Do sentido interno
1 Breve introdução ao “Fragmento de Leningrado”, de Immanuel Kant (Por Fabian Scholze Domingues)
2 Immanuel Kant: Do sentido interno
Observação
A presente tradução foi feita a partir do texto em alemão de uma reflexão de Kant recentemente encontrada em uma biblioteca pública, na cidade de Leningrado. A descoberta recebeu o título em alemão de “Loses Blatt Leningrad,” e, na versão inglesa “Leningrad Fragment.” A descoberta desse texto é tão recente que ainda não consta nas obras completas de Kant, muito embora sua autenticidade e interesse filosófico sejam inquestionáveis.
Do ponto de vista filosófico, essa reflexão interessa por apresentar um argumento ainda desconhecido de Kant contra o ceticismo e por sugerir explicitamente, como consequência, uma interpretação fenomenalista, existencialista ou externista do sujeito kantiano.
O argumento presente no “Fragmento” constitui uma variação do argumento encontrado na “Refutação do Idealismo,” que foi apresentado por Kant somente na segunda edição da “Crítica da Razão Pura” e, desde então, objeto de intensa discussão na literatura especializada. O argumento kantiano presente na “Refutação do Idealismo” consiste em sustentar que a experiência interna pressupõe a experiência externa. O conteúdo do pensamento do sujeito no tempo: eu era, eu sou, eu serei, requer necessariamente a representação de alguma coisa fora do sujeito, alguma coisa que deve ser dada no espaço e que possa servir de conteúdo para a consciência do sujeito da passagem do tempo. Desse modo, sustenta Wolfgang Karl, “não existe conhecimento de meus estados mentais sem conhecimento de que eu sou um objeto no espaço e espacialmente relacionado a outros objetos.” A novidade do Fragmento é introduzir expressamente a exigência desses “outros objetos” como termos indexicais, como conteúdos necessários para a formação da própria consciência do sentido interno – da passagem do tempo. Muito embora o cético idealista possa ser refutado somente com a versão standart presente na “Refutação do Idealismo,” o “Fragmento” introduz um argumento com uma estrutura muito parecida, mas especificamente em termos linguísticos. O conteúdo mental de representações empíricas deve estar necessariamente relacionado a termos indexicais como “eu,” “aqui,” “agora,” “antes,” “depois,” que somente podem ser dados pelo sentido externo e, portanto, devem ser dados no espaço. Considerando que o sentido interno depende, para ter conteúdo, dos termos indexicais, o idealismo também está refutado pelo argumento presente no “Fragmento,” uma vez que a plausibilidade do ceticismo depende da tese, indefensável segundo o argumento kantiano, de que os conteúdos mentais possam ser pensandos independentemente do mundo exterior.
Adicionalmente, segundo Renato Duarte Fonseca, em correspondência não publicada, nessa reflexão “Kant retoma a Refutação do Idealismo em termos que explicitamente fazem do sujeito um ser mundano - um Kant ‘externista,’ ‘heideggeriano.’” Essa interpretação sugerida pelo “Fragmento” fornece importantes subsídios para uma releitura do sujeito transcendental, e, portanto, uma reinterpretação da “Dedução Transcendental das Categorias,” um dos capítulos mais importantes da “Crítica da Razão Pura” e um dos textos mais discutidos da história da filosofia. Ao utilizar os termos indexicais como elementos para uma refutação fenomenalista ou externista do ceticismo, Kant mantém sua filosofia incrivelmente atual nas pesquisas em filosofia da mente.
A literatura crítica do presente “Fragmento” ainda é pequena e em português praticamente inexistente, muito embora seja objeto de atenção em pesquisas em andamento, tendendo a crescer muito dado o grande interesse que os estudos em filosofia da mente despertam em nossas faculdades de filosofia. Além da transcrição alemã publicada do manuscrito original de “Kant Loses Blatt Leningrad 1: Eine neu aufgefundene Reflexion Kants ‘Vom inneren Sinne’”. In R. Brandt and W. Stark (eds.), Kant-Forschungen 1. Neue Autographen und Dokumente zu Kants Leben, Schriften und Vorlesungen. há a versão e comentário em língua inglesa de Guenter Zoeller “Making Sense of Inner Sense: The Kantian Doctrine as Illuminated by the Leningrad Reflexion.” International Philosophical Quarterly 29 (1989): 263-270, e o comentário acima citado de Karl Wolfgang: “Kant’s refutation of problematic idealism.” In: A Companion to Kant. Ed. Graham Bird. Oxford: Blackwell Publishing, 2006.
Agradeço a Renato Duarte Fonseca pela apresentação do “Fragmento,” bem como pelas referências críticas, sem ele esse importante documento não teria sido encontrado.
O tempo é o subjetivo puro da forma da intuição interna na medida em que nós mesmos somos afetados e com isso somente a maneira como nós mesmos nos aparecemos e não como somos. De fato, nós somente podemos nos representar o tempo na medida em que nós nos afetamos através da descrição (Beschreibung) do espaço e da compreensão do múltiplo de sua representação. Através da consciência intelectual nós mesmos nos representamos, mas nós não nos reconhecemos nem como nós aparecemos nem como somos; e a proposição: Eu sou não é uma proposição de experiência, mas sim eu a coloco como fundamento em cada percepção para fazer experiência (um zu machen). (Ela também não é uma proposição de conhecimento). Contudo na experiência interna, que eu faço, eu mesmo me afeto na medida em que eu trago as representações do sentido externo para uma consciência empírica de meu estado. Com isso, porém, eu mesmo me reconheço somente enquanto eu sou afetado através de mim mesmo; na medida em que eu não sou fenômeno de mim mesmo quando eu mesmo me afeto através das representações do sentido externo (essas são representações de fenômenos), pois isso é a espontaneidade; mas na medida em que eu mesmo através de mim sou afetado, pois isso é receptividade. O espaço é na verdade a representação de objetos externos no fenômeno. Somente a apreensão dessas representações na consciência do estado de minhas representações está vinculada (gebunden) ao tempo, cuja representação é unicamente a forma subjetiva de minha sensibilidade, de como eu mesmo me apareço (erscheinen) diante do sentido interno. Disso se depreende que nós não teríamos sentido interno e não poderíamos determinar nosso Ser no tempo se não tivéssemos um sentido externo e representássemos objetos no espaço como distintos de nós.
