O RIO DE JANEIRO SOB SCHEMATAS:
AS REPRESENTAÇÕES DE THOMAS ENDER

 

Iohana Brito de Freitas 1
Marcos Felipe de Brum Lopes 2

 

 

Resumo:Em fins do século XVIII e início do XIX muitas foram as expedições científicas e filosóficas enviadas as terras de além mar, especialmente ao Rio de Janeiro, que se tornara parte fundamental do Império Português, centro de convergência de pessoas e mercadorias e um cenário promissor para a pena e o pincel dos artistas-viajantes. É neste contexto que direcionamos nosso olhar para os registros visuais de Thomas Ender – pintor enviado ao Brasil com a Expedição Científica Austríaca, em 1817 – refletindo sobre suas representações, esquematas e registros históricos, a fim de entender a imagem que se queria projetar do “exótico território”.

Palavras-chave:Thomas Ender. Artistas-Viajantes. Representações. História e Iconografia. História do Brasil.

Em fins do século XVIII e início do XIX muitas foram as expedições científicas e filosóficas enviadas às terras de além mar, especialmente ao Rio de Janeiro, que se tornara parte fundamental do Império Português, centro de convergência de pessoas e mercadorias e um cenário promissor para a pena dos viajantes e o pincel dos pintores.
As viagens comumente produziam resultados os mais variados: objetos, plantas e animais exóticos, relatos escritos, imagens, verdadeiros inventários. Para isso eram compostas por médicos, botânicos, pintores, enfim, homens da ciência, pessoas que detinham as técnicas da percepção daquilo que merecia o olhar observador e sabiam como registrá-lo. Homens interessados em classificar, documentar e retratar a sociedade dos trópicos, em seus aspectos exóticos, diferentes e pitorescos, assim como nos aspectos que eram comuns à Europa. Vale lembrar que os dados sistematizados eram um componente essencial para o governo à distância; a escrita de relatos e remessas de material iconográfico e natural eram formas de servir ao rei, inserindo, assim, os naturalistas e viajantes nas tramas de poder do Antigo Regime (RAMINELLI, 2005, p. 1-4).
A historiografia sobre o Brasil colonial, no tocante a variados temas, tem usado diversas imagens feitas por esses viajantes como ilustrações da sociedade de então, muitas vezes como um espelho fiel. Alguns argumentariam que seria o caso de relevar o problema em se tratando de obras historiográficas sem compromisso iconológico. O argumento tem certa plausibilidade, porém um olhar cuidadoso sobre a questão da representação (Cf. MITCHELL, 1987; GOMBRICH, 1956) tem muito a colaborar.
Intencionando demonstrar que aquilo que se pinta não necessariamente é aquilo que se vê, que entre o olhar de quem produz a obra e daquele que a consome existe muito mais do que traços, tela, tinta e papel, nas linhas que seguem nos dedicamos aos registros visuais do pintor Thomas Ender (1793-1875) durante a Expedição Científica Austríaca, enviada ao Brasil em 1817, por ocasião do casamento de D. Pedro de Alcântara, herdeiro do trono de Portugal, com a arquiduquesa austríaca Josefa Leopoldina.
Indicado pelo príncipe e chanceler Metternich, Ender integra-se, na função de pintor, à equipe da expedição científica de história natural liderada pelos pesquisadores em ciências naturais bávaros Johann von Spix e Carl von Martius. Em sua curta estada no Brasil, cerca de dez meses, pinta quase 800 obras, dentre panoramas do litoral (alguns produzidos ainda a bordo do navio), cenas urbanas da vida social no Rio de Janeiro, igrejas, edifícios públicos, praças e arredores da cidade. Serão algumas destas obras que guiarão nosso olhar daqui em diante.

Aquarela e óleo: representações de Thomas Ender

Centremos o foco em três das imagens produzidas por Ender: duas aquarelas e um óleo que representam a Igreja da Glória e cercanias do Rio de Janeiro. São imagens que se inserem na tendência crescente no fim do século XVIII e início do XIX, na qual se representa a cidade de dentro para fora, priorizando a vida social ao invés do mapeamento panorâmico feito do mar para a terra. Essa paisagem foi valorizada por outros pintores 3 além de Ender, pois mostrava um belo cenário natural de florestas e mar, a autoridade religiosa no alto do monte e, a seus pés, a cidade do Rio de Janeiro.
Segundo Mitchell (1987, p. 38), a valorização de certos temas ou paisagens é a representação da representação: “[...] vision itself is a product of experience and acculturation – including the experience of making pictures – then what we are matching against pictorial representations is not any sort of naked reality but a world already clothed in our sistems of representation”.
A predisposição para eleger certos temas contribui para formação do estilo e do que Gombrich denominou schemata (GOMBRICH, 1956) 4. O estilo é tudo aquilo que compõe as razões pelas quais o artista transforma o motivo na representação da realidade, em outras palavras, sua interpretação do que vê. O estilo domina mesmo quando o artista tenta ser fiel à realidade, uma vez que ele não escapa às limitações que seu tempo e seus interesses lhe impõe.
O conceito de schemata trabalha com a cultura e a formação intelectual do artista. A cultura, como algo cumulativo, é o campo no qual o artista busca os referenciais para produzir a obra. Todos os procedimentos necessários à formação do artista, o aprendizado de como representar mãos e pés, por exemplo, seu treinamento e especialização em certo tipo de técnica, acabam por definir o estilo e criar estereótipos de representação. Retratar segundo estereótipos é adicionar à fórmula ou ao esquema certo número de elementos distintivos para que o motivo seja reconhecível e aceitável. É como se o artista possuísse um formulário em branco e o preenchesse segundo os preceitos que compõem seu estilo, ou sua schemata, somando os elementos da realidade que diferem os temas uns dos outros, ou distinguem um artista do outro quando ambos incidem sobre um mesmo tema. Porém, esses elementos da realidade não são capturados com neutralidade absoluta, como lembra Mitchell (1987, p. 38), “[...] there is no neutral, univocal, “visible world” there to match things against, no unmediated “facts” about what or how we see. Gombrich himself has been the most eloquent exponent of the claim that there is no vision without porpose, that the innocent eye is blind”.
Ainda que não tenhamos por objetivo aprofundar a questão da schemata em Thomas Ender, este conceito será útil à análise das obras selecionadas.

