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A Redescrição de Rorty e o Contexto Pedagógico: possibilidades enunciativas

Resumo:

O texto analisa relações da redescrição de Rorty - perspectiva filosófica analítica, neopragmática - e abordagens sobre educação, tendo como objetivos específicos: refletir sobre epistemologia, em especial o abandono da noção de conhecimento como representação; meditar sobre a redescrição como metaprática inerente aos contextos da educação básica e superior, inspirando rotinas pedagógicas mais libertárias, éticas, criativas e políticas; apresentar a redescrição intitulada Negociações Cronocapilares, de 2019, produzida no Centro Oeste, instalação artística que deverá circular por escolas estaduais. A redescrição, metodologia do ensaio, propõe um desafio docente, ao questionar, desde os fundamentos do conhecer, até mesmo práticas educativas.

Palavras-chave:
Redescrição; Epistemologia; Didática; Instalação Artística

Abstract:

The text analyzes relations of Rorty’s redescription - neo-pragmatic, analytical philosophical perspective - and approaches on education, with specific objectives: to reflect on epistemology, particularly the abandonment of the notion of knowledge as representation; to meditate on redescription as a metapractice inherent to the contexts of basic and college education, inspiring more libertarian, ethical, creative and political pedagogical routines; to present the redescription named Negociações Cronocapilares, of 2019, produced in the Mid-West, an artistic installation that should circulate among state schools. The redescription, methodology of the essay, proposes a teaching challenge, by questioning, from the foundations of knowing, even educational practices.

Keywords:
Redescription; Epistemology; Didactics; Artistic Intervention

Introdução

O ensaio que ora apresentamos analisa as relações da redescrição de Richard Rorty (1994RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.) - perspectiva filosófica analítica, neopragmática - e abordagens sobre educação. Reconhecemos a índole um tanto pretensiosa do esforço, para tão poucas laudas, posto que o objeto da ciência pedagógica em si mesmo já abriga um cenário multifacetado; que se dirá se o relacionarmos a um sistema filosófico? Não por acaso, Libâneo (2012LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez , 2012.) defende a solidariedade entre diversos saberes - pedagogia, psicologia, sociologia etc. - para uma reflexão mais concisa sobre a educação. Isto posto, o objetivo geral consiste em analisarmos, dentro do formato ensaístico, tal contexto: nexos possíveis entre as contribuições de Rorty e questões educacionais. Para tanto, tivemos que fazer escolhas inerentes aos objetivos específicos, de modo a engendrarmos um percurso que primeiramente buscará analisar, dentre outros aspectos filosóficos, questões de epistemologia; sobre tal, realçaremos a perspectiva analítica do pensamento de Rorty que, salvo melhor entendimento, não coincide com o realismo que tanto marcou o pragmatismo clássico. A escrita rortyana buscou livrar-se das armadilhas do conhecimento fundado na representação - espelho rarefeito, carcomido, assentado no pretenso fundamento da cientificidade logocêntrica, segundo o autor (Rorty, 1994). Em seguida, iremos refletir sobre a educação enquanto processo formador marcado pela díade individualização/socialização, nos termos rortyanos: a redescrição como metaprática, narrativa viabilizada pela metáfora, em especial, dentre outros expedientes linguísticos, que sinalizam para novas possiblidades de vivências com o conhecimento.

O contexto escolar - educação básica e superior - poderá se orientar pelos pressupostos redescritivos, de modo a inspirarem rotinas pedagógicas mais libertárias, éticas, criativas, sobretudo políticas, pelo que se voltam para a dimensão social. O terceiro objetivo específico consiste em apresentarmos uma produção artística, a título do que seria uma redescrição em moldes pouco convencionais, uma intervenção denominada Negociações Cronocapilares, de 2019, que produzimos em uma universidade pública da região Centro Oeste. A instalação deverá circular por diversas escolas estaduais, interativamente, de modo que os alunos do ensino fundamental possam manipular as peças. O texto, desse modo, fará um trajeto cônico: abordagens mais amplas de filosofia (destaque à epistemologia) que afunilam para a didática, sob o viés ético e social e desembocam em um exercício singular de arte-educação; um caminho alinhavado pelo conceito de redescrição.

Há um esforço em diversos setores da produção acadêmica voltada para a educação em se romper com a assepsia impessoal das liturgias colecionadoras de dados, especialmente as que detêm certidões universais de cientificidade. Vemos expressões daquele empreendimento em picadas abertas pela pesquisa narrativa (Josso, 2004JOSSO, Marie-Cristine. Experiência de Vida e Formação. São Paulo: Cortez, 2004.; Nóvoa, 1992NÓVOA, António. Os Professores e as Histórias da sua Vida. In: NÓVOA, António. (Org.). Vidas de Professores. Porto: Porto Editora, 1992. P. 11-30.; Ferrarotti, 1988FERRAROTTI, Franco. Sobre a Autonomia do Método Biográfico. In: Nóvoa, António; Finger, Matthias. (Org.). O Método (Auto)Biográfico e a Formação. Lisboa: Ministério da Saúde. Departamento de Recursos Humanos da Saúde/Centro de Formação e Aperfeiçoamento Profissional, 1988. P. 17-34.), na autoetnografia (Santos, Biancalana, 2017SANTOS, Camila Matzenauer; BIANCALANA Gisela Reis. Autoetnografia: um caminho metodológico para a pesquisa em artes performativas. Revista Aspas, PPGAC USP, v. 7, n. 2, p. 83-93, 2017.; Versiani, 2005VERSIANI, Daniela Beccaccia. Autoetnografias: conceitos alternativos em construção. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.), dentre outros exemplos de lugares de fala metodológicos, em que percebemos a aspiração libertária, a sede por uma escrita mais autoral. Nesse sentido, a redescrição, que caracteriza metodologicamente nosso trabalho, figura como possibilidade de pesquisa narrativa.

