ENTREVISTA COM SABINA LORIGA:
A EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL
Viviane Trindade Borges 1
A historiadora Sabina Loriga é professora da EHESS (École des Hautes Études en Sciences Sociales) de Paris, onde, atualmente, ministra as disciplinas “Grandes tendances historiographiques”, “Les temps: expériences, récits, concepts” e “ Temps, mémoires, histoire”. Sua tese de doutorado Soldats – Un laboratoire disciplinaire : l’armée piémontaise au XVIII siécle foi publicada em francês (1991) e em italiano (1992). Alguns de seus textos foram traduzidos para o português: “A experiência militar” (1996) e “A biografia como problema” (1998); além da “Entrevista com Sabina Loriga: a história biográfica” (2003), realizada pelo historiador Benito Schmidt (UFRGS). Neste encontro com a historiadora gostaríamos de abordar a questão da experiência institucional, tema estudado por Loriga em sua tese de doutorado através do exército Piemontês do Antigo Regime, bem como conhecer seus novos interesses de pesquisa.
Viviane Trindade Borges (VTB): Gostaríamos, primeiramente, que a senhora nos falasse a respeito de sua formação e das motivações que a levaram a escolher o exército piemontês como tema de pesquisa 2.
Sabina Loriga (SL): Meu itinerário de pesquisa é marcado por uma descontinuidade no que diz respeito aos temas de investigação. Minha primeira busca foi sobre a perseguição à feitiçaria no século XVIII. Em seguida, eu me dediquei ao problema da relação entre o indivíduo e a instituição. Eu tentei reconstruir uma realidade institucional a partir de diferentes versões: para este projeto eu escolhi um objeto histórico, relativamente circunscrito, mas relativamente importante, isto é, o exército do Piemontês, do século XVIII. A partir desses estudos, largamente empíricos, eu iniciei uma reflexão, mais especificamente historiográfica e metodológica, sobre a análise desenvolvida durante o século XIX em torno da noção de experiência individual e da relação entre biografia e história.
Em minha pesquisa sobre feitiçaria, tentei reconstruir o pano de fundo social de onde as denúncias partiam. Durante o trabalho, eu descobri que grande parte das acusações foi feitas pelos hospícios, casas de correção, prisões etc. Nessas instituições, as denúncias constituíam, na maioria dos casos, um canal de negociação: através da acusação de bruxaria, o acusador se dirigia à instituição e instaurava um inquérito de ameaça e procura. Em particular, pareceu-me que o cerne por trás das acusações referia-se não só às instituições de assistência ou penitenciárias, mas também a outras, igualmente totalitárias, como asilos, instituições fechadas e separadas da sociedade, mas também e, especialmente, aquelas fornecedoras de assistência social, lugar ou ocasião de inserção social; assim, não apenas às condições de vida impostas pelo internamento, mas a uma situação de não proteção, de não adesão a um corpo social.
Os resultados deste trabalho inicial sugeriram que eu deveria iniciar uma pesquisa sobre o mundo institucional, em particular sobre a relação existente entre indivíduo e instituição na sociedade do Antigo Regime. Quando eu comecei esta investigação, a maioria dos estudos sobre as instituições tendiam a centrar-se nas políticas institucionais voltadas aos indivíduos, aos grupos sociais etc. Pensei que poderia ser interessante inverter o olhar e analisar o espaço institucional através dos seus internados, para reconstruir os diferentes significados do processo interno de institucionalização.
Dois motivos me levaram a revisitar o problema institucional através do Exército e, em particular, o exército no século XVIII: de um lado, tratava-se de uma instituição normal, povoada por indivíduos que possuíam experiências sociais e culturais diferentes (nobres, burgueses, pobres, estrangeiros, católicos, protestantes etc.; por outro lado, ele representava um lugar chave no arquipélago institucional – a ponto de ser considerado por Lewis Mumford 3, Karl Mannheim 4 e outros historiadores como o modelo da fábrica e da prisão.
Neste contexto, o Piemonte parecia ser um exemplo particularmente interessante, pois ele foi o único Estado da península italiana que possuía uma longa tradição militar onde a relação numérica entre efetivos militares e população era muito elevada e o exército deveria atingir um nível profissional bastante satisfatório.
VTB: Gostaríamos que a senhora falasse a respeito da ideia de experiência militar.
