Resenha

Michael Schlaefer. Lexikologie und Lexikographie. Eine Einführung am Beispiel deutscher Wörterbücher. Berlin: Erich Schmidt Verlag, 2004 ( 200 p.)

Félix Bugueño Miranda



A obra que comentamos nesta oportunidade é um bom exemplo do desenvolvimento que experimentou a teoria lexicográfica nos últimos anos. A particularidade da obra de Michael Schlaefer (doravante Schlaefer (2004)) é dividir o conteúdo do seu trabalho em duas áreas temáticas intimamente relacionadas entre si: a lexicologia ou teoria geral do léxico e a metalexicografia ou teoria geral do dicionário. É, justamente, esse caráter híbrido que torna Schalefer (2004) um livro de leitura altamente recomendável para quem se ocupa dos problemas dos dicionários, os quais não são poucos, aliás.

A exposição se abre com a apresentação de conceitos básicos do signo lingüístico, mais precisamente do trapézio de Heger, chamado aqui de semantisches Trapez [trapézio semântico] (p. 19), construto muito útil para compreender as relações entre semasiologia e onomasiologia. Há um posicionamento claro do autor frente a temas atuais na discussão metalexicográfica, ao afirmar, por exemplo, que parece quase impossível [“es ist vielleicht kaum möglich”] traçar uma linha divisória absoluta entre o conhecimento sobre a significação das palavras [Bedeutungswissen] e o conhecimento enciclopédico [enzyklopedisches Wissen] (p. 18). Sem dúvida, uma afirmação assim, que pode parecer muito desencorajadora, deve ser um alerta para o lexicógrafo no momento de redigir uma paráfrase explanatória. Uma proposta bastante interessante, por outro lado, é a representação, na forma de um diagrama, da superposição entre o princípio lexicográfico de “genus proximum + differentiae specificae” e a noção de semema (p. 21), no qual se obtém, como resultado, um esquema muito claro e elucidativo. Não poderia deixar de ser mencionado, tampouco, o fato de haver um parágrafo completo dedicado à diferença entre denotação e conotação. É Interessante salientar que a conotação aparece ligada a uma concepção diassistémica  da linguagem, de clara inspiração coseriana. No entanto, não ficamos muito convictos que este seja o  suporte teórico para explicar o fenômeno da conotação, se consideramos que no mesmo parágrafo faz-se referência também à “significação recta” [Hauptbedeutung] e à “secundária” [Nebenbedeutung]. Em relação à significação figurada, o autor afirma que “[sc. a significação] figurada exige, como condição prévia, a existência de um outro semema que atue como motivação [sc. para uma nova significação]” [übertragen setzt das Vorhandensein eines anderen, motivierend wirkenden Semems voraus] (p. 24). Nessas condições, nos perguntamos se essa última observação não corresponde, de fato, à conotação, já que justamente na conotação há sempre um elemento de motivação.

Ainda nessa primeira parte do livro, há vários parágrafos dedicados à morfologia derivacional e que são especialmente interessantes para o germanista. No que diz respeito às formas sintagmáticas complexas, Schlaefer (2004, p. 34-37) faz uma distinção entre “expressões idiomáticas” [Redewendungen], “provérbios” [Sprichwörter] e “frases célebres” [Zitat]. Em relação às primeiras, elas aparecem caracterizadas como sintagmas dentro do enunciado e possuem um claro caráter metafórico. Os provérbios, por outra parte, aparecem caracterizados pela sua independência sintática, já que constituem enunciados totalmente autônimos. Em relação às frases feitas, a sua diferença, segundo o autor, é que a sua origem é, preponderantemente, literária. Esse tipo de sintagma complexo é retirado de textos maiores e ganha um caráter idiomático somente quando é retirado do seu contexto. É especialmente elucidativo um esquema que representa o léxico nas suas relações solidárias, em especial na forma de “famílias léxicas” [Wortfamilien] ou de “campos léxicos” [Wortfelder]. O diagrama tridimensional, proposto por Schlaefer (2004, p. 40), divide o léxico entre um “núcleo” [Zentrum] e uma periferia léxica [Peripherie], em torno das quais o léxico se ordena por classes e por subclasses, articuladas em relações paradigmáticas e sintagmáticas.

