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A Hora das Crianças: infância, estética e política em Benjamin

RESUMO:

Em seus escritos sobre modernidade, técnica e reprodutibilidade técnica Benjamin propõe uma visada teórica sobre a arte reprodutível que dialoga com as exigências da nova temporalidade. Se os modos de produção artística são ampliados pelos avanços tecnológicos redimensionando o seu campo de atuação para formas de expressão mais modernas como o rádio, por exemplo; há aqui uma nova relação experimental entre o público e a obra, além de uma nova função intermediadora. A preocupação com o uso da técnica para fins totalitários, entretanto, fez o autor formular a exigência de uma politização da arte. Essa politização está presente em seu trabalho radiofônico com crianças que se articula ao compromisso do uso do aparato para o esclarecimento.

Palavras-chave:
Reprodutibilidade Técnica; Política; Rádio; Infância; Esclarecimento

ABSTRACT:

In his writings on modernity, technique and technical reproducibility, Benjamin proposes a theoretical view of reproducible art that dialogues with the demands of the new temporality. If the modes of artistic production are expanded by technological advances, resizing their field of action to more modern forms of expression such as radio, for example, there is here a new experimental relationship between the public and the work, in addition to a new intermediary function. The concern with the use of technique for totalitarian purposes, however, made the author formulate the demand for a politicization of art. This politicization is present in his radio work with children that is linked to the commitment to use the apparatus for enlightenment.

Keywords:
Technical Reproducibility; Politics; Radio; Childhood; Enlightenment

Introdução

Quando Walter Benjamin adentrou as portas de uma emissora de rádio pela primeira vez, nos anos 1920, testemunhou o limiar de uma mídia cujos potenciais técnico e criativo ainda eram desconhecidos, mas já demonstravam ampla capacidade de expansão. À época, o contexto sócio histórico da Alemanha era o de crise, o país enfrentava os frutos herdados com o fim da Primeira Guerra Mundial e os severos limites econômicos decorrentes da imposição do Tratado de Versalhes. Os retratos da República de Weimar apontam para uma economia capenga, refém da hiperinflação e repleta de dívidas oriundas da guerra, além da total privação, necessidade, fome e frio pelos quais passavam a população alemã. (Bolle, 2000BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000.; Baudouin, 2009BAUDOUIN, Philippe. Au Microphone: Dr. Walter Benjamin - Walter Benjamin et la création radiophonique 1929-1933. Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l’homme, 2009.; 2010BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9e...
; Carone, 2014CARONE, Iray. As experiências radiofônicas de Walter Benjamin na República de Weimar (1929-1933). In: WORLD CONGRESS ON COMMUNICATION AND ARTS, 7., 2014, Vila Real, Portugal. Proceedings... Vila Real, Portugal, 20-23 abr. 2014. P. 243-245.). Sob o ponto de vista cultural o cenário não era diferente. As mesmas condições objetivas que provocaram o caos no plano material e econômico são aqui incorporadas e se, por um lado, nota-se um efervescente e rico debate provocado pelos intelectuais e pelas vanguardas artísticas no que compete aos problemas sociais da época; por outro, todas as suas contradições contribuíram à emergência do nazi-fascismo rumo ao III Reich e à Segunda Guerra Mundial (Bolle, 2000BOLLE, Willi. Walter Benjamin e a cultura da criança. In: BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo e o brincar, a educação. São Paulo: Summus, 1984. P. 13-16.).

É nesse período demarcado pela Primeira e Segunda Guerras que identificamos o crescimento, o fortalecimento e a importância social do rádio, sobretudo em tempos em que Hitler fez uso desse meio de comunicação para a conquista da Alemanha (Schafer, 1997SCHAFER, Murray. Rádio Radical In: ZAREMBA, Lilian; BENTES, Ivana (Org.). Rádio Nova, Constelações da Radiofonia. Rio de Janeiro: UFRJ Eco, 1997. P. 27-40.). Pensada por esse prisma, a difusão da informação através do rádio redimensionou não só a voz humana, como também os discursos totalitários que fizeram com que a ideologia fascista tivesse amplo acesso aos lares e aos estabelecimentos comerciais por meio da aparelhagem radiofônica. Através do uso do rádio, portanto, os discursos e as ideologias de Hitler e Mussolini passaram a fazer parte do cotidiano de seus contemporâneos, já que eram popularizados pela nova tecnologia (Baudouin, 2009BAUDOUIN, Philippe. Au Microphone: Dr. Walter Benjamin - Walter Benjamin et la création radiophonique 1929-1933. Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l’homme, 2009.).

Para além da propagação de ideias e discursos, as inovações técnicas no rádio permitiram, ainda, a introdução de recursos, como a música, que contribuíram à criação de efeitos catárticos bastante convincentes na retransmissão. Por essas vias, ao explorar os meios de difusão e de reprodução da informação, o fascismo incidiu diretamente sob as massas. Considerando-se todo esse panorama, Benjamin (1994b)BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994b. tece suas críticas aos vínculos estabelecidos entre estética, técnica e política, ao afirmar a importância de tecnologias como o rádio à representação, à crítica, ao pensamento e à formação. Isso significa que a arte reprodutível em larga escala possui elementos pedagógicos que intermediam não só a nossa própria relação com a técnica, como também auxiliam no trato com as vivências cotidianas, com os modos de entendermos e experimentarmos a realidade exercitando, por conseguinte, atitudes de crítica, reflexão e, portanto, de formação dos indivíduos.

Se “[...] todos os esforços para estetizar a política convergem para um ponto [e] esse ponto é a guerra” (Benjamin, 1994bBENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994b., p. 195), Benjamin responde ao uso fascista da técnica com a politização da arte, ou seja, se o fascismo alemão se apropriou de tecnologias modernas para propagandear suas ideologias e exercer algum domínio sob as massas, seu uso poderia contribuir também para outros fins que não propriamente esses. A visada teórica de Benjamin sobre o papel político da técnica moderna, da qual faz parte o rádio e a transmissão radiofônica, almejou, segundo Bolle (2000)BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000., contribuir à formação de um tipo de audiência cuja interação com o conteúdo transmissível fosse a mais ativa possível. Ao propor o uso do rádio, do cinema ou de quaisquer outras formas de comunicação como meio necessário à interação entre o indivíduo e a técnica, por exemplo, o filósofo escapa da hipnótica e convincente linguagem estética orientada a partir do ideário político nazista para chamar atenção ao seu uso educativo, pedagógico e formativo.

Mais que isso, tal qual a técnica fotográfica transformou as condições da pintura, ou a invenção da imprensa modificou a difusão e o acesso à informação; a transformação dos meios de comunicação provocada pelo surgimento do rádio colocou à baila a exigência de se pensar questões afetas à produção estética, bem como o papel da literatura e do escritor no cenário próprio que compreende a experiência histórica, política e estética da época. Em razão do exposto, em um contexto no qual o rádio permite um novo campo de possibilidades criativas, a problemática que aqui se apresenta pode ser articulada à crítica acerca do papel do autor, sobretudo no que compete às tendências pelas quais escreve, isto é, o conteúdo e a forma que a sua produção contempla e os desdobramentos que a escrita suscita. Não por acaso, já nas primeiras linhas de O autor como produtor (Benjamin, 1994bBENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994b.), Benjamin esclarece que o momento histórico e crucial vivido na Alemanha hitlerista impõe ao escritor a importante tarefa de escolher “[...] a favor de que causa colocará sua atividade” (Benjamin, 1994b, p. 120), isto é, se da causa burguesa ou da causa proletária. Com essa afirmação, o autor aponta dois caminhos possíveis à popularização do rádio, quais sejam, o seu uso para o domínio e para o cerceamento da liberdade humana produzidos através da estetização da política; ou o seu uso pedagógico para a conscientização das massas.

