberta ou silenciosamente pela instituição), mas antes acabam mescladas com as demandas por distribuição (contrárias ao aumento do valor as refeições no restaurante universitário, contra cortes nas bolsas ou mesmo no orçamento global da universidade), aparecendo em pautas de reivindicação que indicam precisamente essa concepção multidimensional de justiça.

No intuito de combinar redistribuição e reconhecimento, Fraser propõe a ideia de uma medida normativa comum que inclua ambos os tipos de reivindicações, sem as reduzir. A autora propõe que esta medida seria o princípio da paridade de participação, “segundo o qual a justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros (adultos) da sociedade interagir entre si como pares” (Fraser, 2002, p. 13). A autora ressalta que, para que este princípio seja respeitado, algumas condições são necessárias: recursos materiais que garantam independência e voz, o que é limitado nos casos de dependência e desigualdade econômica; e que padrões de valor cultural respeitem todos os participantes e garantam iguais oportunidades para alcançar a consideração social. Para tal, é necessário excluir

[...] padrões institucionalizados de valor que sistematicamente depreciam algumas categorias de pessoas e as características a elas associadas. Portanto, excluem-se padrões institucionalizados de valor que negam a alguns o estatuto de parceiros plenos nas interacções - quer ao imputar-lhes a carga de uma “diferença” excessiva, quer ao não reconhecer a sua particularidade (Fraser, 2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 07-20, 2002., p. 13).

O segundo problema discutido por Fraser (2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 07-20, 2002.) decorre do aumento da interação e comunicação transculturais, aceleração da migração e dos fluxos de meios de comunicação globais que têm levado a um intenso processo de fratura e hibridação de formas culturais. Se algumas lutas por reconhecimento têm buscado se adaptar a essa crescente complexidade,

[...] outras tomam a forma de um comunitarismo que simplifica e reifica drasticamente as identidades de grupo. Nestes casos, as lutas pelo reconhecimento não fomentam a interacção e o respeito entre diferenças em contextos cada vez mais multiculturais, mas tendem antes a encorajar o separatismo e a formação de enclaves grupais, o chauvinismo e a intolerância, o patriarcalismo e o autoritarismo. Chamo a isto o problema da reificação (Fraser, 2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 07-20, 2002., p. 14, grifo no original).

Fraser (2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 07-20, 2002.) defende que é necessária uma concepção não identitária de reconhecimento para combater este problema. As lutas por reconhecimento tradicionalmente foram vistas através das lentes da identidade, por meio da reivindicação do reconhecimento cultural da identidade específica de grupos, em resposta ao falso reconhecimento por meio da depreciação da identidade pelo grupo dominante. Há, desta maneira, um dano infligido no sentido do eu, cuja reparação exige o reconhecimento que vise a retificar a desestruturação causada pela imagem pejorativa projetada pela cultura dominante. Os membros do grupo depreciado rejeitam tais imagens em favor de novas autorrepresentações, imagens construídas pelo próprio grupo, de maneira a exibi-la publicamente para ganhar respeito e consideração da sociedade. O êxito desta operação é o que Fraser chama de reconhecimento, ou seja, uma relação não distorcida consigo mesmo.

Este modelo identitário de reconhecimento tem sido particularmente importante para destacar os efeitos psicológicos do racismo, sexismo, LGBTfobia e do capacitismo. No âmbito da universidade, ainda que pouco teorizados, têm sido utilizados como ferramentas de denúncia das relações hierarquizadas entre professores (lidos como “a instituição”) e os novos sujeitos ingressantes no que denominei como “conflito cultural da relação professor-aluno”. A idealização de um “estudante-padrão” que corresponde às expectativas ou mesmo experiências prévias dos professores na universidade pré-expansão, atravessadas por pressupostos e estereótipos racistas, misóginos e de modo geral preconceituosos em relação aos corpos desviantes, tem aberto o debate sobre sofrimento psíquico do estudante na universidade, motivado inclusive por casos de suicídio. Nesse sentido, o modelo identitário de reconhecimento tem proporcionado importantes contribuições para compreender a permanência estudantil.