Nessa gélida manhã de julho de 2019, buscamos, um tanto aflitos, abrir uma trilha, marcada pelo esforço de não nos rendermos aos confortáveis púlpitos da epistemologia moderna, com suas catedrais de cristal, onde os objetos de educação - nossa Esfinge de Guizé - reluziriam lustrados por categorias de análises, tratamentos quali-quantitativos de concisão inabalável. Em nosso ouvido, nesse instante, uma voz soturna, metalinguística e cavernosa sussurra: O que estão fazendo é crônica, não tem valor acadêmico! Vão fazer poesia, então!

Embora possamos novamente sucumbir às ordenanças do discurso científico-filosófico, espelho da natureza, como afirmara Rorty (1994RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.), francamente não nutrimos mais interesse em resgatar sistemas consagrados que sirvam de fundamentos para o conhecimento, tais como o lastro em ouro que as economias nacionais devem ter para suas moedas correntes. Abdicamos mesmo de encontrar esses baús. Sabemos que pesa sobre nós o perigo dos mecanismos excludentes do discurso, como enumerou Foucault (1999FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1999., p. 9-11): Interdição, separação e deslegitimação como verdadeiro... o que, convenhamos, na prática poderá significar recusa de agências de fomento à pesquisa, reprova em comissões que analisam projetos, rejeição de pareceristas em periódicos, destaque aos que professam um credo epistêmico pouco afeito a negociações. A escrita doravante poderá revelar particularidades enunciativas, decrepitudes, queixumes, manquejamentos conceituais, outrora facilmente encobertos pelo manto impessoal da racionalidade científica Qualis A - L4, com suas proposições obsessivamente a si recomendáveis, apodíticas, olímpicas.

Nestes registros, a discursividade técnico-produtivista, tal como tem se apresentado nos atuais trilhos da modernidade neopositivista, assume a enunciação, cabendo ao pesquisador, mesmo voltado aos temas educacionais, reproduzir já-ditos ou iluminar não-ditos, sempre recorrendo à plêiade autoral que, em coro, autoriza, legitima e perpetua os possíveis avanços da pesquisa. Consciências convictas de terem descoberto como se aprende, encontrado a caixinha de música da boneca destripada; noutras palavras, os fundamentos do conhecer, que podem se travestir com figurinos do direito, da religião, filosofia, economia, ciências naturais, dentre tantas instituições discursivas que, no mais das coisas, apontam para processos de representação (Rorty, 1994RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.).

Para Rorty, como totens do que seriam os sistemas guardiões das caixinhas - teorias do conhecimento - teríamos Locke (processos mentais), Descartes (primado subjetivo do espírito) no século XVII e Kant, no século XVIII (com seu tribunal da razão pura); eis uma associação dos pressupostos lockeanos aos cartesianos, em busca neocopernicana de verdades claras e distintas, imperativamente categóricas. Não por acaso, teríamos uma canonização (entenda-se a ambiguidade: padrão e santidade) da epistemologia kantiana, sobretudo pelo que sintetiza dos esforços da modernidade em legitimar as bases do discurso arrazoado, o que nos remete ao debate entre empirismo e idealismo, aparência e essência, dentre outros emblemáticos pepinos da história da filosofia.

Juntamo-nos a todos aqueles de inspiração nietzscheana que, de algum modo, tentaram romper com o reinado da epistemologia, buscando uma enunciação falível, possível, quiçá herética/erótica, pelo que abdica de uma suserania da verdade. O que tentamos aqui vem a ser uma prática de desalento necessária, porque não temos mais como objetivo buscar “[...] a área da cultura onde se tocava o fundo, onde podia se encontrar o vocabulário e as convicções que permitiam explicar e justificar a própria atividade como atividade intelectual, e dessa forma descobrir o significado da própria vida” (Rorty, 1994RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994., p. 20, itálico do autor). O fundo ruiu. Sobra-nos a contingência de narrarmos o que nos passa, sem pretensões outras, que não nos agarrarmos a uma tessitura discursiva órfã daquilo que, segundo o neopragmatista, no século XX, seria ainda garantido por Russel e Husserl: a cientificidade da filosofia, núcleo fundante do conhecimento. Rorty destacara três nomes que empreenderam um desafio algo quixotesco, não exatamente iconoclasta, posto que acabaram por propor, cada um a seu modo, sistemas novos para se contextualizar o pensamento, marcados sobretudo pela deposição da epistemologia cartesio-kantiana, como fundacional; trata-se de Wittgenstein, Heidegger e Dewey. Vemo-nos deste modo impelidos a imaginar como seguir produzindo escrita sobre temas educacionais, sem as bênçãos transcendentais do Mandarim de Königsberg (emprestando de Nietzsche). Naquele velho poço, aprendemos que todo objeto somente teria existência, se localizado no tempo e no espaço - intuições apriorísticas, formas lógicas estruturadas pela mente. Seria possível imaginar uma lata de salsicha fora disso, não contando mais com os móveis do entendimento? Neste breve exemplo, eis a percepção de que um titã como Kant de tal modo impactou a cultura ocidental, que se torna quase esquizofrênico pensar produção de conhecimento e, por que não, de subjetividade, sem um alicerce, um baldrame bem-enterrado no piso de nossa consciência epistêmica.