Figura 1

FIGURA 1

A primeira imagem mencionada, uma pena e sépia sobre lápis, se intitula Vista da Glória e da cidade do Rio de Janeiro 5. O primeiro plano é composto por vegetação variada. São representadas árvores de grande porte à esquerda que enchem a paisagem, enquanto o lado direito se abre para a vista de parte da cidade e da baía de Guanabara. No centro do primeiro plano há vegetação rasteira e pedras sem forte contraste de cores, confundindo-se com a vegetação, a estrada. Em segundo plano está a praia e o elemento principal: a Igreja da Glória, exemplo do barroco luso-brasileiro e construída em 1714. Nela se encontram pessoas, provavelmente religiosos. O fundo do quadro é composto pela baía e pela cidade, onde aparecem o aqueduto da Carioca e o casario do Rio de Janeiro.

Figura 2

FIGURA 2

Já a Vista da Glória, de uma parte da cidade e do porto do Rio de Janeiro 6 é um lápis aquarelado com maiores contrastes de cor. O primeiro plano é apenas um esboço, praticamente sem cor. A Igreja, menos detalhada, se distingue mais da natureza pelo contraste entre o branco da construção e o verde da vegetação. A baía tem lugar de maior importância em relação à paisagem anterior: ganha cor mais viva e é mais vasta, a ponto de se poder ver Niterói e o Forte da Laje. A Igreja divide o protagonismo com a vista da cidade. Ao fundo vê-se a Serra dos Órgãos. Não há pessoas.
A terceira imagem da Glória é um belo óleo cuja legenda é Rio de Janeiro com porto e cercanias. 7 Distingui-se das outras pelas cores e riqueza de detalhes que uma pintura a óleo proporciona. O interessante é que essa obra foi feita em Viena, com base nas duas primeiras, que por sua vez haviam sido produzidas no Brasil.

Figura 3

FIGURA 3

A vegetação do primeiro plano não é homogênea como na primeira imagem, pois o pintor teve o cuidado de detalhar as diferenças entre os tipos de plantas. Há árvores de grande porte em ambos os lados, inexistentes nos esboços, que dão ênfase à natureza. Ainda no primeiro plano há pessoas e animais: seis escravos, duas crianças negras, um branco a cavalo e um cão. Em segundo plano há três pessoas, pelo menos duas certamente são escravas e uma que provavelmente também o é. A igreja é bem semelhante às anteriores quanto à arquitetura. Pareceu-nos que Ender fundiu os elementos de seus primeiros modelos na terceira imagem: o protagonismo da Igreja, a presença das pedras no primeiro plano da primeira imagem; a vastidão da baía de Guanabara e o forte da segunda imagem. Ender, então, criou situações sociais incluindo pessoas e animais recorrentes no Rio de Janeiro do período. Não é de admirar que a maioria dessas figuras fossem escravos!
Algumas questões podem ser abordadas a partir dessas três imagens. Já foi dito que a eleição dessa vista por Ender e por outros pintores é resultado de construções culturais. A natureza, o pitoresco e o poder religioso são traços recorrentes nas pinturas do período, que são, portanto, representações de representações. Além disso, é fácil perceber que, se a última imagem foi produto das duas primeiras, Thomas Ender não a pintou après nature. Partindo dos elementos que capturou no Brasil, o pintor redimensionou e recriou situações verossímeis, mas que não podem ser encaradas como verdadeiras. Não atribuímos a esse procedimento qualquer conotação de má intenção, mentira ou desejo deliberado de iludir o observador. Ele é antes uma prática recorrente na representação figurativa que, de fato, cria uma ilusão.
Portanto, não está em jogo se o artista “mente” em sua representação. Antes, deve-se tentar entender porque ele escolheu determinadas partes da realidade para compor a obra ou porque incluiu certos elementos nela. A resposta está na ação do próprio artista, pois, como afirma Gombrich (1996, p. 108-109), “all art originates in the human mind, in our reactions to the world rather than in the visible world itself, and it is precisely because all art is ‘conceptual’ that all representations are recognizable by their style”.
No caso de Thomas Ender, as composições das paisagens obedecem a um esquema pré-definido de plantas, pessoas e vistas – os tipos estereotipados – como será visto adiante. Vale lembrar que para além de estar inserido em um contexto que valorizava o pitoresco e o exótico, pintava em uma terra conhecida por viajantes e ouvintes europeus como um lugar de exuberância natural e inundado de negros. Grosso modo, sua schemata foi adaptada à priorização da natureza e dos escravos 8 – os últimos, muitas vezes, foram priorizados em relação a todos os outros temas. Por isso o óleo sobre o Outeiro da Glória é composto por tão grande presença de árvores – o que mostra a força da natureza dos trópicos – e por negros escravos – o tipo social mais característico do Rio de Janeiro para os viajantes do período. Não seria exagero dizer que Ender incluiu esses elementos em sua obra feita em Viena porque certamente seria apreciada por europeus, e não nas aquarelas que lhe serviram de modelo produzidas no Brasil que, provavelmente, apenas ele próprio utilizou – procedimento aceitável, tendo em vista que a estada do pintor nos trópicos durou cerca de 10 meses, de 14 de julho de 1817 a 1º de junho de 1818, quando se produziram pouco menos que 800 obras! De certo algumas aquarelas foram produzidas em linhas gerais para serem aperfeiçoadas mais tarde com a técnica do óleo em tela.
Um trecho citado por John Barrell (1992, p. 1) em seu estudo sobre a pintura inglesa dos séculos XVIII e XIX diz:

 
It is indeed commonly affirmed, that truth well painted will certainly please the imagination; but that part which only is delightful. We must sometimes show only half an image to the fancy; which if we display in a lively manner, the mind is so dexterously deluded, the it doth no readly percive that the other half in concealed. Thus in writing Pastorals, let the tranquility of that appear full and plain, but hide the meanness of it; represent its simplicity as clear as you please, but cover its misery. 9

O objeto de estudo de Barrell é bem diferente do nosso, entretanto reforça a discussão. Representar de acordo com o que agrada os sentidos pode não ser somente esconder a parte agressiva, mas também incluir aquilo que os observadores esperam ver. De certa forma, a parte do real não retratada abre espaço para que elementos verossímeis apareçam, mesmo que o pintor não os tenha visto no momento da produção da obra. 
Para finalizar esta seção, seria interessante lembrar – ou relembrar – que representação é apenas uma parte do real, que, passando pelo filtro do artista – sua schemata e sua visão dos elementos naturais – torna-se o resultado de suas escolhas. Estas, por sua vez, estão relacionadas não só com o artista, mas também com aqueles que entrarão em contato com a obra.

Thomas Ender: por uma análise histórica

Circulando sob diversas formas, os relatos de viagem e das expedições científicas integravam, na maioria das vezes, texto e imagem. Esta, embasando-se na idéia de “realismo criativo”, 10 era utilizada para conferir legitimidade ao relato, que objetivava descrever, de modo ordenado, as diferenças encontradas no novo mundo. Assim, em fins do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX, é possível perceber ao menos duas grandes tradições iconográficas que se cruzam nos relatos de viagem: o registro de costumes e o olhar naturalista que procura identificar, classificar e descrever a diversidade da natureza, inclusive humana.
Pode-se dizer que as obras produzidas acerca de ambas as imagens retratadas por estes artistas viajantes que estiveram no Brasil, em sua maioria, têm por premissa discorrer sobre as qualidades técnicas das imagens e sua legitimidade enquanto registro da realidade observada. Neste sentido, vale destacar o comentário crítico de Eneida Sela (2001, p. 7), tratando especificamente das figurinhas aquareladas do desenhista e engenheiro militar português Guillobel, o qual veio ao Brasil em 1808:

 
Para Ferrez e Marques dos Santos, são justamente as habilidades do desenhista e sua capacidade de observação e transcrição de detalhes que tornam aquelas figurinhas 'naturais', 'típicas' e 'definitivas', sendo esses atributos, aqui, relacionados a um estatuto de verossimilhança direta dos modelos retratados. Acabam, assim, limitando-se à dicotomia 'realidade/representação', empobrecendo inevitavelmente o sentido daquelas obras.

No mesmo sentido, Silvia Lara (2002, p. 5), tratando da obra de Carlos Julião, engenheiro militar italiano que esteve no Rio de Janeiro em fins do século XVIII, afirma:

 
nos últimos anos, as imagens produzidas por Julião têm sido reproduzidas em obras que tratam do período colonial brasileiro para “mostrar” aspectos da vida cotidiana ou da experiência escrava. Legendadas como se documentassem diretamente um flagrante da escravidão colonial ou utilizadas – por sua evidente beleza – para compor a capa de vários livros ou simplesmente decorar páginas de edições ilustradas, elas aparecem descontextualizadas e reificadas, como se pudessem ser lidas com ingenuidade, de modo direto e transparente, ou falassem por si próprias. Esta é uma característica bem distante da natureza destas pinturas.

Como já foi dito na seção anterior, tendo em vista o conceito de schemata, muitos tipos pictóricos retratados, ao buscarem ao máximo se aproximarem do real, passam a ilusão de ser a própria realidade. Entretanto, não devemos nos deixar envolver por esta ilusão, visto que acabaria por nos privar da significação intrínseca ao objeto de arte – constituída com base na experiência individual de cada artista, sua trajetória profissional e intelectual, e os espaços pelos quais circulavam, assim como pelo imaginário da época em que a obra foi produzida, seu “público alvo”, e a rede de intertextualidade que se tece entre diferentes artistas, o que nos permite mais de uma leitura sobre seu estatuto. O desafio é então desvendar os códigos de representação e inquirir os textos imagéticos para além das intencionalidades de quem os produziu, buscando elementos que iluminem o acesso a experiências humanas e contextos sociais e culturais na representação.
Neste sentido, nesta parte do trabalho temos por intenção fazer uma leitura histórica dos tipos sociais e mesmo vegetais que aparecem nas composições das aquarelas de Thomas Ender, obedecendo, na maioria das vezes, a um esquema pré-definido de representação pictórica.
Note que ao longo do período que se estende do século XVI a meados do XIX, prevaleceu nas academias de pintura e desenho na Europa a concepção de modelos rigorosos de representação, através de riscos didáticos: os já citados esquemas. Existiam, portanto, conjuntos imagéticos que faziam parte dos conhecimentos de desenhistas, pintores, arquitetos e engenheiros em fins do século XVIII e início do XIX. Thomas Ender, que havia estudado na Academia de Belas Artes de Viena, 11 partilhava destes códigos e das formas de representação de determinadas atividades e estatutos sociais presentes em suas imagens. Pertencia, deliberadamente ou não, a uma intensa rede de intertextualidade iconográfica da qual participavam diversos autores contemporâneos que comungavam deste gênero pictórico. Tinha, provavelmente, aprendido a traçar com lápis e pincel orientado pelas possibilidades estéticas veiculadas por práticas e referências comuns em seu tempo, como as lições dos conhecidos manuais de desenho e pintura e mesmo pelo contato com as obras de outros autores.
Estes procedimentos formais também acabam por corroborar os sentidos de um determinado gênero de representação, cuja intenção não é retratar um indivíduo em especial, mas sim elementos que caracterizam uma ocorrência (profissional, cultural ou social) frequente na realidade representada. Como destaca Silvia Lara (2002, p. 10-11), estas representações não devem ser encaradas como um registro de uma repetição empiricamente observável, mas sim como diretamente relacionada às características da linguagem iconográfica que constitui estas imagens, a qual “ao mesmo tempo em que registrava diferenças e diversidades, efetuava uma interessante operação homogenizadora” construindo “tipos genéricos”. Vale ressaltar que Ender bailou entre o registro de costumes e o olhar naturalista. Suas aquarelas tanto se atêm a determinados tipos − representados isoladamente − quanto dão conta de grandes vistas, envolvendo a natureza tropical, a urbs colonial e os tipos sociais recorrentes neste imaginário. Assim sendo, escolhemos um conjunto de seis vistas e dez tipos isolados, tratando-se ambos de aquarelas, como mote de nossa análise.