Uma complementação à articulação teórica anterior é a apresentação do léxico como diassistema (p. 50), na esteira de Eugênio Coseriu. A partir desse construto, Schlaefer (2004, p.50-60) estabelece as seguintes línguas funcionais: “língua standard” [Standardsprache], “língua coloquial” [Umgangssprache], e “variedades standard” [Standardvarietäten], correspondendo as últimas às variedades diatopicamente diferenciadas. Nesse contexto, merecem destaque os parágrafos dedicados ao que Schlaefer (2004, p. 58-60) chama de “léxico com valor sintomático” [Symptomwertige Lexik], e que corresponde com os eixos diastrático e diafásico do pensamento coseriano, distinguindo-se os seguintes níveis: “poético” [poetisch], “polido” [gehoben], “culto” [bildungssprachlich], “neutro” [unmarkiert], “descuidado” [salopp] e “chulo” [vulgär]. No entanto, o conceito de nível “culto” tem em Schlaefer (2004, ibid.) um entendimento diferente, ligado às particularidades da língua alemã, já que pertencem ao nível culto os empréstimos e o léxico especializado [fachlich bestimmter Lexik]. Pode-se notar que a taxonomia proposta não faz uma distinção clara entre os eixos coserianos anteriormente apontados, questão da qual Schlaefer (2004, p. 51) está ciente ao reconhecer que o nível coloquial pode ser entendido como um nível de estilo [Stilschicht], ou como mais uma língua funcional [als eigenes Teilsystem der Lexik].

Essa primeira parte do livro é fechada por um capítulo dedicado ao câmbio lingüístico, com observações sobre a mudança lingüística, tanto no plano do significante, quanto no plano do significado. Nesse capítulo, há também observações referentes aos empréstimos, estabelecendo-se uma distinção entre eles, os estrangeirismos, os internacionalismos e os decalques.

O capítulo 3 está dedicado na íntegra à lexicografia. Na primeira parte, Schlaefer (2004, p. 78) estabelece os fundamentos sobre os quatro “saberes” que sustentam o trabalho lexicográfico: um saber lingüístico (etimologia, semasiologia, morfologia, etc.), parte de um saber sobre a língua (corpora), um saber lexicográfico (macroestrutura, microestrutura, etc.) e um saber sobre a adequação do dicionário (desenho de um dicionário segundo o tipo de usuário).

Uma questão digna de ser mencionada (e muitas vezes esquecida em obras similares) é a importância atribuída por Schlaefer (2004, p. 83) à necessária integração que deve haver entre os diferentes componentes do dicionário [Wörterbuchteile]. Em especial, devem ser mencionadas as partes complementares [komplementäre Wörterbuchteile], atribuindo-se expressamente às partes introdutórias [front matter] a função de servir de manual de instruções para o consulente, uma discusão que ainda se acha nos primórdios na metalexicografia.

No que diz respeito ao que nós chamamos de “componentes canônicos” do dicionário, isto é, macro-, micro- e medioestrutura, Schlaefer (2004, p.87) oferece um diagrama muito ilustrativo sobre os segmentos informativos em que se divide o verbete de todo dicionário semasiológico. Trata-se de um verdadeiro diagrama de fluxo, que acaba “preenchido” no seu extremo direito pelas informações referentes ao lema Akustik nas suas particularidades fonológicas, morfológicas e semânticas. A única questão que não fica muito clara é o porquê do autor fazer derivar as informações sobre gênero a partir do que chama de “constituinte de descrição” [Beschreibungskonstituente]: não integra, assim, o signo-lema, totalmente, ao comentário de forma. Schlaefer (2004) parece esquecer que o lema possui um duplo status: por um lado, é um elemento dentro de um algoritmo de busca da macroestrutura; por outro, a sua grafia constitui já um segmento informativo do comentário de forma (indicação ortográfica). Assim, tudo o que diz respeito ao signo-lema em quanto forma (ortografia, fonologia, morfologia) é parte do comentário de forma. Em relação à macroestrutura, Schlaefer (2004, p. 88) lembra algo óbvio, mas que também é esquecido muitas vezes, isto é, que a macroestrutura é um princípio organizacional. No tratamento desse tema, o autor distingue entre uma ordenação macroestrutural alfabética e uma conceitual. Em relação à primeira, essa aparece subdividida entre macroestrutura lisa, nicho e ninho léxico. Por sua vez, a disposição macroestrutural alfabética pode ser inicial ou final. Em relação à organização macroestrutural conceitual, destacam-se os casos do dicionário onomasiológico e do dicionário pela imagem. No que diz respeito à medioestrutura, Schlaefer (2004, p. 92-93) menciona dois fenômenos que legitimam a adoção de procedimentos medioestruturais em um dicionário: a variação ortográfica e a variação morfológica. Há também, nesse mesmo contexto, uma referência à necessidade de procedimentos medioestruturais quando o dicionário ganha um viés onomasiológico. Na exposição de Schlaefer (2004), falta, no entanto, qualquer comentário sobre as remissivas nas paráfrases definidoras.

