GALAAZ – MONGE E GUERREIRO
A INFLUÊNCIA TEMPLÁRIA N’A DEMANDA DO SANTO GRAAL

Gustavo Henrique Rückert 1

 

Resumo: De acordo com Karen Ralls, os romances medievais do graal atingiram o ápice da sua popularidade durante o apogeu da ordem dos templários. Devido ao seu caráter fortemente cristão, a novela de cavalaria A Demanda do Santo Graal foi a obra escolhida para o presente estudo. Conforme sugerem a maioria dos pesquisadores, essa narrativa foi escrita por monges de Citeaux. Nesse trabalho, buscaremos entender as relações que envolviam essas duas ordens, por intermédio de pesquisas históricas, bem como as referências aos cavaleiros templários encontradas no objeto artístico, sobretudo, no herói Galaaz. Como resultado, evidenciamos a influência de São Bernardo na obra e a veneração pelos templários, exemplo real cavaleiresco em paralelo a Galaaz, exemplo ficcional.

Palavras-chave:Cavaleiros templários; Monges cistercienses; Novelas de cavalaria; Imaginário.

Foi extremamente ampla a circulação das novelas de cavalaria no decorrer da Idade Média. Esse gênero origina-se da união das gestas guerreiras – de caráter épico – com o amor cortês – a forma refinada e romântica amorosa como a conhecemos. Tanto o violento e rude tema cavaleiresco quanto as tramas amorosas – nos níveis platônico e carnal – opunham-se aos princípios da Igreja. Além do mais, o imaginário das lendas celtas estava presente nessas narrativas. Toda essa cultura pagã era, possivelmente, vista com olhos temerários pelos defensores da fé cristã.
Sabe-se, entretanto, que reprimir ou censurar as formas de cultura entranhadas em uma sociedade é uma ação fadada ao fracasso. Utilizando-se de meios mais inteligentes, a Igreja apropriou-se da tradição cavaleiresca e do imaginário celta, cristianizando as novelas de cavalaria.
Em 1215, um monge cistercense – conforme sugerem a maioria das pesquisas – escreve La Queste del Saint Graal. Essa obra apresenta um tom moralizante, elevando os feitos da cavalaria e condenando a luxúria como pecado. O herói da obra, Galahad – ou Galaaz, conforme a tradução portuguesa – é um cavaleiro descendente do rei Salomão que vive em simplicidade, castidade e devoção, bem adequado às regras monásticas. Suas habilidades guerreiras e sua aparência física – é o mais forte, destemido e belo já visto – parecem ser um reflexo da pureza de seu espírito. Seu pai, Lancelote – tradicional herói das narrativas não cristianizadas – assume papel secundário na trama por conta do seu adultério com a rainha Genevra. Assim, a obra “contrasta a cavalaria inspirada pelo amor divino [...] com aquela inspirada pelo amor mundano”. (RALLS, 2004, p.157). O próprio graal é um mito originário das lendas celtas que, apropriadas pela Igreja, transformaram-no no cálice sagrado contendo o sangue de Cristo. A demanda acaba tendo o sentido de uma viagem em busca da própria perfeição, uma luta consigo a fim de encontrar o estado divino, alcançado somente pelo cavaleiro perfeito – Galaaz.
Karen Ralls (2004, p.18). afirma que os romances medievais do graal atingiram o ápice da sua popularidade durante o apogeu da ordem dos templários.  “A ordem do templo foi fundada na Palestina no ano de 1118 pelo Patriarca Ortodoxo da Cidade Santa de Jerusalém”. (PARASCHI apud BALDISSERA, 2003, p.231). A função da Ordem era proteger a vida dos peregrinos da Terra Santa. Todavia, o sucesso militar, a devoção e a organização dos templários logo chamaram a atenção de Roma e a ordem passou a ser denominada “a espada da Igreja”. (BALDISSERA, 2003, p.231). “Eram um instrumento de Deus para o castigo dos malfeitores e para a defesa do justo”. (MARMONTI apud BALDISSERA, 2003, p.233).  Em pouco tempo os templários aumentaram as áreas de atuação e as funções bélicas. Acabaram tornando-se ícones do imaginário medieval e contrastavam com os demais cavaleiros pela simplicidade das vestimentas, pela fé e pela rígida regra que seguiam, pois, esses cavaleiros levavam uma vida quotidiana monástica.
Na vida real, a cristianização dos guerreiros seria a forma de solucionar o impasse com a bruta e desregrada cavalaria. A Igreja precisava de guerreiros para combater os infiéis. As mortes nas Cruzadas não foram condenadas, mas sim incentivadas, uma vez que os mortos eram inimigos da Igreja, logo, inimigos do Senhor. O próprio São Bernardo explica a teoria: “Os Cavaleiros de Cristo [...] causando a morte, ou morrendo, quando em nome de Cristo, nada praticam de criminoso, sendo antes merecedores de gloriosa recompensa”. (BALDISSERA, 2003, p.233).