Dito isso, como se insere o trabalho radiofônico de Benjamin no conjunto de sua obra? O que podemos recuperar dessa experiência que nos indique alguns caminhos para compreendermos os significados e a densidade de suas peças radiofônicas para as crianças? Para responder a estas questões, iremos pensar, em um primeiro momento, os aspectos contextuais de onde emergem as criações radiofônicas, bem como importantes reflexões realizadas por Benjamin sobre o impacto dos meios de comunicação de massa no cotidiano das pessoas. Feito isso, aprofundaremos as questões referentes às técnicas e os seus reflexos na relação produtor/escritor e receptor/ouvinte e o seu impacto sobre a produção radiofônica. Toda essa discussão tem como finalidade evidenciar que o escrito para crianças demandou de Benjamin não apenas habilidade com as palavras, mas, sobretudo, o raciocínio de uma estética que articulasse forma e conteúdo filosófico voltado a um público completamente novo para ele: a criança, indivíduo, cidadã, consumidora de mercadoria e bens culturais e fruto da infância criada pela moderna e burguesa visão de mundo.

Walter Benjamin e os Caminhos Do Rádio: criação, crítica e o tal pão de cada dia

As experiências liminares também tendem a ser substituídas por um achatamento da superfície sensorial e psíquica que vai apagando as diferenças, outrora estruturantes da existência humana, entre profano e sagrado, vida e morte, público e privado. A lei do capital instaura um nivelamento universal que ameaça transformar a experiência mais sublime numa nova mercadoria lucrativa (Jeane Marie Gagnebin, 2014GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo, Editora 34, 2014. , p. 34).

No contexto da caótica República de Weimar, e mais especificamente em 1925, Benjamin enfrentava alguns percalços e tentava finalizar seu doutorado para dar início à vida profissional na Academia e desfrutar de certa estabilidade profissional e financeira que lhe garantisse, de certo modo, a própria sobrevivência. A recusa de sua tese, entretanto, lhe fora materialmente catastrófica e o levou à procura de outros caminhos em um cenário de instabilidade econômica e política. A escrita, que como meio de sustento deveria ter sido provisória, se tornou uma constante em sua vida. Em correspondência enviada a Gerson Scholen; em 19 de fevereiro de 19251 1 Na carta Benjamin reflete sobre sua condição profissional no momento: Original: “I am keeping an eye open for any opportunities that may arise locally and finally have applied for the editorship of a radio magazine or, to be more precise, a supplement. This would be a part-time job, but it probably will not be so easy for me to get because we are having trouble agreeing on the honorarium. The situation is that Ernst Schoen has had an important position here for months now. He is the manager of the Frankfurt ‘broadcasting’ station and put in a good word for me.” (Benjamin, 1994a, p. 262, tradução nossa). “Estou mantendo um olho aberto para todas as oportunidades que possam surgir localmente e, finalmente, ter aplicado para a editoria de uma revista de rádio ou, para ser mais preciso, um suplemento. Este seria um trabalho de tempo parcial, mas provavelmente não será tão fácil para mim, porque estamos tendo dificuldade em concordar com os honorários. A situação é que Ernst Schoen tem se mantido em uma posição importante aqui há meses. Ele é o gerente da estação de ‘radiodifusão’ de Frankfurt e me recomendou”. , Benjamin afirma ter conseguido um trabalho para escrever um suplemento para uma emissora de rádio em Frankfurt. Apesar do início ainda tímido como escritor jornalista, foi essa experiência que o encaminhou, posteriormente, a produtor de rádio. (Bolle, 2000BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000.; Baudouin, 2009BAUDOUIN, Philippe. Au Microphone: Dr. Walter Benjamin - Walter Benjamin et la création radiophonique 1929-1933. Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l’homme, 2009.; 2010BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
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).

A discreta entrada no universo da radiodifusão lhe permitiu a elaboração de um conjunto de reflexões sobre os meios de comunicação de massa, bem como a aquisição de uma experiência consistente acerca dessa tecnologia. (Bolle, 2000BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000.; Baudouin, 2010BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
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). Segundo Baudouin (2010)BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
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, filósofo e radialista francês, a primeira transmissão feita por Benjamin aconteceu em 1927 e o percurso mais relevante de suas emissões radiofônicas ocorreu entre 1929 e 1933, tendo sido finalizada por ocasião da nomeação de Hitler como chanceler da Alemanha. Se, por um lado, a experiência com o rádio não correspondia à tão almejada carreira acadêmica, por outro, constituiu um desafio ao filósofo, sobretudo por ser um campo emergente - com o potencial para a criação literária e para os estudos sobre os efeitos da modernidade sobre o cotidiano das massas. Benjamin reconhece, assim, no trabalho do rádio, um espaço privilegiado ao trato das transformações sociais que impactariam diretamente a percepção e a interação do ser humano com o mundo e que poderiam ser intermediadas pelas novas tecnologias de comunicação social. (Baudouin, 2009BAUDOUIN, Philippe. Au Microphone: Dr. Walter Benjamin - Walter Benjamin et la création radiophonique 1929-1933. Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l’homme, 2009.; 2010BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
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; Carone, 2014CARONE, Iray. As experiências radiofônicas de Walter Benjamin na República de Weimar (1929-1933). In: WORLD CONGRESS ON COMMUNICATION AND ARTS, 7., 2014, Vila Real, Portugal. Proceedings... Vila Real, Portugal, 20-23 abr. 2014. P. 243-245.).

No emaranhado das mesmas contingências e contexto, conforme aponta Bolle (2000)BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000., Benjamin teve seus primeiros contatos com a literatura marxista por volta de 1924. Posteriormente, realizou uma viagem de formação para a Rússia (na época, União Soviética) entre dezembro de 1926 e janeiro de 1927 com o intuito de conhecer in loco o desenvolvimento de uma cultura revolucionária. Esse contato com o processo da revolução e toda a transformação do tecido social subsequente a ela, bem como sua relação com pensadores soviéticos da época, foram determinantes ao seu trabalho intelectual. Segundo Bolle (2000)BOLLE, Willi. Walter Benjamin e a cultura da criança. In: BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo e o brincar, a educação. São Paulo: Summus, 1984. P. 13-16., a passagem por Moscou impactou de maneira tão expressiva suas reflexões posteriores que contribuiu à estruturação de toda uma práxis acerca de sua atuação no meio radiofônico, além de “sua posição no processo produtivo” (Benjamin, 1994bBENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994b., p. 134).