Por outro lado, o modelo identitário tende a reificar as identidades de grupo, assim como falhar na abordagem de eixos intercruzados (interseccionais, articulados) de subordinação, bem como suas relações com a má distribuição de recursos. Estas falhas levam a uma dificuldade na abordagem simultânea de uma política que combata múltiplos eixos de injustiça. É nesse sentido que Fraser (2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 07-20, 2002.) propõe a ideia de um modelo de estatuto/status, considerando que o reconhecimento é uma questão de status social: o que requer o reconhecimento não é a identidade, mas o status individual de seus membros como parceiros de pleno direito na interação social. O falso reconhecimento, nesta perspectiva, diz menos respeito à depreciação e deformação da identidade do grupo do que à subordinação social, o impedimento da participação paritária na vida social. Reparar esta injustiça equivaleria a colocar o membro cujo reconhecimento foi distorcido, por motivos de subordinação, como membro pleno da sociedade.

O modelo de status defendido por Fraser coloca ênfase nas diferenças de valor cultural atribuído à posição relativa de atores sociais. Quando determinados atores são vistos como inferiores, excluídos, invisíveis, “completamente outros”, ou seja, não são membros plenos na interação social, está em jogo um falso reconhecimento ou uma subordinação de status. Trata-se de uma uma “relação social de subordinação transmitida através de padrões institucionalizados de valor cultural”, e “ocorre quando quando as instituições sociais regulam a interacção de acordo com normas culturais que impedem a participação paritária” (Fraser, 2002, p. 16).

Um exemplo de como isto se reflete na discussão sobre políticas de permanência estudantil na universidade diz respeito à ideia mais ampla de participação estudantil na instituição. As desigualdades/injustiças de redistribuição e reconhecimento passariam pela exigência de considerar os estudantes como sujeitos do direito à participação, o que leva ao problema da representação. De modo geral, as instituições que mais avançaram no reconhecimento da participação o fizeram na escolha formal de seus gestores e/ou conselheiros por meio do voto paritário, o que significa dizer que, apenas para decisões de cargos eletivos, cada um dos três segmentos da instituição tem igual peso no resultado final das eleições. Como o conjunto de estudantes é usualmente maior do que professores e técnicos administrativos, a consequência da paridade por setor é uma desvalorização relativa do voto dos estudantes, e consequente valorização dos votos das demais categorias (para um mesmo resultado final, cada voto dos servidores tem um peso maior do que o dos estudantes). Ainda assim, nestes casos em que se alcançou a paridade para cargos eletivos, que não se generalizou entre universidades públicas, a ideia de voto universal (cada votante no interior da instituição teria o mesmo peso no resultado final) ou de paridade nas demais decisões institucionais, como nos conselhos representativos, é tratada como uma excentricidade democratista utópica.

Quando se atribui aos estudantes uma suposta incapacidade de tomar decisões sobre a universidade, e especialmente se estabelece uma hierarquia de valores que invisibilizam determinados segmentos ou os estereotipam (“a mãe que usa o filho como desculpa”, “os indígenas preguiçosos”, “a mulher negra raivosa”, “x estudante que sempre alega perseguição por sua identidade de gênero”, “o deficiente coitadinho”) por meio de falsos reconhecimentos, a participação é esvaziada. A constituição desses estereótipos é operada pelo estabelecimento de um “padrão institucionalizado de valor cultural que constitui algumas categorias de actores sociais como normativas e outras como deficientes ou inferiores” (Fraser, 2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 07-20, 2002., p. 16). A eles são negadas as oportunidades de serem parceiros plenos na sociedade, de participar no mesmo nível, por meio do falso reconhecimento.