N’A Demanda do Santo Graal, existem muitas referências aos cavaleiros do templo, principalmente relacionadas ao grande exemplo a ser seguido – Galaaz, o cavaleiro perfeito. Os heróis ficcionais d’A Demanda do Santo Graal seriam um reflexo dos templários na vida real, viveriam em simplicidade, cumprindo os rituais monásticos e entregando a vida em favor religioso. Já o banho de sangue constante nas páginas ficcionais – mesmo nas obras de autoria monástica – não era motivo de pecado tendo em vista a realidade das Cruzadas.
Na novela cristianizada, logo quando parte para as aventuras em busca do graal, Galaaz recebe em um mosteiro de frades brancos – assim eram chamados os cistercenses, pois vestiam essa cor em símbolo de pureza – um escudo branco com uma cruz vermelha – a tradicional identificação dos templários.
Os cistercienses e os templários sempre estiveram interligados; afinal, a própria regra desses guerreiros foi escrita pelo cisterciense e organizador da regra de Cîteaux, São Bernardo que sempre simpatizou com o ideal do monge guerreiro.
Na França – de onde emergiu a narrativa – laços familiares uniam as duas instituições que apresentavam irmãos nos dois grupos. (RALLS, 2004, p.84).  Na Península Ibérica – de onde vem a tradução-recriação A Demanda do Santo Graal – sabe-se que os cistercenses patrocinaram ordens militares a fim de expulsar os mouros da região. (DEMURGER, 2002, p.45-46).
As relações entre ambos não param por aqui. Nossa Senhora é a padroeira dessas duas organizações, as únicas isentas do pagamento de dízimas. A punição mais severa que um cavaleiro templário poderia receber era a expulsão da ordem. E “é muito revelador que a única ordem religiosa disponível para um templário faltoso e expulso fosse a dos cistercienses”. (DAFOE e BUTLER apud RALLS, 2004, p.84).
Assim, sabendo da estreita relação entre Citeaux e Templo, e lembrando que a maioria dos pesquisadores atribuem a autoria de La Queste del Saint Graal e da tradução-recriação A Demanda do Santo Graal a mosteiros cistercenses, podemos pensar mais claramente na influência templária para a constituição do herói imaginário. Galaaz recebe o escudo templário que o acompanhará nas aventuras e veste-se de mantos alvos, assim como os cistercenses e os próprios templários que, dessa forma, eram diferenciados dos seus escudeiros.
De acordo com o ritual de acolhimento de um novo templário, o aspirante deveria procurar a ordem com três intenções que deveriam sempre perdurar: afastar-se dos pecados do mundo, praticar o serviço de Nosso Senhor e ser pobre e fazer penitência. Essas que seriam, simplificadamente, as obrigações de um templário, são seguidas por Galaaz com rigor: vive em sobriedade, veste a estamenha – uma cota de pelos não tratados que resultavam em uma textura irritante para a pele – passa grande parte do dia cumprindo orações e horas religiosas, serve como espada de Cristo contra o mal e mantém-se casto, mesmo sendo belo e constantemente tentado por lindas donzelas. A própria etimologia do seu nome sugere isso: o puro dos puros. E no que diz respeito à misoginia, temos outro aspecto relevante: “a ordem do templo é a menos afeita à presença feminina”. (BALDISSERA, 2003, p.234).  A regra escrita por São Bernardo deixa absolutamente claro o distanciamento recomendado: “Acreditamos ser coisa perigosa em qualquer religião olhar com freqüência para caras de mulheres e, por isso, que nenhum se atreva a beijar mulher, nem viúva nem virgem, nem mãe nem irmã, nem tia, nem nenhuma outra mulher.” (PERNOUD, 1974, p.23-24).
Ressalte-se que o beijo, durante esse período, era somente uma marca de cortesia, um hábito, o que aumenta a temeridade dessas palavras em relação ao sexo feminino. Na literatura, da mesma forma, Galaaz evita a qualquer custo o contato com as mulheres que sempre se apresentam desejosas em relação a ele. O herói mal se importa, inclusive, com o suicídio de uma donzela perdidamente apaixonada por ele.