Em relação às definições, Schlaefer (2004, p. 97-98) oferece uma taxonomia muito interessante sobre tipos de definição [Definitionstypen]. São arroladas um total de dez tipos de definições, devidamente descritas e acompanhas de exemplos. O esforço de Schlaefer (2004) é meritório, já que existem poucos trabalhos que possuem um afã taxonômico, embora essa matéria seja de uma importância fundamental para a lexicografia. Como o autor frisa muito bem, uma taxonomia de definições é fundamental porque um mesmo tipo de definição não se pode aplicar aos diferentes tipos de unidades léxicas, assim como determinados tipos de dicionários requerem também tipos específicos de definições. Curiosamente e embora Schlaefer (2004) não entre no âmbito de uma discussão “ontológica” da definição, isto é, o que é que constitui uma definição, o autor reconhece que há informações complementares à definição lexicográfica, tais como referências ao designado ou referências sobre o uso do termo definido, embora essas informações não façam parte da paráfrase explanatória. Sem que seja expressamente dito, Schlaefer (2004) estabelece assim uma distinção entre informações lingüísticas e informações enciclopédicas, uma questão, aliás, que já havia tratado no capítulo inicial do livro.

No que diz respeito às relações paradigmáticas, o autor é muito claro em manifestar que qualquer tratamento da polissemia e das relações sinonímicas ou antonímicas apresenta vantagens e desvantagens, sem que exista ainda uma solução teórico-metodológica completamente satisfatória. É para se destacar nesse contexto uma observação muito pertinente em relação ao fato de a sinonímia poder ser entendida como uma manifestação onomasiológica, de maneira que o lema em um dicionário de sinônimos cumpre o papel de um “traço onomasiológico de caráter geral” [ein sehr allgemeines onomsiologisches Merkmal] que permite o oferecimento de unidades léxicas unidas a ele semânticamente.

Em relação à compilação de uma base de dados, Schlaefer (2004) salienta que um dicionário baseado em um corpus deverá ser sempre o equilíbrio entre o desejo de ser exaustivo em atenção à riqueza de informações que uma base de dados fornece e as limitações próprias de um produto editorial, no que se refere ao financiamento e tempo de execução. Uma questão central apontada pelo autor é a impossibilidade de se oferecer o “perfektes Abbild” de uma língua, de modo que é muito mais produtivo definir um corpus em relação à função que o dicionário venha cumprir, assim como em relação ao seu potencial usuário. Isso constitui uma posição muito razoável frente à neurose que desata a “representatividade perfeita” dos corpora. Uma coisa mais a destacar sobre o sadio “Umgang” dos alemães com os corpora é dizer (ou repetir) o que é óbvio, mas que, no Brasil, parece ser absolutamente desconhecido, isto é, que os corpora já existiam muito antes do computador.

Schlaefer (2004, p. 109-123) não foge, tampouco, ao difícil tema das taxonomias lexicográficas. Como é de praxe na metalexicografia alemã, estabelece, claramente, os limites próprios de uma tentativa classificatória. Assim ,distingue entre classificações por traços livres dominantes [freie Leitmerkmalklassifikationen] e classificações por feixes de traços [geschlossene Merkmaltyp]. Um exemplo de uma classificação por feixes de traços é a proposta por Oskar Reichmann (Heidelberg), que estabelece um feixe com trinta traços que, em relação a um determinado dicionário, podem ser pertinentes [vorhanden], parcialmente pertinentes [teilweise vorhanden] ou não pertinentes [nicht vorhanden]. Schlaefer (2004, p. 109) expõe o positivo e negativo da classificação por feixes de traços, salientando que se, por um lado, a classificação por feixe de traços permite uma caracterização de um dicionário, não permite, por outro, estabelecer um traço arquetípico [Leitmerkmal] para o dicionário, o que é possível por uma classificação por traços dominantes. Alguns desses traços dominantes são o número de línguas, o escopo léxico, o nível de língua descrito no dicionário, o público-alvo, etc.

O livro dedica também um apartado à reflexão sobre o uso de dicionários, propondo um “roteiro de busca de informação” na obra lexicográfica , que consta de dez passos e que começa pela formulação de um problema a ser pesquisado no dicionário e que acaba com a opção de uma nova busca, quando a estratégia empregada para procurar informação se demonstra insuficiente, o que, aliás, costuma acontecer com freqüência.

Schlaefer (2004, p. 130-136) apresenta também uma pequena história da lexicografia alemã, que segue, aproximadamente, os mesmos rumos de toda a lexicografia ocidental, havendo como único diferencial a importância que cobra o Grimmsche Wörterbuch para a lexicografia alemã do século XIX.

O último capítulo do livro, intitulado “Lexikographische Praxis” (p. 137-148) está dedicado ao planejamento na redação de um dicionário, oferecendo uma descrição apurada de cada uma das etapas que compõem a compilação de uma obra lexicográfica, desde como se constitui um corpus, até como se compõe uma ficha, abordando-se também problemas relativos ao tratamento da polissemia no comentário semântico. Nesse contexto, Schlaefer (2004, p. 145) emprega o conceito de “disposição” [Disposition] para se referir à forma como o lexicógrafo disporá, no comentário semântico, as complexas relações no plano do conteúdo que apresenta uma unidade léxica.

Félix Bugueño Miranda

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