Em Dewey (1959DEWEY, John. Como Pensamos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.), apesar de sua recorrente contraposição ao cartesianismo e o transcendentalismo, verificamos uma natureza também de aporte na estrutura do pensamento reflexivo, tal como o concebera o pragmatista clássico. A inteligência científica, nos termos deweyanos, deveria ordenar a inferência (nucleada pelo símbolo). Há em tal registro gnosiológico a repulsa à tradição filosófica que desprezara a experiência, justamente por esta ter sacralizado altares apodíticos, com representações privilegiadas sobre as coisas, de modo a fixarem-nas, universalizando suas identidades. Agir deweyanamente supõe lançarmo-nos aos problemas do vivido de modo contingente, posto que a experiência humana se dá em um meio físico-cultural, mediada pela linguagem; esta fundamenta a lógica, que engendra o pensamento reflexivo. Eis a relação entre símbolo e pensamento reflexivo. Não vemos nisto um lastro fundante do conhecimento, como aparece, por exemplo, no legado de Descartes (1979DESCARTES, René. Discurso do Método. Meditações. Objeções e Respostas. As Paixões da Alma. Cartas. São Paulo: Abril Cultural, 1979. P. 91-98.), mas a crença nos caminhos da experiência, aqui entendida como aquilo que nos passa e que também se transforma por nossa ação (mediada pela linguagem), objeto da filosofia pragmatista, diferentemente dos postulados idealistas ou empiristas. Notamos, porém, o novo contexto para alicerçar o pensamento, tal como afirmara Rorty. Ainda há aqui uma busca por legitimação, sobretudo pela tentativa de retenção “[...] de certa concepção de filosofia, depois que as noções necessárias para dar corpo a essa concepção (as noções de conhecimento e mente do século XVIII) haviam sido descartadas” (Rorty, 1994, p. 21). Havemos de ponderar, todavia, que Dewey empreendeu com a sua gnosiologia o exercício de questionar, examinar e mesmo rejeitar toda enunciação científica, artística ou de qualquer natureza que não expresse o próprio movimento da experiência. Juntamente com Wittgenstein e Heidegger, segundo Rorty, Dewey teria defendido o abandono da noção de conhecimento como representação do mundo, aprimorada por processos cognitivos, à luz de uma fulgurante teoria da representação.

Com respeito a Wittgenstein, a repulsa aos postulados epistêmicos tradicionais segue no sentido de que, para este autor, o que temos no cotidiano são jogos de linguagem; a relação entre um enunciado que busca assertividade e o que significa efetivamente diria respeito aos elos daquele com o todo discursivo e não mais entre uma subjetividade e os objetos que a circundam. Para sabermos o que procuramos, precisamos buscar os nexos do que vemos com o sistema simbólico, contexto mais amplo, correlacional e não material. Mesmo no que concerne ao binômio mente/corpo, ao gritarmos um palavrão, após pisarmos em um prego, o que temos não seria uma experiência ontológica com a dor e sim o manuseio de um sistema relativo a como conversamos sobre esta. Para Rorty (1994RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.), Wittgenstein (2009WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosofical Investigations. Hong Kong: Graphicraft Limited, 2009.) propõe uma espécie de behaviorismo epistemológico, à medida em que rejeita aportes gnosiológicos idealistas, defendendo que o que existe para ser compreendido se revela na percepção de como nos comportamos, interagimos, elaboramos as regras e movimentos do jogo comunicativo. Trata-se de uma perspectiva holística que se perfila às concepções rortyanas, no que tangem ao exame dos fundamentos do conhecer, sobretudo pelo destaque dado à análise da linguagem.