Os clichês nas aquarelas de Thomas Ender

Nossa incursão pelas aquarelas de Ender iniciou-se − na primeira seção deste trabalho − na Glória e será ainda neste local que retomaremos nossa análise. Entretanto, agora vamos nos ater a Vista da Glória, 12 aquarela sem forte contraste de cores em que Ender direciona seu olhar do elevado da Glória (onde ficaria a Igreja) em direção à Baía de Guanabara, mais especificamente, Niterói.
O primeiro plano é composto por pedras e vegetação variada, principalmente vegetações rasteiras, nas quais Ender não se preocupa em esmiuçar detalhes. À esquerda pode se ver outro morro cortado por um caminho que leva a alguns casarios cercados de palmeiras e vegetação rasteira, já no segundo plano da imagem, onde bem ao canto esquerdo pode-se ver um grupo de cinco ou seis pessoas de cor não identificada. No caminho, ainda no início do morro, no primeiro plano, pode-se ver uma figura humana negra a carregar um tabuleiro na cabeça. À direita a vista se abre para a Baía de Guanabara e, bem ao canto, são representadas duas palmeiras junto a um aloé e outra vegetação não identificada. No segundo plano, no centro da imagem pode-se ver a praia e, ao fundo, está a baía de Guanabara e Niterói. O que nos salta aos olhos é o local onde se encontra a mulher negra com o tabuleiro. Por que Ender a teria retratado ali? Mera decoração, preenchimento de um espaço vazio?

Figura 4

FIGURA 4

Ora, como destaca Silvia Lara, um censo feito em 1789, que distinguia apenas livres e escravos, computou 168.709 habitantes para toda a capitania do Rio de Janeiro, dos quais 82.448 (48,9%) eram escravos. Na ocasião, a cidade do Rio somava 38.707 habitantes, dos quais 43,4% eram escravos. 13 Vale lembrar que dentre os negros existiam também, mesmo que minoritariamente, trabalhadores livres e forros, os quais não foram computados nesta pesquisa. Acrescente ainda os mulatos, por muito considerados parte do contingente negro, e ter-se-á ideia do montante populacional negro da época. Segundo Luis Felipe de Alencastro (1997, p. 24), em meados do século XIX, os africanos representavam 2/5 do total da população do Rio de Janeiro, o que caracteriza a maior concentração urbana de escravos existente no mundo desde o final do império romano.
Vale lembrar que estes escravos urbanos eram em sua maioria escravos de ganho; realizavam assim outras atividades que lhe prestassem alguma renda, bem como estavam “integrados” ao ambiente da casa como empregados domésticos. Eram eles os responsáveis pelo transporte de água e excrementos e mesmo pelo transporte humano. Muitas das vezes, possuíam barracas, onde vendiam tudo quanto é tipo de mercadoria, além de serem responsáveis por todas as atividades, desde pavimentação de ruas, passando pelo barbeiro à lavadeira de roupa. É, portanto, o negro quem ocupa predominantemente as ruas da cidade, sendo o seu papel majoritariamente de mão de obra, a qual desenvolve suas atividades no meio urbano e suas mediações (Cf. KARASH, 2000).
Isto posto, seria imprudente afirmar que um austríaco que esteve no Rio de Janeiro no início do século XIX a retratar sua natureza, cidade e sociedade, deu menor importância ao tipo social que colocou na Vista da Gloria, priorizando a paisagem. Para um europeu uma população majoritariamente negra em meio a uma natureza tropical e uma arquitetura europeia era no mínimo exótico e digno de nota. Neste sentido a dita imagem de Thomas Ender vem corroborar a idéia de que o que estava se retratando era algo comum, frequente na cidade (no caso a negra do tabuleiro) e não um indivíduo em especial pintado après nature.
Vale destacar que Ender dedicou-se também a retratar tipos isolados, imagens estáticas, interessando-lhe em especial as diferentes nacionalidades dos escravos − os africanos de Angola e os do Congo. Nestes registros, nos quais as figuras humanas aparecem com maior riqueza de detalhes, diferencia nas legendas e nas tonalidades de pele (o que é menos perceptivo) negros, crioulos, mulatos e escravos livres. São, entretanto, as atividades e estatutos sociais registrados por Ender que teremos por prioridade neste trabalho, visto a utilização recorrente destas figurinhas pelo artista em suas representações de paisagens.