Precisa-se distinguir a apercepção pura da empírica, apperceptio percipientis da apperceptiva percepti. A primeira diz somente eu sou. A segunda eu era, eu sou e eu serei, isto é, eu sou uma coisa do tempo passado, presente e futuro, onde essa consciência “eu sou” é comum (gemein) a todas as coisas como determinação do meu Ser como grandeza. A última é cosmológica e a primeira é puramente psicológica. A apercepção cosmológica, a qual observa (betrachten) meu ser como grandeza no tempo, me coloca em relação com outras coisas, que aí estão, estavam e estarão, pois a simultaneidade não é uma determinação do real em oposição ao percipientis, mas sim ao percepti, porque a simultaneidade apenas é representada naquilo que pode ser percipirt [percebido] tanto para o passado quanto para o futuro, o que não pode ser o Ser do percipientis, que somente pode ser visto de maneira sucessiva, isto é, para o futuro: - o que é dado precisa, antes de ser pensado, ser dado somente enquanto fenômeno. Portanto, uma existência cosmológica é somente a existência enquanto fenômeno. Imediatamente eu não sou a mim mesmo um objeto, mas sim somente aquele que dessa forma percebe um objeto. Apenas na medida em que eu apreendo objetos no tempo e, por sua vez, objetos do espaço, eu determino meu ser no tempo – é necessário que eu possa me tornar consciente do meu a priori como em oposição a outras coisas ainda antes da percepção das mesmas, consequentemente que minha intuição, como uma intuição externa, diante da consciência de minha impressão, pertença à mesma consciência, pois o espaço é a consciência dessa relação real. Se eu for aqui afetado, então não é necessário fazer inferências para a partir disso definir o Ser (Daseyn) de um objeto externo porque é exigido para a consciência do meu próprio ser no tempo, portanto para a própria consciência empírica (do ser simultâneo), e eu assim o reconheço como a mim mesmo. Eu tenho consciência de mim mesmo como ser no mundo imediata e originariamente e somente através disso o meu próprio Ser (Daseyn) é definível como fenômeno e como grandeza no tempo.
Para me tornar consciente da existência de um particular (Einzelnen) é necessário uma inferência de poucas representações definidas no espaço; porém, a observação do espaço em si comprova que existe algo externo a mim sem a qual (a observação do espaço em si) não pode surgir da forma do sentido externo e sem ele também nem a imaginação. Consequentemente funda sua possibilidade em algo externo a nós como um sentido realmente externo. Ser afetado pressupõe necessariamente algo externo, baseia-se, portanto, inteiramente em algo externo. Que nós próprios possamos nos afetar (se deve existir em geral um sentido, é uma tese que deveria pelo menos ser aceita) somente é possível através do fato de que nós apreendemos as representações de coisas que nos afetam, isto é, as coisas externas, pois, através disso, nós próprios nos afetamos e o tempo é, na verdade, a forma da apreensão das representações que se referem a algo externo a nós.
Na verdade, a dificuldade está em que não se pode compreender como um sentido externo seja possível (o idealista precisa negá-lo), pois o externo precisa ser representado antes de um objeto ser unificado (hineinsetzen). Não tivéssemos contudo sentido externo, assim também não teríamos um conceito disso. Mas que algo externo à minha representação corresponda e contenha o motivo da existência da mesma não pode ser uma percepção (Warnehmung); precisa, portanto, situar-se unicamente na representação do espaço como forma da intuição, que não pode ser derivada do sentido interno, na qual (worin), por sua vez, pode ser pensada a conexão ou o comportamento das coisas que são distintas entre si. O fundamento de não sustentar isso como pura determinação interna e representação de seu estado é porque lhe falta a permanência na mudança das representações.
A consciência de nossa receptividade sob o ponto de vista de fundamentos internos ou externos da determinação de nossa representação e da forma da intuição sensível com ela relacionada precisa acontecer a priori em nós (sem que tenhamos de inferir a última das percepções reais), porque senão o espaço não seria representado a priori em nós. O espaço não pode ser dissociado de fundamentos internos da determinação da força representativa (Vorstellungskraft), porque tudo nele seria representado como externo a nós e é impossível se pensar representações existindo no espaço. Como consequência do sentido interno nunca poderiam existir tais representações de espaço, o que precisaria poder acontecer da mesma forma, porque pelo menos precisa ser possível tornar-se consciente de tais representações como pertencentes ao sentido interno. É impossível, portanto, que não exista sentido externo, nem apenas sentido interno e, quando muito, conclusões acerca das percepções reais dos mesmos de algo externo a nós, porque senão objetos do sentido interno (representações) também teriam de ser pensados como no espaço.
Achamos conveniente acrescentar à tradução acima o texto manuscrito de Immanuel Kant.