Como o marxismo vinha se tornando uma temática bastante presente em suas discussões, o filósofo passou a interrogar o posicionamento crítico do intelectual na luta de classes frente a crescente emergência do fascismo alemão. Nesse caso, se, por um lado, interroga-se o valor de uma literatura completamente partidária, como aquela que ele mesmo testemunhou na URSS na ocasião de sua visita a Moscou e que está estreitamente relacionada à ausência de liberdade e autoridade do autor com o pensamento, com a crítica e com a argumentação; por outro, questiona-se também a relação dos intelectuais de esquerda, ditos revolucionários, com as elites burguesas conservadoras na Europa Ocidental. Na ótica de Bolle (2000, p. 199)BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000., “[...] o critério de verdade, que são as ideias e seu equilíbrio tona’, continua sendo a meta crítica de Benjamin também depois da experiência de Moscou; em suma, a arte do crítico seria: tomar partido - sem trair as ideias”. Dito de outro modo, posicionar-se frente às exigências do mundo sem trair a força do pensamento crítico engajado com a liberdade da reflexão, e não com modelos prescritivos, é condição necessária ao exercício do autor.

Considerando-se o exposto, as formas com que Benjamin tensiona a técnica, estão diretamente relacionadas a essa problemática. Por essa razão, o filósofo propõe o uso emancipatório das novas tecnologias artísticas e da informação em contraste ao seu uso totalitário por parte de filões sociais reacionários. O que determina seu valor emancipatório ou reacionário, portanto, é o uso que delas se faz, ou seja, os fins pelos quais elas são utilizadas. Não por acaso, o rádio, como meio e técnica, recebeu a mesma crítica feroz e sagaz a respeito de suas potencialidades sociais, já que as tendências pelas quais se escreve deveriam ser assumidas também no que compete à transmissão da informação:

[Benjamin] [...] jamais pretendeu transformar-se num ‘mestre da arte proletária’ [...] Distanciando-se da estratégia da esquerda populista, viu como tarefa do escritor e artista burguês [...] assumir sua formação burguesa. Ele entendeu que o escritor burguês só poderia atuar de modo indireto a favor do proletariado. Servir a causa da ‘Revolução proletária’ significou para ele resgatar a memória revolucionária da classe burguesa (Bolle, 2000BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000., p. 166).

Desse modo, engajado com a causa dos vencidos, Benjamin evidencia o sentido humanista revolucionário do Iluminismo que um dia impulsionou a burguesia em contraste com o valor econômico que passou a movimentar a classe, de modo reacionário, rumo ao fascismo do século XX. Dito em outras palavras, sua proposta é “promover a autorreflexão de uma classe” (Bolle, 2000BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000., p. 173) contra a emergente forma assumida pela barbárie da época. É desse contexto - de aprendizado técnico profissional como escritor/jornalista, escritor/radialista, escritor/produtor, de crise econômica e social, de crítica à história moderna - que emergem as suas criações radiofônicas bem como suas importantes reflexões acerca do impacto dos meios de comunicação de massa no cotidiano das pessoas.

Considerando-se a importância da temática à posterior discussão sobre o trabalho radiofônico voltado às crianças, é de nosso interesse, a partir daqui, aprofundarmos as questões referentes à técnica e ao modo como ela impactou a relação produtor/escritor, receptor/ouvinte na filosofia benjaminiana. Com esse exercício, conforme veremos, Benjamin delineou uma filosofia especialmente voltada a um público que ainda lhe era novo, qual seja, a criança inserida na infância moderna, cidadã e consumidora de mercadorias e bens culturais.

Fragmentos de um Pensamento sobre o Rádio: o potencial emancipatório dos meios de reprodutibilidade técnica

Não se trata de apresentar as obras literárias no contexto de seu tempo, mas de apresentar, no tempo em que elas nasceram, o tempo que as revela e conhece: o nosso (Walter Benjamin, 1931, n. p).

Tomar partido e colocar-se a contrapelo da história oficial foi a postura ética adotada por Benjamin no que compete à sua produção escrita no contexto da República de Weimar. Dessa escolha resultaram inúmeras reflexões sobre as condições da técnica, criação e recepção dos bens culturais no contexto da modernidade que, tal qual o filme e a fotografia, incluem o rádio na discussão sobre a reprodutibilidade técnica. No que compete ao rádio, entretanto, a sua especificidade reside exclusivamente na reprodução do som e é essa sonoridade que demarca a sua presença invisível no cotidiano das pessoas. Recebemos por meio das ondas radiofônicas uma multiplicidade de ruídos, melodias, bem como transmissões literárias, científicas e/ou políticas de modo que o rádio se caracteriza por certa ubiquidade ou por uma quase onipresença sensível e imaterial.

No começo do século XX, o desenvolvimento técnico da produção e reprodução dos bens culturais atingiu tamanho padrão de qualidade que permitiu aos meios de comunicação de massa não só transformarem “[...] em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, submetendo-as a transformações profundas, como [conquistarem] para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos” (Benjamin, 1994bBENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994b., p. 167). Dentre eles, o rádio não ficou imune, sobretudo em razão de sua abertura a todos os tipos de experimentações. No contexto de transformações da modernidade, o aparato foi inovador para a criação estética qualquer que fosse a sua finalidade.

Em A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica (Benjamin, 1994bBENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994b.) e O autor como produtor, (Benjamin, 1994bBENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994b.) O autor justifica que a técnica está a serviço das relações humanas, atendendo a interesses, intencionalidades e propósitos diferentes. Isso significa que, se por um lado o desenvolvimento tecnológico ampliou o acesso e as formas de expressão artística, por outro, estreitou seus vínculos com a política e com as estruturas de poder vigentes provocando não só o cerceamento da liberdade e da autonomia humana, como também a dominação das massas. É contra a estetização da política, portanto, que o autor fundamenta o seu uso consciente para o despertar da consciência que perpassa também o rádio, conforme nota-se em suas peças radiofônicas (Benjamin, 2015BENJAMIN, Walter. A Hora da Criança: narrativas radiofônicas. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2015.).

Em decorrência disso, o trabalho do autor/escritor também é refletido em tempos em que se questionam as tendências pelas quais se escreve. Dito de outro modo, se o escritor produz bens culturais, seu exercício poderia operar a favor da conscientização e da emancipação humana em contrapartida à reprodução tendenciosa do status quo. Assim, se para o nazismo o que importava era criar meios eficientes de controle ideológico das massas para administrar e adaptar o indivíduo ao seu programa, Benjamin entende que a programação e o conteúdo das emissões poderiam servir como vetores para o despertar da consciência individual, sobretudo em razão das possibilidades da popularização da cultura e do conhecimento de modo massificado por meio das tecnologias de comunicação social:

A postura da tradicional sociedade burguesa em relação às massas, e sua ‘modernização’ através de um determinado tipo de incorporação da ‘cultura de massas’, era, como viu Benjamin na época, a questão estratégica decisiva. Confrontaram-se, na República de Weimar, dois projetos históricos diferentes: o uso emancipatório dos meios de comunicação de massa, ligado a uma utopia revolucionária, e, por outro lado, seu uso contrarrevolucionário. [...] A arte tecnológica, pode, como propõe Benjamin, ‘liquidar o valor cultura, aurático’, romper com mitificações e contribuir para o autoconhecimento e a emancipação do público. Eis a diferença fundamental entre a ‘primeira técnica’ e a ‘segunda técnica’, na nomenclatura de Benjamin (Bolle, 2000BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000., p. 221-222).