Figura 5

FIGURA 5

Figura 6

FIGURA 6

Assim, em Escravas, Ender retrata duas escravas, uma de perfil e braços cruzados e outra carregando na cabeça um tabuleiro com bananas. As vestes desta última constituem-se em saia azul, camisa branca e um manto escuro jogado em um dos ombros. Esta figurinha será utilizada por Ender frequentemente em suas aquarelas, como na Vista da Gloria, no seu já descrito óleo Rio de Janeiro com porto e cercanias, e na aquarela descrita a seguir, Panorama da cidade do Rio de Janeiro visto do terraço do Morro da Conceição. 14 Em proporções muito menores do que as das representações individuais, perdem-se os detalhes, permanecendo o tipo da veste e o tabuleiro, mas não mais identificando-se seu conteúdo.
A ampla vista feita a partir do terraço do alto do Morro da Conceição é projetada, já no segundo plano, no espaço urbano do Rio antigo, alcançando o Corcovado e o Pão de Açúcar ao fundo. Note que não foi por acaso que Ender escolhera este ponto de observação: a elevação da Conceição formava, juntamente com os morros de São Bento, Castelo e Santo Antonio os “majestosos” limites da urbs do Rio de Janeiro colonial, 15 que podem ser observados no segundo plano da representação. No que pauta a vegetação, no canto direito, no primeiro plano, tem-se duas palmeiras acompanhadas por uma cecrópia, junto a outras plantas de menor porte. Acompanhando a beira do terraço, podem-se observar folhas de bananeiras que estariam plantadas logo abaixo. Para além destes espécimes vegetais que também aparecem frequentemente nas aquarelas de Ender 16 e dos limites urbanos, destacamos nesta aquarela a larga utilização de tipos sociais já retratados individualmente pelo artista.

Figura 7
FIGURA 7
Figura 8
FIGURA 8
Figura 9

FIGURA 9

Assim, os Escravos acorrentados com seu feitor, 17 o Comércio d'água no Rio de Janeiro 18 e o negro portando um berimbau (ver Negro-com capim 19) aparecem no primeiro plano desta obra seguindo os mesmos parâmetros simplificatórios descritos na utilização da negra do tabuleiro. Encontramos ainda um grupo de pessoas negras a conversar em torno de um cesto de comida, o qual também é utilizado no óleo, na Vista do Corcovado para o Catumbi e da Serra dos Órgãos e na Vista da elevação de Mata Cavalos após o aqueduto do Rio de Janeiro, pintadas após o seu retorno no atelier de Viena. Esta última vista apresenta ainda mais um tipo que também se encontra representado separadamente: um negro que carrega um fardo de capim à cabeça. É interessante notar que na figurinha isolada, Negro-com capim, mesmo com o fardo na cabeça, o negro leva consigo um chapéu, posicionado acima do capim. Talvez possamos dizer que o chapéu, por ser símbolo de distinção na sociedade de então, signifique que este negro não é escravo e sim trabalhador livre. Vale lembrar que nas imagens em que Ender classifica as figuras como escravos, não encontramos representações humanas utilizando chapéu. Entretanto, este aparece em aquarelas cuja legenda é apenas "negro".

Figura 10
FIGURA 10

Figura 11

FIGURA 11

Ainda que os registros indiquem, durante todo o período colonial, grande variedade de termos para designar pessoas não brancas (como pardos, mulatos, cafuzos, cabras, pretos, africanos, forros), em fins do século XVIII já era bastante forte a associação entre a cor negra da pele e a escravidão. Insuficientes para demarcar a efetiva distinção social, o registro da cor da pele precisava ser reforçado por elementos da linguagem visual das hierarquias sociais nas representações. Preto e negro foram sendo empregados cada vez mais de modo genérico, amalgamando escravos e libertos (ou mesmo livres). Assim sendo, como lembra Eneida Sela (2001, p. 21), devemos atentar aos signos materiais representados nas imagens, pois conduzem a um exercício de decodificação dos estatutos sociais e culturais das figuras retratadas.
Note que as mudanças desencadeadas em 1808, com o enraizamento dos interesses portugueses e consequente interiorização da metrópole no Centro-Sul, influirão nas relações socioeconômicas e no papel assumido pelo Rio de Janeiro dentro da região da colônia, acumulando funções administrativas e mercantis. Ao longo do século, negros – sejam escravos ou libertos (ou mesmo livres) – juntam-se aos brancos pobres compondo numa massa indistinta, socialmente inferior, posta à margem pela sociedade de então. Estereotipados, são os ditos baderneiros, os que não gostam de trabalhar e oferecem perigo à sociedade, os errantes, mendigando e perambulando sem rumo nas ruas do Rio de Janeiro.
Como ressalta Silvia Lara (2002, p. 3), “A condição escrava permitia que a ‘inumerável multidão de negros’ fosse imediatamente percebida como um corpo uno e hostil”. Em seu relato de viagem, o desenhista e engenheiro militar francês Jean Baptiste Debret − que veio ao Rio de Janeiro em 1816, com a Missão Artística Francesa − afirma que os negros eram como “grandes crianças”, preguiçosos e incapazes de realizarem uma “reflexão que leva a comparar as coisas e tirar conclusões” (DEBRET, 1989, p. 256), 20 estando inseridos num sistema escravista tolerante e que ainda por cima lhe dava a oportunidade de se tornar cristão. A impressão deixada pelos estrangeiros é semelhante à registrada por autoridades portuguesas encarregadas da administração colonial:

 
a vida ociosa de immensa quantidade de mulatos e pretos forros, que, ou por não terem officios, em que se occupem, ou por deixarem de exercer os que apprenderão, constituem huma classe de gente vadia, viciosa, e digna dos mais severos e reiterados castigos me indusirão a tomar a deliberação de fazer com cores naturaes o retrato assim da vida criminosa e reprehensivel desta gente. 21.