Para Heidegger (2003HEIDEGGER, Martin. The End of Philosophy. Chicago: University of Chicago Press, 2003.; 2015HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2015.), os caminhos da epistemologia teriam alicerces, grosso modo, em uma objetividade que se consolidaria a partir da presença do objeto diante do observador (como negarmos a visão de uma barata, lambendo nosso bife do jantar?). A primariedade desta relação, inclusive sensorial, fundamentaria a crença de que outras conexões com as coisas se dariam na mesma condição de certeza ou arrazoabilidade. O afã epistemológico seria análogo ao que experimentamos, quando acreditamos na realidade da barata insolente, e encaminharia assim outros estágios, como a geometria a provar o teorema, dentre vários expedientes quase-visuais em depuração, de modo a se erigirem montagens de representações que se tornariam compulsivamente a si recomendáveis. Heidegger teria também percebido, segundo Rorty (1994RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.), que a inclinação epistêmica seria produto da marcha dialética iniciada com Platão, heurística de espichar exércitos de metáforas que nos garantissem acesso ao mobiliário da realidade. O eminente filósofo, ao propor uma fenomenologia que interroga o ente, examinando “[...] as estruturas fundamentais de ser que pertencem à presença como compreensão de ser” (Heidegger, 2015, p. 78), em grande medida enterrou os trilhos da metafísica, formulando uma hermenêutica voltada para a existencialidade da existência, o que supõe o abandono dos esquematismos kantianos, do cogito cartesiano e da ontologia aristotélica.

Refletindo sobre as perspectivas teóricas até aqui enunciadas, reafirmamos com Rorty a falta de sentido na busca secular de garantias para os fundamentos do conhecimento. Vemos como de máxima relevância para o contexto educativo o abandono destes velhos horizontes, por diversos motivos, dentre os quais destacamos: o desmanche de relações de poder mantidas por saberes instituídos, quebra de grilhões que impedem a criação e o livre movimento do pensar, a apropriação discente/docente de narrativas da própria existência.

Seria Rorty Pragmatista? redescrição como exercício estético

Temos razões para afirmar que o neopragmatista se afasta admiravelmente dos pressupostos da filosofia de Peirce (2005PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2005.), o fundador do pragmatismo, professor de Dewey, na disciplina de lógica. A escrita peirceana, ao enunciar o mais complexo e conciso sistema semiótico já visto, tinha claras pretensões concernentes à busca da verdade - um legissigno simbólico argumental1 1 Peirce (2005), em sua teoria semiótica, designou o legissigno simbólico argumental como um signo, cujo objeto se constitui um ente lógico geral estabelecido por leis oriundas da experiência, ponto de chegada de uma longa cadeia de representações, que engendram classes gerais de proposições necessárias, para além de posicionarem um ser em uma série (Silveira, 2007). A verdade se apresenta como signo teleológico do pragmatismo clássico, objetivo de toda a semiose, rumo ao hábito, expresso no silogismo final. . Os três bens: estético (expressividade), ético (veracidade) e lógico (verdade) (Peirce, 2005, C.P., 2.5392 2 Para citarmos Peirce (2005), em respeito à comunidade semioticista peirceana, mantivemos a notação CP 2.539 – Colected Papers, Livro 2, Capítulo 539. ) costuram uma arquitetura epistêmica fenomenológica sobremodo diferente das concepções europeias, pelo que não vemos de um sujeito apriorístico, que imponha às coisas moldes para as compreender. Nesse sentido, fazemos coro aos que questionam a filiação de Rorty ao pragmatismo original, uma vez que o manejo do autor com as questões filosóficas desloca para a linguagem (entenda-se esta, na concepção rortyana, como capitaneada pelos signos linguísticos) aquilo que para os fundadores era de importância fulcral e as orientava: a experiência. O que se passava na Europa em meados do século XX, com a virada pragmática da linguagem, tendo em Bakhtin (1997BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.) e Habermas (1986aHABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action: reason and the rationalization of society. Cambridge: Polity Press, 1986a.; 1986bHABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action: the critique of functionalist reason. Cambridge: Polity Press , 1986b.) timoneiros (cada um a seu modo), podemos, guardadas as devidas proporções, assinalar em Rorty.

Além deste aspecto que consideramos de extrema relevância, temos outro à altura: o fato de o pragmatismo clássico se constituir um sistema filosófico realista, enquanto a perspectiva rortyana acerca do vivido vem a se revelar antirrealista. Segundo Pogrebinschi (2006POGREBINSCHI, Thamy. Será o Neopragmatismo Pragmatista? Interpelando Richard Rorty. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 74, p. 125-138, mar. 2006. ), ao assumir a perspectiva analítica, Rorty destinou à linguagem o lugar ocupado pela experiência no pragmatismo original, característica que por si o afasta desta filosofia. Vale-nos lembrar que a mesma difere do realismo tradicional, especialmente no que diz respeito à verdade (por exemplo na escolástica), em que havia a pretensão de termos um conceito em si mesmo, apriorístico e imutável, o que não implica afirmarmos que o pragmatismo fosse antirrealista, como queria Rorty (Pogrebinschi, 2006). Aqui ressaltamos uma sensível diferença entre o que os fundadores acreditavam ser a comunicação, destaque a Peirce e seu sistema lógico/semiótico, e a linguagem para Rorty. O primeiro, juntamente com James e Dewey, entendia o fenômeno comunicativo como o processo realista em que as coisas adquirem significado, com vistas à aproximação de uma verdade provisória, falível, testável e prospectiva, ou seja, mirando as consequências futuras evolutivas. Haveria nessa heurística uma marcha que sempre contava com a comunidade investigativa, perpetuando o movimento de perquirir o mundo e o vivido. Em James, acrescemos a isto a adaptação rumo à criação de novas realidades; em Dewey e sua concepção de pensamento arrazoado3 3 Diante de um problema, situação pré-reflexiva, vêm-nos as sugestões; em seguida, as operações intelectuais de delimitação do real problema; escolhemos então a hipótese – sugestão vencedora; o raciocínio é articulado pela mente investigativa, de modo a consolidar a hipótese; finalmente procedemos ao teste, para aferimos a assertividade da unidade reflexiva (Dewey, 1959). , temos uma unidade reflexiva, quando transitamos de uma situação pré-reflexiva até a verificação da hipótese. Destarte, comum aos autores que fundaram o pragmatismo, reafirmamos haver uma filosofia da experiência, portanto que aposta na mesma, mediada pela linguagem, com o que acessamos realidades. Verificamos que em Rorty, consoante afirma Pogrebinschi (2006), a comunicação constitui-se não mais um meio de caminharmos na investigação, conforme postulavam Peirce, James e Dewey, mas um fim. A virada linguística atribui à linguagem finalidade última (perdoem-nos este pleonasmo).

