CATARINA DE SENA:
UMA ESCRITORA DO SÉCULO XIV

José do Nascimento 1

 

Resumo: O objetivo deste artigo é apontar algumas leituras sobre Santa Catarina de Sena. Pretende-se perceber como se refletem as visões teocêntricas e antropocêntricas da sociedade na obra da senense, considerando a representação imagética do seu mundo imagético. Para fins didáticos, inicialmente será apresentada uma breve síntese da vida e da obra da autora. Num segundo momento, a partir de alguns elementos do seu contexto espiritual,será discutido como o ‘eu’ foi representado dentro da literatura, e como esta refletiu as mudanças nas concepções de mundo..

Palavras-chave:Literatura; Identidade; Catarina de Sena.

“Em nome de Jesus Cristo crucificado e da amável Maria [...]” 2, convido-vos a fazermos um caminho um tanto inusitado para muitos e para poucos. Simplesmente a trajetória de uma alma que busca o seu Jesus doce, Jesus amor. Catarina de Sena, consagrada leiga da Terceira Ordem dos Padres Predicadores, viveu um amor apaixonado por Deus e pelo próximo. Encerrou-se em seu quarto por um determinado período de sua vida, saía somente para ir à missa e se confessar, alimentava-se pouco. Orava o dia todo e seu quarto se iluminava cada vez que ela se entregava com fervor às suas orações. Era visionária e extática. Lutou ardorosamente pela restauração da paz política na Igreja. Embora analfabeta, ditou um livro intitulado O Diálogo da Providência e 381 cartas endereçadas para papas, reis, rainhas e líderes, como também ao povo humilde e para os religiosos. As suas ideias teológicas com teor claro, sua mística o que a coloca entre os doutores 3 da Igreja. Santa Catarina de Sena morreu em 1380, com 33 anos de idade.
Seus escritos se encontram dentro da literatura religiosa devocional do século XIV. Essa ficção herda as experiências, as conquistas e as tendências do século anterior. Coloca-se tal literatura no patamar devocional ou menor em relação às obras de Francesco Petrarca, com o Canzoniere, de Dante Alighieri, com a Divina Commedia e de Giovanni Boccaccio, com o “Decameron”. As obras dos três autores são colocadas no cânone da literatura mundial, como grande expoentes nos seus diferentes estilos, ao passo que São Francisco de Assis, Jacopo Passavanti e Domenico Cavalca são considerados, com a santa senense, como menores.
A literatura religiosa não ostenta um poeta do porte de Iacopone da Todi (1230 ou 1236-1306), mas possui belas páginas poéticas, talvez mais apreciadas e conhecidas do que as Laudes como, por exemplo, O Cantico del Sole ou delle Creature, de Francisco de Assis. O tom é frequente, simples e popular. A finalidade é educar de maneira catequética. O valor está na objetividade, na sinceridade, na clareza de expressão. Mais do que documentos literários, são documentos de história de vida e representam o clamor de uma geração irmanada pelo sentimento religioso.
Desta forma faremos uma incursão no campo das representações no processo literário, observando o funcionamento da ação mística. A identidade de Catarina de Sena se deixa entrever através do seu epistolário, a mensagem messiânica. Para sugerir um caminho de compreensão da mística e da mensagem cateriniana, faz-se necessário lançar um olhar nas profundezas de uma linguagem poética composta de metáforas, mitos, ritos e símbolos, próprios ou ressignificados pela cultura 4. Por vezes os escritores místicos escreviam de modo abduzido, estáticos, visionários, a partir das suas experiências pessoais, isto é, dentro do contexto da religião Católica. A Idade Média é, substancialmente, cristã e, por isso, dominada por interesses espirituais.