Podemos perceber aqui a representação que se faz do negro africano e do papel então destinado ao europeu, o de civilizar. Faz-se entender, portanto, o porquê de na maioria das vezes as pessoas de tez escura serem retratadas trabalhando, associadas a objetos de ofício, carregando cestas e tabuleiros. Note que o que está em jogo é a representação do Brasil como um país (em vias de superar suas contradições e tornar-se) civilizado. As misturas de crenças e imaginários estão agora permeadas por um novo cenário, o urbano, que ao mesmo tempo em que diversifica, desenraiza e (des)constrói ideologias.
Tem-se, assim, o comum procedimento de representar uma ocorrência frequente na realidade representada, tipos sociais comuns ao lugar, mais do que uma pessoa em particular, como uma forma de mediação entre a observação de um universo social e a produção de figuras. Assim sendo, estas figurinhas são recorrentes não só nas aquarelas de Ender, mas também na obra de outros artistas que estiveram no Rio de Janeiro no mesmo período ou em tempos próximos – são figuras humanas estereotipadas, que se tornam clichês na pintura e desenho do fim do século XVIII e início do XIX. Assim, apesar das diferenças de traços, de cores e mesmo de indumentárias e adornos retratados, podem se fazer relações/associações entre diferentes obras de diferentes autores, como no caso das figurinhas estereotipadas que “passeiam” nas obras de pintores como Guillobel, Carlos Julião e Thomas Ender.
A prática das “cópias”, constantemente reiterada por autores diversos, costuma ser relacionada ao plágio e a cobiça de outros pintores. Neste sentido, o trabalho do historiador João Fernando de Almeida Prado (1955, p. 328) sobre Thomas Ender é bastante elucidativo. Segundo o autor, “Antes de impresso um trabalho de um artista já era aproveitado por outros! Bastava tivesse valor decorativo ou aspecto curioso para despertar cobiça alheia”.
O autor comete falha anacrônica, uma vez que ao colocar o plágio como algo pejorativo, cobra da época uma noção de direito autoral que é característica de períodos posteriores (Cf. BURKE, 2003, p. 139-140). 22 Palavras como “cobiça” e “decorativo”, além de fortalecerem o anacronismo, atribuem atitudes e ações aos pintores impossíveis de serem provadas. Seria atitude simplista reduzir o intercâmbio de informações imagéticas entre os artistas à condenável cobiça ou mera necessidade de decoração. Antes, como lembra Eneida Sela, a utilização de figuras de Guillobel por Ender reflete exatamente o propósito da produção das figurinhas: registrar uma ocorrência frequente que, justamente por ser recorrente, aparece numa paisagem como algo plausível, mesmo que Ender não as tenha visto enquanto pintava. Ratificando a não preocupação com a questão dos direitos autorais neste período, esta autora, após análise dos álbuns que continham figurinhas de Guillobel, sugere que Guillobel teria uma espécie de mostruário das figurinhas e que costumava copiá-las, até mesmo sob encomenda (SELA, 2001, p 47-48).
Assim Almeida Prado (1955, p. 326) comete o equívoco de atribuir o “saque às figurinhas” de Guillobel ao fato deste ser “exímio conhecedor e desenhistas da realidade social do Rio de Janeiro” (SELA, 2001, p. 69). Segundo Eneida Sela, provavelmente o uso das figurinhas de Guillobel por Ender deveu-se ao fato de julgá-las boas representantes dos costumes locais, apropriadas para compor cenas pitorescas. Vale lembrar que ao mesmo tempo em que Ender, certas vezes, unia várias figurinhas numa mesma aquarela, também desmembrava cenas de Guillobel em suas apropriações – ambos os casos podem ser vistos na já analisada aquarela Panorama da cidade cidade do Rio de Janeiro visto do terraço do Morro da Conceição. Isto significa dizer que o procedimento das cópias era permeado por valorações e escolhas, por reiterações do que era considerado legítimo/plausível e atribuição de novos significados para certos modelos utilizados (SELA, 2001, p. 88-91).
Stanton L. Catlin (1997, p. 84) ressalta que "as obras costumbristas de artistas europeus, em muitos aspectos, veio além de fornecer modelos para ser copiados, dar ímpeto a um novo tipo de observação social e também uma pronta resposta ao mundo que os rodeava".
Assim, mais que simples operação de cópia ou reprodução de modelos aprendidos em exaustivas lições de desenho nas Academias Europeias, estes artistas viajantes partilhavam um certo olhar sobre os tipos retratados e reproduzidos, sendo mesmo provável que alguns tenham se conhecido ou trocado informações. No contexto das viagens filosóficas que tiveram o Brasil como seu laboratório de pesquisa já em inícios do século XIX, observar e colecionar eram mais que um objetivo científico. Estes artistas viajantes estavam encarregados de irradiar cultura e civilização na nova sede da monarquia portuguesa para que se criasse um “ambiente de Corte” e se pusesse em prática um projeto civilizador para o país (Cf. BANDEIRA, 1999; BITTENCOURT, 1967), em um contexto permeado pelas teorias raciais e pelo evolucionismo. 23 As representações vão se forjando e penetrando na cultura brasileira, na construção de uma identidade floreada de elementos que a aproxime do imaginário europeu e crie uma “verdadeira história do Brasil”, por conseguinte estereotipada. Tal fato pode ser observado no caráter de oficialidade conferido aos escritos do naturalista bávaro Carl Friedrich Philipp von Martius pelo IHGB em 1845 (Cf. MARTIUS, 1845). Vale lembrar que

 
assim como havia instruções de viagem para os naturalistas que integravam expedições científicas, é bem provável que existisse também um elenco de temas e situações recomendados aos olhos, conhecido pelos viajantes que se propusessem a observar um universo social estranho nas cidades e vilas visitadas (SELA, 2001, p. 106, n. 28).