Assumindo uma escrita mais narrativa, Rorty mira aquilo que possa ser anterior às palavras, contextos surdos em que os problemas filosóficos teriam sido formulados. Toledo Jr (2007TOLEDO JR, Joaquim. A Filosofia Depois do Fim da Filosofia. Novos Estudos CEBRAP , São Paulo, n. 78, p. 233-242, mar. 2007. ) afirma que, na analítica de Rorty, revela-se o esforço de abandonar uma compreensão da atividade filosófica como rotina científica, herança da modernidade, para tratar aquele exercício como um gênero cultural, dentre muitos. O próprio neopragmático atribuíra o respeito que tinha a filosofia moderna na secularização da cultura ao sucesso das ciências naturais (Rorty, 1994). Ele todavia assinala que outras figuras, como os poetas e romancistas, assumiram posições outrora pertencentes a pregadores e filósofos, cujos antigos estatutos de autoridade e rigor, quanto mais acentuavam tais características, mais absurdos se tornavam com relação ao que pretendiam no contemporâneo. A escrita rortyana assume por conseguinte um caráter figurativo e mesmo literário, abandonando preceitos universalistas, elegendo metáforas para recortar os pseudoproblemas da filosofia tradicional, tais como verdade, bem, beleza, conhecimento. Rorty junta-se aos cronistas, operários da escrita, apontando lanças contra a religião, a ciência e outras instituições, buscando nexos possíveis entre tais, como um articulador cultural, mediando debates sobre as representações, valores sociais, abandonando as velhas buscas essencialistas, para tornar-se um praticante de política cultural (Toledo Jr, 2007). Com relação à epistemologia, o golpe mais contundente diz respeito, salvo engano, ao abandono da noção de conhecimento como representação. Para o autor, estaríamos livres de binômios basilares como sujeito-objeto, aparência-realidade, dentre outros. Se assim procedermos, buscando exercícios linguageiros (permitam-nos este termo, alinhando-o a uma filosofia menor, menos pretensiosa, como queria não somente Rorty, mas toda uma tradição pós-moderna com a qual este se alinha curiosamente), em jogos semiológicos, ironistas, poderemos avançar rumo a uma perspectiva não-representacional, à medida do possível. Abandonando os cânones transcendentais kantianos, teríamos saídas, por exemplo, em um historicismo de inspiração hegeliana (Toledo Jr, 2007). Busquemos então saídas... na conversação livre, rompendo simulacros intersubjetivos, uma vez que, doravante importa mais o modo como falamos, do que a detenção de axiomas. Vamos juntos ceifando uma hermenêutica, uma poética que nos conecte, por um “[...] vocabulário incomensurável” (Rorty, 1994, p. 354), a novos horizontes, que nos edifiquem e nos reconstruam. Em vez de buscarmos o enunciado sistemático, com pretensões de eternidade, miremos registros novos, com questões perecíveis, povoadas de incertezas edificantes, sátiras, aforismos sem pretensões outras que não a expressão do genuíno exercício da fala; então poderemos reescrever nossas rotinas no mundo da educação.

A Redescrição e o Contexto Escolar

Temos a impressão de lançar aqui palavras de ordem, como em um manifesto redescritivo para o vivido, embora haja algo de corrosivo e clownesco nessa exortação. Perdoe-nos quem lê, sabemos o quanto pode soar ingênuo apostar as fichas que nos restam na negociação de falantes, nas redescrições, caleidoscópios do cotidiano. É que temos alunos para educar. Em 2018, eram 48,4 milhões na educação básica (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Educação. INEP - Instituto Nacional de Estudos E Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar da Educação Básica de 2018. Brasília, 2019.). E vêm cheios de notícias!... o cachorro que nasceu, o dente que caiu, a loira do banheiro que foi vista uma vez mais (e tinha mesmo algodão no nariz). Cremos que isto possa interessar mais a eles do que o Trópico de Capricórnio, ou a Fórmula de Báskara... de qualquer modo, parece-nos que é com o que temos que lidar... pragmática discursiva... depositemos as fichas na mesa; doravante, que se horizontalizem tanto quanto possível as relações.

