O matador de dragões - Rainer Maria Rilke

tradução de Filipe Kegles Kepler


 

Nota

 

 

 

Era uma terra bela e fecunda, com florestas, campos, rios, ruas e cidades. Um rei fora empossado por Deus: um ancião, mais velho e altivo do que todos os reis dos quais já se tenha ouvido algo crível. A única filha desse rei era uma moça de grande juventude, anelo e beleza. O rei era aparentado com todos os tronos da redondeza, porém sua filha era ainda uma criança, e sozinha, como se não tivesse família alguma. Seguramente, eram sua brandura e benevolência e o poder de seu rosto sereno a causa inocente da existência daquele dragão – o qual, quanto mais ela crescia e desabrochava, mais se avizinhava, até que por fim sentou-se, como o próprio Terror, na floresta defronte a mais bela cidade do país. Pois existem misteriosas relações entre o Belo e o Terrível; em um determinado ponto, ambos se completam, como a vida ridente e a morte diária e próxima.

Não se diz com isso que o dragão fosse hostil à jovem senhora, assim como ninguém pode dizer, sem sombra de dúvida, se a morte é adversária da vida. Quiçá o grande e fervente animal se deitasse como um cão ao lado da bela moça e, quiçá, apenas a monstruosidade da própria língua o impedisse de acariciar, em humildade animal, as lindíssimas mãos. Contudo, naturalmente não se haveria de pô-lo à prova, uma vez que o dragão era impiedoso contra todos que porventura entrassem no círculo de sua força e, comparável a uma morte visível, tudo agaturrava e retinha, inclusive rebanhos e crianças.

A princípio, o rei há de ter percebido com grande satisfação que essa adversidade e esse perigo transformavam muitos jovens de sua terra em homens. Estes jovens, de todas as castas – nobres, seminaristas e criados –, partiam como para uma terra estranha, distante, possuíam o heroísmo de uma única ardorosa e febricitante hora, na qual encontravam vida e morte, e esperança, e medo, e tudo o mais – como num sonho. Após algumas semanas, já ninguém mais se lembrava de contar esses filhos destemidos e de registrar seus nomes em algum lugar. Pois, em dias de aflição como estes, o povo habitua-se também a heróis: eles já não são mais algo extraordinário. A emoção, o medo, a fome de milhares clama por eles – e eles estão lá, como uma necessidade, como pão, procedentes daquelas últimas leis que, mesmo nos tempos de calamidade, não deixam de vigorar.

Todavia, como o número daqueles que se sacrificavam após uma resistência desesperançada continuasse a crescer, como quase em toda família do país o melhor filho (e, muitas vezes, ainda na flor da juventude) caíra em combate, o rei começou então a temer, e com razão, que todos os primogênitos de sua terra viessem a morrer e que muitas donzelas tivessem de tomar sobre si uma viuvez virginal pelos longos anos de uma vida sem filhos. Ele, então, negou a seus subalternos a luta. Porém, a comerciantes estrangeiros que, tomados por um horror inominado, fugiam da terra flagelada entregava ele uma mensagem que reis em situação semelhante propalavam desde tempos antigos: aquele que conseguisse libertar a pobre terra desta grande morte, este obteria a mão da filha do rei, fosse ele da nobreza ou o último filho de um verdugo.

E mostrou-se que também o estrangeiro era repleto de heróis e que o grande prêmio não perdia seu atrativo. Os forasteiros, porém, não eram mais felizes que os nativos – vinham tão-somente para morrer.

Nestes dias, deu-se uma mudança na filha do rei. Se até então seu coração, opresso pela tristeza e pelo destino do país, rogava pela destruição da besta, seu ingênuo sentimento, uma vez que ela fora prometida a um poderoso desconhecido, aliava-se agora ao flagelador, ao dragão; e chegou a tal ponto que ela, na honestidade do sonho, inventava preces a seu favor e reclamava a mulheres santas que tomassem o monstro sob sua proteção.

Certa manhã, ao acordar cheia de vergonha de tais sonhos, chegou-lhe aos ouvidos um rumor que a horrorizou e perturbou. Contava-se de um jovem que, sabe-se Deus de onde, viera para lutar e que, no entanto, não logrou matar o dragão, mas conseguiu, ferido e sangrando, desvencilhar-se das garras do execrando inimigo e esconder-se na floresta fechada. Lá, encontraram-no inconsciente, frio em sua fria casca de ferro, e trouxeram-no para uma casa onde ele agora jazia em febre profunda, o sangue quente sob as ataduras ardentes.

Ao ouvir esta notícia, de bom grado teria a jovem – assim como estava, em suas vestes de seda branca – corrido pelas ruas a fim de tomar o lugar do doente à beira da morte. Porém, quando as camareiras a vestiram, e ela viu seu lindo vestido e seu rosto triste ir e vir nos muitos espelhos do castelo – ela, então, perdeu a coragem de arrojar-se a algo tão excepcional. Ela sequer teve forças suficientes para mandar qualquer criada de confiança até a casa na qual jazia o enfermo desconhecido, a fim de mitigar-lhe os sofrimentos com uma boa compressa ou um bálsamo suave.