O fascismo, ao adotar a primeira técnica como instrumento, ocultou as contradições sociais. Com isso, se criou um modelo de propaganda política cujo objeto artístico visava encobrir os conflitos sociais, bem como criar a ilusão de que a população estava sendo contemplada por meio das propostas e políticas sociais sugeridas por Hitler (Bolle, 2000BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000.). A estetização da política se concretiza, assim, pelo uso das expressões estéticas para:

[...] organizar as massas proletárias recém-surgidas sem alterar as relações de produção e propriedade que tais massas tendem a abolir [...] As massas têm o direito de exigir a mudança das relações de propriedade; o fascismo permite que elas se exprimam, conservando, ao mesmo tempo, essas relações. Ele desemboca, consequentemente, na estetização da vida política (Benjamin, 1994bBENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994b., p. 194-195).

Por essas vias, o uso da técnica na Alemanha fascista auxiliou na construção de imagens aparentemente perfectíveis quer seja de suas ideologias e feitos, quer seja dos seus intentos. Isso fica evidente, por exemplo, nos desfiles e paradas militares, nos discursos, nos cartazes e uniformes, na arquitetura e na arte. No próprio agrupamento da massa nazista, do mesmo modo, podia-se observar a representação desse ideal de perfectibilidade com a “escultura” sendo formada pela própria massa que buscava incorporar os ideais por meio do mimetismo com o qual se reagia aos gestos e às ordens nazistas. Na ótica de Bolle (2000, p. 230)BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000., “história e política são transformadas em fenômeno ao mesmo tempo estético e ritualístico”. A intenção dessa expressão estética nada mais seria que estabelecer no ambiente social alemão um imaginário propício para a aceitação integral do modelo político autoritário prestes a emergir. Nesse sentido, “[...] o fascismo, ao invés de exigir da massa uma tarefa crítica, vai ao encontro do desejo delas, organizando diversão e ilusão, jogo e espetáculo [...]. A magia, o fascínio e o caráter hipnótico do espetáculo predominam sobre a análise crítica, a participação ativa e a experimentação real” (Bolle, 2000BOLLE, Willi. Walter Benjamin e a cultura da criança. In: BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo e o brincar, a educação. São Paulo: Summus, 1984. P. 13-16., p. 234-235).

As análises sobre a estetização da política fascista contribuíam à fundamentação da resposta benjaminiana ao problema, qual seja, a politização da arte como meio de combate à virulência da propagação de ideários regressivos. Nesse sentido, o caráter político redimensionado à obra de arte poderia servir de recurso ao esclarecimento das massas, sobretudo no que compete ao conceito fascista de cultura, seus ardis e mecanismos através dos quais mitificação e ritualização foram praticadas para seduzi-las e aliená-las. O que Benjamin reivindica, portanto, é a possibilidade de “[...] extrair da obra de arte tecnológica de massa, que opera uma ‘destruição da aura’, uma função emancipadora, dentro do espírito da Ilustração” (Bolle, 2000BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000., p. 220). Para Baudouin (2010)BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
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, essa é uma das tarefas assumidas pelo autor progressista quando este opta pelas tendências corretas em sua escrita. Em O autor como produtor (Benjamin, 1994b), esse papel é evidenciado e reforçado quando o filósofo interroga as funções do autor. Há na escrita, portanto, um engajamento político próprio do intelectual capaz de orientar o seu trabalho a favor dos vencidos.

Isso só se torna possível quando há uma apropriação consciente da técnica que possibilita a criação e a expressão estética para além de seus fins regressivos e totalitários. São contra esses fins que o trabalho do autor opera e dá a ele o sentido revolucionário de que fala Benjamin (2002)BENJAMIN, Walter. Reflexões: sobre a criança, o brinquedo e o brincar, a educação. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002.. Mais que isso, interrogar acerca das causas assumidas pelo autor é de extrema importância numa temporalidade em que a escrita da história fora assumida pela perspectiva dos vencedores. A expressão estética, portanto, é capaz de fazer eclodir a materialidade histórica, bem como o reconhecimento do trabalho do intelectual crítico no processo de produção e da luta de classes. Dessa forma, modificar o aparelho produtivo significa:

[...] derrubar aquelas barreiras, superar aquelas contradições que acorrentam o trabalho produtivo da inteligência. [...] Também aqui, para o autor como produtor o progresso técnico é um fundamento do progresso político. [...] Além disso, as barreiras de competência entre as duas forças produtivas - o material e a intelectual -, erigidas para separá-las precisam ser derrubadas conjuntamente (Benjamin, 1994bBENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994b., p. 129).

Pelo exposto, Benjamin propõe uma práxis revolucionária como conduta ética para o intelectual crítico desta época e não se esquiva dessa exigência ao criar peças de rádio com tal rigor ético. Dessa forma, seu exercício não se limitou apenas a trabalhar junto aos intelectuais burgueses visando a sua conscientização, mas aperfeiçoou seu próprio trabalho de radialista e produtor cultural com o objetivo de contribuir para aquilo que julgava importante e imprescindível à época: o despertar da consciência do grande público. Não por acaso, Benjamin se dedicou, em inúmeros programas, a estabelecer um diálogo e uma atuação crítico pedagógica com todo o público, sobretudo com crianças e jovens. Conforme apontam Bolle (2000)BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000. e Baudouin (2010)BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
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, ele acreditava que o escritor crítico deveria ser atuante no contexto em que emergiam as novas formas de mídia e tecnologias de comunicação de massas. Seus trabalhos radiofônicos testemunham esse engajamento.

A partir de suas atuações, Benjamin apostou no rádio como um aparato que poderia ser utilizado à transformação das pessoas por meio do acesso à cultura desde que essa exigência estivesse na base da produção radiofônica. Nesse período, o contato e a amizade com Brecht foram determinantes à experiência com o rádio. As influências de Brecht e de seu teatro épico o auxiliaram na criação de peças radiofônicas inéditas, até mesmo enquanto gênero em ascensão. (Baudouin, 2009BAUDOUIN, Philippe. Au Microphone: Dr. Walter Benjamin - Walter Benjamin et la création radiophonique 1929-1933. Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l’homme, 2009.; 2010BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
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). A influência da obra de Brecht levou Benjamin a concluir que:

As formas do teatro épico correspondem às formas técnicas, o cinema e o rádio. Ele está situado no ponto mais alto da técnica. Se o cinema impôs o princípio de que o espectador pode entrar a qualquer momento na sala, de que para isso devem ser evitados os antecedentes muito complicados e de que cada parte, além do seu valor para o todo, precisa ter um valor próprio, episódico, esse princípio tornou-se absolutamente necessário para o rádio, cujo público liga e desliga a cada momento, arbitrariamente, seus alto-falantes. O teatro épico faz o mesmo com o palco (Benjamin, 1994bBENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994b., p. 83).