Segundo Silvia Lara, isso significa dizer que

 
as cópias e repetições que podem ser observadas (...) não eram nem fruto do acaso, do descuido ou da imprecisão, nem podem ser simplesmente explicadas como uma prática inerente ao gênero do registro de costumes. Correspondem, sim, a uma posição política que informa o olhar e que não pode ser dissociada das imagens que registram (LARA, 2002, p. 23).

Neste sentido, é digno de nota que esses autores compartilhassem mais a intencionalidade do registro e os paradigmas ali envolvidos – representações de representações – do que propriamente a realidade observada. Como afirma Eneida Sela (2001, p. 106),

 
A rede de citações entre eles indica a reiteração e cristalização de alguns temas e suas formas de registro. Assim, é possível encontrar figuras e cenas 'copiadas', 'comungadas' ou simplesmente semelhantes entre pintores contemporâneos, donos de experiências e linguagens pictóricas diversas. Por outro lado, e principalmente, essas analogias sofrem ressignificações importantes, dependendo justamente dos diversos olhares e intenções de cada autor.

A observação de Silvia Lara (2002, p. 21), tratando da obra de Julião, pode aqui se estender a obra destes outros autores, seus contemporâneos, tal como Ender: desvinculam-se tipos sociais e culturais diversos, ao desprezar sua multiplicidade étnica e social, dos contextos propriamente históricos da experiência escrava aos quais estão referidos, direta ou indiretamente, por legendas ou título; por isso mesmo, os desenhos estão longe de simplesmente retratar cenas cotidianas da escravidão – se é que alguma imagem o faz.

Considerações Finais

As obras de arte em geral, principalmente as figurativas, demandam ser analisadas como produto de ideologias, do que indicamos como schemata e da representação (escolhas) que faz o artista daquilo que vê e decide retratar. Foi o que tentamos demonstrar com a comparação das imagens da Glória feitas no Rio de Janeiro e em Viena. A composição das cenas é marcada por elementos verossímeis à realidade vista pelo pintor (lembre-se que esta realidade não é nua, mas passa pelo filtro cultural de quem a vê).
No caso do Rio de Janeiro do século XIX, esses elementos são, em grande parte, os negros. Dessa forma tentamos cruzar o procedimento da schemata com o procedimento de observação do exótico, típico das viagens científicas do período. Em outras palavras, nosso esforço foi mostrar que a schemata do artista, no caso Thomas Ender, foi adaptável à necessidade de representar o negro – o exótico pela cor e pela quantidade. O uso de clichês, além de indicar a circularidade imagética da época, mostra o limite da capacidade de adaptação dos esquemas, uma vez que, não dominando os símbolos que diferenciam os negros, sobretudo quanto à etnia, o artista tende a criar um tipo “universal”, um clichê. 24 O nível de mestiçagem e o estatuto jurídico são os traços mais ou menos perceptíveis de distinção entre negros e entre negros e brancos, em função da gradação de cor da pele 25 e de objetos (chapéus e sapatos), ao menos nas obras de Thomas Ender.
O trabalho não teve a intenção de esgotar a obra de Thomas Ender, tampouco as questões sobre as representações do Rio de Janeiro. São inúmeras as obras que retratam a capital colonial do Brasil: apenas entre luso-brasileiros, poderíamos mencionar Leandro Joaquim, que também fez uso das figurinhas tratadas aqui e foi o pioneiro na representação do social no Rio de Janeiro em fins do século XVIII, Joaquim Lopes de Barros Cabral e Frederico Guilherme Briggs (este era filho de inglês com brasileira), ambos pintores que retrataram o social do Rio na primeira metade do século XIX.  Frente à vastidão dos caminhos que poderiam ser trilhados, a opção por Thomas Ender serviu apenas de impulso a pesquisas posteriores e demanda ainda olhares historiográficos cada vez mais atenciosos.

 

Artigo recebido em 20/10/2008. Aprovado em 29/01/2009.

 

Rio de Janeiro under “schematas”: Thomas Ender’s paintings.

Abstract: In ends of XVIIIth century and beginning of XIXth, many scientific and philosophical expeditions had been sent to “New World”, especially to Rio de Janeiro, that became an essential part of the Portuguese Empire, converging people and merchandises: it was a promising subject for travelers artists. In this context, we look for Thomas Ender images – a painter sent to Brazil with the Austrian Scientific Expedition, in 1817 – thinking about his representations, schematas and historical registers, in order to understand his ideology and connections with this “exotic land”.

Keywords:Thomas Ender. Traveler Artists. Representations. History and Iconography. History of Brazil.

 

1 Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e mestranda em História Social na mesma Instituição. Bolsista CAPES.

2 Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense (2007) e mestrando em História Social na mesma Instituição. Bolsista CNPQ.

3 Na coleção Castro Maia do Museu Chácara do Céu existem pelo menos três obras sobre a vista do Outeiro da Glória: um óleo sobre tela de Nicolas Taunay sob o nome de Vista do Outeiro, praia e igreja da Glória, de 1817; outro óleo sobre tela de T.L. Hornbrook intitulado Vista do Outeiro da Glória (1838) e uma obra anônima, também óleo sobre tela sob o nome de Vista de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, de 1848.

4 Principalmente o capítulo 2.                                                               

5 Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender: 1817-1818. Robert Wagner e Júlio Bandeira (org.). Petrópolis: Kapa Editorial, 2000. Apoio Petrobrás. Imagem 155 (p.270, v.II).