O modelo de status se propõe não a valorizar a identidade de grupos, mas sim questionar a subordinação que permite o falso reconhecimento. Isto é, “visa desinstitucionalizar padrões de valor cultural que impedem a paridade de participação e substituí-los por padrões que a fomentam” (Fraser, 2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 07-20, 2002., p. 16), contrariando os processos de reificação por meio do questionamento das normas institucionalizadas sobre as capacidades de interação. Adotar este princípio de justiça no interior da universidade exige não somente o reexame das normas institucionais, mas a compreensão dos processos estruturais que levam a uma maior homogeneidade do corpo docente se comparada à nova e múltipla composição do corpo discente no período pós-expansão.

Como terceiro problema, Fraser (2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 07-20, 2002.) apresenta a questão do “enquadramento desajustado” na globalização. Este termo refere-se ao fato de que, na globalização, tem ocorrido um processo de descentralização do Estado nacional como único contexto de endereçamento da luta por justiça social. A autora destaca os desencontros de escala, a exemplo da contradição entre fluxos transnacionais de distribuição econômica e processos nacionais de redistribuição, ou dos fluxos globais de signos e imagens, por um lado, e práticas locais de hibridação e apropriação. Para além destas escalas de justiça mais facilmente identificáveis como tal, Fraser (2002, p. 18-19) inclui ainda outros contextos de interação, como “mercados de trabalho, as relações sexuais, a vida familiar, a esfera pública e as associações voluntárias da sociedade civil”, cada um com suas formas peculiares de compreensão da participação, e portanto com a necessidade de múltiplos enquadramentos para este princípio. Isso implica em uma abordagem de múltiplos enquadramentos da justiça, uma vez que

[...] não há nenhum enquadramento ou nível de soberania que por si só seja suficiente para lidar com a totalidade das questões de justiça no contexto da globalização. O que é preciso é antes um conjunto de enquadramentos múltiplos e uma concepção de soberania com múltiplos níveis. Consequentemente, torna-se inevitável a questão de saber quando e onde aplicar determinado enquadramento. A partir daqui, qualquer discussão sobre a justiça deve incorporar uma reflexão explícita sobre o problema do enquadramento. Relativamente a cada caso, devemos perguntar quem são precisamente os sujeitos relevantes da justiça e quem são os actores sociais entre os quais se exige que exista paridade de participação (Fraser, 2002FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 07-20, 2002., p. 19).

À luz das dificuldades de permanência estudantil que tenho elencado no texto, a ideia de múltiplos enquadramentos para o princípio de paridade de participação, que vise a uma concepção multidimensional de justiça e um questionamento da hierarquia institucionalizada de valor social, requer um profundo reexame de práticas na universidade, bem como assumir que a luta por justiça requer ao mesmo tempo contestações intra e extrainstitucionais.

Dito de outra forma, para que a composição social da universidade seja efetivamente alterada, garantindo que os estudantes tenham o direito à educação contemplado nas suas múltiplas dificuldades, que incluem questões distributivas e de reconhecimento, é preciso debater a função social da universidade no contexto do capitalismo globalizado. Para além de constatar as tentativas de enxugamento de gastos sociais e a colonização do discurso dos negócios no campo da educação superior (que Fairclough, 2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: UnB, 2001., denomina comodificação do discurso), isso nos exige a capacidade (“imaginação inventiva” nos termos de Florestan Fernandes, como bem recuperado por Leher, 2012LEHER, Roberto. Florestan Fernandes e a defesa da educação pública. Educação & Sociedade, Campinas, v. 33, n. 121, p. 1157-1173, dez. 2012. ) de redesenhar horizontes para uma instituição que passa por uma profunda crise.

A presença de novos sujeitos no interior da universidade coloca, portanto, a possibilidade novas epistemologias, problematizações e compreensões de fenômenos já consolidados. Trata-se de uma condição potencial, pois a resistência a repensar os critérios institucionais que levam à expulsão (consentida ou não) deste novo contingente de estudantes permite à universidade seguir com o seu fazer inquestionado. Nesta perspectiva, pensar sobre a permanência estudantil significa trazer para o primeiro plano a responsabilidade da universidade como instituição que se propõe a pensar e propor soluções para as desigualdades do país.