Para o autor, “[...] todo desempenho infantil orienta-se não pela ‘eternidade’ dos produtos, mas sim pelo ‘instante’ do gesto. Enquanto arte efêmera, o teatro é a arte infantil”, (Benjamin, 2002BENJAMIN, Walter. Reflexões: sobre a criança, o brinquedo e o brincar, a educação. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002., p. 117). Para Benjamin, esse é um exemplo de politização da arte que ajudaria a formar a consciência crítica, prática e, por decorrência, política (Baudouin, 2010BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
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). Essas reflexões remetem a temas presentes em outros de seus textos. À guisa de exemplo, as características do teatro épico figuram também no ensaio Programa de um teatro infantil proletário. (Benjamin, 2002). Nele, fica evidente o quanto a noção do ‘gesto infantil’ se aproxima ao que ele propõe ser o gesto do ator em outro ensaio (O que é o teatro épico? Benjamin, 1985BENJAMIN, Walter. O que é o teatro épico? (2ª versão). In: KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamin. Tradução: Flávio Kothe. São Paulo: Editora Ática, 1985. P. 212-218. (Coleção grandes cientistas sociais).). Segundo Benjamin (1985)BENJAMIN, Walter. O que é o teatro épico? (2ª versão). In: KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamin. Tradução: Flávio Kothe. São Paulo: Editora Ática, 1985. P. 212-218. (Coleção grandes cientistas sociais)., o gesto é a alma do teatro épico, pois é por meio dele que o ator realiza pausas e interrupções pontuais e intencionais operando com um distanciamento crítico estratégico que agrega ao gênero o caráter pedagógico.

No centro dessa reflexão, o que nos chama atenção é o valor dado ao acontecimento, ou aos agoras, na forma do improvisado e o modo como isso se relaciona com a fantasia do real. Dito em outras palavras, no modo semiestruturado, próximo de improvisado e na forma com que o teatro épico é produzido, existe a possibilidade de experimentação de situações de modo mais livre, haja vista o minimalismo do cenário e das falas como elementos a priori. Com isso, por meio do gesto, que é também técnica de interpretação, abre-se a possibilidade para a existência de um espaço ainda não preenchido por completo pelas demandas do capital e da sociedade de consumo. Esse vazio primordial, que é fundamental ao fazer lúdico e à fantasia do real, corresponde ao “Spielraum (literalmente espaço para brincar), um espaço para brincar, jogar, experimentar, transformar” (Gagnebin, 2012GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Brecht e Benjamin: peça de aprendizagem e ordenamento experimental. Viso. Cadernos de estética aplicada, Rio de Janeiro, n. 11, p. 145-151, jan./jun. 2012., p. 150). Para Gagnebin (2012, p. 150)GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Brecht e Benjamin: peça de aprendizagem e ordenamento experimental. Viso. Cadernos de estética aplicada, Rio de Janeiro, n. 11, p. 145-151, jan./jun. 2012.

Se os ensaios sobre Brecht insistem na mutabilidade do espaço - a rigor, não existe mais o edifício ‘teatro’ com entrada, escadaria, palco, fosso, coxias etc. -, o programa de teatro infantil insiste na mutabilidade do tempo. As crianças são organizadas em um coletivo e têm a possibilidade de encenar suas fantasias através de atividades em várias oficinas de trabalho, sob a coordenação de um adulto/diretor. Essas oficinas são de execução material de vários objetos e de aprendizado concreto (preparação dos acessórios, pintura do cenário, recitação, música, dança). Essa confrontação concreta com a ‘matéria’ [Stoff] é imprescindível, escreve Benjamin, para permitir que as crianças consigam escapar do ‘perigoso reino mágico da mera fantasia’. Sem essa confrontação, ficariam presas e impotentes nesse reino mágico (como ficam hoje diante da televisão), isto é, também profundamente diminuídas na volta ao ‘mundo real’. Graças à atuação com a matéria, que permite a transformação da fantasia em signos materiais, a ‘mera’ fantasia se torna um jogo de possibilidades e de experimentações concretas. Tais encenações, ressalta Benjamin, se deixam orientar pela improvisação, em vez de obedecer a um texto previamente dado. Com muito mais desenvoltura que os adultos, as crianças realizam no jogo teatral a temporalidade da experimentação.

O Spielraum, como um espaço para brincar, pode também ser compreendido, no pensamento benjaminiano, como um espaço limiar ou um lugar operacional para a fantasia cuja finalidade é liberar a ação da criança às experiências formativas em relação com o meio. A materialidade é a parte do real cujo mundo subjetivo da criança se ocupa de modo criativo, combinando e recombinando suas partes acessíveis. As percepções que ela consegue incorporar dessa realidade transformam-se, então, em material/contexto para o brincar ou para a imaginação daquilo que lhe é narrado, conforme se observa nos contos de fadas, histórias fantásticas ou peças radiofônicas. Não por acaso, há nas peças de Benjamin uma espécie de topografia estratégica. Por meio dela, o autor orientou as crianças pelas narrativas, quase que de modo espacial, como quem indica um caminho a se percorrer pelos labirintos de suas histórias, a partir daquilo que, de algum modo, fosse concretude ou parte da realidade infantil alemã no limiar entre os anos de 1920 e 1930:

Um elemento essencial dessa Aufklärung für Kinder (ilustração para crianças) consiste em desenvolver uma imunização dos ouvintes contra tudo o que é impacto e sensacionalismo, que reforçam a passividade e o consumismo. O autor reconhecia a necessidade de fantasias e mitos; eles devem servir para o receptor desenvolver sua personalidade, inclusive a se transformar num produtor de textos. Além disso, Benjamin criou também programas para adultos; eram concebidos sobretudo como ajuda de orientação em questões práticas do cotidiano, por exemplo, em como pedir um aumento para o chefe. Em todos esses programas, como também nas apresentações literárias, o objetivo principal não era o acúmulo de informações, e, sim, a formação da capacidade de julgar. O ouvinte deveria aprender a discernir entre comportamento ‘errado’ e ‘certo’, ou seja, entre obediência a apelos mitificadores do poder e uma postura que tornava transparente as artimanhas de seus agentes (Bolle, 2000BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000., p. 246).

Como jornalista, Benjamin escreveu para um público variado e para diferentes faixas etárias. No entanto, sua experiência com o rádio revela uma atenção e um cuidado bastante especial com a forma e o conteúdo, sobretudo nas peças radiofônicas voltadas para crianças e jovens. Para este público, ele criou um conjunto de programas pedagógicos que versam sobre os mais diferentes assuntos - relatos que tematizaram o mundo do trabalho, magos e bruxas, golpistas, lojas de brinquedos, catástrofes, literatura e linguagem, enfim -, sempre dialogando de modo dialético com a sensibilidade lúdica da vida infantil numa perspectiva ética e emancipadora. Na perspectiva do autor, a arte tecnológica para as massas ou a produção estética na era midiática deveria ser acompanhada de algum índice pedagógico. Segundo Baudouin (2010)BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
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, Benjamin compartilhava desse pensamento com Brecht, tanto que traduziu para o seu trabalho de rádio uma série de procedimentos e experimentações oriundos da concepção teatral brechtiana de peça didática e pedagógica criando, assim, seu modelo de peça radiofônica com caráter pedagógico. “Diga-se, apenas de passagem, que não há melhor ponto de partida para a reflexão do que o riso. E que a vibração do diafragma costuma ser um melhor estimulante do pensamento do que as vibrações da alma”, é o que afirmara o autor, certa vez, acerca do teatro épico (Benjamin, 1994b, p. 134).