Assim como os três gigantes, Petrarca, Dante e Boccaccio, também os pequenos, Francisco de Assis, Jacopo Passavanti, Domenico Cavalca, Catarina de Sena, escrevem as suas obras em vernáculo, restando o latim mais no âmbito da religião católica, nos documentos oficiais, nos atos litúrgicos. Na questão linguística, tanto os maiores como os menores fazem uso do dialeto das suas respectivas cidades de origem. Nas suas obras, e, de certa maneira, de modo geral, impõe-se o vernáculo como língua literária, haja vista o crescimento, na Toscana, de belíssimas páginas poéticas em língua literária vulgar. Nesse sentido, de cada comune, somente um entre os vários dialetos locais falados se impõe sobre os outros até se tornar língua literária comum e língua nacional. Isto acontece ou por razões político-culturais ou porque um dos dialetos tem grandes escritores que servem aos outros como modelo, como, por exemplo, no caso do italiano, que se origina do dialeto Fiorentino. Deve-se reconhecer aos Sicilianos um mérito na formação da primeira língua poética italiana, no uso de alguns metros líricos, originais uns, outros derivados da França ou da Provença. Aos Toscanos cabe outro mérito, não menor, por terem enriquecido essa língua. Por fim, Dante empresta-lhe admirável perfeição e variedade de vocábulos e de fraseados, imprimindo-lhe um selo indelével.
Catarina de Senaé filha do seu tempo. Por conseguinte, de uma concepção profunda e enraizada na Igreja e, nesta, no papado. Mas no mesmo tempo é mamma, mãe de papas, reis e rainhas, nobres e plebeus, de gente simples e de cultos. A sua espiritualidade e dedicação a Igreja são profundas, é a sua razão de viver. Sendo uma personagem histórica e imbuída, dentro do seu contexto, na promoção da paz e da reforma dos costumes da sociedade, ela se faz porta-voz do anúncio profético. Forma-se em torno de si um grupo de homens e mulheres que a seguiram até seus últimos dias. Ela faz parte da tradição judaico-cristã, um novo homem, uma nova mulher que “buscaria a vitória de teor profético, messiânico e apocalíptico” (VALLE, 2001, p. 72). Neste emaranhado buscamos as figuras históricas de Adão e Eva que, implantados no paraíso terrestre, pelas suas transgressões, fez com que o ser humano se tornasse culpado da sua nudez. Do barro Deus criou Adão à Sua imagem e semelhança e, a partir deste, Eva. Foram expulsos do Paraíso como consequência do pecado original, depois de adquirirem consciência do bem e do mal. Em razão dessa transgressão, por eles terem comido o fruto proibido, toda a humanidade traz em si a mácula desta infração. A expulsão deles do Paraíso representa uma ruptura que, segundo a narrativa mitológica do capítulo terceiro do Gênesis, sendo Eva a primeira mulher é ela, como a transgressora, o pivô e a causadora de todo mal por ter permitido a entrada do mal no paraíso terrestre e arruinado o plano de Deus.
Uma outra questão a considerar é o advento de Cristo na terra, o novo Adão, pois “pelo sangue deste que temos a redenção, e remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça” (BIBLIA DE JERULASEM, EF. 1,7). O pecado original foi extraído da face da terra, mas os pecados do dia-a-dia precisam ser lavados no sangue do Cordeiro imolado na cruz. Jesus Cristo que veio para redimir o pecado e trazer a Boa Nova, o Evangelho para toda a humanidade. Catarina, uma mulher crente, leiga consagrada no segmento da ordem dos padres dominicanos, dentro de uma Igreja normatizada e estruturada mediante o seu Magistério e sua Tradição, constrói o seu itinerário místico. O cerne desse misticismo esta localizado na theologia crucis,e na unio mystica, a exemplo do Crucificado, representação do Cristo na cruz 5. No caso de Catarina, a união mística é o processo que cruza pela individuação, pelo amor e pela fusão espiritual com Deus. Inclui não só o amor do outro, mas também o amor de si mesma, o que significa aceitar-se de maneira significativa, permitir-se o direito de atingir sua totalidade.
Catarina exorta um leigo anônimo a seguir o caminho estreito de Cristo, na Carta número 60 e com “este temor santo nos leva a um grandíssimo amor, brotando na fonte do sangue do Filho de Deus, derramado para a nossa redenção, a fim de lavar nosso pecado” (CATARINA DE SENA 2005, p. 2001). Inspirada pelo seu Deus, fruto dessa dedicação, vem agraciada pelos estigmas (invisíveis) no seu corpo, pelo êxtase 6, pelas visões e pelas austeras penitências que fazia.