Um fato interessante é o cumprimento da última das três intenções dos templários – ser pobre e fazer penitência. Via de regra, no nosso imaginário habita a imagem medieval do monge autoflagelante extremamente severo consigo e com as marcas desse ritual estampadas em um corpo calejado e doente. Tamanha punição contra o corpo seria impossível para alguém que deve estar apto ao combate em qualquer momento. Da mesma forma, exagerados jejuns poderiam prejudicar a função militar dos monges-guerreiros. Por esse motivo, acreditamos que as penitências dos templários não fossem tão rigorosas quanto às das demais ordens monásticas. Igualmente, o uso da estamenha parece ser a maior penitência de Galaaz. Em relação à alimentação, Pernoud (1974, p.29) afirma que os cavaleiros templários comiam carne três vezes por semana e, durante os domingos, dois pratos de carne.. Esse alto consumo proporcionaria uma razoável quantidade de proteínas para a aptidão física dos guerreiros.  Voltando para a ficção, são famosos os banquetes no castelo de Artur.  O registro da vida monástica permite supor, a partir de um certo momento,  um afrouxamento no rigor da ordem, o que não seria uma exceção em relação às outras ordens.
Ao final das aventuras d’A Demanda, quando Galaaz, Percival e Boorz chegam ao castelo do graal, encontram nove cavaleiros. Segundo Ralls, “imagina-se que seja uma referência velada aos nove templários originais”, fundadores da ordem, reunidos sob o nome de “Pobres Cavaleiros de Cristo”. Somados aos três heróis d’A Demanda, chegam ao número de doze e celebram a comunhão, referência explícita à última ceia. Lá, Galaaz tem uma visão de si crucificado como Cristo e morre. O próprio São Bernardo passou-se por Cristo crucificado em pregações, segundo Ralls (2004, p.170).
Na mesma proporção da grande fascinação atribuída aos cavaleiros templários, desde a Idade Média até os dias atuais, está a grande quantidade de estudos que procura desvendar seus mistérios e sua história. Por intermédio de alguns trabalhos históricos a respeito, analisamos algumas marcas em A Demanda do Santo Graal a fim de refletir a influência desses cavaleiros na novela de cavalaria cristianizada. Através da leitura de maior aporte teórico e, inclusive, repetidas leituras da obra literária, sem dúvida, é possível encontrar inúmeras outras referências e indagações.
O fato é que, a influência torna-se claramente perceptível. É possível que o ideal guerreiro dos monges autores dessa obra fossem os templários. Caso contrário, não encontraríamos tamanhas referências justamente em Galaaz, o grande exemplo dessa obra catequizante, na verdade, o único que pode olhar diretamente para o graal, após o que, morre de maneira extremamente gloriosa para um devoto. Segundo Hilário Franco Júnior (1996, p.159), “o herói é uma espécie de super-homem, de intermediário entre o mundo terreno e o mundo divino no qual cada civilização projeta seus sonhos, fazendo dele uma espécie de síntese idealizada da sociedade.” A sublimação do personagem Galaaz, portanto, pode simbolizar a sublimação dos templários. Nossas reflexões podem nos levar além e podemos imaginar se o cistercense autor da obra não seria um ex-templário, uma vez que os templários expulsos ingressavam em Citeaux. Ou ainda, já que os cistercenses apoiaram as ordens militares na Península Ibérica, se não foi em algum mosteiro de convivência entre as duas ordens que foi escrita a tradução-recriação A Demanda do Santo Graal. Mas todas essas indagações são por demais ambiciosas, e historicamente seria muito difícil encontrar respostas seguras para comprovar ou mesmo inviabilizar esses sobrevôos do pensamento. Não se trata, por fim, de um estudo sobre a autoria da obra em questão. Adotamos para o trabalho a hipótese mais corrente de que se trata de escritos cistercenses. A única conclusão é a de que nesses textos observa-se determinado conhecimento teológico e militar e uma certa admiração pelos templários. A influência de São Bernardo também fica evidente, assim como já apontou Ralls. A viagem de Galaaz é em busca da perfeição espiritual, é uma viagem interna ao ser, obtendo dessa forma a salvação. Da mesma maneira, os cavaleiros templários empenhavam-se em busca da perfeição interior, respeitando uma rigorosa regra e reservando grande tempo para o silêncio, a oração e o repouso. A norma deixa clara que o cavaleiro vive “empenhado em um duplo combate: contra a carne e o sangue, contra as potências espirituais malignas nos céus”. (PERNOUD, 1974, p.19). A grande batalha do idealizado Galaaz e dos exemplares templários era, em suma, espiritual, uma árdua batalha contra o mal, uma batalha solitária e interior. Eis os pensamentos de São Bernardo propagados pelos monges cistercenses. Eis o exemplo real dos templários simbolizados no exemplo artístico de Galaaz.  