Todavia, esse mesmo elemento catalisador de reflexões, a que chamamos aqui de “aspecto risível” da obra, pode ser facilmente encontrado nos escritos de Benjamin voltados ao público infantil ou como uma característica em suas reflexões sobre a infância. Existe, portanto, uma preocupação com as características ou com a natureza social da criança representante da infância moderna, tal qual sua sensibilidade e curiosidade para o ambiente urbano e tecnológico. Nesse sentido, não há assunto proibido ou que não possa ser traduzido para elas, desde que, por meio da composição entre forma e conteúdo, os dados narrados lhes sejam acessíveis e tocantes2 2 Como forma de exemplificar nossa afirmação, gostaríamos de citar a primeira parte da rádio, peça intitulada O dialeto berlinense (Benjamin, 2015, p. 9) “Bom dia, hoje quero conversar com vocês sobre o jeito de falar dos berlinenses; o famoso bico enorme é a primeira coisa na qual se pensa, quando se fala de Berlim. Na casa de um berlinense tudo é diferente, tudo é melhor e feito de um jeito mais esperto, pelo menos é o que se diz na Alemanha. Na verdade, é até bom quando se tem a capital de um país da qual se pode falar mal”. Na citação nota-se como Benjamin explora o poder imagético das palavras para formar uma topografia da qual a imaginação da criança vai sendo guiada com bom humor e ironia pelas trilhas do conhecimento. .

As proposições pedagógicas sobre o uso do rádio feitas por Benjamin, segundo Bolle (2000)BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000., tendem a um encontro entre o público e o autor/produtor3 3 Reflections on Radio In: Benjamin, Walter. The work of art in the age of its technological reproducibility, and other writings on media. Cambridge, Massachusetts. London: Harvard University Press, 2008. P. 391- 392. Original: “Not that it would be an easy task to describe the way the voice relates to the language used - for this is what is involved. But if radio paid heed only to the arsenal of impossibilities that seems to grow by the day-if, for example, it merely provided from a set of negative assumptions a typology of comic errors made by speakers-it would not only improve the standard of its programs but would win listeners over to its side by appealing to them as experts. And this is the most important point of all” (Benjamin, 2008, p. 392). - “Não que seja uma tarefa fácil descrever o modo como a voz se relaciona com a linguagem usada - pois é isso que está envolvido. Mas se o rádio só prestava atenção ao arsenal de impossibilidades que parece crescer a cada dia - se, por exemplo, se limitasse a fornecer de uma série de suposições negativas uma tipologia de erros cômicos feitos por falantes - não só melhoraria o padrão de seus programas, mas ganharia ouvintes para o seu lado apelando para eles como especialistas. E este é o ponto mais importante de todos” (Benjamin, 2008, p. 392, tradução nossa). . Na medida em que este organiza a pauta, o conteúdo e o formato da programação, observando o que é de interesse ou da especificidade de um determinado público, o escritor como produtor pode contribuir para que o ouvinte seja orientado em direção ao conhecimento, quando se identifica com o programa emitido. A proposta, portanto, é a de que haja uma dialética neste encontro que torne possível elaborar um tipo de conhecimento que cative tanto o especialista no assunto em pauta quanto o mais leigo dos ouvintes:

A rádio peça ‘parte propositadamente do que há de mais superficial’, ao mesmo tempo em que procura ‘se vincular às questões da teoria literária avançada’; para o autor, seria um grande incentivo ‘se pudesse cativar ao mesmo tempo o especialista e o leigo’. Nesse campo de tensão, Benjamin procurou desenvolver o amplo prisma de seus gêneros, que vão desde a linguagem mais simples até o ‘texto difícil’ (Bolle, 2000BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000., p. 267).

Para um desafio tão grande quanto o de agradar um público tão diversificado, Benjamin apostou na experimentação e criação dos gêneros e formas radiofônicas próprias. Os gêneros trabalhados por ele durante sua vida profissional no rádio, conforme aponta Baudouin (2010)BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
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, podem ser estudados em ao menos duas categorias amplas de emissões. De um lado, o comentarista congrega as transmissões que se serviram do rádio apenas como meio e suporte de difusão, tais como entrevistas, conferências, leituras de ensaios, história infantis, crônicas e críticas literárias; de outro, ele relaciona as peças imaginadas e projetadas especificamente para o rádio. Portanto, se Benjamin tem um pé no jornalismo, no que diz respeito a certas emissões, ele tem outro no domínio da produção e realização cultural como Hörspielmacher ou dramaturgo de rádio em tradução literal, conforme justifica Baudouin (2010).

As peças de rádio feitas pelo filósofo correspondem à categoria das Hörspiele. De origem alemã, o termo significa ‘jogo (Spiel) para os ouvidos’ e é caraterizado por um formato heterogêneo no que diz respeito à escolha do material e à estrutura de composição das peças. “Este tipo de jogo de rádio é baseado na expressividade dos sons, bem como na combinação de gêneros, como a música eletroacústica, a poesia sonora ou o teatro musical” (Baudoin, 2010BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
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, p. 120, tradução nossa)4 4 Original - “Littéralement, Hörspiel signifie ‘jue (Spiel) pour l’ouïe’”. Ce type de pièce radiophonique se fonde sur l’expressivité des sons ainsi que sur la combination de genres tels que la musique eletroacustique, la poésie sonore ou le théatre musical” (Baudouin, 2010, p. 120). . Essa montagem característica da Hörspiel pode ser compreendida como uma forma de literatura de rádio com caráter pedagógico acessível para crianças e jovens ouvintes. Além de proporcionar o entretenimento e a diversão, sobretudo em razão do caráter lúdico das peças, agrega em si outra função: o despertar da consciência do público ouvinte por meio do conteúdo subjacente à forma e à técnica das peças.

Para além delas, Benjamin produziu um segundo tipo de peças de rádio intitulado Hörmodelle. Esses modelos radiofônicos correspondem às peças didáticas ou de aprendizagem brechtiana, conforme aponta Bolle (2000)BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000. e o que há de original nelas é a íntima relação entre diálogo cênico e discussão teórica. Tal relação ocorre:

[…] a partir de situações emprestadas da vida cotidiana, das experiências dos ouvintes, Benjamin, se esforça em desenvolver um verdadeiro método de análise de comportamentos e atitudes, a partir de uma dialética entre exemplos e contraexemplos. [...] Ele se mobiliza em ensinar o público a arte de resolver os conflitos da vida cotidiana (Baudouin, 2010BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
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, p. 128-129, tradução nossa)5 5 Original - “A partir des faits emprutés à des situations de la vie quotidienne, au vècu des auditeurs, Benjamin, s’efforce d’elaborer une véritable méthode d’analuse des comportamentes, des attitudes a partir d’une diletique d’exemples et de contre-exemple. [...] Il s’agit d’enseigner aux auditeurs l’art de résoudre des conflits de la vie quotidienne” (Baudouin, 2010, p. 128-129). .

Em um período de transformações radicais e rápidas na sociedade alemã, Benjamin tentou produzir algo que pudesse contribuir para o desenvolvimento e a orientação da capacidade de tomar decisões em situações típicas de um cotidiano em que os indivíduos eram submetidos às constantes pressões dos ideais nazistas. As poesias sonoras, os jogos de palavras e as artes literárias, isto é, o Funkspiel, constituíram uma terceira forma de criação radiofônica benjaminiana. O Funkspiel é um tipo literário de jogo de rádio que, conforme explica Baudouin (2010)BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
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, tinha como objetivo criar uma forma de interação com o público, bem como incentivá-lo a escrever e produzir seus próprios ‘ensaios’. O jogo era concebido de modo a convidar o ouvinte a realizar uma brincadeira que consistia em escrever um pequeno texto, coerente, a partir de um conjunto de palavras recitadas aleatoriamente durante a programação em um tempo determinado pelo animador da emissão.