Apresentamos aqui a atitude de redescrição: implica na renúncia a critérios prévios que outrora sustentaram a linguagem, supondo a busca por caminhos alternativos para o falar, possibilidade de novas narrativas, resultantes do encontro de culturas e pessoas, em uma dinâmica solidária que amplie pela imaginação os horizontes coletivos e individuais. Para além das implicações do que elencamos, a redescrição se configura como atitude política, sobretudo pela possibilidade de engendrar instituições discursivas que protegerão os mais frágeis da vilania dos privilegiados, professava piamente o neopragmático (Rorty, 1994RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.).

Vale-nos ressaltar que o autor insistiu na tese de que o contexto escolar cumpre papel central no processo do indivíduo recriar a si mesmo. Sobre a escolaridade, Rorty afirmara que, além de garantir a transmissão intergeracional do conhecimento, deveria ser conduzida a partir de duas distinções: à educação básica, caberia a socialização dos estudantes, formando cidadãos que sintam a dor dos outros, comprometam-se não apenas com os próprios interesses; à educação superior, recairia o papel de promover a individualização, movimento interno em contraste com a socialização ocorrida na formação básica. Destarte, teríamos um acadêmico com visões e perspectivas críticas, apto a refletir e atuar sobre os processos socializadores. Nesse sentido, verificamos a importância das narrativas que problematizem valores cristalizados, preconceitos, reduções do senso comum, auxiliando os universitários a recriarem suas autoimagens resultantes de projeções do passado. O próprio Rorty viu em tal propositura uma utopia e reafirmou a importância de a termos como horizonte possível.

Em síntese, a redescrição, tal como propusera Rorty e sua filosofia analítica, configura-se como parte de um projeto eminentemente estético, ético e político. As rotinas humanas passariam a ter uma índole autocorretiva, desafiando permanentemente os estereótipos disciplinares, em uma metaprática libertária, de natureza hermenêutica. Se tivermos cidadãos socializados pelas vivências da educação básica e autocriados no contexto educativo superior, então o conhecimento poderá abdicar da suserania da verdade. Atentemos, no entanto, para que todas essas proposições não redundem agrupadas em mais uma notória teoria pedagógica, curricular, como não raro acontece com certas perspectivas filosóficas voltadas para a educação, o que refletiria novamente nossa vocação para a clausura da consciência epistemológica. Não vemos, contudo, um banimento cabal da relação sujeito e objeto, mas um novo contexto em que nos inserimos no mundo, coletivamente, carregando juízos, modos de agir, sendo mais criativos, enfrentando o que nos aflige, abrindo mão da sujeição que o conhecimento sempre promoveu. Eis um desafio quase utópico: abdicarmos das relações de poder que as moedas epistêmicas há muito promovem e medeiam.

Relações da Metáfora com a Redescrição

Procurando afastar-se da pecha de ingênuo ou romântico, o filósofo neopragmático afirmara que, na base de suas proposições, a figura do intelectual humanista teria destaque, sobretudo por provocar nos estudantes a necessidade de se redescreverem, bem como à própria sociedade que os produziu (Silva, 2012SILVA, Heraldo Aparecido. A Filosofia da Educação de Richard Rorty: epistemologia, conversação, redescrições, narrativas e as funções da educação. Educação e Filosofia. Uberlândia, v. 26, n. 52, p. 509-526, jul./dez. 2012., p. 523). A imaginação, a sensibilidade ao sofrimento alheio, a solidariedade, a coragem para destronar a tradição epistemológica, dentre outros aspectos humanos, configuram-se traços da experiência redescritiva. Ratificamos aqui a importância do contexto educacional, que promove a simbiótica relação entre os processos de socialização e individualização. Vale-nos ressaltar que a redescrição, nesses termos, apresentaria consequências políticas, éticas, linguísticas; teríamos nas narrativas e suas diversas modalidades (não somente depoimentos docentes, mas romances, cartas, quadrinhos, filmes, etc., de todos os atores educacionais) expressões de uma estética do ser que se abre para o incerto, para a recriação de si mesmo, dos outros e do mundo.

Com a intenção deliberada de destituir as bases do que seriam as representações privilegiadas e suas proposições secularmente validadas, Rorty viu na metáfora um operador de seu projeto estético:

Uma metáfora é, por assim dizer, uma voz que vem do exterior do espaço lógico, ao invés de um preenchimento empírico de uma porção desse espaço, ou uma clarificação lógico-filosófica da estrutura desse espaço. É o chamado para a mudança da linguagem e da vida de alguém, ao invés de uma proposta sobre como sistematizar tanto uma como a outra (Rorty, 1999RORTY, Richard. Ensaios sobre Heidegger e Outros Escritos Filosóficos. Rio de Janeiro: Relume Dumará , 1999., p. 27).