 

Galaaz – monk and knight. The templar’s  influence on A Demanda do Santo Graal.

Abstract:According to Karen Ralls, grail medieval romance reached the climax of its popularity during the apex of templar order. Due to its explicit Christian character, the novel of chivalry A Demanda do Santo Graal was the chosen work for this study. Most researchers suggest this work was written by cistercense monks. This study try to understand the relationships between this two orders, by historical research and references to templar knights found in the artistic object, mainly in the hero, Galaaz. The result shows St. Bernard’s influence on the work and the veneration for templar knights, real examples of a knight in parallel to Galaaz, a fictional example. 

Keywords:Templar knights. Cistercense monks. Novels of chivalry. Imaginary.

             


1 Graduando em Letras na UFRGS. Pesquisa orientada pela Profª. Dr.ª Elisabete Carvalho Peiruque. Email: gh.ruckert@ig.com.br. Pesquisa não financiada por agência de fomento.  

 Referências:

BALDISSERA, J. A. A Ordem Soberana e Militar do Templo de Jerusalém (Os Templários) em Portugal na Idade Média e Hoje.In: Encontro Internacional de Estudos Medievais. Anais [do] V Encontro de estudos Medievais 2 a 4  de julho de 2005/ Organizado por Celia Marques Telles, Risonete Batista de Souza. Salvador: Quarteto, 2005. p. 231-236.

DEMURGER, A. Os Cavaleiros de Cristo: Templários, Teutônicos, Hospitalários e outras ordens militares na Idade Média. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. Valtário e Rolando:do herói pagão ao herói cristão. In:  A Eva Barbada. Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. p. 159 – 172.

PERNOUD, R. Os Templários. Trad. Maria do Pilar Delvaulx. Publicações Europa-América, 1974.

RALLS, K. Os Templários e o Graal. Trad. Paulo Soares e Cynthia Cortes. Rio de Janeiro: Record, 2004.