A figura imagética de Catarina
Desta forma, a figura de Catarina e seus anseios torna-se, como modelo imagético bastante coeso desse novo Adão/Homem, imbuída no contexto de transformações políticas, sociais e religiosas do seu tempo, como uma guerreira dentro da linha narrativa de desestabilização das convenções preestabelecidas no contexto misogênico. Vem ao nosso encontro Bronislawo Baczko, que nos fala que o imaginário serve como referencial de controle da vida coletiva e de exercício da autoridade e do poder. Ele acrescenta que a representação do imaginário social é sustentada pela sua hegemonia, e que

 
qualquer poder procura desempenhar um papel privilegiado na emissão dos discursos que veiculam os imaginários sociais, do mesmo modo que tenta conservar um certo controle sobre os seus circuitos de difusão. (BACZKO, 1985, p. 309).

Essas práticas eram um elo de sustentação, “representações da ordem social, dos atores sociais e das relações recíprocas [...], das instituições sociais em particular que dizem respeito ao exercício do poder” (BACZKO, 1985, p. 313). Mas, qualquer que seja o médium, há uma característica forte, digamos metodológica, do mundo medieval: é que ele é enquadrado em tal contexto. Vai a favor do domínio fixo das ordens sociais e preestabelecidas.
Pela relação simbólica com o Ser supremo, a encarnação do Verbo, e pelo vínculo entre Deus e alma, foi possível ao homem medieval buscar continuamente a Revelação e a Graça no seu peregrinar terreno. O mesmo amor profano é conectado com aquele divino por fios de um contato simbólico. Em contrapartida, o homem do mundo antigo grego, o herói, não tinha esta questão de se preparar para a morte e valia para ele o carpe diem, a afirmação de si mesmo e das forças para seguir seu único desejo: viver plenamente o hoje. Contrariamente, no contexto cristão, entra a figura do santo, o qual precisa se anular para que o outro possa ser exaltado. Nesse contexto os gregos não pensaram que o Uno, Deus, seria infinito, porque tal palavra denotava obscuridade, imperfeição, meramente um potencial. Nesta linha, Aristóteles não considerou que Deus pudesse ser considerado o Motor imóvel, como infinito. A esse propósito, Santo Tomás diz que “o ser divino é recebido num sujeito, pois Deus é o seu próprio ser subsistente, como já demonstramos, fica claramente provado que Deus é infinito e perfeito” (AQUINO, 2006, p. 2). Como se pode observar, Tomás de Aquino deu um passo a mais do que seu mestre Aristóteles.
A Idade Média, enquanto categoria analítica, relaciona-se à noção de identidade. Por isso, é um conceito fluidico. A identificação de um espaço como materialidade pode se dar através dos “ritmos de uma prática social quotidiana etnografável, [...] nas imagens resultantes de uma bricolage coproduzida endógena e exogenamente; [...] na permanente construção cultural das variadas mitografias, imagens e narrativas” (CORDEIRO e COSTA, 1999, p. 62). Enfim, estamos nos confins de uma religião penetrada pelos valores simbólicos da identidade cultural, cuja permeação está sendo constituída pelo conceito de medievalidade que, até pouco tempo, esteve ligado às diferenças entre claro e escuro. O que se discute tem a ver com a proposta da concepção relacional de identidade formulada por Barth, segundo a qual a identificação de um determinado grupo é o resultado de sua capacidade em manter simbolicamente as fronteiras de diferenciação que o distinguem dos grupos vizinhos (BARTH apud MONTEIRO, 1997, p. 62).
O que se observa é o forte individualismo religioso, isto é, a educação da própria alma para a virtude e a beatitude. Por uma vida de sacrifício e abnegação, deixavam-se os desejos de lado, reprimindo-os - os seus demônios - para que um novo ser brotasse e houvesse uma transformação de conduta, num processo de metanoia, como transformação em direção ao sobrenatural, no caminho da santidade em direção ao seu interno. Com isto, apresentam-se argumentos para a crítica de uma interpretação naturalista da experiência, escapando da dicotomia helenista entre matéria e espírito, adotando uma oposição hebraica mais profunda entre criação/natureza (que engloba matéria e espírito) e o incriado/sobrenatural, na perspectiva da “cognitio Dei Experimentalis, conhecimento de Deus pela experiência, surgida em diferentes ambientes culturais" (TEIXEIRA, 2004, p. 436).
Assim, deixemos Catarina Benicasa seguir o seu trajeto. Frente a isso, Marilena Chauí afirma que “tomar a experiência como iniciação ao mistério do mundo significa reconhecer que o sair de si é o entrar no mundo. Resta saber, no entanto, como e por que esse entrar no mundo é também nossa volta a nós mesmos” (CHAUÍ, 2002, p. 166). Nesta perspectiva, a ação de sair de si mesmo e ver o outro, seja pelos artefatos construídos pelo ser humano ou pela natureza, faz com que o visitante/morador busque no subconsciente toda a sua bagagem empírica e emocional que, por sua vez, volta para si, mas em nível diferente, porque a ação de sair e retornar cria um terceiro ente (elemento). Para Ronald H. Forgus, “de modo geral, a percepção pode ser definida como o processo pelo qual um organismo recebe ou extrai informações acerca do ambiente”. (FORGUS, 1981, p. 3)
Com isto, perceber o percebido se torna novo e cumpre com a razão do que foi criado, ou seja, especular em ir ao encontro de si mesmo, fazendo-se visitante e dando significação ao ascetismo cateriniano.