A enunciação da metáfora não pretende guardar uma verdade, ou expressão de um conhecimento absoluto, tal qual procuravam os grandes sistemas filosófico-científicos. Como verificamos no excerto acima, trata-se de uma voz oriunda do exterior do espaço lógico, sem aspirar a uma iluminação deste pela filosofia. Noutras palavras, abdicamos das categorias da consciência que preencheriam aquele espaço aprioristicamente, na tentativa de se formularem conceitos verdadeiros. Deita-se por terra a ambição de termos no discurso regras imutáveis que, uma vez decodificadas, teríamos iluminado o lugar lógico (e por que não ideológico?), de onde nasceriam as proposições necessárias. Mudança abissal, portanto, nos alicerces da linguagem.

A metáfora figura como chamamento poético, estético e mesmo ético para uma virada linguística e existencial, bem menos pretensiosa do que as aspirações do método científico (de qualquer filiação) que, segundo Rorty, seria uma herança do pensamento aristotélico-platônico. O expediente metafórico contrasta sobremaneira com tal postura subjetiva, apresentando potencialidade redescritiva, mobilizadora da linguagem. Deste modo, as metáforas promovem o progresso intelectual, especialmente por não serem reféns de entidades apriorísticas, epistêmicas, de modo que nos possibilitam permanentes reconciliações entre passado e presente, no que podem redescrever da existência.

Além da metáfora, contamos com a percepção e a inferência, para expandirmos nossas crenças e enfim continuemos a marcha redescritiva. Rorty (1999RORTY, Richard. Ensaios sobre Heidegger e Outros Escritos Filosóficos. Rio de Janeiro: Relume Dumará , 1999.) pondera, todavia, que somente a metáfora, por sua índole criativa, revela-se capaz de promover a amplificação do espaço lógico de possibilidades, expandindo a própria linguagem. A ocorrência metafórica inclusive não raro acaba por tornar-se verdade, posto que enuncia um novo vocabulário; ao nos lançar no que é novo, se não cuidarmos, teremos uma apropriação epistêmica, nos moldes tradicionais daquilo que passou a ser cientificamente validado, outrora pertencente ao terreno do erro. E voltamos à estaca inicial! Assim mesmo, vale-nos crer que a metáfora cria condições de lermos o mundo, a nós mesmos e aos outros, de forma que estabeleçamos novas relações, bem menos arbitrárias, naquilo que seriam narrativas redescritivas. Como exercício e ilustração destas, a seção seguinte apresenta uma intervenção artística produzida por um dos autores do presente ensaio.

Um Exercício Redescritivo: instalação artística com poliedros

Em Negociações cronocapilares, elaboramos um arranjo redescritivo, pelo que enuncia de historicista, contingente, monolítico em sua materialidade, aproximando metaforicamente asserções do construtivismo pictórico com reminiscências do classicismo. Trata-se de uma instalação itinerante produzida em uma universidade pública do Centro Oeste, que conta com 50 sólidos geométricos de compensado de 10 mm (cubos de 30 cm e 50 cm de aresta, paralelepípedos de 120cm X 50cm X 20cm e 100cm X 40 cm X 10cm), poliedros que operam também como suportes de obras xerocopiadas.

Figura 1
Negociações Cronocapilares (Redescrição Visual)

A intervenção deverá circular por escolas públicas estaduais, a partir de agosto de 2019, em instituições de ensino fundamental, de modo que os alunos possam interagir com as peças, inclusive propondo composições e novos arranjos.

Não é fácil nos libertar dos arcabouços daquela subjetividade neocopernicana (já discutida neste trabalho), prenhe de idiossincrasias solipsistas, que embora não cresse possível atingirmos a coisa em si, professava o imperturbável dogma de fixar aprioristicamente os objetos na realidade, naquilo que se apresentassem para nossa sensibilidade e entendimento (sistema kantiano). Assim mesmo, buscando romper tais grilhões, eis o rosto feminino de O Nascimento de Vênus - Sandro Botticelli (1445-1510), obra pintada em 1483 e as linhas talhadas na Composição com grande plano vermelho, amarelo, preto, cinza e azul - Pieter Mondrian (1872 - 1944), realizada em 1921. Podemos reter transcendentalmente esses conteúdos xerocopiados e até os poliedros, pelo que enunciam de uma epistemologia da arte... mas, remando em direções desconhecidas, preferimos percorrer trilhas abertas pelos signos que ali se materializam, órfãos de seus oráculos, levando-nos para o não-sei-onde... uma Vênus soturna e delirante, tragada por cronomobílias, vaga, trágico espectro, buscando linhas de força, a nos deixar...Na bruteza dos sólidos geométricos, eis uma expansão do que Rorty denominou espaço lógico de possibilidades, ampliando os dormentes da linguagem. A intervenção não se constitui um preenchimento empírico do mesmo, até porque a empiria, nos termos do que a criticou o filósofo, parece-nos concernir à postura cientificista lockeana de apostar que desenvolvemos processos mentais capazes de alinhar arbitrariamente ideias-corpo (reflexo do que recolhem os sentidos) com proposições, em sintaxes necessárias (fórmulas lógicas). Noutras palavras, o agir empírico forjado na modernidade também se alicerçava na representação - espelho da realidade.