Entretanto, havia nela uma inquietação que quase a fez adoecer. Ao cair da noite, estava sentada à janela, tentando adivinhar a casa na qual o homem desconhecido jazia à beira da morte. Pois, para ela, era natural que ele morresse. Apenas Uma poderia, talvez, salvá-lo, mas Esta era covarde demais para procurá-lo. Este pensamento – o de que a vida do herói ferido estaria nas suas mãos – não mais a deixou. Por fim, este pensamento a empurrou, após o terceiro dia, passado em meio a tormentos e auto-reprimendas, noite adentro, numa escura, inquieta e chuvosa noite de primavera, pela qual ela perambulou como por um quarto escuro. Ela não sabia pelo que haveria de reconhecer a casa que procurava. Não obstante, logo a reconheceu numa janela que estava aberta, numa luz que ardia dentro do quarto – uma longa e estranha luz, junto à qual ninguém seria capaz de ler ou dormir. Lentamente, ela passou pela casa, desamparada, pobre e mergulhada na primeira tristeza de sua vida. Ela seguiu e seguiu. A chuva havia parado; sobre uma faixa de nuvens havia estrelas grandes e isoladas, e, em algum lugar de um jardim, um rouxinol cantava o início de sua estrofe, que ainda não conseguira concluir. Em tom de pergunta, ele a entoava repetidamente, e sua voz emergia do silêncio, enorme e poderosa, como a voz de um pássaro gigante cujo ninho descansasse sobre as copas de nove carvalhos.

Quando a princesa finalmente ergueu os olhos do vasto caminho, olhos estes cheios de lágrimas, viu uma floresta e atrás desta uma faixa de manhã. À frente desta faixa erguia-se algo negro que parecia aproximar-se. Era um cavaleiro. Instintivamente, ela embrenhou-se nos arbustos escuros e molhados. Ele passou cavalgando por ela, vagarosamente, e seu cavalo estava preto de suor e tremia. Ele mesmo parecia tremer: todos os anéis de sua armadura ressoavam, levemente, uns nos outros. Sua cabeça estava sem o elmo, suas mãos nuas, a espada pendurava-se, pesada e cansada. Ela viu seu rosto de perfil: era quente, com os cabelos revoltos.

Ela o acompanhou com os olhos por muito tempo. Ela sabia: ele matara o dragão. E sua tristeza a deixou. Ela não era mais uma coisa perdida e esquecida nesta noite. Ela pertencia a ele, a este herói desconhecido, trêmulo; era sua propriedade, como se fosse uma irmã de sua espada.

Então, ela correu para casa a fim de esperá-lo. Passou aos seus aposentos sem ser percebida e, tão logo foi possível, acordou as camareiras, mandando que lhe trouxessem o mais lindo de seus vestidos. Enquanto a vestiam, a cidade despertou para uma grande alegria. As pessoas rejubilavam e, nas torres, os sinos dobravam sem cessar. A princesa, que ouvia esse som, de repente soube que ele não viria. Ela tentou imaginá-lo embalado pela ruidosa gratidão da multidão – não conseguiu. Ela buscava, quase angustiadamente, reter a imagem do herói solitário, do trêmulo, como ela o tinha visto, como se fosse crucial para sua vida não se esquecer disso. E ela estava de ânimo tão festivo que, embora soubesse que ninguém viria, não interrompeu as camareiras que a ataviavam. Ela deixou que lhe entrelaçassem pérolas e esmeraldas nos cabelos, os quais, para grande admiração das criadas, estavam úmidos. A princesa estava pronta. Ela sorriu para as camareiras e, um tanto pálida, passou pelos espelhos ao som de sua cauda branca, que lhe vinha longa atrás. O encanecido rei, grave e digno, encontrava-se sentado na alta sala do trono. Os velhos paladinos do reino estavam de pé ao seu redor e refulgiam. Ele aguardava pelo herói desconhecido, o libertador.

Este, no entanto, cavalgava já longe da cidade, e sobre ele pairava um céu repleto de cotovias. Se alguém lhe tivesse lembrado do prêmio, quiçá ele, sorrindo, retornasse. Ele o esquecera por completo.

 
 
Nota

[1] A tradução foi feita a partir do texto original alemão. (1895) In: RILKE, Rainer Maria. Sämtliche Werke (5 Bde.). Frankfurt am Main: Insel, 1961, Band 4, p. 587 – 591.


Filipe Kegles Kepler
Aluno do curso de Bacharelado em Letras da UFRGS. UFRGS, Instituto de Letras, Setor de Alemão. Avenida Bento Gonçalves, 9500, Cep: 91540-000, Porto Alegre, RS, Brasil. Tel: 55 51 3308-6696; Fax: 55 51 3308 7303. E-mail: filipe.kepler@gmail.com
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