6 Idem. Imagem 156 (p.271, v.II).

7 Ibidem. Imagem 157 (p.272, v.II).

8 Gombrich, quando explica o significado da schemata, diz que não é por ser um modelo pré-definido – um formulário em branco – que deva ser rígida e, por isso, não adaptável. O esquema, com certo grau de flexibilidade é, antes, uma ajuda e não um obstáculo, pois sem um ponto inicial, uma referência, não se podem registrar impressões; num sistema completamente fluido, seria impossível registrar os fatos, pois faltariam referenciais. O modelo ideal está entre a rigidez imutável e a completa fluidez. (GOMBRICH, 1996, p. 109).

9 The Guardian, n° 22, 6 April 1713.

10 O conceito de “realismo criativo” foi desenvolvido por Alexander von Humboldt no estudo do espaço geográfico e humano em suas viagens à América do Sul por volta de 1810, o qual concebia “a representação científica da natureza numa imagem artisticamente conformada”. Sobre o assunto ver LOSCHNER, 1978. Apud. PORTO ALEGRE, 1994.

11 Thomas Ender inicia seus estudos na Academia de Belas Artes de Viena com apenas 13 anos, dedicando-se à pintura de paisagem e à aquarela, o que lhe renderá, em 1817, aos 24 anos, o Grande Prêmio de Pintura da Academia. Vale ressaltar, que nesta ocasião o príncipe e chanceler Metternich, que adquire a paisagem premiada de Ender, torna-se então seu grande incentivador. Destaca-se ainda que ao retornar da viagem ao Brasil à Áustria, Thomas Ender deu continuidade a sua carreira com bastante êxito e chegou a ser professor titular da Academia de Belas Artes de Viena. Neste sentido, pode-se afirmar o quanto os cânones acadêmicos de representação o influenciaram em sua obra.

12 Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender: 1817-1818. Imagem 175 (p.292, v.II).

13 Memórias públicas e econômicas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro para uso do vice-rei Luiz de Vasconcellos por observação curiosa dos anos de 1779 até o de 1789, RIHGB, 47 (1884), p. 27-29. Apud. LARA,2002, p. 2.

14 Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender: 1817-1818. Imagem 765 (p.945, v.III).

15 É interessante notar a forte presença da simbologia do poder religioso nas aquarelas produzidas por Thomas Ender: são as igrejas que demarcam os limites da urbs no Panorama da cidade e, nesta mesma obra, no canto esquerdo - primeiro plano - há uma pessoa pedindo benção a um religioso; a Igreja da Glória é retratada em várias imagens, e a igreja de Santo Antonio e o Convento de Santa Tereza também delimitam limites para o espaço urbano em sua aquarela Vista da Elevação de Mata Cavalos. Vale lembrar que os Prédios Religiosos e Administrativos, assim como a Rua Direita, são os dinamizadores do traçado urbano; é a partir deles que se promove o planejamento urbano colonial.

16 Sugerimos aqui que Thomas Ender, integrando a uma expedição de história natural, para além dos aspectos urbanos atenta-se também à observação dos tipos vegetais típicos do Rio de Janeiro de então. Neste sentido, em suas figurinhas isoladas, encontramos representações de determinados conjuntos de plantas que são recorrentes em suas aquarelas, tais como a palmeira junto à cecrópia, bananeiras e aloés, e mesmo os quatro elementos juntos. Têm-se assim estereótipos vegetais da paisagem carioca oitocentista.

17 Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender: 1817-1818. Imagem 405 (p.230, v.II).

18 Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender: 1817-1818. Imagem 375 (p.500, v.II).

19 Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender: 1817-1818. Imagem 447 (p.572, v.II).

20 É interessante notar que apesar dos relatos de Debret falando da tolerância do sistema escravista de então, em suas pranchas de desenho o negro é muitas vezes representado sendo castigado e oprimido. Entretanto, isto seria assunto para outro trabalho.

21 Correspondências do Conde de Resende com a Corte de Portugal - Ano de 1796 (IHGB, Lata 53, pasta 6): Ofício sobre medidas a serem tomadas em relação aos mulatos e pretos forros, falta de Polícia, criação de Casas de Correção e colonização dos referidos mulatos e pretos forros. 11 de abril de 1796.

22 Mesmo tendo a idéia de “direito autoral” se desenvolvido desde a Idade Média e, sobretudo, com a invenção da Imprensa, Peter Burke distingue entre duas concepções de propriedade intelectual: a “individualista” e a “coletisvista”. A primeira é fruto da nossa modernidade e carrega o significado atual de “direito autoral”, previsto por lei. Já a segunda e típica da Idade Média e Moderna. Burke identifica o uso comum de obras intelectuais até o século XVIII. Como vemos, pode-se notar essa tendência até o século XIX, ao menos no campo da prática pictórica.

23 “No largo período que se situa entre a criação da sociedade dos Observadores do Homem (1799-1805) e o estabelecimento da antropologia moderna, o evolucionismo social corre paralelo ao evolucionismo biológico (...) No contexto do pensamento social em que se movem os cientistas-viajantes, a perspectiva comparativa, classificatória e colecionista é depositária também do romantismo que domina a estética e a literatura da primeira metade do século XIX”. (PORTO ALEGRE, 1994,p. 63).

24 Não ignoramos que alguns artistas dominavam em maior grau a simbologia e a diferenciação étnica dos negros, como Carlos Julião e Joaquim Guillobel.

25 Mesmo percebendo certo nível de mestiçagem na análise das imagens, não nos ativemos às gradações do tipo mulato e cabra, tampouco à diferença do significado entre negro e preto.

 

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