Como em Negociações cronocapilares, sempre se desenhará redescritivamente a possibilidade de narrarmos o cotidiano, o vivido, o que nos afeta e é transformado por nós, num arranjo de feridas, punções, em que risos poderão soar como verdadeiros e não verdades. E então ruminaremos a escrita que quebrou o espelho, expressão hermenêutica que nos conecte à “[...] totalidade de nossa experiência do mundo” (Gadamer, 1975GADAMER, Hans-Georg. Truth and Method. New York: Seabury Press, 1975., p. 11, apud Rorty, 1994RORTY, Richard. A Filosofia e o Espelho da Natureza. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994., p. 352). Nesse sentido, ao mirarmos os fundamentos do conhecimento, examinando o contexto em que nascem os conceitos das ciências ditas humanas, especialmente as educativas, poderemos buscar uma compreensão do que está em jogo, quando as relacionamos com o vivido. Não esperemos nada além de cacos especulares.

Impressões Finais

O projeto redescritivo rortyano, pelo que expusemos, sinaliza para contextos diversos de produção subjetiva, capitaneados pelo esforço de romper com o fundacionismo que herdamos do passado. Nesta luta reside o maior dos desafios da filosofia apresentada: destronar os cânones seculares legitimadores da produção científica. Rorty não seria o primeiro a formular tal proposição. Ele mesmo destacou para a empreitada, consoante tentamos demonstrar, Wittgenstein, Heidegger e Dewey. Citamos outros também, como Bergson, Nietzsche, os autores da Diferença, como Foucault, Deleuze, Derrida e Guattari.

Narramos aqui um certo desalento, ao assumirmos a perspectiva rortyana; vem-nos um sentimento de luto, especialmente em termos epistemológicos. Aquela certeza de fazermos uma ciência com pretensões universais, erigindo altares, liturgias que garantiam a aquisição dos castiçais da verdade, isto implodiu, reduziu-se a escombros. O sujeito do conhecimento doravante se revela coletivo, sociológico, fragmentado, falível, contingente, linguístico. Preferimos isto a seguirmos com a marcha gnosiológica moderna, legitimando saberes e poderes articulados desde os idos de Athenas e o Liceu, marcados pela fixidez e aspirações formais de eternidade. Urge assumirmos nossa finitude, buscando redescrevermos o que nos passa, aquilo que transformamos. Temos compromissos educativos, estéticos, éticos, políticos. O interesse discente pelas rotinas escolares precisa ser resgatado; neste aspecto em especial reside nosso apreço pelas contribuições de Rorty. Procuramos demonstrar aqui as potentes possibilidades da redescrição inerentes ao contexto da escolaridade: primeiramente como arcabouço teórico a problematizar os fundamentos epistêmicos do conhecimento científico, para em seguida analisarmos de que modo a concepção redescritiva poderia inspirar rotinas pedagógicas mais criativas, menos arbitrárias, que promovam empatia, solidariedade, altruísmo entre os estudantes, possibilitando narrativas de si, enfim exercícios libertários e democráticos alicerçados em uma pragmática linguística, uma poética, nova ontologia da aprendizagem e da vida escolar.

A instalação Negociações Cronocapilares, neste sentido, seria um exercício redescritivo prenhe de enunciações estranhas, narrativas visuais, tridimensionais, inspiradas em subversões espaço-temporais, multissígnicas. Não acenamos aqui com uma fórmula salvacionista de nossa experiência escolar; no máximo, refletimos sobre a necessidade de buscarmos novos caminhos, com os riscos de sempre: chegarmos a lugar algum, quem sabe porque não haja mesmo aonde ir... pelo menos possamos narrar este não-espaço, pura linguagem.

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  • WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosofical Investigations. Hong Kong: Graphicraft Limited, 2009.

Notas

  • 1
    Peirce (2005), em sua teoria semiótica, designou o legissigno simbólico argumental como um signo, cujo objeto se constitui um ente lógico geral estabelecido por leis oriundas da experiência, ponto de chegada de uma longa cadeia de representações, que engendram classes gerais de proposições necessárias, para além de posicionarem um ser em uma série (Silveira, 2007SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa. Curso de Semiótica Geral. São Paulo: Quartier Latin, 2007.). A verdade se apresenta como signo teleológico do pragmatismo clássico, objetivo de toda a semiose, rumo ao hábito, expresso no silogismo final.
  • 2
    Para citarmos Peirce (2005), em respeito à comunidade semioticista peirceana, mantivemos a notação CP 2.539 – Colected Papers, Livro 2, Capítulo 539.
  • 3
    Diante de um problema, situação pré-reflexiva, vêm-nos as sugestões; em seguida, as operações intelectuais de delimitação do real problema; escolhemos então a hipótese – sugestão vencedora; o raciocínio é articulado pela mente investigativa, de modo a consolidar a hipótese; finalmente procedemos ao teste, para aferimos a assertividade da unidade reflexiva (Dewey, 1959).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2019
  • Aceito
    26 Mar 2020
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