SL: Para detectar os diferentes significados da experiência militar, acompanhei três abordagens convergentes. Primeiro, tentei distinguir os elementos positivos desse vínculo, ou seja, as razões pelas quais as pessoas precisam do exército. Então, estudei os níveis de identificação militar que podem ser observados através da prática de diversos atores. Finalmente, analisei as formas de relacionamento que se entrelaçam no interior desse espaço institucional particular.
VTB: Em seu livro Soldats – Un laboratoire disciplinaire: l’armée piémontaise au XVIII siécle, a senhora critica o conceito de instituição total proposto por Goffman. Poderia nos falar um pouco sobre isso 5?
SL: A obra de Goffman é muito variada e extremamente complexa. Em primeiro lugar, durante a sua vida, o autor abordou questões muito diferentes: instituições específicas, como o hospital psiquiátrico; as situações de interação, tais como conversas, ou seja, a língua tal como é falada; ou, ainda, os espaços semióticos. Além disso, mesmo a reflexão teórica de Goffman é muito complexa. Ela foi influenciada por diferentes abordagens. O leque de influências é muito amplo: ele varia de George Mead a Simmel, de Freud a Sartre, de Proust e Durkheim a Kenneth Burke. Dentro de um percurso altamente original, impossível de se explicar apenas por estas influências intelectuais, pode-se, no entanto, destacar, pelo menos, uma discussão: o face-to-face domain. Convencido de que há uma relação essencial entre a macroestrutura social e a microestrutura interacional (sendo esta uma celebração daquela), Goffman escolheu a vida cotidiana como um projeto científico.
Ele baseia seu trabalho na vida cotidiana, em duas perspectivas. Por um lado, ele busca em Freud a ideia de que tudo faz sentido: gestos, olhares, palavras. Se Freud afirma que tudo é sempre sintoma, Goffman diz que tudo é sempre sinal. O social se infiltra nas mais ínfimas ações de todos os dias: os gestos são suscetíveis de uma análise sociológica – e o mesmo pode-se dizer das instituições e outros fatos sociais. Como ele escreveu em 1967, em Interaction ritual, “o gesto que às vezes pensamos serem vazios são, talvez, os mais plenos” 6. Por outro lado, Goffman divide com a antropologia social britânica (em particular, Radcliffe-Brown, mas também Leach e Gluckman) o alargamento da noção de ritual. Ele considera ser necessário abrir tal conceito para outras referências que não só aquelas das cerimônias religiosas, mas estendê-lo a todas as festas seculares (dos bolos de aniversário aos encontros desportivos). Todo seu trabalho sugere que o cotidiano pode ser lido como um conjunto de eventos sagrados e que, portanto, é necessário rever a extensão de domínio do “sagrado”.
A questão da instituição foi tratada especialmente em Asylums, publicado em 1961 7. Duas palavras sobre o nascimento deste livro. Em 1954, havia mais de meio milhão de internados nos Estados Unidos e os números não paravam de aumentar. Funcionários do governo estavam dispostos a tentar qualquer coisa para parar este espiral: eles decidiram fornecer, então, subsídios para que as ciências sociais contribuíssem possibilitando uma melhor compreensão da relação entre a vida social e saúde mental. Neste contexto, o Instituto Nacional de Saúde Mental deu a um sociólogo, John Clause, a tarefa de estabelecer um laboratório de estudos sobre a doença mental. Como parte desse projeto, durante o Verão de 1954, Goffman se manteve durante dois meses em um pequeno hospital psiquiátrico em Bethesda e, em 1955, ele passou um ano no Hospital Saint Elizabeth Washington. Ele viveu neste grande hospital psiquiátrico (mais de 7000 camas!) ao ritmo dos eventos cotidianos, a fim de “estudar tão perto quanto possível a forma como o paciente vivia subjetivamente seus relacionamentos com o ambiente hospitalar”. Durante esta experiência, ele compreendeu a necessidade de denunciar a arbitrariedade dos procedimentos de internamento e a violência suave que havia no hospital psiquiátrico. Asylums, baseado na observação participante, causou um enorme choque. Nos anos seguintes, o livro terá uma influência considerável no movimento pela Organização Europeia de Antipsiquiatria, e também sobre o trabalho de Ronald Laing, na Inglaterra, Franco Basaglia, na Itália, e Maud Mannoni, na França 8. Além disso, o livro terá um impacto significativo mesmo sobre a política governamental: amparado pelo movimento da antipsiquiatria – e também por obras comerciais como Um estranho no ninho, de Ken Kesey – leva o Senado californiano a reformar radicalmente seu sistema asilar em 1967. A este respeito, se hoje certas proposições de Goffman podem parecer banais, note-se que tal banalização é resultante da profunda e imensa onda de choque provocada pelas análises de Goffman.