Por fim, outras produções radiofônicas, sobretudo os contos radiofônicos para crianças, revelam o esforço do autor no trato com temas da atualidade, da modernidade, de modo a adaptar os modos de narrar à cultura e à idade evitando as armadilhas dos excessos em nome do pedagogismo. Nota-se, aqui, que houve um esforço em propor aos jovens ouvintes emissões totalmente adaptadas às suas demandas e sensibilidade. “Por sua prática singular do rádio, ele vai tentar criar um espaço de liberdade e experimentação para jovens ouvintes, oferecendo contos de rádio de um novo tipo” (Baudouin, 2010BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
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, p. 151, tradução nossa)6 6 Original - “Par sa pratique singulière de la radio, il va tenter de créer un espace de liberté et d’experimentation pour les jeunes auditeurs en leur proposant des contes radiophoniques d’un nouveau genre” (Baudouin, 2010, p. 151). . Nesse sentido, o projeto de Benjamin como um escritor/produtor de literatura infanto-juvenil, se assim podemos afirmar, teve por objetivo “[...] preservar os valores da infância e juventude, pois eram exatamente estas - enquanto ‘futuro da nação’ - que estavam na mira da máquina de propaganda do novo regime autoritário que procurava organizar, captar, seduzir, ‘fazer a cabeça’, dos jovens e pequenos, incentivando-os por todos os meios a integrarem a ‘Juventude Hitlerista’” (Bolle, 1984BOLLE, Willi. Walter Benjamin e a cultura da criança. In: BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo e o brincar, a educação. São Paulo: Summus, 1984. P. 13-16., p. 13).

Apesar de todos os esforços dos intelectuais críticos na luta contra o pensamento fascista, sabe-se qual foi o desfecho dessa história. Benjamin assistiu à derrocada do pensamento crítico não apenas nos meios de comunicação de massa, mas também no contexto da sociedade da época. Ele foi testemunha de como regimes autoritários conseguiram utilizar a mídia moderna e toda força persuasiva que dela emana a favor de uma engenharia construída para a destruição em massa. Além disso, ele constatou, com a experiência da ascensão nazista, que o progresso tecnológico contribuiu para dar suporte ao culto e à magia que fizeram sucumbir os ideais Iluministas de emancipação e formação em favor da afirmação do capitalismo como religião. A Hitlerjugend, ou Juventude Hitlerista, certamente foi um fenômeno de massas que inquietou Benjamin quando ele refletiu acerca do que a propaganda nazista havia reservado para o público jovem e para as crianças. Relatos sobre essa propaganda mostram a força predatória e sedutora de sua engenharia:

Escrevendo trinta anos depois, Melita Maschmann lembrou-se de si mesma aos 15 anos de idade como buscando um ‘propósito fundamental’: ‘Naquela idade, a gente vê uma vida de deveres escolares, passeios com a família e convites para aniversários deploravelmente vazia de significado. Não se dá crédito a ninguém por estar interessado em mais do que essas ridículas trivialidades. Ninguém diz: ‘Você é necessário para algo mais importante; venha! ’ Quando se trata de assuntos sérios, a gente nem conta. Mas os meninos e meninas das colunas em marcha contavam. Como os adultos, eles carregavam estandartes onde estavam escritos os nomes dos seus mortos’ (Savage, 2009SAVAGE, John. A Criação da Juventude: como o conceito de teenage revolucionou o século XX. Rio de Janeiro: Rocco, 2009., p. 278).

Ao final de 1933, aproximados 3,5 milhões de jovens alemães já faziam parte da Juventude Hitlerista. A pressão e a persuasão da propaganda nazista foram essenciais a essa expansão, contudo, o movimento também se aproveitou do contexto do pós-guerra e da falta de perspectiva de vida para dar uma alma para as massas. A juventude tinha, portanto, um lugar importante nas atenções e intenções imperialistas de Hitler. Certa vez, em 1933, ele apresentou ao público seu plano para o futuro da juventude hitlerista alemã:

Estou começando com os jovens. Nós que somos mais velhos estamos desgastados. Estamos apodrecidos até a medula. Não nos resta nenhum instinto incontrolável. Somos covardes e sentimentais. Estamos carregando o peso de um passado humilhante e temos no nosso sangue o melancólico reflexo da servidão e da subserviência. Mas os meus magníficos jovens! Existem melhores em algum outro lugar do mundo? Vejam estes rapazes e meninos! Que material! Com eles eu posso construir um novo mundo (trecho do discurso de Adolf Hitler em 1933 apud Savage, 2009SAVAGE, John. A Criação da Juventude: como o conceito de teenage revolucionou o século XX. Rio de Janeiro: Rocco, 2009., p. 279).

Diante desse cenário, Benjamin atuou de modo consciente contra o enquadramento da juventude ao projeto social fascista. Para tanto, seus esforços consistiram em criar uma literatura de rádio voltada para a infância como forma de colaborar na formação da resistência contra a pressão do nacional-socialismo. Foi por meio de suas experiências com a nova tecnologia do rádio, em suma, que seus contos radiofônicos testemunharam um cuidado com a cultura da criança colocando em cena o protagonismo infantil alternativo ao que propunha o nazismo às crianças e aos jovens. A politização da arte benjaminiana se revela, assim, no uso consciente, crítico, pedagógico e emancipador da tecnologia utilizada não para o cerceamento da liberdade e da autonomia humana, mas para o esclarecimento daquilo que enreda e expropria a liberdade.

Considerações Finais

A experiência da Alemanha nazista e a estetização da política fizeram com que Benjamin tecesse suas críticas aos vínculos estabelecidos entre estética, técnica e política. Diante desse cenário, Benjamin propôs caminhos esclarecedores aos problemas de que era contemporâneo. No contexto de transformações próprias da modernidade, a presença cada vez maior dos aparatos na vida social e privada transformou as relações e os modos de praticar a vida. Benjamin não foi insensível a essa presença. Se a técnica se tornou tão onipresente no cotidiano, o seu uso poderia intermediar a relação experimental entre o público e a aparelhagem ou entre a humanidade e a tecnologia. A técnica, à luz de Benjamin, portanto, possui função intermediadora e exige de nós um olhar atento a questões éticas próprias de nossa temporalidade.

Essa crítica fundamentada em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (Benjamin, 1994bBENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994b.) está estreitamente relacionada ao uso político das novas formas de expressão artística para a estetização da política que ameaçava a liberdade e a autonomia humana. Como resposta ao problema, a politização da arte emerge num contexto em que necessariamente o aparato opere a favor da crítica, do pensamento, da formação e do esclarecimento. Todo autor que se pretende engajado com essa luta não pode ignorar as tendências e as causas pelas quais escreve. Esse exercício, ampliado ao trabalho benjaminiano, é vislumbrado em suas peças radiofônicas, sobretudo naquelas dedicadas aos jovens e às crianças, através do qual o rádio foi determinante ao esclarecimento do público.