Seria possível argumentar que, no atual estágio do capitalismo, não há lugar para este tipo de preocupação, em especial nos países periféricos como o Brasil. Entretanto, experiências “fora do lugar” insistem em se fazer visíveis, questionando a lógica de subordinação e desigualdade, desafiando a lógica normativa do Estado, a virulência da exploração financeira global, e instrumentalizadora de boa parte do conhecimento produzido em universidades. Se os arautos dos cortes de gastos sociais afirmam a insustentabilidade financeira do espaço para o pensamento crítico, cabe àquelas comprometidas com a crítica demonstrar a insustentabilidade humana do pensamento instrumental.

Referências

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  • VELLOSO, Jacques. Cotistas e não-cotistas: Rendimentos de alunos da Universidade de Brasília. Cadernos de Pesquisa, v. 39, n. 137, p. 621-644, maio/ago. 2009.
  • 1
    Evidentemente, pode-se levantar inúmeros contraexemplos a esta regra, sobretudo se considerarmos as escolas públicas mais prestigiadas ou os colégios militares. No entanto, grosso modo, a desvalorização dos serviços públicos brasileiros faz com que a classe média, ao menor sinal de uma “sobra” orçamentária ou ao custo de grandes sacrifícios, matricule seus filhos nas escolas particulares com a esperança de uma “boa educação” (o que é bastante discutível, a não ser que se considere que educação de qualidade é aquela que leva à aprovação no vestibular/Enem, não importando que valores éticos ou violências simbólicas são naturalizados).
  • 2
    O Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) foi instituído por meio do Decreto no. 7.234 em 19 de julho de 2010.
  • 3
    Há um conjunto significativo de pesquisas sobre este tema, que confirma esta visão, a exemplo de Campos, Feres Junior e Daflon (2014CAMPOS, Luiz Augusto; FERES JUNIOR, João; DAFLON, Veronica. O Desempenho dos Cotistas no ENEM: comparando as notas de corte do SISU. Textos para discussão GEMAA, n. 4, 2014.), que analisam o desempenho de candidatos ao SISU, o de Velloso (2019VELLOSO, Jacques. Cotistas e não-cotistas: Rendimentos de alunos da Universidade de Brasília. Cadernos de Pesquisa, v. 39, n. 137, p. 621-644, maio/ago. 2009.) na UnB e Queiroz et al. (2015QUEIROZ, Zandra Cristina Lima Silva; MIRANDA, Gilberto José; TAVARES, Marcelo; FREITAS, Sheizi Calheira de. A lei de cotas na perspectiva do desempenho acadêmico na Universidade Federal de Uberlândia. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 96, n. 243, p. 299-320, maio/ago. 2015.) na UFU.
  • 4
    Vemos atualmente um reforço à ideia de escola para ensinar os rudimentos na fala do Presidente Bolsonaro, para quem deve “ler, escrever, contar e ensinar uma profissão”.
  • 5
    A Reforma Couto Ferraz, de 1854, estabelecia a proibição de escravos frequentarem a escola.
  • 6
    Tenho restrições ao uso deste termo para se referir aos estudantes que mobilizam estratégias de permanência. Trata-se de um termo que é bastante adequado para se referir a propriedades materiais ou ecológicas: um determinado tipo de material que não se deforma quando submetido a uma força ou um determinado ambiente que tem a capacidade de se recuperar de perturbações. Entretanto, é justamente a existência dessa analogia com o mundo material que fundamenta minha resistência a transpor este termo para tratar de estudantes pressionados pelas suas condições de vida a desistir de seus cursos. O termo parece supor que é esperado ou mesmo valorizado que estes sujeitos suportem e superem as violências em seu percurso acadêmico como sacrifício que justifica o merecimento a seu diploma.
  • Editor-responsável: Luís Armando Gandin

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2019
  • Aceito
    08 Set 2020
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