Asylums foi um livro fundamental, que forçou a consciência ocidental a pensar a doença mental e as condições de vida dos doentes. Parece-me, no entanto, que deve-se salientar três pontos críticos, inter-relacionados. Primeiro, o livro levou o autor a associar instituições profundamente diferentes umas das outras – tais como o hospital, as prisões, os conventos e os quartéis. Durante o debate que se seguiu à publicação de Asylusm, houve a tendência a se nivelar o complexo arquipélago institucional. Além disso, tenho a impressão de que esta imagem compacta não revela nada além do valor negativo da instituição. O mundo institucional aparece socialmente desvalorizado e pouco permeável e a ação é vista principalmente em termos de roubo e não de produção: como um processo gradual e, geralmente, inevitável, o que priva o interno do material que é normalmente utilizado para elaborar a si mesmo. Desta forma, não podemos compreender o apego “positivo”, as razões pelas quais os indivíduos se dirigem às instituições. Este só pode ser visto como o resultado de um processo de domesticação e de identificação com o agressor, colocando o indivíduo numa posição de dependência tal que ele passa a aceitar passivamente os imperativos institucionais.
Finalmente, parece-me que a imagem compacta de instituição leva a subestimar as possibilidades de interação do indivíduo. Na verdade, os modos de ação aparecem inevitavelmente desarticulados e desprovidos de toda dimensão futura (inércia, gestos desordenados) ou mesmo de simples possibilidades de adaptação. De acordo com Goffman, estas formas de adaptação podem ajudar o indivíduo a sobreviver, mas elas não têm qualquer influência real. Os indivíduos descritos por Goffman são indivíduos que atuam por constrangimento e os mecanismos institucionais os colocam em uma situação social deprimente. A instituição não encontra obstáculos para atuar na destruição dos indivíduos, exilados da vida, da “verdadeira” vida, que existe fora dos muros institucionais, construindo uma biografia sempre triste e angustiante, cheia de falhas desoladoras.
VTB: Em Soldats, a senhora aponta que, sob a perspectiva de análise de Goffman, a identidade dos indivíduos perde sua premissa principal, ou seja, seu caráter negociável e não determinante. A senhora pode nos falar mais a este respeito?
SL: Este é outro ponto extremamente complexo. Inicialmente, a análise de Goffman refere-se a alguns estudos sobre o interacionismo simbólico. A perspectiva do interacionismo simbólico é extremamente interessante. Por duas razões principais, inter-relacionadas. Primeiro, ele vê a identidade social como um processo e não como uma estrutura: um dos cavalos de batalha de Herbert Blumer e certos membros da Escola de Chicago era justamente a crítica radical à lógica determinista que inspirou a maior parte das pesquisas sociológicas e psicológicas. Por outro lado, nesta perspectiva de análise, as regras atuam como recursos (e não apenas como fatores determinantes): leva-se em conta as lacunas e ambiguidades das regras, separando o poder da estrutura formal (que podem ser relacionados, mas não têm necessariamente de ser). Note que o foco se dá sobre a forma como as regras são usadas, ou seja, o processo de negociação mútua. Esta perspectiva pressupõe que a identidade individual é um produto do “aqui e agora”, determinado pelo contexto relacional contingente, pelo outro situacional. O indivíduo não tem história, não tem memória ou a memória é consumida imediatamente. Assim, uma das mais frutíferas ideias da abordagem interacionalista, segundo a qual a identidade não é uma estrutura, mas um processo, criou uma nova relação determinista. Encontramos este mesmo problema nas primeiras obras de Goffman: os indivíduos não têm passado no interior. Ele reduz a identidade a um conjunto de qualidades cênicas e ignora a relação entre a identidade situacional e as identidades que os atores trazem com eles em diferentes situações. Desta forma, a ação social é concebida de forma claustrofóbica: a identidade adere à situação particular e permanece privada de toda dimensão passada e futura.
VTB: Em sua opinião, quais os principais desafios para o historiador que se propõe a trabalhar com uma instituição dita “total”, como exército, prisões, hospitais, escolas, conventos etc.?