As experiências de Benjamin com o rádio demonstram o cuidado com aqueles que, ainda em formação, podem ser poupados da corrupção presente no interior de discursos e propagandas autoritárias. Formar cidadãos críticos, éticos e comprometidos com as questões do tempo talvez tenha mobilizado Benjamin a fundamentar o uso da técnica para além daqueles dedicados à reificação das massas. Pelo contrário, sua potencialidade reside em sua capacidade de se fazer crítica pedagógica e emancipadora em tempos sombrios7 7 Fonte de financiamento: FAPESP Processo: 2013/21152-3/CAPES Processo: BEX 7915/14-4. .

Notas

  • 1
    Na carta Benjamin reflete sobre sua condição profissional no momento: Original: “I am keeping an eye open for any opportunities that may arise locally and finally have applied for the editorship of a radio magazine or, to be more precise, a supplement. This would be a part-time job, but it probably will not be so easy for me to get because we are having trouble agreeing on the honorarium. The situation is that Ernst Schoen has had an important position here for months now. He is the manager of the Frankfurt ‘broadcasting’ station and put in a good word for me.” (Benjamin, 1994aBENJAMIN, Walter. The Correspondence of Walter Benjamin, 1910-1940. I edited and annotateded by Gershom Scholem and Theodor Adorno. Chicago: The University of Chicago, 1994a., p. 262, tradução nossa). “Estou mantendo um olho aberto para todas as oportunidades que possam surgir localmente e, finalmente, ter aplicado para a editoria de uma revista de rádio ou, para ser mais preciso, um suplemento. Este seria um trabalho de tempo parcial, mas provavelmente não será tão fácil para mim, porque estamos tendo dificuldade em concordar com os honorários. A situação é que Ernst Schoen tem se mantido em uma posição importante aqui há meses. Ele é o gerente da estação de ‘radiodifusão’ de Frankfurt e me recomendou”.
  • 2
    Como forma de exemplificar nossa afirmação, gostaríamos de citar a primeira parte da rádio, peça intitulada O dialeto berlinense (Benjamin, 2015BENJAMIN, Walter. A Hora da Criança: narrativas radiofônicas. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2015., p. 9) “Bom dia, hoje quero conversar com vocês sobre o jeito de falar dos berlinenses; o famoso bico enorme é a primeira coisa na qual se pensa, quando se fala de Berlim. Na casa de um berlinense tudo é diferente, tudo é melhor e feito de um jeito mais esperto, pelo menos é o que se diz na Alemanha. Na verdade, é até bom quando se tem a capital de um país da qual se pode falar mal”. Na citação nota-se como Benjamin explora o poder imagético das palavras para formar uma topografia da qual a imaginação da criança vai sendo guiada com bom humor e ironia pelas trilhas do conhecimento.
  • 3
    Reflections on Radio In: Benjamin, Walter. The work of art in the age of its technological reproducibility, and other writings on media. Cambridge, Massachusetts. London: Harvard University Press, 2008. P. 391- 392. Original: “Not that it would be an easy task to describe the way the voice relates to the language used - for this is what is involved. But if radio paid heed only to the arsenal of impossibilities that seems to grow by the day-if, for example, it merely provided from a set of negative assumptions a typology of comic errors made by speakers-it would not only improve the standard of its programs but would win listeners over to its side by appealing to them as experts. And this is the most important point of all” (Benjamin, 2008BENJAMIN, Walter. The Work of Art in the Age of its Technological Reproducibility, and Other Writings on Media. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2008., p. 392). - Não que seja uma tarefa fácil descrever o modo como a voz se relaciona com a linguagem usada - pois é isso que está envolvido. Mas se o rádio só prestava atenção ao arsenal de impossibilidades que parece crescer a cada dia - se, por exemplo, se limitasse a fornecer de uma série de suposições negativas uma tipologia de erros cômicos feitos por falantes - não só melhoraria o padrão de seus programas, mas ganharia ouvintes para o seu lado apelando para eles como especialistas. E este é o ponto mais importante de todos” (Benjamin, 2008BENJAMIN, Walter. The Work of Art in the Age of its Technological Reproducibility, and Other Writings on Media. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2008., p. 392, tradução nossa).
  • 4
    Original - “Littéralement, Hörspiel signifie ‘jue (Spiel) pour l’ouïe’”. Ce type de pièce radiophonique se fonde sur l’expressivité des sons ainsi que sur la combination de genres tels que la musique eletroacustique, la poésie sonore ou le théatre musical” (Baudouin, 2010BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
    http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9e...
    , p. 120).
  • 5
    Original - “A partir des faits emprutés à des situations de la vie quotidienne, au vècu des auditeurs, Benjamin, s’efforce d’elaborer une véritable méthode d’analuse des comportamentes, des attitudes a partir d’une diletique d’exemples et de contre-exemple. [...] Il s’agit d’enseigner aux auditeurs l’art de résoudre des conflits de la vie quotidienne” (Baudouin, 2010BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
    http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9e...
    , p. 128-129).
  • 6
    Original - “Par sa pratique singulière de la radio, il va tenter de créer un espace de liberté et d’experimentation pour les jeunes auditeurs en leur proposant des contes radiophoniques d’un nouveau genre” (Baudouin, 2010BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
    http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9e...
    , p. 151).
  • 7
    Fonte de financiamento: FAPESP Processo: 2013/21152-3/CAPES Processo: BEX 7915/14-4.

Referências

  • BAUDOUIN, Philippe. Au Microphone: Dr. Walter Benjamin - Walter Benjamin et la création radiophonique 1929-1933. Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l’homme, 2009.
  • BAUDOUIN, Philippe. Féeries radiophoniques. Walter Benjamin au microphone. Les Cahiers philosophiques de Strasbourg, Strasbourg, n. 27, p. 113-138, Juillet, 2010. Disponível em: <http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone>. Acesso em: 17 dez. 2015.
    » http://www.academia.edu/3093482/F%C3%A9eries_radiophoniques._Walter_Benjamin_au_microphone
  • BENJAMIN, Walter. O que é o teatro épico? (2ª versão). In: KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamin Tradução: Flávio Kothe. São Paulo: Editora Ática, 1985. P. 212-218. (Coleção grandes cientistas sociais).
  • BENJAMIN, Walter. Reflexões: sobre a criança, o brinquedo e o brincar, a educação. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002.
  • BENJAMIN, Walter. The Correspondence of Walter Benjamin, 1910-1940 I edited and annotateded by Gershom Scholem and Theodor Adorno. Chicago: The University of Chicago, 1994a.
  • BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I São Paulo: Brasiliense, 1994b.
  • BENJAMIN, Walter. The Work of Art in the Age of its Technological Reproducibility, and Other Writings on Media Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2008.
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  • GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo, Editora 34, 2014.
  • SAVAGE, John. A Criação da Juventude: como o conceito de teenage revolucionou o século XX. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
  • SCHAFER, Murray. Rádio Radical In: ZAREMBA, Lilian; BENTES, Ivana (Org.). Rádio Nova, Constelações da Radiofonia Rio de Janeiro: UFRJ Eco, 1997. P. 27-40.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2019
  • Aceito
    22 Maio 2019
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