 

Catharine of Siena: A 14th Century Writer.

Abstract:The aim of this article is to point out some readings on Saint Catherine of Siena. It is intended at perceiving how theocentric and anthropocentric views of society at large reflect on the works of the Sienese, considering the imagetic representation of her imagetic world. First of all, for didactic purposes, a brief summary of the life and work of Saint Catherine will be presented. After that, the representation of the “self” in the literature, as well as how that literature has reflected changes in world conception, will be discussed..

Keywords:Literature, Identity and Catherine of Siena..

 

1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina–UFSC. Orientadora Profª. Drª. Maria Teresa Arrigoni. E-mail: josefhe34@gmail.com

2 Geralmente Catarina Benicasa, ou, como é conhecida popularmente na Europa, Catarina de Sena, começa as suas correspondências com esta saudação.

3 Doutor da Igreja Católica, (em latim doctor ecclesiae) significa que foi um teólogo cujos pensamentos, escritos e forma de vida, para a Igreja romana, na sua generalidade progrediu de forma excepcional. Todos eles foram considerados modelos de santidade, tal título é atribuído quer por um Papa, quer por um concílio ecumênico, embora nenhum concílio tenha jamais exercido essa prerrogativa; trata-se de uma honra rara. A igreja conta com trinta e três doctores ecclesiae entre os seus múltiplos santos, atribuídos apena a título e após a canonização. A lista tem vindo a engrossar; os três mais recentes doutores da Igreja datam dos últimos quarenta anos e são mulheres: Catarina de Sena e Teresa de Ávila, Teresinha do Menino Jesus. Há que se notar ainda que dos atuais Doutores da Igreja apenas Catarina de Sena era leiga, sendo os demais todos os presbíteros, papas, bispos, diáconos ou religiosos. Veja DROBNER, 2003, p. 11.

4 O termo cultura foi aqui utilizado a partir da análise de Peter Burke, que a entende como “um sistema de significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas em que eles são expressos ou emanados”. (BURKE, 1998, p. 25).

5 Foi constatado o aparecimento dos primeiros crucifixos nos inícios do século XI, fato analisado por DUBY, 1989, p.105-108.

6 Êxtase - (do gr. ékstasis – ex-stare- elevo). 1. Etimologicamente significa sair e permanecer fora de si é um estado de arrebatamento íntimo ou abstração que leva o sensitivo a se liberar dos vínculos somáticos e se projetar em condições de felicidade e paz. 2. Para a Psicologia, também pode ser um processo de histeria com delírios místicos capazes de levar a pessoa a um estágio de felicidade e desligamento material (MARIN, 1960, p.883).

 

Referências:

AQUINO, T. de. Suma Teológica. Q.1, a.7, 1. 1º ed. São Paulo: Loyola, 2006.

BACZKO, B. Imaginação Social. Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Oficial - Casa da Moeda, 1985.

BARTH apud MONTEIRO, P. Globalização, identidade e diferença. Novos Estudos. CEBRAP, nº. 49, nov. 1997.

A Bíblia de Jerusalém. 10ª ed. São Paulo: Paulus, 2001.

BURKE, P. Cultura popular na Idade Moderna. 2ª ed. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

CATARINA DE SENA. Cartas Completas, 1347-1380. Trad. João Alves Basílio. São Paulo: Paulus, 2005.

CHAUÍ, M. de S. Experiência do pensamento. In.: Obra de arte e filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

CORDEIRO, G. I.; COSTA, A. F. “Bairros: contextos intersecção”. In: Velho, G. (org.) Antropologia urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1999.

DROBNER, H. R. Manual de Patrologia. Petrópolis: Vozes, 2003.

DUBY, G.. L’arte e la società medievale. Trad. It., Roma-Bari: Laterza, 1989.

FORGUS, R. H. Percepção: o processo básico do desenvolvimento cognitivo. São Paulo: EPU, 1981.

MARIN, Antonio Royo.Teologia della Perfezione Cristiana. 3ª ed. Roma: Paoline, 1960.

TEIXEIRA, F (org.). No Limiar do Mistério: Mística e Religião. São Paulo: Paulinas, 2004.

VALLE, E. “Medo e esperança: uma leitura psicológica do milenarismo brasileiro”. In. Milenarismos e messianismos ontem e hoje. São Paulo: Loyola, 2001.