SL: Hoje, parece-me que o desafio mais difícil é restabelecer, ao mesmo tempo, o peso coercitivo da instituição e a capacidade de interação dos indivíduos. Como acabei de dizer, os livros de Goffmann – como os de Foucault – têm incentivado a assimilação de espaços disciplinares extremamente diferentes de uma mesma taxonomia. Esta assimilação tomou algumas vezes um significado negativo quando se tratava de uma instituição organizada e gerida pelo Estado: a prisão, o hospital, o exército e outras organizações que desempenham uma função social importante foram muitas vezes encaradas com alguma desconfiança. Parece-me que, nas últimas décadas, as ciências sociais tiveram reduzida sua capacidade de agitar a consciência coletiva, o que é necessário para restabelecer a força crítica do trabalho e do conhecimento.
VTB: Para finalizar, gostaríamos de saber quais projetos de pesquisa a senhora desenvolve atualmente e que nos falasse um pouco a respeito das disciplinas que esta ministrando neste semestre na EHESS.
SL: A primeira área de investigação diz respeito às responsabilidades políticas do pensamento. Esta é uma questão extremamente sensível, decorrente da leitura paralela de Burckhardt 9 e Nietzsche, no seminário que estou fazendo com Olivier Abel 10, Isabelle Weit-Ullern 11 e David Schreiber 12. Será possível, desejável, para um historiador ou um filósofo, manter uma atitude externa à política ou ele/ela deve intervir, engajando-se em primeira pessoa nas batalhas políticas de sua sociedade? Existem, sobre este ponto, contrariedades diferentes das romanceadas?
Outro conjunto de questões diz respeito à construção do tempo histórico. No seminário que eu coordeno juntamente com Michèle Leclerc-Olive 13 e Stefano Bory 14, propomos articular os problemas da experiência social e do tempo e seus conceitos, duas dimensões que têm frequentemente sido tratadas separadamente. Também nesta perspectiva, eu comecei uma pesquisa sobre as transformações da “arquitetura temporal” na segunda metade do século XIX.
Entrevista recebida em 22/04/2009. Aprovada em 15/07/2009.
1 Doutoranda do PPG em História da UFRGS, realizou seu estágio doutoral na EHESS (École des Hautes Études en Sciences Sociales), sob a orientação de Sabina Loriga, em 2008/2009. Em sua dissertação de mestrado Loucos (nem sempre) mansos da estância: controle e resistência no cotidiano do Centro Agrícola de Reabilitação do Hospital Colônia Itapuã (2006), abordou questões ligadas às instituições totais. Atualmente, em sua tese de doutorado, Do esquecimento ao tombamento: Arthur Bispo do Rosário, uma biografia em (des)construção, aborda questões ligadas à biografia, à teoria da história, às artes visuais e ao patrimônio cultural.
2 Durante sua fala, Loriga menciona uma série de autores pouco ou nada conhecidos no Brasil. Estes ganharam notas explicativas. Contudo, alguns nomes, como o leitor poderá perceber, dispensam apresentações.
3 Lewis Mumford (1895-1990), historiador americano, especialista em história da tecnologia e das ciências e em história do urbanismo.
4 Karl Mannheim (1893-1947), sociólogo alemão.
5 Os trabalhos do sociólogo canadense Erving Goffman começam a ser mais conhecidos no Brasil na segunda metade dos anos 60.
6 Interaction ritual. Garden City, NY, Doubleday, 1967. Sem tradução para o português.
7 Asylums chegou ao Brasil em 1970, com o título de Manicômios, prisões e conventos (GOFFMAN, 1999). No livro, o autor procura traçar as características das “instituições totais” onde a vida dos indivíduos é normatizada por regulamentações diárias.
8 Responsáveis por introduzir os conceitos e propostas da antipisquiatria em seus países.
9 Jacob Burckhardt (1818-1897), historiador suíço.
10 Professor da Faculdade Protestante de Teologia de Paris.
11 Pesquisadora da EHEPP.
12 Pesquisador na ENS/Paris (École Normale Supérieure).
13 Pesquisadora no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique).
14 Pesquisador na Université de Naples.
Referências:
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1999.
LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escalas. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1998.
. Soldats. Um laboratoire disciplinaire: l’armée piémontaise au XVIIIe siècle. Paris: Mentha, 1991.
Schmidt, Benito. Entrevista com Sabina Loriga: A história biográfica. Métis. História & Cultura, Caxias do Sul, p. 11-23, jun. 2003.